Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
81/04.8TBVLF.C1.S1
Nº Convencional: 1 ª SECÇÃO
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: OBRIGAÇÃO NATURAL
NEGÓCIO GRATUITO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
CÔNJUGE
DESPESAS
DIVÓRCIO
PATRIMÓNIO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
ABUSO DE DIREITO
LIQUIDAÇÃO EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Doutrina: - Almeida Costa Em Noções de Direito Civil, 2ª edição, pág. 36 e 37.
- Antunes Varela, Em Das Obrigações em Geral, , Vol. I, 7ª edição, pág. 15; Vol. I, 9ª edição, págs. 566, 748 e 749.
- A. Reis, C.P.C. Anotado, Vols. I pág. 614 e segs. e V pág. 71.
-Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, pág. 15.
- Pires de Lima e Antunes Varela Em Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, pág. 298, 299 e 351.
- Rodrigues Bastos, Notas ao C.P.C, vol. III, pág. 233.
- Vaz Serra, RLJ, ano 114º, pág. 309.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º, 402.º, 403.º, 404.º, 471.º, N.º1, 566.º,N.º3, 883.º, 1211.º
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 661.º, N.º2, 669.º, N.º1 AL. A), 716.º, Nº1
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 3-12-98, BMJ, 482º;
-DE 7-10-99, BMJ 490º, 212;
-DE 18-9-2003;
-DE 17-6-2007;
-DE 17-6-2008;
- E NOS PROCESSOS NºS 2094/08, 270/2002.C1.S1 E 592/2000.C1.S1.
Sumário : I - As obrigações naturais fundam-se num mero dever de ordem moral ou social, não sendo o seu cumprimento judicialmente exigível, mas correspondendo a um dever de justiça, estando sujeitas ao regime das obrigações civis em tudo o que não se relacione com a realização coactiva da prestação – arts. 402.º e 404.º do CC.
II - Não há uma obrigação natural quando o fundamento da prestação seja um dever de gratidão, de reconhecimento, e a intenção, por parte do autor, de gratificar, retribuir ou compensar um serviço realizado gratuitamente.
III - As prestações e pagamentos realizados pelo autor, enquanto casado com a filha dos réus, numa casa pertença destes, tendo em vista a edificação da habitação do autor e do seu agregado familiar, cujo objectivo se inviabilizou com o divórcio dos cônjuges, não configuram, face às concepções éticas dominantes, deveres morais e sociais que consubstanciem obrigações naturais.
IV - Tendo-se gorado o objectivo de edificação da habitação do agregado familiar do autor, com a prolação do divórcio e consequente separação dos cônjuges, deixou de ter causa a transferência material realizada do património do autor para o dos réus – enriquecendo estes e empobrecendo aquele –, pelo que se justifica a obrigação de restituição, com base no instituto do enriquecimento sem causa.
V - Não há abuso de direito do autor ao instaurar a acção correspondente, pois tendo ficado enriquecido o património dos réus, longe de ofender qualquer valor social vigente, a acção do autor visou, antes, o legítimo e ajustado reequilíbrio entre os patrimónios, o seu e o dos réus, colocando fim ao injusto locupletamento por parte destes.
VI - O preceito constante do art. 661.º, n.º 2, do CPC, tanto se aplica no caso de se ter inicialmente formulado um pedido genérico e de não se ter logrado converter em pedido específico, como ao caso de ser formulado pedido específico sem que se tenha conseguido fazer prova da especificação, ou seja, quando não se tenha logrado coligir dados suficientes para se fixar, com precisão e segurança, o quantitativo da condenação.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I- Relatório:
1-1- AA, residente na Rua M... S... B..., ..., ...º Esq., V..., 4... M..., propôs a presente acção com processo ordinário contra BB e mulher CC, residentes em F... de T..., freguesia de T..., T..., V... N... de F... C..., pedindo a sua condenação na restituição da quantia de € 26.186,89, outro tanto peticionando para sua ex-mulher, DD, filha dos RR., cuja intervenção activa requereu.
Fundamenta este pedido, em síntese, dizendo que enquanto casado com a filha dos RR. viveu, como casal, numa casa pertença destes e em cujos custos de construção comparticipou, pagando alguns materiais e mão-de-obra, própria e alheia, no valor global de € 52.373,76, montante este em que os RR. se enriqueceram e o A. e ex-mulher se empobreceram.
Os RR. contestaram impugnando a matéria alegada para lá da dada como provada na acção com base em acessão industrial imobiliária que entre as partes correu termos (acção ordinária nº 129/98), que em seu entender constitui caso julgado, limitando a procedência da acção à importância de € 2.912,98, correspondente à comparticipação do A. e ex-mulher nas despesas de construção da casa dos RR..
O A. formulou pedido de condenação dos RR. por litigância de má fé, em multa e indemnização extensiva ao pagamento dos honorários de mandatário, sustentando ainda não dever acolher-se o pedido dos RR. de dispensa de pagamento de honorários, face à junção de procuração forense.
No despacho saneador, como questão prévia, foi tacitamente indeferido este último pedido, com base em certo entendimento jurisprudencial.
Após afirmação de que nos autos, no confronto com a acção ordinária nº 129/98, não se patenteia a situação de caso julgado, foi seleccionada a matéria de facto, com os factos assentes e organização da base instrutória, de que houve reclamação por parte do A., com parcial deferimento.
Desta decisão reclamou o A., por obscuridade e contradição (na parte relativa ao indeferimento da reclamação).
Por despacho de 28.9.07 foi indeferido esse pedido com fundamento em que a lei processual não prevê a rectificação da decisão proferida sobre a selecção da matéria de facto, nem pode aplicar-se por analogia o disposto no art. 669º do CPC.
Inconformado com este indeferimento recorreu o A., de agravo para o Tribunal da Relação de Coimbra.
O A. requereu a ampliação do objecto de perícia proposta pelos RR. e, após a oposição destes por impertinência, por despacho igualmente de 28.9.07, foi indeferida a ampliação.
Discordante desta decisão, recorreu também o A., de agravo para o Tribunal da Relação de Coimbra.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, tendo sido a acção julgada improcedente e os RR. absolvidos do pedido.

1-2- Não se conformando com esta decisão, dela recorreu o R. de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo-se aí, por acórdão de 14-7-2010, julgado improcedentes os agravos, mas procedente a apelação e, em consequência, revogou-se a sentença recorrida, julgando-se parcialmente procedente a acção, condenando-se os RR., a título de enriquecimento sem causa, a restituir ao A. metade das importâncias (materiais assinalados e mão-de-obra) com que contribuiu para a edificação do prédio urbano a que corresponde o art. matricial nº ... da freguesia de T..., concelho de V... N... de F... C..., pertencente aos RR., nos valores parciais já líquidos de € 498,00 e € 249,40 e nas demais a apurar em liquidação posterior, em último caso com recurso a juízos de equidade e eventual consideração do valor do uso da habitação de que beneficiou o casal do A., sendo a outra metade imputada ao ex-cônjuge mulher.

1-3- Irresignados com este acórdão, dele recorreram os RR. para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido como revista e com efeito devolutivo.

Os recorrentes alegaram, tendo das suas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- Os Réus, ora Recorrentes, decidiram construir uma casa, a partir de uma garagem e armazém existente ao lado da sua casa de habitação e nela alojar a filha, o genro e as netas. O aqui Recorrente, então seu sogro, encomendou materiais, contratou trabalhadores, acompanhou a obra e pagou parte da mão-de-obra.
2ª- O Recorrido suportou as despesas relativas à grade da varanda e ao portão de entrada, no montante de 498,00 euros, e as relativas aos assentamentos de pedra no valor de 249,40 euros. Realizou as obras de canalizador, abrindo roços nas paredes e lajes e instalando as respectivas canalizações de águas e esgotos, bem como colocou as torneiras e louças, tendo ainda pago parte dos materiais aplicados.
3ª- O Recorrido - que pretendia fosse reconhecida a titularidade da casa, por via da acessão imobiliária, a seu favor e da ex-mulher - viu declarada a improcedência da acção interposta contra os aqui Recorrentes com base em dois fundamentos: decisão de construir da iniciativa dos próprios réus e a não exclusividade na construção (proc. Nº 129/1998 T.J.V.N. Foz Côa)
4ª- Na presente acção, o Autor, alegando o seu contributo para a casa, agora com base no enriquecimento sem causa pediu o seu ressarcimento, com base no enriquecimento sem causa dos aqui Recorrentes.
5ª- A douta sentença proferida em 1ª instância negou a procedência com base na invocação da figura da obrigação natural. Por sua vez, o douto Tribunal da Relação, com um voto de vencido, disse verificarem-se no caso os requisitos do enriquecimento sem causa, basicamente, por se ter defendido que "a participação do A. na construção da obra não visou altruisticamente beneficiar os sogros " e que, com o divórcio, "quem disso beneficiou foram os próprios Réus que viram o seu património aumentado".
6ª- O Tribunal da Relação não ponderou devidamente todos os argumentos desenvolvidos na robusta argumentação da sentença da 1ª instância:
Com, efeito não pode ser ignorado na ponderação do caso:
a) A base económica do casamento traduzida "no dinheiro auferido pelo Autor, os serviços prestados pela mulher cônjuge e nas ajudas dos sogros"
b) A conduta do Autor, pautada pelas " mais elementares normas de civilidade e de justiça pois que: "ao financiar a adaptação da casa dos seus sogros para que melhor (em seu próprio entender .. .) ela pudesse servir de casa de morada da família que compôs com a sua esposa e filhos, o aqui autor agiu como mandam as mais elementares normas de civilidade e de justiça".
c) O carácter justo da acção do Recorrido: "O que está vedado ao autor, precisamente pelo carácter justo que teve a sua acção, é accionar judicialmente qualquer dos aqui réus"
d) O tratamento por igual quanto à contribuição de ambos os cônjuges (um, com dinheiro, o outro, com a sua disponibilidade e apoio pessoal): "porque exigências de modernidade social e jurídica impedem a separação, a esse nível, de qualquer dos elementos do casal”
e) O princípio análogo defendido pelo STJ, no acórdão citado, 18.12.2008: "Este procedimento" (suportar um custo para obras) "é comum e sociologicamente um dado da nossa convivência social que exprime solidariedade familiar, pelo que, razoavelmente, incute confiança e estabilidade que não podem ser traídas por vicissitudes ... "
f) Todo o trabalho invisível da ex-cônjuge do Recorrido: "não houvesse todo o trabalho invisível de suporte do agregado - aquilo a que o povo ainda chama "cama, mesa e roupa lavada ", bem como a guarda e educação das crianças - e jamais sobraria, da profissão do autor cêntimos suficientes para pagar fosse o que fosse ao carpinteiro GG-"A..." ou ao "perito" HH."
7ª- "O autor, ao prover às necessidades do casal integrado pela interveniente e filhos de ambos, cumpriu uma obrigação natural; pode reaver o que prestou, de livre vontade de eventuais beneficiários, não pode accioná-los judicialmente ". (sentença, fls. 11-12)
8ª- Além de que o mesmo acórdão é fundadamente passível da critica constante dos fundamentos da douta declaração do distinto desembargador que votou vencido, ao quais se reeditam:
São eles:
a) A verificação no caso de causa justificativa para a deslocação patrimonial: "é que as obras efectuadas vieram efectivamente a cumprir o destino que era a sua causa, visto que foram efectivamente gozadas pelo Autor e seu agregado familiar"
b) Uma conduta que traiu as expectativas e confiança criada nos Réus: "o facto de o A. ter com participado na remodelação da casa que era pertença dos RR. sem então exigir daqueles o que quer que fosse, só podia criar nos RR. a convicção de que jamais lhe solicitaria as verbas despendidas ... "
c) A condenação dos aqui Recorrente como um sacrifício que excederia sempre os limites impostos pela boa-fé por virtude do "sacrifício económico insuportável que poderia significar ..
9ª- As particularidades físicas da casa que se fez e do teor da sua documentação permitem adquirir uma compreensão plena do caso, do ponto de vista do entendimento relativo à obrigação natura e da confiança e expectativas criadas:
1. Particularidades físicas:
- as mesmas escadas (pré-existentes) de acesso ao 1º andar de ambas as casas
- as portas e janelas rasgadas na parede adjacente à referida escada
- a existência de uma porta com fechadura do lado da casa dos Recorrentes, a qual ficou a dar para o piso térreo da casa em apreço.
2. Particularidades da documentação da casa:
- "Toda a documentação relacionada com o prédio está em nome do aqui Recorrente, seja ela camarária, relativa aos seguros, relativa às facturas dos materiais e outros documentos de compra, etc, etc.
- "O aqui Recorrente participou o prédio no serviço de finanças em seu nome.
- "A contribuição autárquica do referido prédio era processada e paga todos os anos em nome do Recorrente".
10ª- Não há fundamento para a decisão tomada no douto acórdão pela qual se " ... condenam os Réus a restituir ao Autor metade das importâncias (materiais e mão-de-obra) com que contribuiu para a edificação a apurar em liquidação posterior, em último caso com recurso a juízos de equidade"
Com efeito,
1. Na presente demanda não logrou o autor provar o que disse que fez e o que disse que pagou
Na verdade, na Resposta aos quesitos com elas relacionados deu-se como provado "apenas que o autor pagou parte não concretamente não apurada dos materiais e mão-de-obra aplicados na construção da casa" tendo merecido esta resposta os quesitos nº 3 -- 5 - 7 - 9 ­10-11-12-13-14 -15- 16- 17- 18- 19-20- 21-22-23--24-25.
2. Na ausência de elementos para se determinar um dado preço de uma obra ou material, entende-se que se possa e deva recorrer à fixação do preço através de juízos de equidade (art. 1211° do CC com referência ao art. 883° do mesmo Código)
3. Porém, o que falta no caso é precisamente a prova da obra concreta que se diz que foi feita. O que falta no caso é precisamente a prova do material concreto que se diz que se comprou.
4. Em uma casa que ficou com r/c, 1º andar e sótão - é de todo inviável saber sobre que concretas parcelas da totalidade da casa haveria de incidir o juízo de equidade: seria uma tarefa de todo destituída de critério e de sentido.
Esta prova era ónus irrecusável do Recorrido.
11ª- A prova a produzir pelo autor ocorreria pela terceira vez, pois que não logrou essa demonstração, nem na 1ª acção, nem na 2ª acção, a presente.
12ª- É que a prova, em sede de liquidação a fazer pelo Autor, não poderia deixar de ser aquela mesma que resultaria dos extensos meios de prova já produzidos nas duas acções,
13ª- Seria um castigo medonho e imerecido aquele com que os aqui Recorrentes - a viver (!) a sua reforma há um bom par de anos já - se achariam confrontados pois que levam 13 anos de acções sobre o mesmo objecto.
14ª- O douto acórdão não considerou as obras e materiais (provados) com os limites dados pelo colectivo na 1ª acção e que foram acolhidas na matéria assente da presente.
15ª- Na verdade, escreveu então o Colectivo, relativamente às "canalizações de águas e esgotos, bem como torneiras e louças" - o seguinte:
"O Autor realizou a obra de canalizador, abrindo roços nas paredes e lajes e instalando as respectivas canalizações de águas e esgotos, bem como colocou as torneiras e louças, tendo ainda pago parte concretamente não apurada dos materiais aplicados."
Considerarem-se "os materiais aplicados na construção da mesma casa" equivale a abrangerem-se todos e a cada um dos mais diversos e variados materiais com que se fez a casa.
16ª- O acórdão da relação - determinando que se faça um abatimento do valor de uso da habitação de que beneficiou o autor e ex-cônjuge - não estabelece porém o modo de calcular esse valor do uso: nem os mecanismos para o efeito, nem os critérios dessa determinação.
17ª- Com efeito, estando já assente que "o autor e a ex-mulher usaram e beneficiaram da habitação com base na equidade, uma vez que, sendo a casa original propriedade dos RR., não se divisa qualquer critério justo para quantificar esse uso" - não se vislumbra para o caso qualquer "mecanismo de desconto" que permita obter aquela quantificação material. (Declaração de voto do Distinto Desembargador que votou vencido)
18ª- Em suma: O douto acórdão da Relação subsumiu erradamente a factualidade provada às disposições legais e aos princípios jurídicos atrás invocados e aplicáveis ao caso.
Deste modo, deve ser acolhida na resolução do presente caso a construção relativa à figura da obrigação natural, tal como acolhido na construção da sentença da 1ª instância e na douta declaração de voto a que se aludiu.
Se assim, se não se entender, considerar-se sempre que não há lugar à liquidação, por lhe falecer base legal para tanto, determinada no douto acórdão, mesmo com recurso a juízos de equidade.
Mas se assim igualmente se não entender, deverá a decisão confinar-se sempre aos limites da matéria factual colhida na primeira acção, por virtude de o caso julgado não poder ser extensivo aos casos em que causa de pedir da 1ª acção consentiria a dedução de pedido subsidiário contemplado em uma segunda demanda.

O recorrido contra-alegou, pronunciando-se pela confirmação do acórdão recorrido.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas (arts. 690º nº 1 e 684º nº 3 do C.P.Civil).
Nesta conformidade, serão as seguintes as questões a apreciar e decidir:
- Enriquecimento sem causa ou obrigação natural.
- Abuso de direito por banda do A.
- Liquidação em execução de sentença.
- Incorrecção da matéria de facto dada como provada.

2-2- Vem fixada das instâncias a seguinte matéria de facto:
a) Correu termos no Tribunal de V. N. F...C...acção declarativa com forma de processo comum ordinário com o nº 129/98 em que eram autor e réus os mesmos deste e cujo pedido era reconhecer ao A. e à sua ex-esposa, DD, o direito comum de propriedade, por acessão industrial imobiliária, do prédio urbano destinado a habitação, inscrito na matriz da freguesia de T..., sob o art.º ..., pagando estes o valor do terreno antes das incorporadas e autorizadas obras;
b) Por sentença de 2.5.03, já transitada, foi a referida acção julgada improcedente e os RR. absolvidos do pedido, nos termos da sentença certificada de fls. 9 a 16, cujo teor aqui se dá como reproduzido;
c) No prédio em causa o A. suportou as despesas relativas à grade da varanda com aproximadamente 5,7 m de comprimento e ao portão da entrada, junto à rua pública, medindo aproximadamente 1,2 x1 m, ambos em ferro, no montante de € 498,00;
d) Suportou ainda o A. as despesas relativas ao assentamento de pedra, no valor de € 249,00;
e) O A., na construção da referida casa realizou a obra de canalizador, abrindo roços nas paredes e lajes e instalando as respectivas canalizações de águas e esgotos, bem como colocou as torneiras e louças, tendo ainda pago parte concretamente não apurada dos materiais aplicados na construção da mesma casa;
f) A porta de entrada e as interiores foram feitas em madeira, sendo a de entrada maciça e as janelas e portadas em alumínio anodizado;
g) O A. pagou parte concretamente não apurada dos materiais e mão-de-obra aplicados na construção da casa;
h) O R. BB encomendou alguns materiais e pagou parte da mão-de-obra aplicada na construção da casa;
i) Alguns dos materiais foram encomendados a EE, de M...;
j) Algum tijolo, cimento e vigas foram adquiridos a FF, de S...;
l) Algumas portas interiores em madeira e respectiva aplicação foram serviços solicitados à Carpintaria GG-A..., com sede na freguesia de T...;
m) O A. suportou os custos que suportou – e que em concreto não foi possível apurar – na convicção de que contribuía para a obra que, não obstante estar implantada sobre terreno e construção pertencentes aos seus sogros, dirigia a seu gosto e da qual usufruiria enquanto marido da sua ex-esposa;
n) O A. julgou que colaborando, trabalhando, custeando materiais e mão-de-obra – e que, em concreto não foi possível apurar – na construção do que veio a ser o prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º ..., o fazia em obra que dirigia e que iria ser a casa da qual usufruiria, ele e o seu agregado familiar, designadamente a sua ex-esposa e convicto também de que fruto do facto de ele, A., integrar - e dirigir - o agregado familiar que formou pelo casamento com a sua ex-esposa, a actuação do R. ao encomendar materiais e pagar parte da mão-de-obra – e que em concreto não foi possível apurar – traduzia uma natural e intencional vontade de colaborar para esse agregado integrado pela sua filha;
o) Algumas das obras foram realizadas por um empreiteiro de nome HH, o mesmo que foi dado, neste processo, como “perito”.
p) A casa foi construída adjacente à casa pré-existente, onde sempre habitaram os RR. apresentando desse lado a escada de acesso ao 1º andar de ambas as casas, que é a mesma e ao cimo (no enfiamento) corre um patamar entre as paredes de ambas as casas que, dando a esse patamar, estão frontais as portas de entrada de ambas as casas com as portas e uma janela rasgada na parede lateral da casa dos autos, que o R. marido durante a construção mandou abrir;
q) O R. marido abriu ao nível do piso térreo da sua casa uma porta com fechadura do seu lado, a qual dá para o piso térreo do prédio sob o nº ...;
r) Toda a documentação relacionada com o prédio do art. ..., designadamente autorização de construção, projectos, seguros de trabalhadores, parecer sanitário, água e saneamento, foi tratada e processada em nome do R..
s) Todas as facturas e documentos relacionados com a venda dos materiais referentes ao prédio do art. ... estão em nome do R.
t) O R. participou o prédio sob o art. ... no serviço de Finanças em seu nome e a contribuição autárquica do referido prédio era processada e paga todos os anos em nome do R.. ----------------------------------------

2-3- Na douta sentença de 1ª instância, depois de se realizar diversa lucubração teórica sobre o objecto da acção, acabou por se concluir que o A., ao prover às necessidades do casal integrado por ele próprio e sua mulher e filha de ambos, cumpriu uma obrigação natural. Nesta conformidade, para reaver o que prestou de livre vontade dos eventuais beneficiários, não poderá accioná-los judicialmente. Por isso, julgou-se improcedente a acção.
No douto acórdão recorrido, repudiando-se esta posição, concluiu-se que o contributo do A. traduzido em pagamento total ou parcial de equipamentos e outros materiais e mão-de-obra, própria ou alheia, em obra de construção civil dos sogros, com vista a habitação do A. e sua mulher, não constitui dever social que possa fundar uma obrigação natural, pelo que dissolvido o casamento por divórcio, nada obsta a que o A. marido exija dos RR. a restituição do valor daqueles pagamentos, na proporção de metade para si e outro tanto para a ex-mulher, com base no enriquecimento sem causa.
Na presente revista os recorrentes continuam a defender que as prestações realizadas pelo A. na casa em causa (de sua propriedade), foram-no no cumprimento de uma obrigação natural e, consequentemente, como se decidiu na sentença de 1ª instância, não será possível demandar judicialmente os RR., ora recorrentes. Por isso, a improcedência da acção justificar-se-á.
Vejamos:
As obrigações naturais fundam-se num mero dever de ordem moral ou social, o seu cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça (art. 402º). Estão estas obrigações sujeitas ao regime das obrigações civis em tudo o que não se relacione com a realização coactiva da prestação (art. 404º), pois, como já se viu, o seu cumprimento não é judicialmente exigível.
Por outro lado, não pode ser repetido o que for prestado em cumprimento de uma obrigação natural, excepto se o devedor não tiver capacidade para efectuar a prestação (art. 403º).
Como refere Almeida Costa(1)para que se verifique uma situação deste tipo, fora dos casos expressos, impõe o referido preceito (art. 402º, todos do C.Civil) a concorrência de um requisito negativo e dois positivos. A saber: 1) que a prestação não seja judicialmente exigível; 2) mas que a respectiva obrigação se baseie num dever moral e social; 3) e que o seu cumprimento corresponda a um dever de justiça”.
No que toca à circunstância de a obrigação se dever basear num dever moral e social, dizem Pires de Lima e Antunes Varela (2)o dever de ordem moral ou social em que se funda a obrigação natural não é definido por lei, nem podia sê-lo, antes ao tribunal cabendo a determinação casuística sobre se existe ou não um dever que justifique a qualificação da obrigação com natural”.
Para que exista uma obrigação natural é necessário que ocorra, como afirma Antunes Varela, “como fundamento da prestação, um dever moral ou social específico entre pessoas determinadas, cujo cumprimento seja imposto por uma recta composição de interesses (ditames de justiça)(3).
Não haverá uma obrigação natural quando o fundamento da prestação seja um dever de gratidão, de reconhecimento e a intenção, por parte do autor, de gratificar, retribuir ou compensar um serviço realizado gratuitamente.
As obrigações naturais decorrem de deveres de justiça que não são, porém, deveres jurídicos. Claro que os deveres de justiça dependem das concepções sociais e morais predominantes de cada sociedade.
Seguindo o que sobre o assunto refere Almeida Costa(4) para se detectarem obrigações naturais, fora dos casos especificados expressamente na lei, compete aos tribunais, “de harmonia com as concepções sociais predominantes e as circunstâncias concretas de cada caso, averiguar, primeiro, se existe um dever moral e social, e, seguidamente se esse dever moral social é tão importante que o cumprimento envolva um dever de justiça. Exige-se que o dever de uma pessoa para com outra não respeite somente a consciência moral, mas algo mais, que respeite também à sua consciência jurídica”.
No caso dos autos a questão que se coloca, será a de saber se as prestações e pagamentos realizados pelo A. na casa de propriedade de seus sogros, os RR., corresponderam a um dever de justiça.
E a nossa resposta, só poderá ser negativa.
Não se coloca em causa e como se refere acertadamente no douto acórdão recorrido, que cada cônjuge “tem o dever moral e social (e jurídico) de criar as melhores condições materiais, v. g., de habitação, para o agregado familiar, obrigação que decorre dos deveres conjugais e parentais”.
Porém não se vê, face às concepções éticas dominantes, que esses deveres morais e sociais possam abranger (pelo menos, em princípio) os sogros.
Por outro lado, no caso dos autos, como os factos provados demonstram, as prestações e pagamentos realizados pelo A. não visaram melhorar as condições de habitação dos sogros, mas tiveram antes em vista a edificação da sua própria habitação e do seu agregado familiar, objectivo inviabilizado com o divórcio dos cônjuges. Por isso, nessa mesma altura, a transferência realizada do seu património para o do seus sogros, deixou de ter causa. Como se refere com propriedade no douto acórdão recorrido “no caso concreto, a participação do A. na construção da obra não constitui nenhuma “ajuda”, nem visou altruisticamente beneficiar os sogros, antes visou a construção da sua habitação futura, com expectativa de transferência da própria propriedade, dos sogros para a filha ou para o casal, expectativa que era legítima, de acordo com a normalidade das coisas. Gorado, com o divórcio, esse projecto de vida, o valor transferido do A. para um bem dos RR., deixou de ter causa, sendo que quem dele beneficiou não foi a ex-mulher, nem as filhas, antes os próprios RR., que viram o seu património aumentado em mais um imóvel, com a comparticipação do A.”.
Por isso, não se vê que as ditas prestações e pagamentos tenham sido realizados em obediência a qualquer dever moral ou social (desencadeador de uma obrigação natural). Por outro lado, o objectivo tido em vista (edificação da habitação do seu agregado familiar), com a prolação do divórcio e consequente separação dos cônjuges, gorou-se, pelo que deixando de ter causa a transferência material realizada do património do A. para os dos RR. (enriquecendo aquele e empobrecendo este), a obrigação de restituição decidida no acórdão recorrido (com base no instituto do enriquecimento sem causa) (5) justificou-se.
A posição dos recorrentes é pois improcedente.
2-4- Defendem os recorrentes, em consonância com o voto de vencido elaborado por um dos Exmºs Desembargadores Adjuntos subscritores do acórdão, a verificação, no caso, de causa justificativa para a deslocação patrimonial: "é que as obras efectuadas vieram efectivamente a cumprir o destino que era a sua causa, visto que foram efectivamente gozadas pelo Autor e seu agregado familiar", tendo tido o A. uma conduta que traiu as expectativas e confiança criada nos RR. pelo facto de ter comparticipado na remodelação da casa que era pertença dos RR. sem então exigir daqueles o que quer que fosse, criando nos RR. a convicção de que jamais lhe solicitaria as verbas despendidas, pelo que a condenação dos aqui recorrente como um sacrifício que excederia sempre os limites impostos pela boa-fé por virtude do "sacrifício económico insuportável que poderia significar …”.
Levantam, pois, os recorrentes a questão do abuso de direito do A., ao instaurar a presente acção.
Estabelece o art. 334º do C.Civil que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito ”. Para que ocorra o abuso de direito, é necessário, pois, que o titular do direito o exerça de forma clamorosamente ofensiva da justiça e dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito. Como esclarecem Pires de Lima e Antunes Varela (6), a concepção adoptada pela lei é objectiva. Não é necessária a consciência de que se excederam os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. É suficiente que esses limites sejam ultrapassados. O excesso deve ser manifesto. Nesta conformidade “os tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que as legitimam, se houver manifesto abuso(7). Isto é, exige-se um abuso manifesto, que sucederá quando o sujeito ultrapasse de forma evidente e inequívoca os referidos limites (8). O juízo sobre o abuso de direito está dependente das concepções ético-jurídicas dominantes na sociedade. Como diz Antunes Varela “a consideração do fim económico ou social do direito apela de preferência para os juízos de valor positivamente consagrados na própria lei (9).
Poder-se-á assim dizer que o abuso de direito abrange o exercício de qualquer direito de forma anormal, quanto à sua intensidade ou execução de modo a comprometer o gozo de direitos de terceiros, criando uma desproporção entre os respectivos exercícios, de forma ofensiva e clamorosa dos valores sociais que se têm como adquiridos.
Como modalidade do abuso de direito a doutrina e a jurisprudência, apontam o venire contra factum proprium, que ocorre quando “a pessoa pretende destruir uma relação jurídica ou um negócio, invocando, por exemplo, determinada nulidade, anulação, resolução ou denúncia de um contrato, estabelecida no interesse do contraente, depois de fazer crer à contraparte que não lançaria mão de tal direito ou depois de ter dada causa ao facto invocado como fundamento da extinção da relação ou do contrato (10).
Dados os contornos do caso não vemos que o exercício da acção pelo A. constitua um abuso de direito, pois não vemos que esta acção possa consubstanciar o exercício do direito (à restituição) de uma forma anormal, criando uma desproporção entre esse exercício e os direitos da contra-parte, ofendendo clamorosamente os valores sociais que se têm como adquiridos. Com efeito, tendo o recorrido “investido” materialmente na habitação com o objectivo de aí estabelecer a sua morada e do seu agregado familiar, tendo-se frustrado esse fim mas ficando o património dos RR. claramente enriquecido, longe de ofender qualquer valor social vigente, a acção do A. visou, antes, o legítimo e ajustado reequilíbrio entre os patrimónios, o seu e dos RR., colocando fim ao injusto locupletamento por parte destes.
Dizem os recorrentes que as obras efectuadas foram efectivamente gozadas pelo A. e seu agregado familiar.
Esta circunstância não consta da factualidade dada como assente, pelo que não poderá ser valorizada em termos jurídicos. Mas mesmo que o A. tivesse, juntamente com a sua família, gozado temporariamente das obras realizadas, esta materialidade não desmente a realidade acima afirmada, ou seja, que houve um deslocamento patrimonial do A. para os RR. (a quem ficou a pertencer a casa), a que haverá de pôr cobro, pois essa deslocação não teve causa juridicamente relevante, constituindo um imerecido enriquecimento.
Afirmam ainda os recorrentes que tendo tido o A. uma conduta que traiu as expectativas e confiança criada nos RR., pelo facto de ter comparticipado na remodelação da casa que era pertença dos RR., sem então exigir daqueles o que quer que fosse, criando nos RR. a convicção de que jamais lhe solicitaria as verbas despendidas, a sua condenação excederia sempre os limites impostos pela boa-fé por virtude do "sacrifício económico insuportável que poderia significar”.
Isto é, segundo os recorrentes, o exercício do direito contrariando o comportamento anteriormente assumido, é contrário aos princípios impostos pela boa fé, pelo que, a ser admissível tal exercício, agiria o A. com abuso de direito, o que levaria a considerar ilegítima a acção desse mesmo direito.
Apelou-se aqui à modalidade do abuso de direito de venire contra factum proprium.
A posição dos recorrentes é, mais uma vez, infundada, dado que aqui, novamente, se baseia em factos que não fazem parte do acervo dos factos provados. Com efeito, não consta desse acervo que alguma vez o recorrido tenha criado aos RR. a convicção de que jamais lhe solicitaria as verbas despendidas, designadamente que esse convencimento tenha ocorrido após o divórcio com a sua mulher (altura em que a questão se poderia colocar) (11).
Por isso nos parece que, igualmente, esta modalidade de abuso de direito não se verifica.
2-5- Defendem ainda os recorrentes que não há fundamento para a liquidação posterior ordenada (em último caso com recurso a juízos de equidade). Com efeito, na presente demanda não logrou o A. provar o que disse que fez e o que disse que pagou. Na ausência de elementos para se determinar um dado preço de uma obra ou material, entende-se que se possa e deva recorrer à fixação do preço através de juízos de equidade (art. 1211° do CC com referência ao art. 883° do mesmo Código). Porém, o que falta no caso é precisamente a prova da obra concreta que se diz que foi feita. O que falta no caso é precisamente a prova do material concreto que se diz que se comprou, sendo inviável de saber sobre que concretas parcelas da totalidade da casa haveria de incidir o juízo de equidade. Seria uma tarefa de todo destituída de critério e de sentido. Esta prova era ónus irrecusável do recorrido. Além disso, a prova a produzir pelo A. ocorreria pela terceira vez, pois que não logrou essa demonstração, nem na 1ª acção, nem na 2ª acção, a presente. A prova, em sede de liquidação, a fazer pelo A., não poderia deixar de ser aquela mesma que resultaria dos extensos meios de prova já produzidos nas duas acções, sendo um castigo medonho e imerecido aquele com que os aqui recorrentes, a viver a sua reforma há um bom par de anos, se achariam confrontados, pois que já levam 13 anos de acções sobre o mesmo objecto (12). Por outro lado, o acórdão da Relação, determinando que se faça um abatimento do valor de uso da habitação de que beneficiou o A. e ex-cônjuge, não estabelece o modo de calcular esse valor do uso: nem os mecanismos para o efeito, nem os critérios dessa determinação. Com efeito, estando já assente que "o autor e a ex-mulher usaram e beneficiaram da habitação com base na equidade, uma vez que, sendo a casa original propriedade dos RR., não se divisa qualquer critério justo para quantificar esse uso", não se vislumbrando para o caso qualquer "mecanismo de desconto" que permita obter aquela quantificação material.
Em relação a esta questão (que diz respeito à condenação proferida, em liquidação posterior) ficou decidido que:
Os RR. restituíssem “ao A. metade das importâncias (materiais assinalados e mão-de-obra) com que contribuiu para a edificação do prédio urbano em causa, pertencente aos RR., nos valores parciais já líquidos de € 498,00 e € 249,40 e nas demais a apurar em liquidação posterior, em último caso com recurso a juízos de equidade e eventual consideração do valor do uso da habitação de que beneficiou o casal do A., sendo a outra metade imputada ao ex-cônjuge mulher”.
Estipula o art. 661º nº 2 do C.P.Civil que "se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenará no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida ".
A aplicação desta norma, para o que aqui interessa, depende da verificação, em concreto, de uma indefinição de valores de prejuízos. Mas como pressuposto primeiro de aplicação do dispositivo, deverá ocorrer a prova de existência de danos. Este preceito tanto se aplica no caso de se ter inicialmente formulado um pedido genérico e de não se ter logrado converter em pedido específico, como ao caso de ser formulado pedido específico sem que se tenha conseguido fazer prova da especificação, ou seja, quando não se tenha logrado coligir dados suficientes para se fixar, com precisão e segurança, o quantitativo na condenação (neste sentido A. Reis, C.P.C. Anotado, Vols. I pág. 614 e segs. e V pág. 71, Vaz Serra, RLJ, ano 114º, pág. 309, Rodrigues Bastos, Notas ao C.P.C, vol. III, pág. 233). Portanto e para o que aqui importa, tendo os AA. deduzido um pedido específico (isto é, um pedido de conteúdo concreto), não tendo logrado fixar com precisão a extensão dos prejuízos, poderão fazê-lo em liquidação em execução de sentença. A este propósito haverá a salientar, corroborando a posição que se assume, que a norma não distingue os pedidos, aplicando regimes diversos consoante se trate de pedidos genéricos ou pedidos específicos. Note-se que a norma fala genericamente em casos em que não há elementos para fixar a quantidade, pelo que reduzir o campo de aplicação da norma aos pedidos genéricos (concretizados no art. 471º nº 1 do C.P.Civil), é diminuir, sem razão, o campo de aplicação da disposição, indo contra o antigo dito latino e princípio atinente à interpretação de normas jurídicas, segundo o qual "ubi lex non distinguit, nec nos destinguere debemus".
Esta posição tem vindo a ser aceite maioritariamente neste STJ, como se verifica, compulsando, por exemplo, o Acórdão de 17-6-2008 a que nos referiremos abaixo.
Estabelece, por outro lado, o art. 566º nº 3 do C.Civil que "se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados". Determina, pois, esta disposição a fixação de uma indemnização através da equidade.
Como temos vindo a entender (designadamente nos acórdãos proferidos nos procs. 2094/08 in www.dgsi.pt/jstj.nsf, 270/2002.C1.S1 e 592/2000.C1.S1), este critério só se deverá usar em termos meramente residuais. Ou seja, esta disposição deve aplicar-se quando se verifique ser de todo impossível, em ulterior fase executiva, a concretização dos danos. Reputando-se possível tal materialização, deve-se optar pelo mecanismo do art. 661º nº 2 do C.P.Civil (neste sentido Acórdão deste STJ de 17-6-2007 www.dgsi.pt/jstj.nsf, em sentido contrário, dando prioridade à equidade, Acórdãos deste STJ. de 18-9-2003 in www.dgsi.pt/jstj.nsf, de 3-12-98, BMJ, 482º e de 7-10-99, BMJ 490º, 212). Isto porque, a nosso ver, deve privilegiar-se a demonstração exacta dos prejuízos, quanto tal (ainda) se mostre exequível. Caso tal não se apresente já possível, então deve apelar-se à fixação da indemnização através da equidade (art. 566º nº3). Aqui o recurso à execução revelar-se-ia inconsequente, pois nada já se poderia esclarecer, resultando o envio das partes para execução de sentença, num mero expediente dilatório.

No caso vertente, é certo que se não se mostra, em princípio, muito fácil a demonstração precisa das prestações realizadas pelo A., dada a matéria factual (pouco precisa) demonstrada (13) . Mas nos termos da condenação, se isso não for possível, dever-se-á, fixar a correspondente indemnização por equidade (como se refere no acórdão recorrido “em último caso”)
Quanto ao valor do uso da habitação de que beneficiou o agregado familiar do A., o mesmo, igualmente, não se afigura impossível (ou até difícil) de determinar (dependendo, evidentemente, do tempo que nela habitou). A expressão «eventual» usada só poderá, a nosso ver, ser entendida como uma alusão à circunstância de se desconhecer se o casal chegou a habitar a casa, após as prestações efectuadas pelo A.. Na parte dispositiva do acórdão esclareceu-se, a este propósito, que haveria de ser considerado (isto é, levado em linha de conta) o benefício resultante para o A. e seu casal do uso da habitação pertença dos RR. Ou seja, à prestação monetária a que o A. terá direito, haverá que descontar (levar em consideração) a prestação em espécie que terá já recebido pelo uso da casa. Será este o alcance a dar, a nosso ver, à condenação proferida.
Como se sabe, uma condenação não pode ser ambígua ou obscura. Se os RR. consideraram, em relação a este aspecto, padecer o aresto deste defeito, então, nos termos do art. 669º nº 1 al. a) do C.P.Civil (aplicável ao acórdão da Relação, por força do art. 716º nº 1), deveriam ter pedido o pertinente esclarecimento.
Quanto ao critério para quantificar tal uso, o mesmo derivará, como se refere no acórdão recorrido, do “benefício resultante para o A. e seu casal do uso da habitação pertença dos RR.”.
Tudo isto serve para dizer que não vemos que a condenação proferida padeça de qualquer irregularidade e que não possa ser executável.
A posição dos recorrentes é, também aqui, improcedente.
2-6- Os recorrentes levantam ainda objecções em relação à matéria dada como assente no douto acórdão recorrido. Designadamente referem que “escreveu então o Colectivo, relativamente às "canalizações de águas e esgotos, bem como torneiras e louças" - o seguinte: "O Autor realizou a obra de canalizador, abrindo roços nas paredes e lajes e instalando as respectivas canalizações de águas e esgotos, bem como colocou as torneiras e louças, tendo ainda pago parte concretamente não apurada dos materiais aplicados." Considerarem-se "os materiais aplicados na construção da mesma casa" equivale a abrangerem-se todos e a cada um dos mais diversos e variados materiais com que se fez a casa” (conclusões nºs 15ª e 16ª acima referidas).
Para além de não nos afigurar muito claro o que os recorrentes pretendem, diremos que, como se sabe, este Supremo Tribunal é um tribunal de revista, não lhe cabendo, por isso, em princípio, conhecer da matéria de facto. Cabe, essencialmente, ao STJ aplicar definitivamente o direito à factualidade material fixada pelas instâncias.
Portanto a pretensão dos recorrentes em que este STJ conheça e sancione a matéria de facto dada como demonstrada, é solicitação que não pode proceder.
O recurso improcede in totum.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, nega-se a revista, confirmando-se a douta sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.

Supremo Tribunal de Justiça, 22 de Fevereiro de 2011.

Garcia Calejo (Relator)
Helder Roque
Gregório Silva Jesus
_________________________________________
(1) Em Noções de Direito Civil, 2ª edição, pág. 36
(2) Em Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, pág. 351.
(3) Em Das Obrigações em Geral, Vol. I, 9ª edição, págs. 748 e 749.
(4) Obra citada, pág. 37
(5) Como no recurso não se coloca qualquer questão sobre a verificação em concreto dos requisitos do enriquecimento sem causa, abstemo-nos de desenvolver o tema, remetendo para o que, aliás correctamente, se refere no acórdão recorrido sobre o assunto.
(6) Em obra citada, pág. 298.
(7) Pires de Lima e Antunes Varela mesma obra, pág. 299 Pires de Lima e Antunes Varela mesma obra, pág. 299.
(8) Vide Direito das Obrigações, Galvão Telles, 7ª edição, pág. 15
(9) Em obra citada, Vol. I, 7ª edição, pág. 15.
(10) Antunes Varela, obra citada, pág. 566.
(11) Evidentemente que antes desse momento a questão não se coloca (vide fundamentos da acção). Então o “investimento” era na sua própria habitação. Anteriormente ao divórcio se alguma expectativa se verifica seria a indicada no douto acórdão recorrido, a expectativa “de transferência da própria propriedade, dos sogros para a filha ou para o casal, expectativa que era legítima, de acordo com a normalidade das coisas
(12) Estas circunstâncias, porque fora do acervo dos factos provados, não podem ser valorizadas em termos de aplicação do direito.
(13) Estamo-nos concretamente a referir, designadamente, ao provado nas alíneas e) e g) dos factos provados.