Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ERNESTO VAZ PEREIRA | ||
Descritores: | HABEAS CORPUS ABUSO DE PODER PRISÃO ILEGAL MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA IMPROCEDÊNCIA CONSULTA DO PROCESSO | ||
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Data do Acordão: | 06/21/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | HABEAS CORPUS | ||
Decisão: | IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO | ||
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Sumário : | I. A CRP no seu artigo 27º estabelece que todos têm direito à liberdade, em “exigência ôntica da dignidade humana” na expressão do acórdão do Tribunal Constitucional nº 607/03. II. Mas não absolutiza tal direito, porque admite que seja restringido em expressos casos, (artigo 27º, nºs 2 e 3). III. E, prevendo que na concretização de tais restrições pode ocorrer “abuso de poder”, a CRP no seu artigo 31º, dando corpo ao primado da liberdade, consagrou a providência de habeas corpus e tal importância lhe atribuiu que fixou mesmo o prazo célere e urgente de oito dias para a sua decisão, em audiência contraditória, e permitiu que um terceiro requeresse o habeas corpus. Na sequência o CPP conformou o habeas corpus em virtude de prisão ilegal, ut artigos 222º, 223º e 224º do CPP, em providência simples e expedita, com fundamentos taxativos, dirigida diretamente ao Presidente do STJ e a ser conhecida em julgamento pela secção criminal do STJ (art. 11º, nº 4, al. c), do CPP). IV. E reservada, para os casos indiscutíveis de ilegalidade actual, manifesta, grosseira e inequívoca, e diretamente verificável a partir dos documentos e informações juntos aos autos e das averiguações realizadas ao abrigo do artigo 223º, nº 4, al. b), do CPP. V. Não cabe à providência aqui acionada substituir-se aos recursos ordinários. Porque a providência de habeas corpus não é um recurso, nem é o recurso dos recursos, nem a ultima ratio dos recursos, nem serve para discutir aquilo que nos recursos deve ser discutido. VI. A providência de habeas corpus não decide, assim, sobre a regularidade de actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso das decisões tomadas numa tramitação processual em que foi determinada a prisão do requerente ou um sucedâneo dos recursos admissíveis. VII. O princípio da atualidade enformador do habeas corpus repudia a atenção a qualquer medida limitativa ou privativa da liberdade do peticionante já temporalmente ultrapassada; impede o conhecimento de medida do antes; limita a sua atenção e conhecimento ao agora. VIII. É, pois, da legalidade da prisão atual, da que se mantém no momento da apreciação do pedido, que se ocupa o habeas corpus e não de qualquer outra medida limitativa da liberdade da mesma pessoa que tenha eventual e anteriormente tido lugar. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam os juízes da 3ª Secção Criminal neste Supremo Tribunal de Justiça:
I. PETIÇÃO AA, melhor identificado nos autos, requereu a presente providência de habeas corpus, invocando o artigo 222 n.º 2 alínea b) do CPP, alegando que “a prisão foi motivada por facto não permitido por lei - entendendo-se como "facto não permitido " o auto adulterado do flagrante delito.” Em requerimento subscrito por ilustre mandatária sustenta o seguinte: “1 - O arguido AA encontra-se detido á ordem do processo 155/20.8JELSB desde 22/02/2021 2 - A detenção alegadamente efetuada em flagrante delito as 14.30h do dia 22/02/2021 no armazém sito na Zona Industrial ... lote ...5 em Castro Daire 3 - Acontece porem que não existiu flagrante delito e todas as circunstâncias descritas no auto e relatório da polícia judiciaria não correspondem à verdade dos factos ocorridos no dia em questão 4 - O arguido veio a 01 de Junho de 2023 requerer a alteração da medida de coação baseando o seu pedido na nulidade do auto deflagrante delito conforme aqui se transcreve para todos os efeitos legais : "Tribunal Judicial da Comarca de Viseu Juízo Central Criminal ... Juiz ... Processo N.º 155/20.8JELSB URGENTE – ARGUIDOS PRESOS Excelentíssima Senhora Juiz de Direito do Juízo Central Criminal de Viseu AA arguido melhor identificada nos autos à margem referenciado Vem a V. Ex cia. EXPOR E REQUERER como se segue: EXPOR: O arguido AA encontra-se detido á ordem do presente processo desde 22/02/2021 A detenção alegadamente efetuada em flagrante delito as 14.30h do dia 22/02/2021 no armazém sito na Zona Industrial ... Acontece porem que não existiu flagrante delito e todas as circunstâncias descritas no auto e relatório da polícia judiciaria são falsas Efetivamente conforme a prova produzida em julgamento conjugada com os documentos juntos ao processo podemos retirar a seguinte conclusão NADA SE PASSOU CONFORME O DESCRITO senão vejamos: Os factos relatados no despacho de acusação não são verídicos mormente o arguido nunca praticou qualquer acto dos que vem sendo acusado e nenhuma prova se fez em audiência de julgamento A Acusação deduzido nos presentes Autos é Nula, na medida em que contém a narração DE FACTOS QUE NÃO OCORRERAM conforme se pode aferir pelas testemunhas de acusação e de defesa Com efeito da narração fáctica da Acusação deduzida ou da Prova Indiciária existente nos Autos não se retira o mais leve sinal que o arguido tenha de alguma forma praticado quaisquer factos subsumíveis à previsão típica do Crime de Tráfico de Estupefacientes seja na modalidade simples seja na agravada Alias a prova indiciaria recolhida pelas autoridades policiais nomeadamente pelos elementos da policia judiciaria, alem de insuficiente, podemos ainda afirmar, sem sombra de duvida, que a mesma foi deliberadamente alterada para incriminar os arguidos no presente processo, não apresentando de forma clara e transparente a realidade dos factos, sendo que a totalidade dos factos que lhe são imputados são- no de forma manifestamente genérica e abstrata sendo que sabemos, agora, que existiram factos que não foram careados para o processo. O despacho de acusação descreve de forma genérica a apreensão de produtos estupefacientes " Nesse local encontrava-se os arguidos BB, CC, DD, EE, que munidos de ferramentas para abertura de desmontagem do contentor (rebarbadora, pés de cabra, marretas), bem como, de paletes de suporte para elevação(...) e suporte do mesmo, com recurso a monta cargas e preparavam pelas 12.30 horas, para retirar a droga da estrutura do contentor" ORA NADA ACONTECEU COMO O DESCRITO NA ACUSAÇÃO, NO AUTO DE FLAGRANTE DELITO E INCLUSIVE NO AUTO DE DETENÇAO. Senão vejamos, Efetivamente o arguido foi detido as 12.05 do dia 21/02/2022 e as 14.30 saiu para Vila Real juntamente com os agentes FF, GG, HH e II. Não tendo regressado ao armazém, NÃO FOI CONSTITUIDO ARGUIDO NEM LHE FORAM APRESENTADOS QUAISQUER “PRODUTO ESTUPEFACIENTE“ A abertura das longarinas do contentor pelos Bombeiros Voluntários ... só se inicia as 14.40 tendo terminado cerca das 17h Nas assembleias de julgamento já se provou, sem margem para duvidas, que as referidas longarinas do contentor não foram abertas com recurso a meios existentes no armazém e sim pelas ferramentas fornecidas pelos Bombeiros Voluntários ... Também esta provado que o arguido AA estava, á mesma hora, em Vila Real, no alojamento sito na Avenida ... OU SEJA O Arguido não estava presente quando os bombeiros retiraram o produto estupefaciente, sendo que deste facto poderemos desde já retirar duas conclusões : NULIDADE DO AUTO DE FLAGRANTE DELITO NULIDADE PREVISTA NO ART 119 AL) C “Ausência do arguido (..) nos casos em que a lei exigir a sua comparência Decorre do art 256 CPC que o flagrante delito é todo o crime que se esta cometendo ou que se acabou de cometer o que no caso concreto não se verificou Mediante o depoimento das testemunhas de acusação, nomeadamente o Inspetor JJ, claríssimo na sua declaração de que os seus agentes não tocaram no contentor porque não tinham competência ou qualificações para o abrir, que testemunhou que quem abriu o contentor foram os bombeiros e que quem virou o contentou não foi o empilhador que estava no armazém foi um empilhador mais potente de um terceiro. Desde já temos uma falsidade de documento autêntico uma vez que em nenhum documento junto ao processo pelas entidades judiciarias referem que os Bombeiros Voluntários ... estiveram no local nem tão pouco que as ferramentas utilizadas foram as pertencentes á Corporação dos Bombeiros, pelo contrario, existe a menção de que foram utilizadas as ferramentas existentes no armazém Temos desta forma um auto de flagrante delito adulterado na – Descrição dos actos – Nada ocorreu como está descrito no auto, uma vez que não era possível as 14.30h constituírem os arguidos em flagrante delito uma vez que não existia qualquer produto estupefaciente – Descrição dos factos – Os factos descritos não correspondem ao que aconteceu , não se abriu o contentor nem com as ferramentas existentes no armazém nem com o empilhador – Nos agentes presentes –Existem agentes que não estavam no armazém de castro daire e assinaram autos como se estivessem, assinado inclusive autos de teste de droga Existe, assim, manifesta contradição insanável entre o auto de flagrante delito com a prova já produzida em audiência e estabelece no art.º 256.º do Código de Processo Penal que: 1. É flagrante delito todo o crime que se está cometendo ou se acabou de cometer. 2. Reputa-se também flagrante delito o caso em que o agente for, logo após o crime, perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com objectos ou sinais que mostrem claramente que acabou de o cometer ou nele participar. Da análise do texto legal resulta que a lei distingue três situações: o flagrante delito, o quase flagrante delito e a presunção de flagrante delito é a actualidade do crime; o agente é surpreendido a cometer o crime. No quase flagrante, o agente já não está a cometer, mas é surpreendido logo no momento em que findou a execução, mas sempre ainda no local da infração e em momento no qual a evidência da infração e do seu autor deriva diretamente da própria surpresa. Na presunção de flagrante delito o agente é perseguido por qualquer pessoa, logo após o crime, ou é encontrado a seguir ao crime com sinais ou objectos que mostrem claramente que o cometeu ou nele participou Ou, na feliz expressão do acórdão da Relação de Coimbra de 16-3-2005, relatado pelo Ex.mo Desembargador Belmiro Andrade, acessível em www.dgsi.pt, no flagrante delito, o arguido “está cometendo” – 1ª parte do n.º 1; no quase flagrante delito, o arguido “acabou de cometer” – 2ª parte do n.º 1; na presunção legal de flagrante delito, o agente é perseguido ou, mesmo não sendo perseguido, é encontrado (já não no local do crime) acompanhado de objectos ou sinais do crime – n.º 2. Podemos concluir a esta data atento ao depoimento de vários bombeiros que só chegaram as 14.40 e so nessa altura começaram a abrir as longarinas, com recurso a halligan e expansor ferramentas próprias DESTA FORMA OS ARGUIDOS NUNCA PODERIAM TER SIDO DETIDOS EM FLAGRANTE DELITO POIS NÃO EXISTIA QUALQUER DELITO Acontece que as falsidades continuaram e no que concerne ao arguido AA este estava ausente aquando da abertura das longarinas do contentor - ENCONTRAVA-SE EM VILA REAL. conforme depoimento do Inspector FF e do Sr KK . Sendo que arguido encontrava-se as 15.20 em Vila Real (e a distância entre o armazém de castro Daire e o referido alojamento dista 65,6Km (aprox 50 minutos por auto estrada) não era possível ser confrontado com uma droga que quando saiu ainda não existia As declarações prestadas em audiência dos inspectores da PJ nomeadamente FF, GG, HH e II são falsas uma vez que estes inspectores não se encontravam no armazém de Castro Daire na abertura das longarinas e consequente apreensão da droga pois encontravam-se em Vila Real conforme atestam os autos nas suas fls 808,809, 810,922,923 e 924 Desta forma encontra-se provado que ao arguido AA não foi apresentada qualquer produto estupefaciente e que foi constituído arguido sem qualquer justificação ou causa sendo violados todos os seus direitos constitucionais no art 27 n 4 CRP e violando art 119 c)do CPP Por ultimo os actos nulos abrangem ainda o teste á droga efectuado por dois agentes da policia judiciaria nas pag733 mas um dos agentes não estava presente – o inspector FF encontrava-se em Vila Real Por conseguinte, impõe-se Deste modo, forçosa e legalmente, a Acusação é Nula, nos termos da alínea b) do N.º 3 do Artigo 283.ºdo Código de Processo Penal, na medida em que não narra, mesmo que sintécticamente, os factos susceptíveis de permitirem a responsabilização penal do arguido pela Autoria do Crime de Tráfico de Produtos Estupefacientes Agrava e Associação Criminosa Quanto à imputação do Crime de Tráfico de Estupefacientes Agravado ao Requerente, desde logo porque resulta dos Autos a inexistência de qualquer prova recolhida no presente processo que consinta a interferência que o arguido praticou algum facto subsumível a essa tipologia criminal. Deste modo, a prova junta aos Autos NOMEADAMENTE AUTO DE NOTICIA FLAGRANTE DELITO na pag 734, auto de diligencia pag 718 a 720, e da ferramentas utilizadas para abertura do contentor pag 731 deverao ser considerados nulos Resulta assim dos autos concretamente da prova já produzida em contraditório, porque em audiência, que são manifestamente infundados os indícios em que assentou a aplicação da medida de coacçao em vigor e, em consequência deve tal medida ser substituída por outra não privativa de liberdade sendo que nestes termos, confiadamente, requer o arguido a libertação imediata com base no art 261 CPP” 5 - O aqui peticionante desde a contestação que vem arguindo que as circunstâncias da detenção em flagrante delito estavam adulteradas e, efetivamente, os autos foram alterados e as informações da policia judiciaria parciais e incriminatórias 6 - O auto de flagrante delito foi adulterado consubstanciando um ato ilegal: a prisão do peticionante foi motivada por facto pela qual a lei não permite – acto inexistente 7 - O peticionante não se encontrava a praticar nenhum crime e também não foi confrontado com nenhum crime sendo que o peticionante se recusou a assinar o auto de constituição de arguido pois nada lhe foi apresentado e nenhum ato praticou de ilegal 8 - Á hora do suposto auto de flagrante delito ainda não existia nenhum produto estupefaciente, portanto as 14.30 do dia 22/02/2022 nada existia que permitisse deter o arguido 9 - A verdade dos factos já exposta em audiência de julgamento é que os inspetores da policia judiciaria elaboraram um auto falso pois está já determinado que os arguidos não estavam a praticar nenhum delito: quando os agentes da Policia Judiciaria detiveram os arguidos estes estavam a descarregar carvão. 10 - O peticionante encontrava-se em Vila Real com os inspetores FF, GG e II quando os Bombeiros Voluntários ... se apresentaram no pavilhão em ...- Castro Daire, nunca sendo confrontado com qualquer produto estupefaciente 11 - O habeas corpus tem, em sede de direito ordinário, como fundamentos, que se reconduzem todos à ilegalidade da prisão: a incompetência da entidade donde partiu a prisão; a motivação imprópria; e o excesso de prazos, sendo ainda necessário que a ilegalidade da prisão seja atual, atualidade reportada ao momento em que é apreciado aquele pedido. 12 - Em sede de previsão constitucional, o acento tónico do habeas corpus é posto na ocorrência de abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, na proteção do direito à liberdade, constituindo uma providência a decretar apenas nos casos de atentado ilegítimo à liberdade individual - grave e em princípio grosseiro e rapidamente verificável - que integrem as hipóteses de causas de ilegalidade da detenção ou da prisão taxativamente indicadas nas disposições legais que desenvolvem o preceito constitucional. 13 - Neste caso concreto invoca-se o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, do atentado ilegítimo à liberdade individual grave grosseiro e rapidamente verificável 14 - Os inspetores da policia judiciaria praticaram atos ilegais sendo a detenção do arguido ilegal e atual derivada de erro grosseiro e facilmente verificável 15 - A adulteração de um auto de flagrante delito é uma violação de todos os princípios subjacentes ao processo penal violando todos os direitos constitucionais do arguido:” II. INFORMAÇÃO – ART. 223, nº 1, DO CPP A Mª juíza prestou a informação a que alude o artº 223º, nº 1 do CPP, nos seguintes termos: “(…) Cumpre informar sobre as condições em que foi determinada e, posteriormente mantida, a prisão preventiva do arguido – art. 223.º, n.º 1 do Código do Processo Penal. ▪ A investigação nos presentes autos teve início na sequência de informação policial lavrada em 11/03/2020, e desenvolveu-se, desde então, com recurso a diversos meios de recolha de prova, entre os quais a recolha de imagem e som nos termos do art. 6.º da Lei n.º 5/2002, intercepções telefónicas, vigilâncias policiais e inspecções judiciárias efectuadas com a colaboração dos elementos da Autoridade Tributária e Aduaneira; ▪ O ora arguido surgiu como suspeito nos autos, pelo menos em 25/09/2020, então ainda apenas identificado como “Tó”, o que sustentou a autorização para realização de intercepções telefónicas ao contacto por ele utilizado – cfr fls. 145 a 149, 151, 152, 155 e v.º; ▪ Desde então as movimentações deste arguido e as interacções deste com os demais arguidos nos autos, passaram a ser acompanhadas pelos inspectores da polícia judiciária a cargo de quem estava a investigação; ▪ Com base nos indícios que foram sendo recolhidos, optou-se por seguir o contentor ...81 proveniente da Colômbia, desde o porto de Leixões (onde chegou no dia 05/02/2021) até ao destino final, tendo desde logo sido solicitada autorização (que viria a ser concedida) para realização de buscas domiciliárias, entre outras, às moradas conhecidas do arguido AA – cfr. relatório de fls. 545 a 556; ▪ O seguimento do contentor culminou, em 22/02/2021, na chegada do contentor ao armazém situado no lote n.º 25 da Zona Industrial ... onde, entre outros, se encontrava o arguido AA, os quais foram abordados pelos inspectores da Polícia Judiciária pelas 12:05 horas e vieram a ser detidos pelas 14:30 horas, na sequência de busca efectuada no interior do armazém e ao contentor, em cujas longarinas foi encontrada dissimulada cocaína – cfr. auto de diligência de fls. 718 a 720 e auto de busca e apreensão de fls. 724 a 726 e correspondente reportagem fotográfica a fls. 727 a 732; ▪ Na sequências das referidas diligências foi lavrado auto de detenção em flagrante delito – fls. 734 a 739 – e, entre outros, constituído arguido AA – fls. 740 e 741 – e posteriormente, realizadas buscas domiciliárias, entre outras, ao alojamento local onde estava hospedado o arguido – fls. 808; ▪ Os arguidos (CC, BB, AA, LL, MM, NN e OO) foram presentes a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, mediante requerimento do Ministério Público de fls. 962 a 983, em 24/02/2021, no qual apenas prestaram declarações quanto aos factos, os arguidos CC e BB; ▪ Na mesma data, e por despacho judicial proferido no âmbito da mesma diligência, foi aplicada a todos os arguidos a medida de coacção de prisão preventiva – fls. 1073 a 1298; ▪ Deste despacho interpuseram recurso vários arguidos, entre os quais o arguido AA – fls. 2 a 15 do Apenso B – invocando, além do mais, que não foi detido em flagrante delito; ▪ Tal recurso foi apreciado por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/05/2020, no qual foi negado provimento, mantendo-se o despacho proferido – fls. 216 a 228 do Apenso B; ▪ Os pressupostos da medida de coacção de prisão preventiva foram reexaminados e aquela mantida por despachos de 20/05/2021 – fls. 2055 a 2061 – 18/08/2021 – fls. 2667 a 2668 – 12/11/2021 – fls. 3034 – 01/02/2022 – fls. 3278 – 23/02/2022 (este na sequência da dedução da acusação) – fls. 3656 a 3664 – 11/05/2022 (este em sede de decisão instrutória) – fls. 4535 a 4537 – 20/06/2022 (aquando do recebimento da pronúncia) – fls. 4634 a 4636 – 19/09/2022, 12/12/2022 (este proferido em audiência de julgamento), 10/03/2023 e 06/06/2023 (este último relativamente ao qual foram já apresentados requerimentos de interposição de recurso, um dos quais pelo arguido AA); ▪ Por despacho de 09/07/2021 foi declarada a excepcional complexidade do processo;
▪ Após dedução da acusação e aberta a instrução, foi proferido despacho de pronúncia no qual é imputada ao arguido a prática, em co-autoria dos crimes de tráfico de estupefacientes agravado, e de participação em organização criminosa e p. e p., respectivamente, pelos art.os 21.º, n.º 1 e 24.º als. c), f) e j) e 28.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. É ao abrigo dos mencionados despachos judiciais que o arguido se encontra actualmente sujeito à medida de coacção de prisão preventiva. Elencadas que estão as condições em que se procedeu ao interrogatório e subsequente aplicação e manutenção da medida de coacção de prisão preventiva, importa ponderar a respectiva manutenção. Entendo, desde logo que, devendo-se a privação de liberdade do arguido, no momento actual, a decisão judicial nesse sentido proferida em 24/02/2021 e sucessivamente renovada em sede de reexames dos pressupostos da prisão preventiva, não pode ter-se por ilegal a sua prisão, pois que assente em despachos judiciais, devidamente fundamentados (o primeiro dos quais, aliás, já oportunamente impugnado, por via de recurso, pelo requerente). Constituem fundamento do decretamento da providência de habeas corpus, nos termos do art. 222.º, n.º 2 do Código de Processo Penal: 1) ter a prisão sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; 2) ser a prisão motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou 3) manter-se a prisão para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial. O requerente não invoca, nem se verificam os 1.º e 3.º pressupostos.
E no tocante ao segundo, dir-se-á que no despacho que determinou a aplicação da prisão preventiva ao arguido, foi considerado estar fortemente indiciada a prática por este, em co-autoria, dos crimes de participação em organização criminosa e tráfico de estupefacientes agravado, p. e p., respectivamente, pelos art.os 28.º, n.º 1 e 21.º, n.º 1 e 24.º als. c), f) e j) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, crimes pelos quais o mesmo se mostra actualmente pronunciado. Tais ilícitos admitem prisão preventiva, como decorre do disposto no art. 202.º, n.º 1 al. a) do Código de Processo Penal. Tudo o mais invocado pela Defesa é, salvo melhor opinião, matéria que não cabe apreciar no âmbito da providência de habeas corpus. Note-se que, como principal fundamento para o requerido, a Defesa vem – ainda que não de forma directa – invocar a falsidade do teor do auto de detenção. E a conclusão quanto a essa alegada falsidade, retira-a da análise que faz daquilo que, em seu entender, resultou da prova produzida em audiência de julgamento. Ora, como vem sendo entendido pela jurisprudência, “implicando o habeas corpus uma decisão verdadeiramente célere, não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, ou seja, não é nem pode ser meio adequado a pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão, estando a providência reservada aos casos de ilegalidade grosseira, porque manifesta, indiscutível, sem margem para dúvidas.” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/11/2007. “Não se destina a formular juízos de mérito sobre a decisão judicial de privação de liberdade ou a sindicar eventuais nulidades ou irregularidades, cometidas na condução do processo. Para esses fins servem os recursos, os requerimentos e os incidentes próprios, na sede apropriada. Nesta sede cabe apenas verificar, de forma expedita, se os pressupostos de qualquer prisão constituem patologia desviante enquadrável em alguma das alíneas do n.º 2 do art. 222.º do CPP.” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/11/2011 (ambos com sumários acessíveis em anotação ao art. 222.º, em www.pgdlisboa.pt) Cremos, por isso, que a matéria invocada deverá ser ponderada e decidida no âmbito da apreciação da prova, de forma crítica e conjugada com a recolhida nos autos, a efectuar na decisão final. Note-se que o requerente não questiona (pelo menos nesta sede), que tivessem sido apreendidos mais de 90 kg de cocaína dissimulados nas longarinas de um contentor importado da Colômbia e transportado para o armazém sito no lote 25 da Zona Industrial .... E também não invoca que não estivesse nas imediações deste armazém no momento em que foi abordado pela Polícia Judiciária. O que o requerente alega é que só estava no local para descarregar carvão, e que no momento em que lhe foi dada voz de detenção ainda não tinha sido retirada, nem sujeita a teste rápido, nenhuma das 335 placas que foram encontradas nas longarinas do contentor. Matéria que não pode deixar de ser objecto de análise probatória, a que haverá de se proceder em sede decisória, ponderando os depoimentos produzidos em audiência, em conjugação com todos os demais elementos probatórios carreados para os autos desde o início da investigação (quase um ano antes da data da detenção). Assim, por se entender que, por ora, não ressalta dos autos qualquer situação de flagrante, manifesta ou indiscutível ilegalidade da prisão preventiva a que o requerente se encontra sujeito – salvo melhor entendimento de V. Ex.as – não se encontram razões para determinar a libertação do arguido no âmbito desta providência.” III - INSTRUÇÃO DO PROCESSO O processo vem instruído com certidão da documentação dos seguintes atos processuais relevantes: Denúncia da factualidade pela PJ de 11/03/2020; registo de interceção e gravação de comunicações; remessa desse expediente ao MP e, a seguir, ao JIC; relatório da PJ de 14/02/2021; certidão de várias diligências realizadas pela PJ no dia 22/02/2021; fotos da mercadoria apreendida: auto de teste rápido e pesagem, 102.4 Kgs, de 22/02/2021; auto de notícia e detenção em flagrante delito em 22/02/2021 do aqui peticionante e de outros; constituição de arguido e termo de identidade e residência para o aqui peticionante de 22/02/2021; auto de interrogatório de arguido detido de 24/02/2021 do aqui peticionante, com promoção do MºPº de medida de coação, prisão preventiva para o ora peticionante, e subsequente despacho de aplicação da mesma pelo JIC; certidão da interposição de recurso do despacho que lhe aplicou a prisão preventiva apresentado em 25/03/2021; acórdão da RL de 26/05/2021 que nega provimento ao recurso ao aí arguido; e informação emitida pela mma juíza titular ao abrigo do artigo 223, nº 1, do CPP; e, juntos com a petição, como aí identificados, Auto de Flagrante delito pag 724; Auto Bombeiros Voluntario de Castro Daire; Auto de Busca e apreensão dia 22/02/2021 pag 808; Relatório descrição horas pag 718. IV - ITER PROCESSUAL Convocada a Secção Criminal deste Supremo Tribunal e efetuadas as devidas notificações, realizou-se a audiência pública, nos termos legais. A Secção Criminal reuniu seguidamente para deliberação, a qual imediatamente se torna pública. V - FACTOS Os factos relevantes para a decisão são os seguintes: Na sequência de informação policial lavrada em 11/03/2020, desenvolveu-se investigação criminal com recurso a diversos meios de recolha de prova, entre os quais a recolha de imagem e som nos termos do artº 6.º da Lei n.º 5/2002, interceções telefónicas, vigilâncias policiais e inspeções judiciárias efetuadas em que o ora peticionante surgia como suspeito nos autos. Tal trabalho de investigação desembocou na apreensão de um contentor onde foi apreendida a quantidade de mais de 90 Kgs de cocaína proveniente da Colômbia, tráfico que se atribuiu, além de outros, em co-autoria ao aqui peticionante. Interrogados como co-autores os arguidos detidos, logo no despacho jurisdicional subsequente a tais interrogatórios o JIC considerou que “a prisão foi legal porque efetuada em flagrante delito”. Em 24/02/2021, por despacho judicial proferido na sequência dos interrogatórios foi aplicada a todos os arguidos do processo, incluindo o aqui peticionante, a medida de coação de prisão preventiva – fls. 1073 a 1298, com base em fortes indícios da prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado p. e p. no artigos 21º e 24º do DL 15/93, de 15/09 ; Deste despacho interpuseram recurso vários arguidos, entre os quais o ora peticionante – fls. 2 a 15 do Apenso B – invocando, além do mais, que não foi detido em flagrante delito; O recurso do aqui peticionante foi apreciado por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/05/2021, no qual foi negado provimento, mantendo-se o despacho proferido – fls. 216 a 228 do Apenso B; Os pressupostos da medida de coacção de prisão preventiva foram reexaminados e aquela mantida por despachos de 20/05/2021 – fls. 2055 a 2061 – 18/08/2021 – fls. 2667 a 2668 – 12/11/2021 – fls. 3034 – 01/02/2022 – fls. 3278 – 23/02/2022 (este na sequência da dedução da acusação) – fls. 3656 a 3664 – 11/05/2022 (este em sede de decisão instrutória) – fls. 4535 a 4537 – 20/06/2022 (aquando do recebimento da pronúncia) – fls. 4634 a 4636 – 19/09/2022, 12/12/2022 (este proferido em audiência de julgamento), 10/03/2023 e 06/06/2023 (este último relativamente ao qual foram já apresentados requerimentos de interposição de recurso, um dos quais pelo arguido AA); Por despacho de 09/07/2021 foi declarada a excepcional complexidade do processo; Após dedução da acusação e aberta a instrução, foi proferido despacho de pronúncia no qual foi imputada ao arguido a prática, em co-autoria dos crimes de tráfico de estupefacientes agravado, e de participação em organização criminosa e p. e p., respetivamente, pelos artss 21.º, n.º 1 e 24.º als. c), f) e j) e 28.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. V - FUNDAMENTAÇÃO PARA DECISÃO V.1.O peticionante sustenta a petição em que “o auto de flagrante delito foi adulterado consubstanciando um ato ilegal: a prisão do peticionante foi motivada por facto pela qual a lei não permite – acto inexistente.” Insiste em que, não tendo praticado qualquer dos factos relatados no auto de notícia, não podia ter havido flagrante delito, e não havendo flagrante delito não podia ter sido detido; e, acrescenta, não tendo havido a prática dos factos, a acusação é nula e prisão não pode ocorrer e manter-se. Remata, remetendo para o artigo 222º n.º 2 alínea b) do CPP, que "in casu" a prisão foi motivada por facto não permitido por lei - entendendo-se como "facto não permitido " o auto adulterado do flagrante delito.” V.2. Vejamos: V.2.1. Esqueceu o peticionante, em termos de factualidade, que o despacho que lhe aplicou a prisão preventiva foi objeto de recurso interposto por ele próprio após a sua prolação, com base na mesma fundamentação que aqui invoca, tendo sido julgado improcedente por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa. Julgou improcedente porque, ao contrário do aí pretendido, o despacho recorrido ao aplicar essa medida de coacção não violou, como expressamente aí se referiu, o disposto nos artigos 32, nº 2, 27, nº 2, 28, nº 2, da CRP nem o disposto nos artigos 191, 193, 204, 209 e 213 do CPP. V.2.2. Preceitua o art. 222.º do CPP, sob a epígrafe “Habeas corpus em virtude de prisão ilegal”[1], que o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência a qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa (n.º 1). Por força do n.º 2 da mesma norma jurídica, a ilegalidade da prisão deve (ou tem de) provir de uma das seguintes circunstâncias, em enumeração taxativa,: a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei o não permite; c) Se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial. No presente caso, o requerente invoca o requisito da al. b). A CRP no seu artigo 27º estabelece que todos têm direito à liberdade, em “exigência ôntica” na expressão do acórdão do Tribunal Constitucional nº 607/03. Mas não absolutiza tal direito, porque, admite que seja restringido em expressos casos, além do mais, em caso de aplicação de medida de segurança de internamento (nº 2). Mas prevendo que na concretização de tais restrições, pode ocorrer abuso de poder a CRP no seu artigo 31º dando corpo ao primado da liberdade consagrou a providência de habeas corpus e tal importância lhe atribuiu que fixou mesmo o prazo célere e urgente de oito dias para a sua decisão, em audiência contraditória, e permitiu que um terceiro requeresse o habeas corpus. Na sequência o CPP conformou-a em providência simples e expedita dirigida diretamente ao Presidente do STJ. Nos termos do artigo 31, nº 1, da CRP, na redação da revisão constitucional de 1997, “Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.” Na definição constitucional, é, pois, “forma de insurgimento jurisdicionalmente tutelado contra abuso de poder, manifesto em detenção ou prisão ilegal.” (in “Do habeas corpus Breves notas, sobretudo jurisprudenciais”, Paulo Ferreira da Cunha, “RPCC”, 2020). “Na estrutura com que a Constituição o consagrou, o habeas corpus caracteriza-se pela sua natureza de “providência” judicial (nº 2), que tem como objeto imediato “o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal”, visando, por isso, a tutela da liberdade física ou de locomoção.” (in, “Constituição Portuguesa Anotada”, Jorge Miranda, Rui Medeiros, nota ao artigo 31) Não é um recurso, não é um substitutivo ou sucedâneo do recurso, muito menos o recurso dos recursos, é um instituto a manter distinto dos recursos (cfr “Curso de Direito Processual Penal”, II, Germano Marques da Silva). É uma “providência” que não se confundindo com o recurso, pode até correr termos lado a lado e simultaneamente (219, nº 2, do CPP). Tais limitações de função, com chancela constitucional, não lhe retiram, porém, o papel e instrumento de garantia privilegiada do direito à liberdade. O habeas corpus “testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade”. (in “CRP Anotada”, Gomes Canotilho e Vital Moreira). “No habeas corpus discute-se exclusivamente a legalidade da prisão à luz das normas que estabelecem o regime da sua admissibilidade”. “Procede-se necessariamente a uma avaliação essencialmente formal da situação, confrontando os factos apurados no âmbito da providência com a lei, em ordem a determinar se esta foi infringida. Não se avalia, pois, se a privação da liberdade é ou não justificada, mas sim e apenas se ela é inadmissível. Só essa é ilegal”. “De fora do âmbito da providência ficam todas as situações enquadráveis nas nulidades e noutros vícios processuais das decisões que decretaram a prisão” “Para essas situações estão reservados os recursos penais, (…). O habeas corpus não pode ser reconvertido num “recurso abreviado”, (…) O processamento acelerado do habeas corpus não se coaduna, aliás, com a análise de questões com alguma complexidade jurídica ou factual, antes se adequa apenas à apreciação de situações de evidente ilegalidade, diretamente constatáveis pelo confronto entre os factos sumariamente recolhidos e a lei” (in “Habeas Corpus: passado presente e futuro”, “Julgar” on line, nº 29, 2016, Maia Costa). V.2.3. A jurisprudência deste Supremo Tribunal vem exigindo nemine discrepante a verificação do pressuposto da atualidade da ilegalidade da prisão. No ac. do STJ de 18/07/2014, proc. nº 211/12.6GAMDB-A.S1, Santos Cabral, sustenta-se que “A procedência do pedido de habeas corpus pressupõe, além do mais, uma actualidade da ilegalidade da prisão aferida em relação ao tempo em que é apreciado aquele pedido”. (…) mesmo que existisse uma situação de ilegal privação da liberdade a mesma deve ser actual. Ou seja, só é fundamento de habeas corpus a ilegalidade que existir ou perdurar ao tempo da apreciação do pedido o que significa que qualquer ilegalidade verificada em fase anterior do processo, que já não persista quando o pedido é julgado, não pode servir como fundamento de habeas corpus.”. E no ac. do STJ de 11/02/2016, proc. nº 741/12.0TXPRT-F, Isabel Pais Martins, entendeu-se que: “A viabilidade do habeas corpus, como meio direccionado exclusivamente para a tutela da liberdade, exige uma privação de liberdade actual, não servindo, por isso, como mecanismo declarativo de uma ultrapassada situação de prisão ilegal. Do mesmo modo, também o habeas corpus não pode ser utilizado como meio preventivo de uma eventual futura prisão ilegal. Só a efectiva privação de liberdade pode fundamentar aquela providência”. Por outro lado, como se sublinha no acórdão do STJ de 21/04/2021, proc. nº 149/20.3JASTB-A.S1, Nuno Gonçalves, não pode, nesta providência excecional contra o abuso de poder em virtude de prisão ilegal, entrar-se na reapreciação da ilegalidade da detenção do Requerente. Como aí se refere, “É uniforme a jurisprudência do STJ neste sentido. Assim, no Ac. de 19/11/2008, sustentou-se “II. é, pois, da legalidade da prisão actual (da que se mantém no momento da apreciação do pedido) que se ocupa o habeas corpus e não de qualquer outra medida limitativa da liberdade da mesma pessoa que tenha eventual e anteriormente tido lugar. III. Para além disso, a invocação de uma patologia afectando o acto da detenção, nomeadamente uma nulidade processual, é algo que exorbita o catálogo do art. 222.º do CPP. Face a este normativo, excluindo a possibilidade de violação do prazo a que alude o seu n.º 2, al. c), o que releva é aferir se a prisão foi determinada pela entidade competente e se o foi por facto por que a lei a admite.” No Ac. de 11-12-2008, entendeu-se que “a eventual irregularidade (se a houvesse) da detenção e das buscas nunca enquadraria o fundamento invocado – [a prisão] «ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite» – pois tal fundamento refere-se a facto que, segundo a lei processual penal, não pode dar causa à aplicação da medida de coacção de prisão preventiva. Não é, porém, o caso. Na situação vertente, a prisão preventiva foi ordenada por facto que a permite com ampla largueza e reforçada motivação, pois os requerentes estão indiciados por crimes muito grave, integrando-se na designada criminalidade violenta, para o qual a lei permite a prisão preventiva (…)“ Na mesma senda prossegue o ac. de 15/04/2021, proc. nº 8881/19 Margarida Blasco,: “Acresce, ainda, que a providência de habeas corpus não visa apreciar eventuais ilegalidades pretéritas, mas situações concretas de privação ilegal e actual da liberdade, pelo que cessada a situação de detenção, por aplicação posterior de medida de coacção de prisão preventiva, é desnecessário, por extemporâneo, decidir sobre a legalidade da detenção que já findou, pois no desenvolvimento do iter processual foi substituída por prisão preventiva. Princípio estruturante da providência de habeas corpus é o princípio da atualidade do pedido, segundo o qual, a providência excepcional só deve ser usada para fazer cessar a ofensa ilegítima da liberdade pessoal; se a ofensa é actual e subsiste pode ser requerida; se a ofensa já cessou, não se justifica o uso da providência excepcional, que deixa de ter objeto. Mais se diga que o controlo efetuado pelo STJ, na providência de habeas corpus, tem como objecto a situação existente tal como promana da decisão que aplica a medida de coacção, apelidada de ilegal pelo ora requerente, não envolvendo a valoração dos elementos de prova com base nos quais a mesma foi proferida.” É, pois, da legalidade da prisão atual, da que se mantém no momento da apreciação do pedido, que se ocupa o habeas corpus e não de qualquer outra medida limitativa da liberdade da mesma pessoa que tenha eventual e anteriormente tido lugar. No caso a prisão actual emerge de um despacho aplicativo de prisão preventiva, estando já ultrapassada a fase da detenção, detenção com efeitos produzidos num certo momento processual mas já bem distante e a cuja recuperação de conhecimento e discussão o princípio da actualidade da ilegalidade da prisão se opõe. Autonomia que desde logo evola das distintas normatividades para o efeito de habeas corpus consagradas no CPP, art. 220º para a detenção ilegal, 222º para a prisão ilegal. O princípio da atualidade repudia a atenção a qualquer medida limitativa ou privativa da liberdade do peticionante já temporalmente ultrapassada, impede o conhecimento de medida do antes. Limita-a ao agora. Aqui, não nos podemos alhear de que o peticionante neste momento está preso por força do último despacho jurisdicional de 06/06/2023 que apreciou os pressupostos de manutenção da prisão preventiva, como se extrai da informação remetida. E tal despacho não vem aqui posto em causa (do mesmo terá sido interposto recurso para a Relação). Despacho esse que confirmou o de 10/03/2023, que por sua vez reiterou o de 12/12/2022 em sede de audiência de julgamento, que por sua vez manteve o de 19/09/2022, que por sua vez tinha repetido o de 20/06/2022, em sede de recebimento de pronúncia, que por sua vez tinha reiterado o de 11/05/2022, em sede de decisão instrutória, que por sua vez tinha voltado a dizer o de 23/02/2022, na sequência da dedução da acusação, que por sua vez tinha espelhado o de 01/02/2022, que por sua vez tinha refletido o de 12/11/2021, que por sua vez tinha repercutido o de 18/08/2021, que por sua vez tinha seguido o de 20/05/2021, este confirmado pelo ac. da Relação de Lisboa, em 26/05/2021, em recurso interposto pelo arguido. Tanto basta para julgar improcedente a pretensão do peticionante. V.2.4. Mas também não cabe à providência aqui acionada substituir-se aos recursos ordinários. Porque a providência de habeas corpus não é um recurso nem é o recurso dos recursos nem serve para discutir aquilo que nos recursos deve ser discutido. Está reservada, para os casos indiscutíveis de ilegalidade, - “manifesta, grosseira, inequívoca, e ser diretamente verificável a partir dos documentos e informações juntos aos autos (e eventualmente dos factos apurados ao abrigo da alínea b) do nº 4 do artigo 223º)”[2], - que, por serem-no, impõem e permitem uma decisão tomada com imposta celeridade. Estamos perante uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, da prisão e, não, a toda e qualquer ilegalidade, essa sim, possível objecto de recurso ordinário e ou extraordinário. Processo excepcional de habeas corpus este, que, pelas impostas celeridade e simplicidade que o caracterizam, mais não pode almejar, pois, que a aplicação da lei a circunstâncias de facto já tornadas seguras e indiscutíveis. ( cfr também acs de 06-06-2019, proc.n.º 146/19.1SELSB-A.S1, Nuno Gomes da Silva, de 31/1/2022, proc. 2184/21.5JAPRT-C.S1, Sénio Alves). “Pois, não se esgotando no expediente de excepção os procedimentos processuais disponíveis contra a ilegalidade da prisão e correspondente ofensa ilegítima à liberdade individual, o lançar mão daquele só em casos contados deverá interferir com o normal regime dos recursos ordinários. Justamente, os casos indiscutíveis de ilegalidade, que, por serem-no, impõem e permitem uma decisão tomada com imposta celeridade. Sob pena de, a não ser assim, haver o real perigo de tal decisão, apressada por imperativo legal, se volver, ela mesma, em fonte de ilegalidades grosseiras, porventura de sinal contrário, com a agravante, agora, de serem portadoras da chancela do Mais Alto Tribunal e, por isso, sem remédio.” (in ac. STJ de 1/2/2007, proc. 07P353, Pereira Madeira) Ora, o peticionante configura a sua petição de habeas corpus como se fora um recurso, ademais em matéria de facto, a discutir a verificação, na sua tese inverificação, dos factos suscetíveis de integrarem os crimes denunciados, acusados e pronunciados. Mas, os motivos de «ilegalidade da prisão» que constituem fundamento da providência de habeas corpus, de enumeração taxativa, têm de reconduzir-se à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, pelo que o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar (a) se a prisão resulta de uma decisão judicial exequível ordenada por entidade competente, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto pelo qual a lei a admite e (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial. Não cumpre, pois, em sede de providência excecional e expedita de habeas corpus discutir a suficiência dos indícios para aplicação da medida de coação de prisão preventiva. E muito menos discutir a distante e ultrapassada detenção que no sobredito despacho foi julgada válida, “tendo as mesmas sido feitas em flagrante delito.” (cfr fls 1223, como se extrai da “certidão geral”, referência ...26, citius). E também não se destina a apreciar a validade e o mérito de decisões judiciais, a apurar se foram ou não observadas as disposições da lei do processo e se ocorreram ou não irregularidades ou nulidades, insanáveis ou não, resultantes da sua inobservância; trata-se de matérias para as quais se encontram legalmente previstos meios próprios de intervenção no processo, onde devem ser conhecidas, de acordo com o estabelecido nos arts. 118.º a 123.º, do CPP e por via de recurso para os tribunais superiores. (art. 399.º e ss., do CPP)”, (cfr acsde 16/11/2022, proc. nº 4853/14.7TDPRT-A.S1, Lopes da Mota e de 07/06/2017, proc. nº 881/16.6JAPRT-X.S1, Pires da Graça, e de 16/05/2019, 1206/17, Lopes da Mota). “A providência de habeas corpus não decide, assim, sobre a regularidade de actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso das decisões tomadas numa tramitação processual em que foi determinada a prisão do requerente ou um sucedâneo dos recursos admissíveis Conforme se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de 2 de Fevereiro de 2005, “no âmbito da decisão sobre uma petição de habeas corpus, não cabe, porém, julgar e decidir sobre a natureza dos actos processuais e sobre a discussão que possam suscitar no lugar e momento apropriado (isto é, no processo), mas tem de se aceitar o efeito que os diversos actos produzam num determinado momento, retirando daí as consequências processuais que tiverem para os sujeitos implicados”. (ac. do STJ de 16/03/2015, 122/13.TELSB-L.S1, Santos Cabral) E, para o caso sub judicio, repetindo-nos, importa, ainda, considerar que a invocação de uma patologia processual afectando o acto processual da detenção e, nomeadamente, uma nulidade processual, bem como qualquer outra medida limitativa da liberdade que tenha, eventual e anteriormente, tido lugar, é algo que exorbita o catálogo do artigo 222 do Código de Processo Penal. Depois, como é evidente, o auto adulterado do flagrante delito é insusceptível de constituir facto não permitido por lei. Um auto, qualquer auto, limita-se a ser um instrumento formal de relato de factos. Mas o que sobressai e é “diretamente verificável a partir dos documentos e informações juntos aos autos” é que o arguido está preso por facto pelo qual a lei o permite, a saber, a prática, em co-autoria dos crimes de tráfico de estupefacientes agravado, e de participação em organização criminosa e p. e p., respetivamente, pelos arts 21.º, n.º 1 e 24.º als. c), f) e j) e 28.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. Consideradas as molduras penais abstratas aplicáveis a qualquer um destes ilícitos, respetivamente, 5 a 15 anos de prisão e 10 a 25 anos de prisão, e considerada a classificação processual penal de criminalidade organizada cabida quer a um quer a outro dos ilícitos falados, cabe a aplicação da prisão preventiva como medida de coação ao abrigo do artigo 202, nº 1, als a), ou b), ou c), sendo certo que, no caso, se considerou existir perigo de perturbação do inquérito, de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas. Tendo o despacho de aplicação da preventiva assentado no disposto nos artigos 191º, 193º, nºs 1 e 2, 194º, nºs 1 e 2, 202º, nº 1, al. a), e 204º, als a), b) e c), todos do CPP. Com o que, inelutável é concluir, não se verifica o pressuposto que vem invocado, ilegalidade da prisão motivada por facto pelo qual a lei a não permite (art. 222º, nº 2, al. c). Não vindo invocado, sempre se acrescentará que também não se verifica nem o pressuposto da al. a), uma vez que a prisão preventiva foi ditada por entidade competente, o juiz do processo, nem se verifica o pressuposto da alínea c), ultrapassagem do prazo máximo de prisão preventiva, que, considerando os crimes por que foi pronunciado e sem ter havido condenação em 1ª instância e a declaração de excecional complexidade, se fixou em dois anos e seis meses, ut art 215, nºs 2, e 3, do CPP (a terminar em 24/08/2023). Inexiste, pois, o invocado fundamento previsto no nº 2, al. b). do artigo 222º para a peticionada providência, que assim deve ser indeferida – artº 223º, nº 4, al. a) do CPP.
VI. DECISÃO Atento o exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o pedido de habeas corpus apresentado pelo requerente AA, por falta de fundamento bastante (artº 223º, nº 4, alínea a) do CPP). Custas pela requerente, fixando-se a taxa de justiça em três (3) UC’s, nos termos da tabela anexa ao Regulamento das Custas Processuais. Por se revelar manifestamente infundada a presente petição de habeas corpus vai o peticionante condenado ao pagamento de seis (6) UC´s, nos termos do artigo 223, nº 6, do CPP. Lisboa, 21 de junho de 2023 (processado e revisto pelo relator) Ernesto Vaz Pereira (Juiz Conselheiro relator) José Luís Lopes da Mota (Juiz Conselheiro 1º adjunto) Ana Barata Brito (Juíza Conselheira 2ª adjunta) Nuno António Gonçalves (Juiz Presidente da 3ª Secção)
______ [1] “Habeas corpus”, por abreviação da fórmula “habeas corpus ad sub judiciendum” que tenhas corpo para mostrar, expressão metafórica da liberdade física, designadamente a liberdade ambulatória. Habeas corpus eram palavras iniciais da fórmula ou mandado que o tribunal concedia e era endereçado a quantos tivessem em seu poder ou guarda o corpo do detido.(v. breve percurso histórico do instituto in ac. do STJ de 12/12/2007, 07P4643, Pires da Graça). [2] In “Código de Processo Penal Comentado”, Henriques Gaspar et alii, Almedina, 4ª edição, nota ao artigo 222. V. também Cláudia Cruz Santos, “Prisão preventiva – habeas corpus – recurso ordinário”, in RPCC, ano 10, n.º 2, 2000, pp. 303-312, p. 310 e José Damião da Cunha, “Habeas corpus (e direito de petição «judicial»): uma «burla legal» ou uma «invenção Jurídica»?”, in Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva, com coord. José Lobo Moutinho et alii, vol. 2, lisboa: uce, 2020, pp. 1361-1378, pp 1369 e 1370. |