Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A2452
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: OFENSA À HONRA ATRAVÉS DA IMPRENSA
DIREITO AO BOM NOME
DIREITO DE PERSONALIDADE
DIREITO À INFORMAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: SJ200809300024526
Data do Acordão: 09/30/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

I) - O art. 70º do Código Civil tutela a personalidade, como direito absoluto, de exclusão, na perspectiva do direito à saúde, à integridade física, ao bem-estar, à liberdade, ao bom nome, e à honra, que são os aspectos que individualizam o ser humano, moral e fisicamente, e o tornam titular de direitos invioláveis.

II) – O art.484º do referido diploma legal ao proteger o bom-nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, tutela um dos elementos essenciais da dignidade humana – a honra.

III) – A afirmação e difusão de factos que sejam idóneos a prejudicar o bom-nome de qualquer pessoa acarretam responsabilidade civil (extracontratual), gerando obrigação de indemnizar se verificados os requisitos do art. 483º, nº1, do Código Civil.

IV) – O art. 484º do Código Civil prevê caso particular de antijuridicidade que deve ser articulado com aquele princípio geral – contido no art. 483º – não dispensando a cumulativa verificação dos requisitos da obrigação de indemnizar.

V) - Os jornalistas, os media, estão vinculados a deveres éticos, deontológicos, de rigor e objectividade, que se cumprem com a recolha de informação, com base em averiguações credíveis que possam ser confrontadas, para testar a genuinidade das fontes, de modo a que o dever de informar com isenção e objectividade, não seja comprometido por afirmações levianas ou sensacionalistas, fazendo manchetes que têm, quantas vezes, como único fito o incremento das vendas e a avidez da curiosidade pública, sem que a isso corresponda qualquer interesse socialmente relevante.

VI) – Se forem violados deveres deontológicos pelos jornalistas, por não actuarem com a diligência exigível com vista à recolha de informações; se negligentemente, as não recolheram de fonte inidóneas e se essas informações e as fontes não foram testadas de modo a assegurar a sua fidedignidade e objectividade, estamos perante actuação culposa.

VII) – Assiste ao Jornal o direito, a função social, de difundir notícias de interesse público, importando que o faça com verdade e com fundamento, pois, o direito à honra em sentido lato, e o direito de liberdade de imprensa e opinião são tradicionais domínios de direitos fundamentais em conflito, tendo ambos tutela constitucional pelo que facilmente se entra no campo da colisão de direitos – art. 335º do Código Civil – sendo que, em relação a factos desonrosos, dificilmente se pode configurar a exceptio veritatis a cargo do lesante.

VIII) A prova da actuação diligente na recolha e tratamento da informação – a actuação segundo as leges artis – incumbe ao jornalista.

IX) – No caso em apreço, provou-se que o Jornal procedeu a uma prudente investigação dos factos, junto da área de residência do Autor, baseada em fontes diversificadas, junto de vizinhos e do contacto com as autoridades policiais locais que confirmaram a veracidade dos factos relatados na notícia.

X) - Se não se provou que a publicação da notícia causou ao visado dano moral – sofrimento, psicose, depressão (como foi alegado) – e não havendo negligência do jornalista na recolha das fontes, nem tendo resultados danos, não existe obrigação de indemnizar, por a dignidade do Autor não ter sido afectada, pese embora o desvalor dos factos noticiados.

Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA, em 9.9.2003, intentou pelas Varas Cíveis da Comarca de Lisboa – 13ª Vara – acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra:

P...-Imprensa Livre, S.A.

Pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de € 100.000,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados desde a data de citação até integral pagamento, e, ainda, em quantia a liquidar.

Alegou que:

- a Ré P...-Imprensa Livre, S.A. é proprietária do jornal “O Correio da Manhã”;

- a Ré publicou uma notícia sobre o Autor relatando factos falsos, lesando-lhe o seu bom-nome;

- o que lhe causou danos não patrimoniais.

A Ré “P...-Imprensa Livre, S.A.” regularmente citada apresentou contestação nos termos constantes de fls. 37-55, em que invocou a excepção peremptória de exclusão da ilicitude e se defendeu por impugnação motivada, tendo concluído pela improcedência da acção e consequente absolvição do pedido.

O Autor apresentou réplica, nos termos constantes de fls. 70/72, pugnando pela procedência da acção.

Mediante articulado de fls. 75-77, a Ré veio requerer a rectificação de erro de escrita da contestação e o desentranhamento da réplica.

Foi proferido despacho saneador – no qual foi deferida a rectificação da contestação e admitida a apresentação de réplica e considerados não escritos os artigos 1º a 22º e 27º a 34.º da réplica – e organizados os factos assentes e a base instrutória que não foram objecto de reclamação.
***

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida sentença a julgar a acção improcedente.
***

Inconformado, o Autor recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por Acórdão de 28.2.2008, fls.293 a 304, julgou o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.
***

De novo inconformado recorreu para este Supremo Tribunal e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

1. O recorrente, à data um jovem de 19 anos, instaurou contra a Ré uma Acção, porquanto, o Jornal “Correio da Manhã” propriedade da Ré P...- Imprensa Livre S.A., no dia 13 de Julho de 2003, Domingo, publicou na primeira página, uma notícia que ocupava, precisamente meia página e dizia, em letras garrafais, o seguinte (doc. 2 da PI): “100 Crimes aos 19 anos”.

2. Ao lado, em letras mais pequenas, o referido Jornal, referindo-se ao Autor, escreveu: “Conhecido por “Puto Mitra” “rouba desde os dez anos e está agora em prisão preventiva na cadeia de Caxias suspeito de muitos furtos e uma violação”.

3. Na página seis do mesmo jornal (doc. 3 da PI), a notícia foi desenvolvida, referindo-se designadamente que o Autor: “tem contra si as evidências de nove anos de actividade delituosa”, “desde os dez anos que o jovem fez carreira de realização de pequenos furtos”, “abordava transeuntes na via pública, fazendo uso de diversas armas brancas para os desapossar de todos os valores”, “o roubo de viaturas, foi, desde sempre, uma das especialidades de puto mitra”,esteve alegadamente envolvido num caso de violação”.

4. À dada da publicação da notícia, o Autor ora recorrente tinha apenas duas condenações transitadas em julgado, onde foi condenado no pagamento de duas multas, uma de 60 Euros e outra de 70 Euros, pela prática de dois crimes previstos e punidos no nº2 do artigo 3° do Decreto Lei nº2/98 de 03 de Janeiro.

5. Estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extra contratual, previstos no art. 483º do Código Civil. Se não, vejamos. Facto Voluntário do Agente: Publicação da Notícia. Facto Ilícito do Agente: Não resultando demonstrado que os factos publicados são verdadeiros, facilmente se conclui pela ilicitude da conduta da Ré. Nexo de Imputação subjectivo do facto ao Agente: Quem publicou a notícia, sabia que os factos eram falsos e, por isso, susceptíveis de causar danos. Dano: resultou demonstrado que a publicação da notícia é, objectivamente susceptível de causar danos ao autor, como causou (V. depoimento de Carlos Pina e Cecília Gomes, CD 1 Lado 1: “O AA sofreu muito quando soube da notícia”. Nexo de Causalidade entre o Facto e o Dano: Em termos de causalidade adequada, a publicação da notícia, pelo Correio da Manhã, nos moldes em que ocorreu é apta a produzir o sofrimento que produziu no autor (danos causados).

6. Ao ter julgado a acção improcedente, como julgou, o Tribunal recorrido, violou o art. 483º do Código Civil. Este preceito deveria ter sido interpretado, considerando-se estarem demonstrados os pressupostos da responsabilidade civil e condenando-se a Ré, no pedido formulado.

7. Ao julgar a acção improcedente, o Tribunal recorrido interpretou o art. 483 do Código Civil, em violação do Princípio Constitucional da Confiança e em violação dos art. 1°, 12° e 13° da Constituição da República Portuguesa. Questão que não foi apreciada fundamentadamente, pelo TRL (omissão de pronúncia, violação do dever de fundamentação).

Termos em que, revogando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que condene a Ré, no pedido formulado.

A Ré contra-alegou, pugnando pela confirmação do Julgado.
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Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:


1.A Ré “P...-Imprensa Livre, S.A.” é proprietária do jornal “O Correio da Manhã” (alínea A) dos Factos Assentes).

2. No dia 13/07/2003, Domingo, o jornal “O Correio da Manhã” publicou na primeira página uma notícia que ocupava meia página e tinha como título, em letras garrafais o seguinte: “100 Crimes aos 19 anos” (alínea B) dos Factos Assentes)

3. Ao lado, em caracter menor, escreveu-se no jornal o seguinte: “conhecido por “Puto Mitra”, rouba desde os dez anos e está agora em prisão preventiva na cadeia de Caxias suspeito de muitos furtos e uma violação” – (alínea C) dos Factos Assentes).

4. Na página 6 do mesmo jornal, a notícia foi desenvolvida, referindo-se designadamente:

-tem contra si as evidências de nove anos de actividade delituosa”;
- “desde os dez anos que o jovem fez carreira de realização de pequenos furtos”;
-“abordava transeuntes na via pública, fazendo uso de diversas armas brancas para os desapossar de todos os valores”;
- “o roubo de viaturas, foi, desde sempre, uma das especialidades de puto mitra”;
- “esteve alegadamente envolvido num caso de violação”(alínea D) dos Factos Assentes).

5. À data de 13/07/2003, o Autor foi condenado por duas vezes, por sentenças transitadas em julgado, pela prática de crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p., no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 2/1998, de 03/01, nas penas de 20 e 60 dias de multa, por factos praticados em 26/07/2001 e em 16/09/2002, respectivamente – (alínea E) dos Factos Assentes).

6. O Autor AA é um jovem de 19 anos – (resposta ao quesito 1º).

7. O Autor é conhecido como “Puto Mitra” – (resposta ao quesito 2º).

8. Ao publicar a notícia o jornal “O Correio da Manhã” pretendeu desenvolver e relatar factos de interesse para os leitores, o público em geral, e mais especificamente dos leitores da região da Área Metropolitana de Lisboa – (resposta ao quesito 8º).

9. A notícia foi formulada com base numa investigação feita junto da área de residência do Autor, baseada em fontes diversificadas, junto de vizinhos e do contacto com as autoridades policiais locais – (resposta ao quesito 9º).

10. As autoridades policiais locais confirmaram a veracidade dos factos relatados na notícia (resposta ao quesito 10º).

11. Atento o carácter melindroso dos factos imputados ao Réu, o autor da notícia optou por nunca identificar o Autor, mas apenas, por colocar a alcunha que, dentro do seu meio o Autor é conhecido, reservando a sua identidade para o público em geral – (resposta ao quesito 12º).

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

- se o escrito publicado no “Correio da Manhã”, pelo seu conteúdo, ofende direitos de personalidade do Autor;

- se o Acórdão recorrido não se mostra fundamentado;

- se viola os art. 1°, 12° e 13° da Constituição da República Portuguesa.

Vejamos:

O que está em causa é saber se a notícia publicada no jornal CM do dia 13.7.2003, com o título de grande destaque “100 crimes aos 19 anos” e o mais que aí se escreve sobre o Autor, viola o seu direito ao bom nome, à honra e ao prestígio social.

A problemática da acção e dos recursos centra-se, pois, em torno dos direitos de personalidade.

Os direitos de personalidade eram objecto de tutela no Código de Seabra sendo aí denominados direitos originários.

O art. 359º definia-os como aqueles “Que resultam da própria natureza do homem, e que a lei civil reconhece, e protege como fonte e origem de todos os outros. Estes direitos são: 1º — o direito de existência; 2.° - o direito de liberdade; 3.° - o direito de associação; 4° — o direito de apropriação; 5.° - o direito de defesa”.

No lato conceito de direito de existência compreendiam-se a vida e integridade do homem, bem como a honra, a reputação e o bom-nome, ou seja, a dignidade moral do ser humano (art.360º).

O citado Código reconhecia também o direito à liberdade de imprensa – art. 570º – sancionando quem dele abusasse com a obrigação de reparar os direitos de outrem ou da sociedade nos termos da lei – art. 364º.

Os direitos originários eram considerados inalienáveis só podendo ser limitados por “lei formal e expressa” implicando a sua violação obrigação de reparar a ofensa – art. 2361º do citado Código.

Esta protecção com assento constitucional na Lei Fundamental de 1933 e de 1976 tem vindo a ser alargada, não só pelo contributo das ciências sociais como pelo avanço dos estudos doutrinais e jurisprudenciais, sendo que a Constituição de 1976 de modo claro tutela direitos de personalidade como o direito à vida (artigo 24°), à integridade moral e física (artigo 25º); à identidade pessoal, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação à imagem, à palavra e à reserva intimidade da vida privada e familiar (artigo 26°), à liberdade e segurança (artigo 27°) e à inviolabilidade do domicílio e da correspondência (artigo 34.°).

O art. 26º, nº1, da Constituição da República consigna:

“A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”.

Gomes Canotilho e Vital Moreira, em comentário ao citado preceito, escrevem in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Vol. I, 4ª ed., pág.466:

O direito ao bom nome e reputação (nº1) consiste essencialmente no direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender-se dessa ofensa e a obter a competente reparação cfr. Código Penal, arts. 164° e 165°”.

Na lei ordinária a personalidade moral, o bom-nome e consideração social das pessoas, são valores tutelados (artigos 70º e 484º do Código Civil).

Assim o art. 70º Código Civil estatui:

“1. A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.
2. Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.”

Este normativo tutela a personalidade, como direito absoluto, de exclusão, na perspectiva do direito à saúde, à integridade física, ao bem-estar, à liberdade, ao bom nome, e à honra, que são os aspectos que individualizam o ser humano, moral e fisicamente, e o tornam titular de direitos invioláveis.

O art. 484º do citado Código estatui – Quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom-nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados.”

Este normativo ao proteger o bom-nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, tutela um dos elementos essenciais da dignidade humana – a honra.

"A honra abrange desde logo a projecção do valor da dignidade humana, que é inata, ofertada pela natureza igualmente para todos os seres humanos, insusceptível de ser perdida por qualquer homem em qualquer circunstância... Em sentido amplo, inclui também o bom nome e reputação, enquanto sínteses do apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade de cada indivíduo no plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político". Rabindranah Capelo de Sousa, “O Direito Geral da Personalidade”, 1995, págs. 303-304.

Maria Paula Andrade, in “Da Ofensa do Crédito e do Bom Nome”, 1996, pág. 97, afirma ser a honra um "…Bem da personalidade e imaterial, que se traduz numa pretensão ou direito do indivíduo a não ser vilipendiado no seu valor aos olhos da sociedade e que constitui modalidade do livre desenvolvimento da dignidade humana, valor a que a Constituição atribui a relevância de fundamento do Estado Português; enquanto bem da personalidade e nesta sua vertente externa, trata-se de um bem relacional, atingindo o sujeito enquanto protagonista de uma actividade económica, com repercussões no campo social, profissional e familiar e mesmo religioso".

Pedro Pais de Vasconcelos – “Teoria Geral do Direito Civil” – 2005, pág.38 e segs:

“ […] O direito à vida, ou à honra, ou à integridade física, ou à privacidade, ou à imagem, por exemplo, não constituem direitos subjectivos autónomos, mas antes poderes jurídicos que integram o direito de personalidade do seu titular, poderes estes que são exercidos quando a dignidade do seu titular for posta em causa através de ameaças ou ofensas àqueles específicos bens de personalidade.
A tipificação dos chamados direitos especiais de personalidade é um reflexo da tipificação de específicos bens de personalidade que integram a dignidade humana e das lesões que historicamente se foram tornando típicas.
A dignidade humana pode ser ameaçada ou ofendida em diversos bens que a integram — vida, integridade física, honra, privacidade, imagem, nome, etc. — para a defesa de cada um dos quais o direito de personalidade contém específicos meios ou bens, que beneficiam de específicos poderes jurídicos” – (destaque e sublinhados nossos).

O mesmo tratadista, in “Direito de Personalidade”. -Almedina 2006 – pág. 76.

O direito à honra é uma das mais importantes concretizações da tutela e do direito da personalidade.
A honra é um preciosíssimo bem da personalidade.
A honra é a dignidade pessoal pertencente à pessoa enquanto tal, e reconhecida na comunidade em que se insere e em que coabita e convive com as outras pessoas…A perda ou lesão da honra – a desonra – resulta, ao nível pessoal, subjectivo, na perda do respeito e consideração que a pessoa tem por si própria, e ao nível social, objectivo, pela perda do respeito e consideração que a comunidade tem pela pessoa.
A lesão da honra pode não ser total – só em casos excepcionais o será – e limitar-se a um seu detrimento. A honra, neste caso, é lesada, mas não perdida…Todas as pessoas têm direito à honra pelo simples facto de existirem, isto é, de serem pessoas. É um direito inerente à qualidade e à dignidade humana. Mas as pessoas podem perder a honra ou sofrer o seu detrimento em virtude de vicissitudes que tenham como consequência a perda ou diminuição do respeito e consideração que a pessoa tenha por si própria ou de que goze na sociedade.
As causas de perda ou do detrimento da honra – de desonra – são, em termos muito gerais, acções da autoria da própria pessoa ou que lhe sejam imputadas, e que sejam consideradas reprováveis na ordem ética vigente, quer ao nível da própria pessoa, quer ao nível da sociedade.”

Sendo a honra e o direito ao bom nome valores absolutos que se inscrevem no âmbito dos direitos de personalidade, absolutos e invioláveis, importa saber se a publicação em causa lesou direitos do Autor ao publicitar factos que, em si mesmos, são desonrosos para qualquer cidadão.

“O Professor Beleza dos Santos ensinava que a honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale, e que a consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal forma que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa ao desprezo público (R.L.J., Ano 92º, pág. 164)” – cfr. Ac. deste Supremo de 30.10.2003 – Proc. 03P3369 – in www.dgsi.pt.

A afirmação e difusão de factos que sejam idóneos a prejudicar o bom-nome de qualquer pessoa acarretam responsabilidade civil (extracontratual), implicando a obrigação de indemnizar se verificados os requisitos do art. 483º do Código Civil.

O art. 484º do Código Civil prevê caso particular de antijuridicidade que deve ser articulado com aquele princípio geral contido no art. 483º, não dispensando a cumulativa verificação dos requisitos da obrigação de indemnizar.

Mário Júlio de Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 11ª edição, págs.564-565, depois de aludir aos “critérios básicos” da responsabilidade civil do art. 483º, nº1, do Código Civil indica como “casos especiais de ilicitude a ofensa do crédito ou do bom nome”, e depois de transcrever o art. 484º, afirma:

Infere-se da lei que tem de haver a imputação de um facto, não bastando alusões vagas e gerais.
A regra consiste na irrelevância da veracidade ou falsidade do facto, mas, sempre que esteja em causa a protecção de interesses legítimos, parece de admitir a “exceptio veritatis” (…). Sublinhe-se, por fim, que o facto afirmado ou difundido deve mostrar-se, ponderadas as circunstâncias concretas, susceptível de afectar o crédito ou a reputação da pessoa visada — pessoa singular ou colectiva, onde se incluem as sociedades”.

Menezes Cordeiro, in “Direito das Obrigações”, vol. II, p. 349:

É indubitável que a divulgação de um facto verdadeiro pode, em certo contexto, atentar contra o bom-nome e a reputação de uma pessoa. Por outro lado, a divulgação de um facto falso atentatório pode não constituir um delito – por carência, por exemplo, de elemento voluntário.
Por isso, a solução deve resultar do funcionamento global das regras da imputação delitual".

Também Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 9ª edição, a propósito do art. 484º do Código Civil (págs. 567-568), afirma:

Pouco importa que o facto afirmado ou divulgado seja ou não verdadeiro – contanto que seja susceptível, ponderadas circunstâncias do caso, de diminuir a confiança na capacidade e na vontade da pessoa para cumprir as suas obrigações (prejuízo do crédito) ou de abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que ela seja tida (prejuízo do bom nome) no meio social em que vive ou exerce a sua actividade".

Dispõe o artigo 483º do Código Civil:

Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Como pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, são apontados – o facto voluntário do agente, a ilicitude, a culpa (dolo ou negligência), o dano e o nexo de causalidade.

Importa então saber se, in casu, se encontram verificados os requisitos do normativo citado, sobretudo, se ao difundir, via imprensa, as imputações feitas ao Autor, a Ré agiu com culpa, entendida esta como juízo de censura ético-jurídico, em função de no caso deverem ser omitidas as alusões depreciativas feitas ao Autor.

Desde logo, há que ponderar que aos jornalistas assiste o direito de informar e tal direito é uma manifestação constitucional da liberdade de expressão e de imprensa – arts. 37º e 38º da Lei Fundamental – direitos consagrado na lei ordinária.

Assim o art. 3º da Lei de Imprensa – Lei 2/99, de 13/01:

“A liberdade de imprensa tem como únicos limites os que decorrem da Constituição e da lei, de forma a salvaguardar o rigor e a objectividade da informação, a garantir os direitos ao bom nome, à reserva da intimidade da vida privada, à imagem e à palavra dos cidadãos e a defender o interesse público e a ordem democrática.”

E o seu art. 9º, nº1:

Integram o conceito de imprensa, para efeitos da presente lei, todas as reproduções impressas de textos ou imagens disponíveis ao público, quaisquer que sejam os processos de impressão e reprodução e o modo de distribuir utilizados.

Um dos limites à liberdade de informar, que não é por isso um direito absoluto, é a salvaguarda do direito ao bom-nome.

Os jornalistas, os media, estão vinculados a deveres éticos, deontológicos, de rigor e objectividade, que se cumprem com a recolha de informação com base em averiguações credíveis que possam ser confrontadas para testar a genuinidade das fontes, de modo a que o dever de informar com isenção e objectividade, não seja comprometido por afirmações levianas ou sensacionalistas, fazendo manchetes que têm, quantas vezes, como único fito o incremento das vendas e a avidez da curiosidade pública, sem que a isso corresponda qualquer interesse socialmente relevante, provocando, quantas vezes, danos devastadores nos visados.

Pedro Pais de Vasconcelos – “Direito de Personalidade” págs.75-76 afirma certeiramente:

“ São particularmente gravosas – e merecem especial atenção – as ofensas à honra cometidas através da comunicação social… O impacto que os meios de comunicação de massa – imprensa, rádio e televisão e Internet – têm na sociedade e a credibilidade de que, porventura imerecidamente, beneficiam, agravam brutalmente as lesões causadas.
É sabido que a generalidade das pessoas acredita acriticamente no que os jornais, a rádio e principalmente a televisão comunicam e como são ineficazes os desmentidos posteriormente publicados, quase sempre tarde e com impacto insuficiente.
As ofensas à honra assim cometidas são extremamente gravosas e dificilmente reparáveis. A liberdade de imprensa não sobreleva o direito à honra.
Embora ambos estejam formalmente consagrados na Constituição da República como direitos, liberdades e garantias, a defesa da honra situa-se no âmbito superior dos direitos de personalidade e é, por isso, hierarquicamente superior à liberdade de imprensa”.

Se forem violados deveres deontológicos pelos jornalistas por não actuarem com a diligência exigível com vista à recolha das informações, se negligentemente as não recolheram de fonte inidóneas, se essas informações e as fontes não foram testadas de modo a assegurar a sua fidedignidade e objectividade (1) , estamos perante actuação culposa.

No caso em apreço provou-se que:
“Ao publicar a notícia o jornal “O Correio da Manhã” pretendeu desenvolver e relatar factos de interesse para os leitores, o público em geral, e mais especificamente dos leitores da região da Área Metropolitana de Lisboa – (resposta ao quesito 8º).
A notícia foi formulada com base numa investigação feita junto da área de residência do Autor, baseada em fontes diversificadas, junto de vizinhos e do contacto com as autoridades policiais locais – (resposta ao quesito 9º).
As autoridades policiais locais confirmaram a veracidade dos factos relatados na notícia (resposta ao quesito 10º). Atento o carácter melindroso dos factos imputados ao Réu, o autor da notícia optou por nunca identificar o Autor, mas apenas, por colocar a alcunha que, dentro do seu meio o Autor é conhecido, reservando a sua identidade para o público em geral – (resposta ao quesito 12.º)”.

Ao dar à estampa, sobre o Autor, notícias que lhe imputam “100 crimes aos 19 anos”, afirmando-se que “conhecido por “Puto Mitra”, rouba desde os dez anos e está agora em prisão preventiva na cadeia de Caxias suspeito de muitos furtos e uma violação” – (alínea C) dos Factos Assentes); tem contra si as evidências de nove anos de actividade delituosa”; “desde os dez anos que o jovem fez carreira de realização de pequenos furtos”; “abordava transeuntes na via pública, fazendo uso de diversas armas brancas para os desapossar de todos os valores”; “o roubo de viaturas, foi, desde sempre, uma das especialidades de puto mitra”; “esteve alegadamente envolvido num caso de violação”(alínea D) dos Factos Assentes) – sem dúvida que está objectivamente posta em causa a honra e o bom-nome do Autor, porque os factos são infamantes e impróprios de uma pessoa/cidadão de bom carácter.

Assiste ao Jornal o direito, a função social, de difundir notícias de interesse público, importando que o faça com verdade e com fundamento, pois, entre o direito à honra em sentido lato, e o direito de liberdade de imprensa e opinião são tradicionais domínios do direito de personalidade em conflito, tendo ambos tutela constitucional pelo que facilmente se entra no campo da colisão de direitos – art. 335º do Código Civil – sendo que, em relação a factos desonrosos, dificilmente se pode configurar, a nosso ver, a exceptio veritatis a cargo do lesante.

Todavia, importa ponderar com Figueiredo Dias, “Direito de Informação e Tutela da Honra no Direito Penal da Imprensa Português”, RLJ Ano 115º, págs. 101-102, 105-106 e 170-171:

“... É o próprio texto constitucional que invoca o direito penal a tomar o seu lugar e a sua responsabilidade na solução dos conflitos entre as figuras jurídico-constitucionais do direito à honra e do direito de informação...”.

É socialmente aceitável limitar a tutela da honra se se visar a salvaguarda do núcleo essencial do direito à informação, não sancionando as ofensas, caso constituammeio adequado e razoável de cumprimento da função pública da imprensa”, usado por esta "com a intenção… de cumprir a sua função pública e, assim, de exercer o seu direito-dever de informação”, desde que, como ensina o reputado Professor, se admita a prova da verdade da imputação "no preciso âmbito do direito de informação”, ainda que através da simples demonstração de "uma crença fundada na verdade” obtida de acordo com "as exigências derivadas das “leges artis” dos jornalistas, das suas concepções profissionais sérias, e que se não contentarão com a criação de um convencimento meramente subjectivo, mas imporão que aquela – a verdade da imputação – repouse numa base objectiva”.

Exigível é que"... A imprensa, no exercício da sua função pública, não publique imputações que atinjam a honra das pessoas e que saiba inexactas, cuja exactidão não tenha podido comprovar ou sobre a qual não tenha podido informar-se convenientemente” – cfr. Estudo citado, págs. 101-102, 105-106 e 170-171.

Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, I Volume – 7ª edição – em nota de rodapé – pág. 559 – ensina:

“Para haver culpa, no caso de afirmação ou divulgação de factos susceptíveis de prejudicar o crédito ou o bom nome de alguém, basta, em princípio, que o agente queira afirmar ou difundir o facto, pouco importando que ele soubesse ou não que, em consequência disso, o lesado perderia um negócio vantajoso ou uma colocação rendosa ou veria desfeito o seu noivado. Desde que o agente conheça ou devesse conhecer a ilicitude ou o carácter danoso do facto, é justo que sobre ele recaia o encargo de reparar os danos efectivamente causados por esse facto”.

Daí que a prova da actuação diligente na recolha e tratamento da informação – a actuação segundo as leges artis – incumba ao jornalista.

No caso em apreço, provou-se que o Jornal procedeu a uma investigação dos factos junto da área de residência do Autor, baseada em fontes diversificadas, junto de vizinhos e do contacto com as autoridades policiais locais – e que estas autoridades policiais locais confirmaram a veracidade dos factos relatados na noticia.

Aqui avulta, em termos valorativos da actuação do Jornal, a circunstância de, tratando-se de imputações de factos do foro criminal, ter sido obtida confirmação das investigações acerca do Autor, junto de fonte que tem de considerar-se idónea – a autoridade policial.

Assim sendo, pese embora muitas das imputações serem relativas a período da idade do Autor, em que ainda não era penalmente imputável, não podendo por isso falar-se na prática de crimes, mas antes de actividades censuráveis, como decorre dos factos referidos: “desde os dez anos que o jovem fez carreira de realização de pequenos furtos”, “abordava transeuntes na via pública, fazendo uso de diversas armas brancas para os desapossar de todos os valores”,“o roubo de viaturas, foi, desde sempre, uma das especialidades de puto mitra” – o facto de não se terem provado, mas apenas que à data da publicação da notícia o Autor fora condenado duas vezes pela prática de crime de condução de veículo sem habilitação legal – só por si não implica que se deva considerar que o Jornal publicou notícia que sabia ser falsa.

Isto porque na sequência das investigações feitas pelo Jornal a autoridade policial confirmou a “veracidade dos factos relatados na notícia” – resposta ao quesito 10º.

Esta confirmação policial tem de se considerar uma fonte credível e se o Jornal publicou os factos após tal confirmação, razoavelmente, podia ter confiado na idoneidade da fonte, o que o exime de censura (culpa).

Assim, desde logo, se considera inverificado o requisito “culpa” – art. 483º, nº1, do Código Civil – por a actuação do Jornal não ser censurável, tendo agido segundo as regras deontológicas, curando de produzir notícias verdadeiras ou, pelo menos, fidedignamente confirmadas como tal; ademais, o Autor foi sempre referido pela sua alcunha, pelo que a sua identificação apenas era do conhecimento daqueles com quem lidava na sua vida de relação, tendo sido omitidos dados que dessem a conhecer quem era, preservando o seu nome o que exprime prudência.

Mas, mesmo que assim não fosse, ter-se-á que concluir que os factos provados não demonstram a existência de dano e, consequentemente, de nexo de causalidade.

Assim, os quesitos 3º a 7º [que se transcrevem], mereceram a resposta – “Não provado”.

“A publicação da notícia provocou danos irreversíveis no Autor? (3º)
O Autor era pessoa alegre e bem disposta, bem sucedido e realizado, pessoal, social e profissionalmente? (4º)
A notícia causou ao Autor uma série de depressões psicológicas graves que culminaram numa psicose e numa depressão grave? (5º)
O sofrimento do Autor mantém-se desde 13.07.2003 até à actualidade? (6º)
O Autor passou a ser visto no seu círculo de amigos e colegas como um criminoso? (7º).”

No caso, o dano seria a quebra de prestígio social e a afectação do bom-nome do Autor pelo facto de ter sido visado pelas notícias.

Não se provou a existência sequer de dano moral – sofrimento, psicose, depressão (como foi alegado) – pelo que não havendo nem culpa nem dano, prejudicada fica a existência de nexo de causalidade e, logo, a obrigação de indemnizar.

Para haver obrigação de indemnizar, é condição essencial que haja dano, que o facto ilícito culposo tenha causado um prejuízo a outrem” – Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, p. 619.

“Dano é o prejuízo in natura que o lesado sofreu nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar. É a lesão causada no interesse juridicamente tutelado” obra e autor citado.

Não se verificando os requisitos da obrigação de indemnizar a pretensão do recorrente soçobra.

Alega ainda o Autor que a interpretação dada pelo Acórdão recorrido – que considera não se mostrar fundamentado – violou o princípio constitucional da Confiança e os arts. 1º, 12º, e 13º da Lei Fundamental.

Desde logo, cumpre dizer que o Acórdão recorrido de modo algum enferma de omissão de fundamentação – de facto e de direito – sendo uma decisão bem elaborada e com meritória fundamentação, com alusões doutrinais e jurisprudenciais que coerentemente enquadradas não poderiam conduzir a outro desfecho.

Não se vislumbra que haja qualquer violação do princípio constitucional envasado no art. 1º da Lei Fundamental – “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.”

Pelo quanto dissemos, não se provou que a dignidade do Autor tivesse sido afectada, pese embora o desvalor dos factos noticiados.
A decisão recorrida não discriminando o Autor, não violou o princípio da universalidade de direitos que a Constituição consagra no art. 12º; tão pouco, atropelou o princípio da igualdade – art. 13º da Lei Fundamental – acerca do qual Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada – I volume, 4ª edição, pág. 337, escrevem:

“A base constitucional do princípio da igualdade é a igual dignidade social de todos os cidadãos (n°1) — que, aliás, não é mais do que um corolário da igual dignidade humana de todas as pessoas (cfr. art. 1°) —, cujo sentido imediato consiste na proclamação da idêntica “validade cívica” de todos os cidadãos, independentemente da sua inserção económica, social, cultural e política, proibindo desde logo formas de tratamento ou de consideração social discriminatórias”.

Pelo quanto expusemos o recurso não merece provimento.

Decisão:

Nestes termos nega-se a revista.

Custas pelo Autor/recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário com que litiga.


Supremo Tribunal de Justiça, 30 de Setembro de 2008

Fonseca Ramos (Relator)
Cardoso de Albuquqerque
Azevedo Ramos

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(1) O Estatuto do Jornalista estabelece que estes devem respeitar escrupulosamente o rigor e objectividade da informação – al.a), do art. 14°, da Lei nº1/99, de 13/01.