Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
10421/15.9T8VNG.P2.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: DOCUMENTOS PASSADOS EM PAÍS ESTRANGEIRO
FORÇA PROBATÓRIA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
REQUISITOS
RECURSO DE APELAÇÃO
DOCUMENTO SUPERVENIENTE
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. É justificada a junção de documentos na fase de recurso de apelação quando estes visem a prova de factos cuja relevância para a decisão a parte não pudesse, razoavelmente, antever antes de proferida decisão do Tribunal da Relação que anulou a sentença para o esclarecimento, por via documental, de determinada discrepância.

II. Quando considere que não há falta ou insuficiência de prova, o Tribunal pode, no exercício dos seus poderes de livre apreciação da prova, dar por demonstrada a veracidade do documento, ainda que a veracidade do documento seja impugnada por uma das partes.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrentes: AA, BB e CC

Recorrido: DD

1. AA, BB e CC vieram interpor processo especial de declaração de morte presumida relativa ao seu marido e pai, respectivamente, DD.

Procedeu-se às legais citações e publicações, não tendo sido deduzida qualquer contestação.

Produzida a prova, em 15.09.1999, veio a ser proferida sentença, transitada em julgado, que declarou a morte presumida de DD.

2. DD, identificando-se como réu nestes autos, nos quais foi declarada a sua morte presumida, por requerimento de 1.12.2015, veio requerer que fosse declarada sem efeito aquela declaração de morte presumida. Juntou cópias de “cedula de identidad” e passaporte emitidos pela República Bolivariana da Venezuela.

3. Devidamente notificadas, AA, BB e CC alegaram não reconhecer o subscritor do requerimento em causa como o réu, requerendo a sua notificação para demonstrar a sua identidade.

4. Em 20.01.2016 o requerente apresentou requerimento alegando factualidade diversa com vista a provar a sua identidade, juntando documentos e requerendo a produção de meios de prova.

5. Em 9.02.2016 as requeridas apresentaram requerimento em que impugnaram motivadamente os factos e os documentos apresentados pelo requerente, negando que seja o seu marido e pai, respectivamente.

6. Foi proferido despacho, em 5.02.2016, que ordenou a tomada de declarações ao requerente, antes da sua partida para a Venezuela e a realização de perícia ao ADN destinada a determinar o parentesco entre o requerente e as pretensas filhas, como produção antecipada de prova nos termos dos artigos 419.º e 420.º do CPC.

Notificado esse despacho às partes não foi objecto de recurso.

7. Conforme informação do Instituto de Medicina Legal de 3.05.2017, as pretensas filhas do requerente não compareceram em duas datas previamente agendadas.

8. No requerimento das requeridas de 18.01.2017, estas expressamente declaram no seu artigo 12.º que não estão disponíveis a realizar a recolha de material genético na presença do requerente.

9. Em complemento do despacho de 5.02.2016, a Exma. Senhora Juíza proferiu despacho em 3.07.2017, determinando que o IML providenciasse pela recolha de material genético em dias e horas separadas para requerente e requeridas, tendo solicitado designação de nova data para a diligência e ordenado a notificação dos mandatários e das partes, devendo as requeridas ser advertidas de que a nova falta levaria teria as devidas consequências legais.

Também este despacho foi notificado às partes e dele não foi interposto recurso.

10. Foi designada data para as colheitas de amostras biológicas às requeridas filhas, em 18.09.2017, pelas 9h00, tendo estas sido notificadas por carta com prova de depósito, e faltaram.

11. Por requerimento de 19.09.2017, as aludidas requeridas vieram justificar as faltas por doença.

12. O IML informou nos autos, em 25.9.2017, que foi realizada colheita de amostras biológicas ao requerente em 14.09.2017, que ficaram em arquivo.

13. Foi designada nova data para as colheitas de amostras biológicas às requeridas filhas, em 9.11.2017, pelas 9h00, tendo estas sido notificadas por cartas com prova de depósito, e faltaram.

14. Por requerimento de 23.11.2017, as aludidas requeridas vieram justificar as faltas por terem realizado uma viagem de cariz profissional a ....

15. Em 19.01.2018 a Exma. Senhora Juíza proferiu despacho julgando injustificada a falta daquelas requeridas a esta última data da perícia ordenada e tendo-as condenado em multa de 2,5 UCs a cada uma. Determinou ainda que o IML designasse nova data para a diligência e ordenou a notificação dos mandatários e das partes, devendo as requeridas ser advertidas de que a nova falta seria entendida como estando elas, propositadamente, a inviabilizar a realização da perícia, com a consequente inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 344.º, n.º 2, do CC.

Também este despacho foi notificado às partes e dele não foi interposto recurso.

16. Foi designada nova data para as colheitas de amostras biológicas às requeridas filhas, em 5.03.2018, pelas 9h00, tendo estas sido notificadas por cartas com prova de depósito, e faltaram, sem justificação alguma.

17. Teve lugar a instrução dos autos, com a audição do requerente em declarações de parte, em acta de 16.02.2016 e junção de cópias do documento de identidade e passaporte cujos originais foram exibidas à Exma. Senhora Juíza.

18. Face à informação de fls. 221, frustrou-se a prova por meio de comparação entre as impressões digitais do requerente e as que constavam de pedidos de documento de identificação apresentados junto do registo civil.

19. Foram inquiridas testemunhas e, por fim, em 11.10.2018, foi proferida sentença.

Na fundamentação da sentença pode ler-se:

Assim, ao não comparecerem sucessivamente no INML para recolha do necessário material biológico (apesar de notificadas para o efeito – sendo para tal exaustivas as diligências do tribunal – muito para além do que seria imposto pelos arts. 247º/1 e 249º/2, do Código de Processo Civil), culposamente tornaram impossível a produção da pretendida prova.

Advertidas de que a manterem tal comportamento tal implicaria a inversão do ónus da prova, ao abrigo do preceituado no art. 344º/2, do CCivil, as requeridas voltaram a faltar à data pelo INML indicada para recolha de material biológico.

Assim, invertendo-se o ónus da prova, teriam que ser estas a provar que o justificante não era E….Ora nenhuma prova fizeram nesse sentido.

Aliás a única prova a este respeito feita nos autos, consistiu na inquirição das testemunhas arroladas pelo justificante, conhecidos, familiares e amigos dos tempos de juventude de E… que, com maior ou menor objectividade e/ou fundamentação, asseguraram de forma firme e convicta reconhecerem no justificante como o seu conhecido/familiar/amigo.

Sendo que o mais que consta de tal factualidade resulta da justificação aqui deduzida. Os ponto 5 e 6 resultam do inventário apenso (…)”.

E o dispositivo da sentença é o seguinte:

a) Declara-se que DD se encontra vivo, com a consequente cessação dos efeitos atinentes à sua declaração de morte presumida;

b) Determina-se que lhe seja restituído o seu património, no estado em que se encontrar, com o preço dos bens alienados ou com os bens diretamente sub-rogados e bem assim com o preço dos alienados, quando no título de aquisição se declare expressamente a proveniência do dinheiro.”

20. Desta sentença interpuseram recurso as autoras/requeridas, vindo a mesma a ser anulada por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9.05.2019, que determinou a solicitação de informações às autoridades da República da Venezuela.

Neste Acórdão escreveu-se:

É fundamental para a prova da referida identidade saber se o indivíduo a quem foi atribuída a “cédula de identidade” E-10...40, e se apresentou nos serviços de registo civil da Venezuela, em ... .04.1978 e em ... .02.1985, a declarar o nascimento das filhas dele e da esposa, como natural de Portugal, domiciliado na ... de …, Caracas, tem a mesma filiação do indivíduo com o mesmo nome e data de nascimento, que se apresentou agora, em 20.01.2016 a formular o pedido de devolução de bens, cidadão venezuelano, portador da “cédula de identidade” número V 14...49, emitida em 16.04.2015 e passaporte da Venezuela, emitido em .../.../2015, onde consta, como local de nascimento, Lisboa. Tal poderia ter ocorrido através de processo de naturalização.

Não pode esta Relação ordenar a realização dessa prova, que deve ser obtida pelo tribunal a quo por via de informação da Embaixada da República Bolivariana da Venezuela em Lisboa ou por via de carta rogatória em pedido dirigido ao SAIME- Servicio Administrativo de Identificación, Migración y Estranjeria do Gobierno Bolivariano de Venezuela.

Assim, ao abrigo do disposto nos artºs 888º, nº3 e 662º, nº2, al. b), NCPC, ordena-se a produção daquele meio de prova e termos subsequentes, para a prova dos referidos factos que foram impugnados, anulando-se, em conformidade a sentença proferida.

III. DECISÃO

Nestes termos, ACORDAM os juízes nesta Relação em anular a decisão recorrida nos termos que antecedem e, sem prejuízo da consideração dos factos já fixados como provados neste acórdão, ordena-se a realização do apontado meio de prova e decisão posterior”.

21. Tendo os autos baixado ao Tribunal de 1.ª instância, foi solicitada a informação pretendida, tendo, por resposta datada de 14.04.2021, a Embaixada da República Bolivariana da Venezuela em Portugal referido:

Venho por este meio (...) informar que nos registos existentes neste consulado Geral correspondente a DD, não se encontram identificados os nomes do pai e da mãe (...)” (cfr. referência Citius ...19).

22. Foi de seguida proferida sentença, datada de 28.06.2021, em que pode ler-se, designadamente, o seguinte:

No que se refere aos factos dados como não provados, seguiu-se aqui o caminho fixado pelo Tribunal da Relação do Porto, que expressamente afastou a possibilidade de inversão do ónus de prova, tendo determinado que era ao requerente que cabia a prova da sua identidade, como sendo o ausente.

Não tendo havido resposta integral ao solicitado pelo Tribunal – para além daquela junta pela Embaixada da República da Venezuela, em 13 de Abril, que nada permite aferir quanto à identidade em causa – importa concluir que o requerente não logrou demonstrar os factos relacionados com a sua identidade, cabendo a si o ónus de prova (…).

Pelo exposto julgo o pedido improcedente, mantendo a decisão que considerou verificada a morte presumida de DD nascido em ...-02-1955, em ..., Vila Nova de Gaia, sendo filho de EE e de FF”.

23. Inconformado, o requerente, DD, interpôs recurso de apelação.

24. Em 11.10.2022 proferiu o Tribunal da Relação do Porto um Acórdão de cujo dispositivo consta:

Pelo exposto e em conclusão acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto, em julgar procedente o recurso, alterando-se a matéria de facto em conformidade com o supra decidido e em consequência:

1) Declara-se que DD, nascido em ... de fevereiro de 1955, em ..., Vila Nova de Gaia, filho de FF e de EE, atualmente com dupla nacionalidade, Portuguesa e Venezuelana, se encontra vivo, com a consequente cessação dos efeitos atinentes à sua declaração de morte presumida;

2) Determina-se que lhe seja restituído o seu património, pelas Requeridas no estado em que se encontrar, com o preço dos bens alienados ou com os bens diretamente sub-rogados e bem assim com o preço dos alienados, quando no título de aquisição se declare expressamente a proveniência do dinheiro.

Custas pelas Apeladas (art. 527º, do Código de Processo Civil)”.

25. Naturalmente insatisfeitas com o decidido neste Acórdão, vêm agora as requerentes AA, BB e CC dele recorrer para este Supremo Tribunal de Justiça “nos termos do previsto no número 1, do artigo 671º, do número 1, do artigo 675º, e número 1, do artigo 676º, todos do Código de Processo Civil)”.

Concluem as suas alegações com as seguintes conclusões:

A) Vem interposto o presente Recurso de Revista, do Acórdão proferido pelos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores da ... Secção, do Venerando Tribunal da Relação do Porto, que revogou a decisão prolatada no âmbito dos autos especiais de justificação da ausência, após processo de declaração de morte presumida, que correu seus termos junto do Juíz ..., do Juízo Local Cível ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, sob o número de processo10421/15.9T8VNG;

B) Substituindo-a por outra em sentido oposto e em que se determina resumidamente, “(…) Pelo exposto e em conclusão acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto, em julgar procedente o recurso, alterando-se a matéria de facto em conformidade com o supra decidido e em consequência; 1) Declara-se que DD, nascido em ... de fevereiro de 1955, em ..., Vila Nova de Gaia, filho de FF e de EE, actualmente com dupla nacionalidade, Portuguesa e Venezuelana, se encontra vivo, com a consequente cessação dos efeitos atinentes à sua declaração de morte presumida; 2) Determina-se que lhe seja restituído o seu património, pelas Requeridas no estado em que se encontrar, com o preço dos bens alienados ou com os bens directamente sub-rogados e bem assim com o preço dos alienados, quando no título de aquisição se declare expressamente a proveniência do dinheiro. Custas Pelas Apeladas. (…)”;

C) Discordando da decisão aí proferida, interpõem as ora recorrentes, o competente recurso, e, com suporte nas CONCLUSÕES que condensam a fundamentação do seu Recurso;

D) Entendem as recorrentes que a decisão não deveria ter sido no sentido determinado, tendo, em sua opinião, ocorrido a violação e a errada aplicação da lei de processo (alínea b), do número 1, do artigo 674º, do Código de Processo Civil), e, também, uma violação de lei substantiva (alínea a), do número 1, do artigo 674º, do Código de Processo Civil);

E) Sendo que, com o presente recurso de revista as recorrentes pretendem que tal errada e violadora aplicação das normas do processo e da lei substantiva seja efectivamente declarada, e revogada a decisão proferida em matéria de facto que foi efectuada com base nessas premissas em crise, confirmando-se o julgamento efectuado pelo meritíssimo tribunal de primeira instância; ASSIM,

F) Em primeiro lugar, entendem as ora recorrentes – salvo o devido respeito por opinião diversa – que não andou bem o Venerando Tribunal a quo na permissão que deu ao ora recorrido para proceder à junção dos documentos que apresentou em sede de recurso;

G) desta forma fazendo errónea aplicação do disposto nos artigos 651º, e 425º, do Código de Processo Civil e, com isto, violando essas mesmas disposições e aquela constante do artigo 423º, do mesmo dispositivo legal.

H) Em segundo lugar, entendem as ora recorrentes – salvo o devido respeito por opinião diversa – que não andou bem o Venerando Tribunal a quo na valoração que atribuiu aos documentos juntos, fazendo tábua rasa da impugnação desses documentos apresentada pelas recorrentes em sede de contra-alegações apresentadas;

I) E, com isto, violando o disposto no artigo 374º, e 376º, do Código Civil, e o disposto, quanto a este assunto, no artigo 445º, do Código de Processo Civil;

J) Desde logo, a interpretação e aplicação por parte do Venerando Tribunal da Relação do Porto do artigo 425º, do Código de Processo Civil vai no sentido da existência quer de uma superveniência objectiva, quer de uma superveniência subjectiva dos documentos que foram juntos;

K) Considerando, também, a existência do preenchimento do disposto na segunda parte do número 1, do artigo 651º, do Código de Processo Civil, ou seja, “(…) no caso da junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância. (…)”;

L) Entende o Venerando Tribunal da Relação do Porto que o facto das pretensas certidões apresentadas terem a data de emissão de 10 de Agosto e de 21 de Julho de 2021, será suficiente para sustentar a superveniência objectiva da junção de tais documentos;

M) Por outro lado, entende igualmente o Venerando Tribunal a quo que existe efectivamente uma superveniência subjectiva na junção de tais documentos;

N) E, por fim, entende o Venerando Tribunal a quo que a junção de tais documentos preenche igualmente a possibilidade da sua junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância;

O) As recorrentes entendem que errou fundamentalmente o Venerando Tribunal a quo na fundamentação que usa para qualquer uma das circunstâncias em que seria possível permitir a junção de documentos nesta fase processual;

P) Para que sejam aceites documentos em sede de recurso, desde logo e como bem afirma o artigo 651º, do Código de Processo Civil, terá que estar em causa a situação prevista no artigo 425º, do Código de Processo Civil;

Q) Ou seja, e como refere aquele ditame legal, apenas poderão ser juntos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento, sendo, então, supervenientes;

R) Ora, entendem as recorridas que os documentos em apreço, já poderiam ter sido juntos há muito tempo, inexistindo uma qualquer superveniência, seja ela na sua vertente objectiva ou na sua vertente subjectiva;

S) Por superveniência objectiva entendem-se as situações em que o que ocorreu historicamente e que é retratado no documento, o foi em momento posterior ao do momento considerado;

T) sendo que, por superveniência subjectiva, entende-se aquilo que só foi conhecido em momento posterior ao considerado;

U) Contudo, é requisito para a existência desta superveniência subjectiva e como tal para a admissão do documento, a justificação de que o conhecimento da situação documentada, ou o documento em si, não obstante o carácter pretérito da situação, quanto ao momento considerado, só ocorreu posteriormente a este e por razões que se prefiguram como atendíveis. (a este propósito Cfr. Acórdão Tribunal Relação de Coimbra, de 18 de Novembro de 2014, no processo nº 628/13.9TBGRD.C1, disponível no sítio internético http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/ 787d1a88b504002b80257d9a00433e7b?OpenDocument);

V) É que é por demais notório que as situações retratadas no documento, se reconduzem a situações ocorridas em momento muito anterior ao momento que se tem como referência, ou seja, o da interposição do recurso que foi interposto da decisão tomada em primeira instância e que agora se encontra em crise;

W) O Venerando Tribunal a quo entende que aquilo que deve ser tido em atenção para a verificação deste tipo de superveniência são as datas de emissão das pretensas certidões apresentadas;

X) E que o facto dessas certidões serem posteriores à data da declaração, por parte do meritíssimo tribunal da primeira instância, da impossibilidade de obtenção das informações que haveria de obter considerando a anterior decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto;

Y) Ora, essas datas não só são posteriores a essa tomada de posição por parte do meritíssimo tribunal de primeira instância, mas como também são posteriores à sentença proferida nos autos;

Z) Contudo, a interpretação que a jurisprudência e que a doutrina, quase unânimes, defendem, e que, salvo o devido respeito é a correcta, é a de que não interessa a data de emissão do documento em questão, mas sim, a data do que historicamente o documento relata;

AA) E. como é possível verificar pela simples leitura desses documentos, as datas do que historicamente esses documentos relatam são, até, anteriores à apresentação do requerimento de justificação da urgência por parte do ora recorrido;

BB) Pelo que é errada a interpretação que o Venerando Tribunal a quo faz neste ponto do disposto nos artigos 425º, e 651º, do Código de Processo Civil, e uma consequente ilegal aplicação do disposto nas indicadas normas e no disposto no artigo 423º, também do Código de Processo Civil;

CC) Também não pode colher a argumentação que o Venerando Tribunal a quo faz, para sustentar a existência de uma chamada superveniência subjectiva;

DD) Entende o Venerando Tribunal a quo que só naquele momento o recorrido teve conhecimento da existência dos documentos e a eles teve acesso, tendo recorrido a terceiros para os obter na Venezuela, o que não pode colher; ISTO PORQUE,

EE) Os documentos juntos, e que na opinião das recorrentes não haviam de ter sido aceites, correspondem a pretensas certidões alegadamente emitidas por entidades administrativas Venezuelanas, documentos cujas certidões estão ao alcance de qualquer um, seja de forma pessoal, seja através de uma qualquer outra pessoa;

FF) Também não poderia o Venerando Tribunal a quo entender que o ora recorrido apenas teve conhecimento naquela altura da existência de tais documentos;

GG) Pois bem, com menor ou maior grau de certeza nos factos que são recolhidos, é do senso comum, público e notório, que os dados de identificação de um qualquer indivíduo são recolhidos e alvo de tratamento por todos os países do mundo, e que, por requerimento, podem estas repartições públicas emitir certidões de tais factosaos interessados;

HH) Não é crível que qualquer homem médio não tenha conhecimento disto, muito menos que tal versão tenha acolhimento na decisão tomada pelo Venerando Tribunal a quo;

II) É que, mesmo que tal absurdo pudesse suceder, pelo menos no momento em que o Venerando Tribunal da Relação do Porto, em 9 de Maio de 2019, proferiu o Acórdão que anulou a anterior sentença proferida nos autos e deu um caminho a seguir ao tribunal de primeira instância, impunha-se ao ora recorrido que, de moto próprio, providenciasse pela obtenção de tais documentos;

JJ) Pelo que se impunha que a decisão do Venerando Tribunal a quo não acolhesse a versão trazida aos autos pelo ora recorrido, e, não considerasse a existência de uma superveniência subjectiva;

KK) Para que um documento possa ser junto e aceite na fase processual recurso, sobrevive a possibilidade constante da segunda parte do número 1, do artigo 651º, do Código de Processo Civil, ou seja, “(…) no caso da junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância. (…)”;

LL) E as recorrentes entendem que a argumentação expendida pela Venerando Tribunal a quo encerra em si mesma a razão pela qual não deveria ter sido atendida a pretensão do recorrido na junção tardia dos documentos por não preenchimento da disposição mencionada anteriormente;

MM) A apresentação de tais documentos mostrou-se necessária, não pela decisão proferida em primeira instância, mas muito antes disso, aquando da primeira decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto;

NN) Aceitar a argumentação expendida pelo recorrido e aceite pelo Venerando Tribunal a quo quanto a este ponto será desvirtuar o sentido de todo o sistema de recursos operante na legislação civil portuguesa, transformando aquilo que se pretende seja uma situação excepcional, numa situação normal em que, confrontada com uma decisão desfavorável, a parte teria a possibilidade de, através da junção de nova documentação, promover, em segunda instância, todo um novo julgamento;

OO) Pelo que, também por aqui é notório que a interpretação promovida pelo Venerando Tribunal a quo, não corresponde à correcta, porque, inexiste, também, in casu o preenchimento da possibilidade prevista no número 1, do artigo 651º, do Código de Processo Civil;

PP) Fica claro que a interpretação dos artigos 425º e 651º, do Código de Processo Civil promovida pelo Venerando Tribunal a quo é errada, conduzindo à aplicação ilegal do disposto nas indicadas normas e no disposto no artigo 423º, do Código de Processo Civil, devendo ter sido indeferida a pretensão do recorrido na junção dos documentos que juntou, e, como tal haveria de ter sido indeferido o recurso interposto, o que se peticiona seja declarado por via do presente recurso de revista; SEGUINDO,

QQ) Em sede de contra-alegações apresentadas na sequência da interposição de recurso de apelação que originou a decisão proferida pelo Venerando Tribunal a quo e ora em crise, as ora recorrentes e aí recorridas, foram confrontadas como documentos juntos pela primeira vez por parte do recorrido;

RR) Mesmo concebendo essa hipótese como praticamente residual, mercê a tardia junção desses documentos, as ora recorrentes procederam à impugnação dos documentos juntos; É QUE,

SS) Sem aposição de certificação por autoridade consular ou diplomática portuguesa na Venezuela, ou sem a aposição de apostilha, os documentos que foram juntos não podiam ter a força probatória que o ora recorrido pretendia que tivessem;

TT) Não se tratam de documentos autênticos e autenticados, e, como tal com força probatória plena, mas, simplesmente documentos particulares;

UU) Assim, nos termos do previsto no número 2, do artigo 444º, do Código de Processo Civil, por se tratarem de documentos particulares e constituir aquele o momento admissível, as recorrentes impugnaram os documentos juntos pelo recorrido, na sua alegação, com os números 1 e 2;

VV) Desta forma, nos termos do previsto no artigo 374º, do Código Civil impugnou-se a letra e assinatura dos documentos em questão, e a exactidão da reprodução mecânica daqueles dessa forma apresentados, bem como o teor de todos eles bem como o alcance que se pretende extrair dos seus conteúdos;

WW) Sendo que, nos termos do previsto no número 2, do artigo 372º, caberia ao recorrido a prova da genuidade dos documentos;

XX) Além dos documentos, o recorrido não apresentou qualquer outro caminho para eventual prova da veracidade da letra e da assinatura, bem como da exactidão mecânica da sua reprodução;

YY) Pelo que não poderia o Venerando Tribunal a quo, mesmo por apelo ao princípio da liberdade de apreciação da prova, promover o seu conteúdo, a sua assinatura e a veracidade da sua letra, ao cariz de verdadeiros;

ZZ) Pelo que violou o disposto nos artigos 374º, e 376º, do Código Civil e o disposto quanto a este assunto pelo artigo 445º, do Código de Processo Civil.

AAA) Pelo que, também por aqui fica claro que a interpretação dos artigos 374º e 376º, do Código Civil promovida pelo Venerando Tribunal a quo é errada, conduzindo à aplicação ilegal do disposto nas indicadas normas e no disposto no artigo 445º, do Código de Processo Civil, ter sido declarados como impugnados os documentos apresentados, não tendo sido o seu conteúdo e a sua assinatura considerados como verdadeiros;

BBB) Seja pela declaração da errónea interpretação dos artigos 425º e 651º, do Código de Processo Civil promovida pelo Venerando Tribunal a quo é errada, que conduziu à aplicação ilegal do disposto nas indicadas normas e no disposto no artigo 423º, do Código de Processo Civil, que deveria ter indeferido a junção dos documentos juntos pelo recorrido nas alegações do recurso que interpôs junto do Venerando Tribunal da Relação do Porto;

CCC) Seja pela declaração de que a interpretação e aplicação do disposto nos artigos 374º e 376ºº, do Código Civil promovida pelo Venerando Tribunal a quo é errada, e que conduziu à violação do disposto nas indicadas normas e no disposto no artigo 445º, do Código de Processo Civil, que deveria ter declarado como impugnados os documentos apresentados;

DDD) Impõe-se que o Colendo Supremo Tribunal de Justiça tire as devidas consequências ao nível da implicação no caso concreto, mesmo que estas se verifiquem ao nível do julgamento da matéria de facto promovida pelo Venerando Tribunal a quo;

EEE) Sem a junção ilícita dos documentos que foram juntos, ou, se estes tivessem sido bem valorados, não restaria ao Venerando Tribunal a quo outro caminho que não fosse manter o julgamento em sede de matéria de facto promovido pela decisão do meritíssimo tribunal de primeira instância;

FFF) Nestes termos, não restará alternativa, por via do provimento do presente recurso de revista que não seja repristinar a decisão em matéria de facto proferida na sentença do tribunal de primeira instância, e recolocar o facto número 10, da matéria de facto determinada pelo Venerando Tribunal a quo, no elenco dos factos dados como não provados, e, consequentemente, repristinar a decisão proferida em sede de primeira instância de indeferimento da pretensão de reconhecimento do recorrido como sendo o verdadeiro DD”.

26. A revista subiu na sequência de despacho proferido pelo Exmo. Senhor Desembargador, nos seguintes termos:

Admito o recurso interposto, que é de Revista, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo (artigos 671º nº 1, 675º e 676º nº 1, todos do CPC)”.


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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as de saber se:

1.ª) ao admitir a junção dos documentos apresentados pelo requerente com o recurso de apelação, o Tribunal a quo incorreu em violação de norma, designadamente os artigos 651.º, 425.º e 423.º do CPC; e

2.ª) ao atribuir o valor que atribuiu a tais documentos, o Tribunal a quo incorreu em violação de alguma norma de Direito probatório material, designadamente os artigos 374.º. 375.º e 445.º do CPC.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1. DD nasceu em ...-02-1955, em ..., Vila Nova de Gaia, sendo filho de EE e de FF.

2. Por sentença de 15-091999, transitada em julgado, constante de fls. 46 e ss e que aqui se dá por reproduzida, foi declarada a sua morte presumida.

3. No processo de inventário que corre por apenso faram partilhados entre a sua mulher AA e as suas filhas, CC e GG, os seguintes bens:

a. prédio urbano, formado por casa térrea, sito no Lugar ..., freguesia ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de  sob o n.º 16.596;

b. metade indivisa de um prédio rústico, sito no Lugar ..., freguesia ..., Vila Nova de Gaia, descrito na ... Conservatória do Registo Predial de  sob o n.º 25.473;

c. uma sepultura, sita no cemitério paroquial de ..., com alvará de registo n. 71, do ano de 1974.

4. Conforme conferência de interessados, mapa de partilha e sentença de fls. 67, 70 e ss e 80 desses autos, que aqui se dão por reproduzidas, ficaram tais bens adjudicados a AA, tendo as demais interessadas declarado que as tornas estavam pagas.

5. O ausente casou, com 21 anos, catolicamente, na ..., em ... de Setembro de 1976, com a aqui primeira autora, que adotou o apelido de “DD”;

6. Pouco tempo após o casamento, o casal foi viver para a Venezuela, até ... de Março de 1987, data em que as autoras regressaram a Portugal, e o réu se manteve naquele país, em Caracas;

7. As filhas – as aqui segunda e terceira autoras – nasceram, respetivamente, em ... de Março de 1978 – BB – e ... de Janeiro de 1985 – a CC;

8. O réu apresentou-se nos serviços de identificação civil na Venezuela, para registar o nascimento das filhas, o que fez com a cédula E-10...40, em ... de Abril de 1978 e ... de Fevereiro de 1985, indicando a residência na ..., Caracas;

9. O aqui requerente apresentou-se, aquando da viagem para Portugal, com a cédula de identidade, como cidadão venezuelano, com o número V 14...49, emitida em 16 de Abril de 2015, constando a data de nascimento ... de fevereiro de 1955, e um passaporte emitido por aquele país, em 6 de Novembro de 2015, com local de nascimento em Lisboa, sem referência à sua filiação.

10. O requerente é o ausente[1].

E são seguintes os factos considerados não provados no Acórdão recorrido:

1. DD, aqui requerente, soube entretanto que a mulher tinha obtido em tribunal a sua morte presumida.

2. Decidiu por isso vir a Portugal para se inteirar pessoalmente da situação.

O DIREITO

Da alegada inadmissibilidade da junção dos documentos

As requeridas / ora recorrentes contestam a admissibilidade da junção de certos documentos pelo requerente / então apelante / ora recorrido. Alegam, em suma, que não se confirma nem a superveniência objectiva nem a superveniência subjectiva dos documentos e que, por isso, a admissão da sua junção implica violação dos artigos 651.º, 425.º e 423.º do CPC [cfr., em especial, conclusões F) e G)].

Estão em causa os dois documentos seguintes:

- cópia do jornal “Gaceta Oficial de la Republica de Venezuela”, n.º ... extraordinário, de 9.08.1984, certificada com a data de 10.08.2021 pelo “Diretor General – Servicio Autónomo Imprensa Nacional e Gaceta Oficial”, como constituindo cópia fiel e exacta do original (Documento 1); e

- documento com logotipo do SAIME (Servicio Administrativo Identificación, Migración Extranjería), carimbo do Departamento de Datos Filatórios na Direccion de Verificacion y Registro, e assinatura da Directora de Verificación y Registro, emitido em Caracas, Venezuela, em 21.7.2021, em que a referida Directora atesta a “cédula de identidade V-14...49, expedida en Caracas em 18.12.1989 // y cuyos datos filiatorios son los siguientes: Nombres: DD // Apellidos: DD // Nombres de los padres: FF y EE // Lugar e fecha de nacimiento: Portugal, Vila Nova de Gaia el .../02/1955 // Estado civil: casado com AA // Venezuelano segun Gaceta Oficial n.º ... de .../08/1984 // Cédula anterior E-1.0...040 // (Alf)” (Documento 2).

A junção dos documentos (só) com a apelação foi justificada pelo requerente / então apelante nestes termos:

19. Entende o Apelante que se verificam os pressupostos do art. 651.º, n.º 1 em conjugação com o art. 425.º do CPC.

20. Os documentos são, com toda a certeza supervenientes, pois o Apelante só dele tive conhecimento em agosto de 2021, não lhe tendo por isso sido possível a sua junção anteriormente, agravando de o Apelante ter sido surpreendido com a imediata prolação da sentença, sendo essa novidade e imprevisível, impedindo-se a realização de quaisquer outros elementos probatórios antes do seu termo.

21. Na verdade, o Apelante apenas teve acesso aos documentos já após a prolação da sentença de 29.06.2021, nomeadamente, em agosto de 2021.

(…)

23. No caso concreto dos autos verifica-se uma superveniência subjetiva pois, o documento encontrava-se em poder de terceiro e, só posteriormente é que foi disponibilizado ao Apelante.

24. Portanto, o Apelante só teve acesso ao documento 1 e 2 após prolação de sentença, não lhe tendo, além disso, sido possível apresentá-lo anteriormente dado o mesmo ter sido apenas emitido a 21 de julho de 2021, pelo que não se deveria culpa sua a não junção destes documentos em tempo anterior.

25. A obtenção do documento não estava ao alcance do Apelante.

26. Pese embora, o Tribunal tivesse feito a notificação nos termos do art. 429.º e 432 do CPC à Embaixada da República Bolivariana da Venezuela em Portugal e ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, o certo é que não conseguiu obter o elemento de prova necessário e essencial para a descoberta da verdade e bem assim, cumprir parcialmente o douto ac. do TRP. Porém, em algum momento, não procedeu à notificação do SAIME, não obtendo o documento que provaria a identidade do apelante.

27. O SAIME só procedeu à emissão deste documento em julho de 2021 e, através de terceiros o Apelante só teve acesso ao documento em agosto de 2021.

28. Portanto, embora o Apelante tentasse obter documentos que comprovassem a sua identidade, o certo é que também não conseguiu e, como tal teve impossibilitado de juntar antes de 29.06.2021 qualquer documento emitido pelo SAIME, desconhecendo a existência do documento.

29. Acresce ainda, que tais documentos, doc. 1 e 2, devem de igual modo ser admissíveis dado estarem também relacionados com a novidade ou a imprevisibilidade da decisão, dado esta ter sido de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo.

30. Resulta daqui que é admissível a junção de documentos nesta fase processual”.

O Tribunal recorrido admitiu a junção dos documentos com a seguinte fundamentação:

No caso em apreço, parece-nos algo evidente que se mostra suficientemente demonstradas quer a superveniência objetiva, quer a superveniência subjetiva dos documentos juntos com o recurso.

Com efeito, o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão proferido em 09.05.2019, anulou a sentença da primeira instância, que havia reconhecido o Autor como o ausente, por ter entendido ser “fundamental para a prova da referida identidade saber se o indivíduo a quem foi atribuída a “cédula de identidade” E-10...40 na Venezuela e se apresentou nos serviços de registo civil da Venezuela, em ... .04.1978 e em ... .02.1985, a declarar o nascimento das filhas, como natural do ..., Portugal, tem a mesma filiação do indivíduo com o mesmo nome e data de nascimento, que se apresentou agora, em 20.01.2016 a formular o pedido de devolução de bens, cidadão venezuelano, portador da “cédula de identidade” V.14....49, emitida em 16.04.2015 e passaporte da Venezuela, emitido em ... .11.2015, onde consta, como local de nascimento, Lisboa, admitindo tal ter podido ter ocorrido através de processo de naturalização.

O Tribunal da Relação determinou em conformidade a realização de diligências, nomeadamente através de informação da Embaixada da República Bolivariana da Venezuela em Lisboa ou por via de carta rogatória em pedido dirigido ao SAIME- Servicio Administrativo de Identificación, Migración y Estranjeria do Gobierno Bolivariano de Venezuela, tendo em vista esclarecer essa situação.

Pese o tempo decorrido, o pedido de informações levado a cabo pelo tribunal de primeira instância não se revelaram conclusivos, tendo levado aquele tribunal a proferir despacho datado de 10.5.2021, no sentido que “A produção do meio de prova, nos termos determinados pelo Tribunal da Relação do Porto, está dependente da colaboração das autoridades venezuelanas, não tendo este tribunal - nem qualquer órgão de jurisdição português – competência para impor essa colaboração. Assim, parece-nos ser de proferir sentença, de acordo com o decidido por aquele tribunal superior, atenta a impossibilidade de obter o meio de prova em causa”.

Os documentos ora juntos pelo Apelante, que aquele explicou terem sido obtidos por um seu conhecido junto das respetivas entidades que os emitiram, em Caracas, Venezuela, têm data aposta (data em que foram obtidos) posterior á reconhecida impossibilidade do tribunal de primeira instância de obter a informação/documentos necessários para esclarecer as dúvidas suscitadas pelo Tribunal da Relação no acórdão citado. Com efeito, um deles é de 10.8.2021 e o outro de 21.7.2021.

Estamos assim perante uma superveniência objetiva relacionada com as datas de produção do documento, respetivamente de 10.8.2021 e em 21.7.2021.

Também o Recorrente alegou a superveniência subjetiva isto é, que só agora deles teve conhecimento e a eles teve acesso, alegando que “ciente, da importância da prova determinada pelo TRP, o Apelante, em paralelo às diligências do Tribunal a quo não deixou de recorrer a amigos e conhecidos com familiares ainda na Venezuela suplicando ajuda na obtenção de documento(s) autênticos que comprovem a identidade do Recorrente como sendo “o DD titular a "cédula de identidade" E-10...40 e da Cédula V 14...49”.

E que os documentos que ora junta foram obtidos por um seu conhecido, residente na Venezuela, que se dispôs a deslocar-se a diversos serviços oficiais na Venezuela acabando por ser encaminhado para o Departamento de Datos Filatórios na Direccion de Verificacion y Registro sita em Caracas tendo obtido, a pedido do Recorrente, o documento anexo emitido em 21-Julho-2021 com a referência ...84 o qual confirma que “ ... la cédula de identidade V-14...49 expedida em Caracas El 18/12/1989 .. em nombres: DD// Apellidos: DD// Nombres de los padres: FF Y DE EE. Lugar y fecha de nascimento: PORTUGAL, VILA NOCA DE GAIA EL .../02/1955// Estado Civil: CASADO COM AA// VENZEZOLANO SEGÚN GACETA OFICIAL N.º ... DEL 09/08/1984.//CEDULA ANTERIOR N.º E-1.0...40.//(ALF).// - documento autenticado 1 e 2 que se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.

Igualmente ocorre aqui a hipótese consagrada no citado art. 651.º, n.º 1, do CPC, que é “o caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”, com a especificidade de se terem tornado necessários em virtude da decisão proferida pelo TRP.

Como explica Antunes Varela ,“A decisão da 1ª instância pode, por isso, criar pela primeira vez a necessidade de junção de determinado documento, quer quando se baseia em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funda em regras de direito cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não contavam. Só nessas circunstâncias a junção do documento às alegações da apelação se pode legitimar.”

Em face do exposto, mostra-se justificada a junção tardia dos documentos ora oferecidos pelo Apelante, que têm em vista a eventual alteração de matéria de facto, em sede de recurso.

Trata-se de documentação que o tribunal de primeira instância, pese embora as diligencias que realizou não logrou obter por reconhecida “falta de colaboração das autoridades venezuelanas”, obstáculos que foram contornados pelo Autor, mediante a ajuda de pessoa residente naquele país que os logrou obter.

Estes documentos só se se tornaram necessários para clarificar a questão suscitada por este Tribunal de recurso, daí ser admissível a sua superveniência.

É certo que Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, comentando a norma do artigo 651.º, n.º 1, do CPC, afirmam que “a jurisprudência tem entendido que a junção de documentos às alegações de recurso, de um documento potencialmente útil á causa, mas relacionado com factos que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado”. E continuam: “no que tange à parte final do n.º 1, tem-se entendido que a junção de documentos às alegações só poderá ter lugar se a decisão da 1.ª instância criar, pela primeira vez, a necessidade de junção de determinado documento, quer quando a decisão se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam”.

O elemento de novidade introduzido pela decisão, passível de justificar a junção do documento com o recurso pelo impacto na decisão, exclui os documentos conexos com a matéria decidenda ab initio.

No caso em apreço porém, a necessidade de obter documentação que esclarecesse a discrepância entre o número das cédulas de identidade "cédula de identidade" E-10...40 e da Cédula V 14...49” emitidas pelo Estado Venezuelano ao cidadão com o (mesmo) nome DD só se tornou necessária quando tal discrepância foi assinalada, o que ocorreu no acórdão do TRP de 2019, em sede de reapreciação da matéria de facto em sede de recurso.

Em face do exposto, mostra-se justificada a junção tardia dos documentos ora oferecidos pelo Apelante, que tem em vista a eventual alteração de matéria de facto, em sede de recurso, pelo que se admitem os mesmos”.

É preciso sublinhar que os documentos em causa foram determinantes para a decisão recorrida, mais precisamente, para a inflexão do sentido da decisão proferida pela 1.ª instância, o que justifica a preocupação tanto do requerente como das requeridas, respectivamente, na defesa da admissibilidade da sua junção e na defesa da sua inadmissibilidade.

Veja-se, então, se estes documentos podiam ter sido admitidos pelo Tribunal da Relação.

No artigo 423.º do CPC estabelecem-se os princípios ou regras gerais relativamente ao momento de apresentação de documentos dirigidos à prova dos fundamentos da acção. Diz-se aí:

1 - Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.

2 - Se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.

3 - Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior”.

Em desvio a esta norma, o artigo 651.º, n.º 1, do CPC estabelece que:

[a]s partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”.

Por sua vez, dispõe-se na norma remetida – o artigo 425.º do CPC – que:

[d]epois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.

Da leitura articulada destas normas decorre que as partes apenas podem juntar documentos em sede de recurso de apelação, a título excepcional, numa de duas hipóteses: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância.

Explicita-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 8.11.2011 (Proc. 39/10.8TBMDA.C1) a primeira hipótese, advertindo-se que há que distinguir entre os casos de superveniência objectiva e de superveniência subjectiva: aqueles devem-se à produção posterior do documento; estes ao conhecimento posterior do documento ou – acrescentar-se-ia – ao seu acesso posterior pelo sujeito.

O desconhecimento ou a falta de acesso anterior ao documento deve assentar em razões atendíveis, não podendo ser imputável à falta de diligência dos sujeitos, sob pena de se desvirtuar a relação entre a regra e a excepção ditada, nesta matéria, pelo legislador.

Constituem exemplos de superveniência subjectiva o caso em que o documento se encontra em poder da parte ou de terceiro e este, apesar de lhe ser feita a notificação, nos termos do artigo 429.º ou 432.º do CPC, só posteriormente o disponibiliza, o caso em que a certidão de documento arquivado em notário ou em outra repartição pública, não obstante atempadamente requerida, só posteriormente é emitida e, por fim, o caso em que a parte só posteriormente tem conhecimento da existência do documento[2].

Devidamente enquadrada a questão, volte-se aos documentos em causa.

Ambos os documentos foram produzidos depois de a sentença ter sido proferida: o documento 1 em 10.08.2021 e o documento 2 em 21.07.2021.

Não parece, porém, inteiramente correcto entender-se que a superveniência objectiva é o fundamento decisivo para a admissibilidade dos documentos.

Na realidade, é possível objectar-se, quanto ao documento 1, que se trata da cópia de um número do jornal oficial venezuelano publicado em 9.08.1984, que o requerente podia ter diligenciado no sentido de produzir antes. E o mesmo vale, mutatis mutandis, quanto ao documento 2: a entidade em causa poderia ter sido instada a emitir a declaração em causa antes.

Existe, todavia, uma circunstância que, relevando para a data em que o requerente tomou a iniciativa de obter ambos os documentos, deve ser destacada: ambos os documentos se tornaram necessários em resultado da decisão do Tribunal da Relação que, anulando a sentença, chama a atenção, pela primeira vez, para uma discrepância que, segundo ele, necessitava de ser esclarecida.

É verdade que isto não corresponde exactamente à hipótese prevista no artigo 651.º, n.º 1, do CPC, não corresponde à hipótese em que os documentos se tornaram necessários em virtude do julgamento proferido em 1.ª instância. Não será, assim, por via daquela previsão que a admissão dos documentos poderá considerar-se justificada. Mas as particularidades dos autos permitem considerar que a situação está ainda abrangida pela / ao abrigo na norma, consubstanciando a outra hipótese nela prevista, de superveniência dos documentos.

Lembrando, brevemente, as vicissitudes dos autos, veja-se que, numa primeira decisão em 1.ª instância, o Tribunal considerou suficientes os elementos de que dispunha para julgar procedente o pedido do requerente. O Tribunal da Relação anulou, contudo, esta decisão, por ter detectado uma discrepância que entendeu que cumpria ao Tribunal de 1.ª instância esclarecer mediante a realização de determinadas diligências. O certo é que este último Tribunal não obteve os elementos necessários e acabou por julgar o pedido improcedente.

A necessidade dos documentos, aptos a esclarecer a discrepância apontada pelo Tribunal da Relação, só se torna visível com o Acórdão deste Tribunal. Terá sido, então, que o requerente começou a mobilizar esforços, em paralelo ao Tribunal de 1.ª instância, para identificar e obter, ele próprio, elementos que pudessem esclarecer aquela discrepância, não obstante estes só virem a ser, de facto, apresentados com o recurso de apelação interposto da (segunda) sentença.

Tudo isto aponta para que a admissão dos documentos encontre a sua justificação na superveniência (subjectiva) dos documentos, para a qual não pode, evidentemente, deixar de relevar o momento em que o apresentante tomou conhecimento da necessidade dos documentos.

É à luz desta superveniência que se compreende também por que razão os documentos, tendo-se mostrado necessários antes de proferida a (segunda) sentença, só vieram a ser apresentados depois de ela ter sido proferida (28.06.2021).

É, de facto, razoável a conclusão do Tribunal recorrido de que a apresentação dos documentos não foi possível antes: primeiro, porque não houve a consciência de que eles eram necessários senão a partir de certa altura; segundo, porque a emissão dos documentos estava na disponibilidade de terceiros. Acrescem todas as dificuldades inerentes à identificação das entidades relevantes e dos procedimentos adequados para obter os documentos (comprovadas pela impossibilidade do Tribunal de 1.ª instância em obter os documentos).

Pelo exposto, dá-se por (bem) justificada e, sobretudo, conforme ao disposto na lei a decisão de admitir a junção aos autos dos documentos.

Do alegado valor indevidamente atribuído aos documentos

As requeridas / ora recorrentes contestam ainda a valoração dos documentos feita pelo Tribunal recorrido. Afirmam elas que esta valoração desrespeita o disposto nos artigos 374.º e 376.º do CC bem como o disposto no artigo 445.º do CPC [cfr., designadamente, conclusões H) e I)].

O Tribunal a quo atribuiu valor aos documentos nos termos seguintes:

Os documentos em causa mostram-se emitidos por entidade estrangeira (Republica Boliveriana da Venezuela) e “autenticados” pelas autoridades desse país.

No domínio da Convenção de Haia de 5 de Outubro de 1961 a legalização do documento estrangeiro faz-se através da aposição duma apostilha pela entidade pública que o Estado de origem para o efeito tenha designado.

Para poderem valer como tal em Portugal, isto é como documentos autênticos ou autenticados, deveriam os documentos juntos ter sido objeto de reconhecimento por aplicação da Convenção de Haia de 5.10.1961, já que a Venezuela, assim como Portugal, aderiram a esta Convenção Internacional.

O reconhecimento do ato notarial estrangeiro está com efeito, previsto na Convenção de Haia, de 5-10-61, aprovada por ratificação do DL n.º 48.450 de 24 de Junho de 1968, exigindo-se-lhe – art. 3º e 4º - a oposição da apostilha passada pela autoridade competente do Estado donde emana o documento.

De acordo com o Artigo 2.º do Despacho n.º ...09, de 14 de Agosto - REGULAMENTO DO SERVIÇO DE APOSTILA, (versão atualizada):

1 - A apostila é a formalidade pela qual uma autoridade competente do Estado Português reconhece a assinatura, a qualidade em que o signatário do ato público atuou e, sendo caso disso, a autenticidade do selo ou do carimbo que constam do ato público.

2 - A apostila atesta apenas a autenticidade da assinatura, a qualidade em que o signatário do ato atuou e, sendo caso disso, a autenticidade do selo ou do carimbo que constam do ato.

Apesar de não ter sido aposta a Apostilha nos documentos que o Requerente juntou aos autos, tal não tem como consequência a sua inadmissibilidade, como defendem as Apeladas.

Também não significa que tais documentos não sejam idóneos a produzir prova.

A Apostilha confere apenas a autenticação do documento. O art. 365º do Código Civil determina:

“1. Os documentos autênticos ou particulares passados em país estrangeiro, na conformidade da respetiva lei, fazem prova como o fariam os documentos da mesma natureza exarados em Portugal.

2. Se o documento não estiver legalizado, nos termos da lei processual, e houver dúvidas acerca da sua autenticidade ou da autenticidade do reconhecimento, pode ser exigida a sua legalização.”

Por sua vez, o 440º do CPC estabelece que:

“Legalização dos documentos passados em país estrangeiro

1 - Sem prejuízo do que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os documentos autênticos passados em país estrangeiro, na conformidade da lei desse país, consideram-se legalizados desde que a assinatura do funcionário público esteja reconhecida por agente diplomático ou consular português no Estado respetivo e a assinatura deste agente esteja autenticada com o selo branco consular respetivo.

2 - Se os documentos particulares lavrados fora de Portugal estiverem legalizados por funcionário público estrangeiro, a legalização carece de valor enquanto se não obtiverem os reconhecimentos exigidos no número anterior.”

A este respeito escrevem José Lebre de Freitas, A. Montalvão e Rui Pinto: “A legalização não é indispensável para que o documento passado em país estrangeiro faça prova em Portugal.

O art. 365º do CC confere a tal documento, seja autêntico seja particular, desde que elaborado em conformidade com a lex loci, a mesma força probatória que têm os documentos da mesma natureza elaborados em Portugal; e só se houver fundadas dúvidas acerca da sua autenticidade, ou da autenticidade do reconhecimento, é que pode ser exigida a sua legalização nos termos do art. 540º”.A legalização não é indispensável para que um documento passado em país estrangeiro faça prova em Portugal. Desde que seja elaborado de acordo com a lex loci, o documento reveste a mesma força probatória que detém os documentos da mesma natureza elaborados em Portugal, só tendo de exigir a respetiva legalização se houver fundadas dúvidas sobre a sua autenticidade ou da autenticidade do seu reconhecimento”.

No caso em apreço, as Apeladas limitam-se a impugnar genericamente os documentos, sendo que, a nosso ver os mesmos não suscitam dúvidas fundadas quanto á sua autenticidade.

Assim podem e devem ser analisados no contexto probatório.

Isto posto, resta analisar a prova produzida.

Das diligências efetuadas após a prolação o acórdão desta Relação, resulta que, conforme informação do Consulado da Venezuela, em Lisboa, não consta da documentação referente a DD, a indicação do pai e da mãe.

Consta porém a mesma data de nascimento do cidadão DD, portador do bilhete de identidade nº 36...69, emitido em Outubro de 1976, em ... de fevereiro de 1955 (cfr. documentos de fls. 190 e 191 (remetidos a estes autos pelo Instituto dos Registo e Notariado), e de fls. 441 (remetidos pelos serviços do Consulado da Venezuela em Lisboa).

Verifica-se uma mera imprecisão quanto ao lugar de nascimento, na ficha do consulado que aparece como sendo “Lisboa-Portugal”, mas a residência aparece em ..., Vila nova de Gaia, ..., precisamente a naturalidade que consta na documentação do IRN de fls. 191, admitindo-se ter havido alguma confusão na transcrição das informações constantes de documentação estrangeira, o que não é inédito.

Dos documentos ora juntos com o presente recurso, do documento 1, consta a publicação no Jornal “Gaceta Oficial” da República Boleveriana da Venezuela nº ..., (de 09.08.1984), a lista das pessoas que se naturalizaram venezuelanos, onde consta “DD -E- 1.0...40.

De acordo com o documento de fls 2, consta a informação prestada pelo SAIME (Sevicio Administrativo de Identification, Migration y Estranjeria do Gobierno Boliveriano de Venezuela) que DD, com data de nascimento em ... .2.1955, filho de FF e de EE, com a cédula de identidade V-14.....449, “venezuelano segun Gazeta Oficial ... de 9.8.1984 e com cédula anterior nº E-10...40), casado com AA.

Da conjugação desta documentação, parece-nos terem ficado afastadas as dúvidas suscitadas no anterior acórdão desta Relação.

Com exceção algumas imprecisões, por exemplo quanto aos nomes dos pais do Apelante, que não se mostram indicados de forma integral, isto é com indicação de todos os apelidos, ou imprecisão quanto á cidade onde nasceu, em Portugal, explicáveis porque se trata de tratamento de dados pessoais efetuado por países diferentes, parece-nos ter ficado esclarecida desde logo a mais assinável discrepância detetada, relativamente á qual se adiantou que “Tal poderia ter ocorrido através de processo de naturalização”, quanto ao número de identificação do cidadão DD, na Venezuela.

Parece não haver agora dúvidas que, tal como aquele alegou, obteve dupla nacionalidade na Venezuela, país onde residia, tendo-lhe sido em consequência atribuído o atual número V 14...49, que substituiu oque utilizava enquanto residente estrangeiro, E-10...40, com que se apresentou a registar o nascimento das suas filhas, constante dos documentos de fls. 5 e 7 dos autos.

Considerando que a prova testemunhal produzida não se mostrou relevante para a prova da identidade do Apelante, que saiu muito novo de Portugal, não sendo por isso reconhecível pelas pessoas com quem privou em criança e adolescente e tendo por naturais as imprecisões do seu depoimento atento o tempo decorrido, a impossibilidade de realização de exame de DNA, por recusa injustificada das Requeridas, a prova documental mostra-se a nosso ver agora suficiente para podermos concluir que o Apelante é o ausente, cuja morte foi declarada por presunção.

Em consequência, determina-se a procedência parcial da impugnação da matéria de facto efetuada pelo Apelante, alterando-se a resposta dada ao facto 3 da sentença, do elenco dos factos não provados que passa a ser provado.

Acrescenta-se assim ao elenco dos factos provados o seguinte facto: 10. O requerente é o ausente”.

Antes de responder à questão, cumpre observar que o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece, em regra, de matéria de direito. No que toca à matéria de facto, os poderes do Supremo Tribunal de Justiça sofrem, com efeito, muitas limitações: apenas é admissível ao Supremo conhecer da decisão sobre a matéria de facto a título residual, com o propósito de garantir a observância das regras de Direito probatório material ou de ampliar a decisão sobre a matéria de facto, conforme resulta das disposições do n.º 3 do artigo 674.º e do n.º 3 do artigo 682.º do CPC[3].

Mais precisamente, e como se diz no primeiro destes dispositivos, “[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais não pode ser objecto de recurso de revista”, só podendo o Supremo Tribunal de Justiça alterar a decisão proferida pelo tribunal recorrido no respeitante à matéria de facto quando, nessa fixação, tenha havido “ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova”.

Quer isto dizer, por outras palavras, que o Supremo Tribunal só pode intervir quando tenha sido dado como provado determinado facto sem que tenha sido produzido o meio de prova de que determinada disposição legal faz depender a sua existência, quando tenha sido dado como provado determinado facto por ter sido atribuído a determinado meio de prova uma força probatória que a lei não lhe reconhece ou quando tenha sido dado como não provado determinado facto por não ter sido atribuído a determinado meio de prova a força probatória que a lei lhe confere[4].

É entendimento corrente que, além disto, o Supremo Tribunal de Justiça tem ainda a possibilidade de apreciar o uso que o Tribunal da Relação faz dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 662.º do CPC, sendo o “mau uso”[5] (uso indevido, insuficiente ou excessivo) susceptível de configurar violação da lei de processo e, portanto, de constituir fundamento do recurso de revista, nos termos do artigo 674º, nº 1, al. b), do CPC[6].

Nada disto significa – insiste-se – que o Supremo Tribunal esteja autorizado a controlar a decisão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto ou a “imiscuir-se” na valoração da prova feita pelo Tribunal recorrido segundo o critério da sua livre e prudente convicção. Estas são actividades que estão e permanecem interditos a este Supremo Tribunal[7].

Posto isto, volte-se à questão.

O que está em causa é saber se o Tribunal podia ter atribuído o valor que atribuiu aos documentos ou se, pelo contrário, ao fazê-lo, incorreu como as recorrentes alegam, em violação de alguma norma legal, nomeadamente dos artigos 374.º e 376.º do CC e do artigo 445.º do CPC. Recorde-se que foi na sequência da junção daqueles documentos que o Tribunal recorrido alterou a decisão sobre a matéria de facto ou, mais precisamente, aditou à factualidade provada o novo facto 10.

A disposição fundamental sobre os documentos passados em país estrageiro está contida no artigo 365.º, n.º 1, do CC, com o teor seguinte:

1. Os documentos autênticos ou particulares passados em país estrangeiro, na conformidade da respectiva lei, fazem prova como o fariam os documentos da mesma natureza exarados em Portugal.

2. Se o documento não estiver legalizado, nos termos da lei processual, e houver fundadas dúvidas acerca da sua autenticidade ou da autenticidade do reconhecimento, pode ser exigida a sua legalização”.

Comentando esta norma, dizem Pires de Lima e Antunes Varela:

A obrigatoriedade da legalização dos documentos passados em país estrangeiro, na conformidade da lei desse país, foi, em princípio, abolida. Os tribunais, como quaisquer repartições públicas, devem, pois, atribuir a esses documentos todo o seu valor probatório, independentemente de legalização. Esta, porém, pode tornar-se obrigatória, se vierem a suscitar-se dúvidas acerca da sua autenticidade ou da autenticidade do reconhecimento (…)”.

O artigo 365.º do CC remete, de forma implícita, para o artigo 440.º do CPC, sobre legalização de documentos passados em país estrangeiro, onde se diz:

1 - Sem prejuízo do que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais[8], os documentos autênticos passados em país estrangeiro, na conformidade da lei desse país, consideram-se legalizados desde que a assinatura do funcionário público esteja reconhecida por agente diplomático ou consular português no Estado respetivo e a assinatura deste agente esteja autenticada com o selo branco consular respetivo.

2 - Se os documentos particulares lavrados fora de Portugal estiverem legalizados por funcionário público estrangeiro, a legalização carece de valor enquanto se não obtiverem os reconhecimentos exigidos no número anterior”.

Em comentário a esta última norma, esclarecem Lebre de Freitas / Isabel Alexandre:

A legalização não é indispensável para que o documento passado em país estrangeiro faça prova em Portugal.

O art. 365 CC confere a tal documento, seja autêntico, seja particular, desde que elaborado em conformidade com a lex loci, a mesma força probatória que têm os mesmos documentos elaborados em Portugal, e só se houver fundadas dúvidas acerca da sua autenticidade, ou da autenticidade do reconhecimento, é que pode ser exigida a sua legalização, nos termos do art. 440[9].

É ponto assente que os documentos não se encontram legalizados. Mas, como se explicou de forma clara no Acórdão recorrido, o facto de os documentos não se encontrarem legalizados, nos termos do artigo 440.º do CPC, não significa que eles sejam destituídos de força probatória.

Como também se afirmou no Acórdão recorrido, o facto de as requeridas / ora recorrentes contestarem de forma genérica o valor dos documentos não cria, sem mais, uma situação de fundadas dúvidas quanto à sua autenticidade de forma a que se torne exigível a sua legalização, nem tão-pouco impede o Tribunal de lhes atribuir valor probatório.

A alegada impugnação da genuinidade dos documentos por parte das requeridas, contida nas suas contra-alegações de apelação, residiu, essencialmente, no seguinte:

RRR) (…) nos termos do previsto no número 2, do artigo 444º, do Código de Processo Civil, por se tratarem de documentos particulares e constituir este um momento admissível, as recorridas impugnam os documentos juntos pelo recorrente, na sua alegação, com os números 1 e 2.

SSS) Desta forma, nos termos do previsto no artigo 374º, do Código Civil impugna-se a letra e assinatura dos documentos em questão, e a exatidão da reprodução mecânica daqueles dessa forma apresentados, bem como o teor de todos eles bem como o alcance que se pretende extrair dos seus conteúdos”.

Apesar de nestas alegações se reproduzirem os termos do n.º 1 do artigo 444.º do CPC – ou, porventura, por isso mesmo –, elas não tiveram a virtualidade de criar no Tribunal fundadas dúvidas sobre a autenticidade do documento.

Relativamente ao valor ou significado que o Tribunal recorrido atribui aos documentos, deve recordar-se que, no âmbito da decisão sobre a matéria de facto, vigoram as seguintes regras: quanto aos factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, o juiz está sujeito a essa prova vinculada; quanto aos demais factos necessitados de prova, vigora o princípio da livre apreciação do juiz das restantes provas legalmente admissíveis (cfr. artigos 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC), sem prejuízo da relevância dos factos que não carecem de alegação ou de prova (cfr. artigo 412.º do CPC).

Note-se que a prova por documentos sem valor probatório pleno é um dos casos de prova não vinculada, ou seja, sujeita à livre apreciação do juiz.

Como explicava Manuel de Andrade, “afirmar a não autenticidade da letra e da assinatura (impugnação mediante negação formal), sem todavia as arguir de falsas” é susceptível de levar a parte que produziu o documento a tentar provar a autenticidade do documento, mas, a final, esta “considerar-se-á verificada ou não conforme o êxito da prova, apreciada [sempre] segundo o livre critério do juiz[10].

Com palavras ainda mais sugestivas para o caso dos autos, diz José Alberto do Reis:

A regra pode enunciar-se assim: na falta ou insuficiência de provas, o julgador rejeita a pretensão deduzida pela parte à qual incumbia o ónus da prova ou sobre a qual deva entender-se que recaía, no caso concreto, o onus probandi.

O problema do ónus da prova, traduz-se, pois, nesta averiguação: como se reparte, entre os litigantes o encargo de fornecer a prova?

E ainda: qual das partes há-de suportar as consequências da falta ou insuficiência de provas?

A primeira pergunta exprime o primeiro momento do problema; a segunda corresponde ao segundo. Por outras palavras: o interesse da questão de saber sobre qual das partes pesa o ónus da prova está exactamente na consequência que daí deriva para o sentido da decisão a proferir, para o conteúdo positivo da regra de julgamento. Apurado que o ónus da prova incumbia ao autor, o juiz, no caso de falta ou insuficiência de provas, terá de desatender a pretensão do autor; apurado que o ónus da prova pertencia ao réu, o juiz, perante a incerteza dos factos, terá de desatender a pretensão do réu (…).

Se o facto se prova, se o juiz chega a convencer-se da existência dele, tal circunstância aproveitará à parte que o pôs como base da sua pretensão (acção ou excepção); se não o prova, o evento aproveitará à parte contrária[11].

Significa isto, por outras palavras, que o problema do ónus da prova, no seu segundo momento, se põe apenas quando se verifique falta ou insuficiência de prova.

Sucede que, como se viu, o Tribunal recorrido deu como demonstrada a veracidade do documento, independentemente da prova do requerido.

Chegados aqui, resta concluir que o Tribunal recorrido procedeu à avaliação dos meios de prova sujeitos à sua livre apreciação e decidiu em atenção à prova produzida, na sua globalidade[12].

Segundo o princípio da livre apreciação das provas, “o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas. O que decide é a verdade material e não a verdade formal[13].

A convicção atingida através destes meios de prova pelo Tribunal não é, justificadamente, objecto de sindicância, a não ser quando ocorra a violação de normas legais no que a estas provas respeita, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, do CPC, em particular, no caso de recurso de revista, do artigo 674.º, n.º 3, do CPC.

O Supremo Tribunal de Justiça não pode nem deve, assim, intervir neste conspecto.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pelas requeridas / recorrentes.


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Lisboa, 11 de Maio de 2023

Catarina Serra (Relatora)

Cura Mariano

Fernando Baptista

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[1] Facto provado aditado pelo Tribunal da Relação (antes facto não provado sob 3.).
[2] Estes são os exemplos apresentados por José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º - Artigos 362.º a 626.º, Coimbra, Almedina, 2018 (3.ª edição), p. 243].
[3] Sobre isto cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2020 (6.ª edição), pp. 453 e s. e pp. 489 e s.
[4] Cfr., neste sentido, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.10.2009, Proc. n.º 474/04.0TTVIS.C1.S1.
[5] Partilha-se a expressão usada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.07.2015, Proc. 284040/11.0YIPRT.G1.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt).
[6] Sobre isto cfr., entre muitos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.02.2016, Proc. 907/13.5TBPTG.E1.S1, e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.05.2019, Proc. 156/16.0T8BCL.G1.S2, relatado pela presente relatora.
[7] Cfr., neste sentido, por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.10.2009, Proc. 1834/03.0TBVRL-A.S1.
[8] Entre os instrumentos internacionais a que alude a norma destaca-se a Convenção de Haia de 5.10.61, segundo a qual a legalização do documento se faz através da aposição de uma apostilha pela entidade pública que o Estado de origem para o efeito tenha designado e que, em Portugal, é a Procuradoria-Geral da República.
[9] Cfr. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, Coimbra, Almedina, 2018 (3.ª edição) p. 259.
[10] Cfr. Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, pp. 230-231 (interpolação nossa).
[11] Cfr. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume III, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, p. 271 (sublinhados nossos).
[12] Como sublinha José Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, cit., pp. 272-273), “dentro do conceito de ónus objectivo o resultado obtido pelo autor ou pelo réu não é consequência imediata e necessária da actividade probatória que ele desenvolveu: a cada uma das partes aproveita todo o material de instrução recolhido no processo, independentemente da pessoa que para o processo o carreou”. Acrescenta o autor adiante: “O juiz, quando decide a matéria de facto da acção, há-de tomar em consideração todas as provas constantes dos autos, quer elas tenham chegado a juízo por impulso da parte sobre que pesava o ónus de as produzir, quer por impulso da parte contrária, quer pela sua própria iniciativa. O que importa, pois, é que os factos relevantes estejam apurados no processo; que a prova haja fornecida pela parte onerada com o encargo de demonstrar a existência deles ou por outra pessoa, é indiferente. Quer dizer, passa para o plano secundário o ónus subjectivo e fica em primeiro plano o ónus chamado objectivo, ou seja, a necessidade real e eefectiva de que tais e tais factos se achem suficientemente provados”.
[13] Cfr. Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, cit., p. 384.