Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
143/17.1GDEVR.E1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: NUNO GONÇALVES
Descritores: ACORDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PROCESSO PENAL
ACLARAÇÃO
OBSCURIDADE
AMBIGUIDADE
Data do Acordão: 05/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ACLARAÇÃO INDEFERIDA
Sumário :
I -   Uma vez proferida sentença ou acórdão fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do tribunal quanto à matéria da causa.

II - Permitindo-se apenas a auto-correção de “erros, lapsos, obscuridades ou ambiguidades cuja eliminação não importe modificação essencial” da decisão.

III - Obscuridade é a falta de claridade, a ininteligibilidade da decisão.

IV - Ambiguidade significa ambivalência, pluralidade de sentidos.

V - De aclaramento só carece a decisão que é obscura ou ambígua.

VI - Sendo tudo - a fundamentação e a decisão -, meridianamente claro, nada há que careça de esclarecimento.

Decisão Texto Integral:

O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção, em conferência, acorda:

I. RELATÓRIO:

1. a decisão visada:

Reexaminando acórdão do Tribunal da Relação …… que, mediante recurso do Ministério Público, reapreciou decisão da 1ª instância, decidiu alterar a qualificação jurídica dos factos provados para o crime de tráfico p. e p. pelo art.º 21º n.º 1 do DL n.º 15/93 de 22/01 e, em conformidade, elevou para de prisão a pena aplicada ao arguido:

- AA, com os demais sinais dos autos,

este Supremo Tribunal, por acórdão de 14.04.2021, no improvimento dos recursos dos coarguidos, confirmou a decisão recorrida, motivando, especificadamente, as razões que obstaram a que pudesse “concluir-se pela considerável diminuição da ilicitude do tráfico exercido pelos arguidos”. Em conformidade decidiu manter a pena aplicada ao ora requerente.

2. o requerido:

O arguido, invocando o “disposto no art.º 380 nº 1, al. b) do CPP” vem agora “requerer a aclaração” do acórdão.

Sem nenhuma alusão a qualquer passagem da motivação ou do dispositivo do acórdão visado, limitando-se a reproduzir, literalmente, as primeiras oito conclusões da sua alegação de recurso, rematando ter ficado “na   dúvida   sobre   se tais matérias terão sido valoradas”.

3. contraditório:

O Digno Procurador-Geral Adjunto, exercendo o contraditório, em douta, concisa e incisiva, peça processual, argumenta:

Sob o manto da invocação do art.º 380º, n º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, subjaz claramente a discordância do impetrante com o decidido. Tal discordância, diga-se, persistente, nada tem a ver com qualquer situação de «erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade» dado que o, aliás douto acórdão, não padece de nenhum deles, como qualquer mandatário que queira e acreditando-se que possa, saberá ver.

Entende-se assim, que a invocada correcção do acórdão, não tem qualquer razão de ser, devendo por falta total, dos seus pressupostos legais, ser indeferida. parecer

«»

Cumpre decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO:

1. regime legal:

A regra é a da estabilidade das decisões judiciais. Uma vez proferida sentença ou acórdão fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do tribunal. quanto à matéria da causa – art. 613º n.º 1 do CPC, aplicável ex vi do art.º 4º do CPP. Proíbe-se, assim, que o juiz, ou o tribunal modifiquem a sua decisão e/ou a motivação que a fundamenta.

Todavia, as sentenças e os acórdãos por melhor trabalhados que sejam, podem, por desconexões várias, apresentar desarmonias internas que, sendo eliminadas, não modificam o julgado e os fundamentos em que se alicerçou.

Por isso, o legislador processual penal, preservando aquela regra do auto-esgotamento do poder de julgar, consagrou regime especifico que autoriza o mesmo tribunal a, por sua iniciativa ou mediante requerimento, expurgar do acórdão que proferiu “erros, lapsos, obscuridades ou ambiguidades cuja eliminação não importe modificação essencial” da decisão – arts. 425º n.º 4 e 380 n.º 1, al.ª b), ambos do CPP.

Erro, para efeito do regime legal em análise é somente o de expressão ou de cálculo, nunca o erro de apreciação nem o erro de raciocínio. Corrigível é, assim, apenas o defeito da decisão que ocorre quando o juiz mencionou nomes, empregou palavras e frases ou utilizou números que, manifestamente, não exprimem corretamente o seu raciocínio. Erro é unicamente aquele que a mera leitura do acórdão imediatamente demonstra, evidenciando que os nomes que refere, determinada palavra ou alguma expressão, certos algarismos e operações de cálculo surgem ali manifestamente descontextualizados. Em registo diferente, a mão que escreveu traiu o pensamento de quem a comandava. Alberto dos Reis, exemplifica com a situação em que o juiz queria escrever “absolvo”, mas, por distração ou cansaço, escreveu precisamente o contrário, “condeno[1], quando a fundamentação evidencia inequivocamente que a decisão pensada era inequivocamente absolutória.

Se o erro de escrita ou de cálculo não se depreende claramente do texto do acórdão, não admite correção nos termos das normas citadas.

Lapso, para efeito da norma em apreço, é essencialmente o lapsus calami, resultante de gralhas, da omissão ou interposição de palavras, frases ou números, designadamente por menor atenção, pressa ou descuidado, que patentemente ficaram por escrever ou surgem fora do contexto.

Obscuridade é a falta de claridade, a ininteligibilidade da decisão. Obscuro é o acórdão de difícil compreensão, que contenha algum passo ininteligível, cujo sentido exato não pode alcançar-se.

Ambiguidade significa ambivalência, pluralidade de sentidos, dúvida. Ambíguo é o acórdão confuso, de sentido dúbio, que contém alguma passagem equivoca, que se presta, razoavelmente, a interpretações diferentes. Que diz uma coisa e o seu contrário.

2. no caso:

O requerente não aponta qualquer erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade que tenha detetado em alguma passagem do acórdão visado, seja na fundamentação, seja no dispositivo.

Alega, não ver que tenham logrado convencer os argumentos que aduziu no recurso interposto contra o acórdão da 2ª instância na parte em que pugnava pela reversão da alteração da qualificação jurídica operada pelo Tribunal da Relação.

De aclaramento só carece a decisão que é obscura ou ambígua.

Como bem nota o Digno Procurador-Geral Adjunto, em substância, vem unicamente expressar a discordância com o julgado. Sem que aponte defeitos daquela natureza, reclama, apenas, o reexame das conclusões da sua alegação de recurso e a alteração do conteúdo e sentido da decisão. Por conseguinte, o seu requerimento mais não traduz que a repristinação do thema decidendum.

O Requerente, somente por manifesta temeridade – explicável unicamente com o escopo de retardar o trânsito em julgado da condenação - pode vir dizer que não compreende se foi considerada a qualidade dos estupefacientes traficados, o tempo por que traficou, o modo e o local onde os arguidos compravam e vendiam e os rendimentos obtidos.

Contrariamente ao asseverado pelo Recorrente, no acórdão visado estão, clara, especificada e exaustivamente expostas as concretas razões de facto e de direito que fundamentam a decisão de confirmar a qualificação jurídica operada pelo Tribunal da Relação. Sumariamente, consistentes (1) na qualidade das drogas traficadas – heroína e cocaína -, (2) o período temporal em que os arguidos traficaram, (3) fazerem do tráfico única ocupação e principal fonte de proventos, (4) como empreendimento e “negócio” familiar (em conjugação de esforços e de intentos entre pai, filha, e genro, estes com crianças menores, netas do requerente), guardando os estupefacientes e fazendo algumas entregas nas próprias habitações. Rememora-se que os arguidos vêm condenados em coautoria material pela prática de um crime de tráfico p. e p. pelo art.º 21º n.º 1 do DL n.º 15/93 citado.

A fundamentação e o dispositivo são explícitos, abundantes e inequívocos, não contendo erros de escrita ou quaisquer outros defeitos que dificultem a sua fácil compreensibilidade pelos arguidos recorrentes ou por qualquer outra pessoa.

Não se verifica, pois, qualquer obscuridade ou ambiguidade, sendo o acórdão perfeitamente esclarecedor sobre o objeto do recurso.

Sendo tudo – a fundamentação e a decisão -, meridianamente claro, nada há que careça de esclarecimento.

3. impertinência:

O requerente não ignora que o nosso acórdão proferido nos autos não admite impugnação, designadamente através de recurso ordinário. O Supremo Tribunal de Justiça, ao proferi-lo esgotou o respetivo poder jurisdicional.

O inconformismo do requerente com o julgado não tem cobertura no regime legal que invoca – art. 380º do CPP. A mera reprodução das conclusões da alegação de recurso, não legitima nem pode fundamentar pedido de “aclaração” do acórdão que, apreciando-as, não lhes deu provimento.

Salientou-se que o acórdão apenas admite correção de erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade que resulte do texto da decisão em si mesmo e ainda assim sob condição de não resultar modificado o sentido essencial da fundamentação e do julgado.

O requerimento nos termos em que vem formulado, acobertado sob a figura jurídica da “aclaração” do acórdão, extravasa, claramente e ostensivamente, a finalidade adjetiva atribuída aos sujeitos processuais nos arts. 380º, nº 1, al b), e 425º, nº 4, do CPP.


III – DECISÃO:

Termos em que o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção criminal decide indeferir, por manifestamente infundado, o requerimento a pedir a aclaração do acórdão, apresentado pelo recorrente AA.

Nos termos dos arts. 521º n.º 1 do CPP, 531º do CPC e 10º do Regulamento das custas processuais condena-se o requerente a pagar 5UCs de taxa sancionatória excecional.

Custas pelo requerente fixando-se a taxa de justiça de 3 Ucs.


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Lisboa, 12 de maio de 2021


Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro relator)

Atesto o voto de conformidade da C.ª Juíza Conselheira Maria Teresa Féria de Almeida – art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março na redação dada pelo DL n.º 20/2020 de 1/05 aplicável ex vi do art.º 4 do CPP)[2] .

Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira adjunta)

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[1] Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1981, vol. V, pág. 132.
[2]   Artigo 15.º-A: (Recolha de assinatura dos juízes participantes em tribunal coletivo)
A assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em tribunal coletivo, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 153.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto de conformidade dos juízes que não assinaram.