Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3843/15.7T8CSC.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
OBJECTO DO CONTRATO DE SEGURO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
CLÁUSULA CONTRATUAL
INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA
FRANQUIA
APROVEITAMENTO DO RECURSO AOS NÃO RECORRENTES
Data do Acordão: 01/31/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / RECURSOS.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / RESPONSABILIDADE PELO RISCO /MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 615.º, N.º 1, ALÍNEA C), 634.º, N.º 2, ALÍNEA B) E 635.º, N.º 4.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, N.º 1, 483.º, N.º 1, 486.º, 487.º, 500.º, N.ºS 1 E 2 E 563.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 03-05-2016, PROCESSO N.º 613/08.2TBSSB.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. Tendo a ré seguradora interposto recurso de apelação, invocando, entre outros fundamentos, que o sinistro dos autos não se encontra coberto pelo contrato de seguro celebrado com a ré segurada, considera-se que – nos termos do art. 634º, nº 2, alínea b), do CPC – tal recurso aproveita também a esta última, uma vez que a sua condenação em 1ª instância se fundara na aplicação da cláusula de franquia do referido contrato de seguro.

II. Na medida em que o objecto do contrato de seguro dos autos respeita à “responsabilidade civil extracontratual, imputável ao segurado [clínica de reabilitação física] no exercício da exploração da sua actividade”, ocorrendo, quanto ao mesmo evento lesivo de uma paciente da clínica, concurso de responsabilidade civil, contratual e extracontratual, deve considerar-se tal evento abrangido pelo contrato de seguro.

III. Não podendo pôr-se em causa a validade de cláusula inserida em Nota anexa à Apólice, na qual se exclui da cobertura do seguro a “Responsabilidade Civil Profissional de médicos, paramédicos, fisiatras, fisioterapeutas, enfermeiros ou similares”, impõe-se – de acordo com os critérios normativos de interpretação da declaração negocial dos arts. 236º e segs. do CC – proceder a uma interpretação restritiva de tal cláusula que não esvazie por inteiro a previsão da Cláusula 2ª, nº 2, das Condições Especiais segundo a qual o objecto do contrato abrange a responsabilidade por actos ou omissões do “pessoal do Segurado ou quem actue para e por conta dele ainda que sem relação de dependência laboral”.

IV. Esse esforço interpretativo, permitindo que não se desvirtue de tal modo o objecto do contrato de seguro, que poderia chegar a descaracterizar-se o próprio tipo contratual (de que o risco é elemento essencial), implica que – num caso de dúvida qualificativa como o presente acerca da natureza da função de uma auxiliar de fisioterapia – se opte por uma solução restritiva, isto é, pela não equiparação de tal categoria profissional às elencadas na dita cláusula de exclusão.

Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência do Supremo Tribunal de Justiça




I. Veio a 1ª R. AA - Gabinete de Reabilitação Física, Lda. impugnar para a conferência a decisão da relatora de 12 de Novembro de 2019 (a fls. 661) de não admissão do presente recurso de revista por falta de verificação do pressuposto da sucumbência, invocando que o valor da sua condenação pelo acórdão recorrido ascende a € 16.029,00, não se situando em apenas € 14.426,10, como se entendeu na decisão impugnada.

     Ponderados pelo colectivo todos os dados processuais relevantes, considera-se que a questão relativa à verificação do preenchimento do pressuposto da sucumbência deve efectivamente ser reequacionada, ainda que não exactamente pelas razões invocadas pela Recorrente/reclamante.

     Vejamos.

Tendo a sentença condenado a 1ª R. AA, Lda. a pagar à A. a quantia de € 1.602,90, e tendo o acórdão da Relação condenado a mesma 1ª R. a pagar o valor global de € 16.029,00 (que inclui o montante de € 1.602,90), torna-se decisivo determinar se aquela primeira decisão condenatória transitou ou não em julgado. Para resolver esta dúvida importa ter em conta qual o fundamento da condenação em 1ª instância, tanto da 1ª R. como da 2ª R.

Estamos perante uma acção de responsabilidade civil por danos derivados de lesão física sofrida pela A., sendo o pedido indemnizatório principal dirigido contra a 2ª R. BB Seguros, S.A.., (actual CC, S.A.) e o pedido subsidiário dirigido contra a 1ª R., entidade segurada.

Ora, a sentença, dando como verificados os pressupostos da responsabilidade civil, entendeu estar esta coberta pelo contrato de seguro celebrado entre a 1ª e a 2ª RR., condenando a 2ª R. a pagar a quantia de € 14.426,10, e a 1ª R. a pagar a quantia de € 1.602,90, correspondente ao valor da franquia do seguro.

Assim sendo, constata-se que, tendo a 2ª R. interposto recurso de apelação, invocando, entre outros fundamentos, que o sinistro dos autos não se encontra abrangido pelo indicado contrato de seguro (celebrado com a 1ª R.), considera-se que – nos termos do art. 634º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Civil – tal recurso aproveita também à 1ª R., uma vez que a sua condenação em 1ª instância se fundara na aplicação da cláusula de franquia do contrato de seguro e que a apelação pôs em causa que o sinistro se encontre abrangido pela cobertura do mesmo contrato.

Não tendo transitado em julgado a condenação da 1ª R. na sentença, conclui-se que, nos termos do art. 629º, nº 1, do CPC, a decisão impugnada na revista (isto é, a decisão proferida pela Relação) é desfavorável à Recorrente no valor global em que foi condenada: € 16.029,00. Sendo este valor superior a metade da alçada da Relação, o recurso é admissível.

Pelo exposto, acorda-se em revogar a decisão reclamada, admitindo-se o recurso de que se passa a conhecer em seguida.


II.

1. DD intentou, em 7 de Dezembro de 2015, a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA - Gabinete de Reabilitação Física, Lda. e BB Seguros, S.A. (actual CC, S.A.), pedindo que seja:

“a) Condenada a 2.ª Ré no pagamento à Autora da quantia de € 25.000,00, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais;

b) Condenada a 2.ª Ré no pagamento à Autora da quantia de € 19.171,87, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e no pagamento de todas as despesas vincendas até à recuperação integral da Autora;

c) Condenada a 2.ª Ré no pagamento à Autora no valor que vier a ser fixado posteriormente, nos termos indicados em 59.º e 60.º, até integral recuperação da Autora.

d) Condenada a 2.ª Ré no pagamento à Autora nos juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal, procuradoria, custas de parte e demais custas processuais.

Caso a responsabilidade pelo pagamento das indemnizações devidas à Autora não seja atribuída à 2.ª Ré, deverá ser:

e) Condenada a 1.ª Ré no pagamento à Autora da quantia de € 25.000,00, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais;

f) Condenada a 1.ª Ré no pagamento à Autora da quantia de € 19.171,87, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e no pagamento de todas as despesas vincendas até à recuperação integral da Autora;

g) Condenada a 1. ª Ré no pagamento à Autora no valor que vier a ser fixado posteriormente, nos termos indicados em 59.º e 60.º até integral recuperação da Autora;

h) Condenada a 1.ª Ré no pagamento à Autora nos juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal, procuradoria, custas de parte e demais custas processuais.”

Para tanto alegou a A. em síntese que, no dia 23/10/2014, encontrando-se a realizar tratamentos na clínica da 1ª R., ao transitar do tratamento de massagens realizado com terapeuta da 1ª R. para a utilização das máquinas de manutenção, sofreu uma queda, embatendo violentamente no chão.  

A queda ficou a dever-se ao facto de a A. não ter tido a ajuda necessária para se deslocar em segurança por parte da terapeuta responsável, sendo certo que tanto a idade (89 anos) e consequente fragilidade física, como a prótese na anca constituíam factores de risco de queda que, para serem minimizados, requeriam cuidado especial, factores esses ignorados pela terapeuta que os conhecia ou devia conhecer.

Em consequência dessa queda a A. sofreu lesões no corpo que lhe causaram danos não patrimoniais pelos quais peticiona compensação no valor de € 25.000,00.

Sofreu ainda danos patrimoniais correspondentes a despesas com transporte pelos Bombeiros Voluntários, no montante de € 413,00, com tratamentos, num total de € 938,87, bem como a despesas que suportou na clínica onde está a completar a sua reabilitação e tratamento no valor de € 17.820,00.

Peticiona ainda montante a determinar posteriormente relativo a sequelas decorrentes das lesões que sofreu.

Os danos são de imputar a título de culpa à 1ª R., a qual, tendo celebrado contrato de seguro de responsabilidade civil com a 2ª R., válido e eficaz à data do acidente, transferiu para esta a responsabilidade decorrente da sua actividade de unidade de medicina e de reabilitação, sendo assim a 2ª R. obrigada ao pagamento dos danos apurados e a apurar.

As RR., devidamente citadas, vieram apresentar contestação, defendendo-se por impugnação.

Alega ainda em sua defesa a 1.ª R. que a passagem da marquesa para a cadeira onde iria realizar tratamento de ultra-sons, distantes 1,5 metros uma da outra, não carece de acompanhamento por parte dos colaboradores da 1ª R., além de que o processo de reabilitação da A. até o aconselhava, sendo a própria A. a querer fazer sozinha tudo o que lhe era possível e aconselhável. O ocorrido constituiu assim um lamentável acidente decorrente de risco normal em processo de reabilitação da A., não tendo a 1ª R. violado qualquer regra de segurança.

Quanto à 2ª R., a mesma aceita a existência de contrato de seguro, referindo contudo existir uma franquia de 10% do valor da indemnização a cargo do tomador do seguro, com um mínimo de € 250,00. Confirma a participação do sinistro e da averiguação que fez ao mesmo e das razões que levaram à não aceitação de responsabilidade por considerar não existir qualquer acto ou omissão da 1ª R. que tenha originado a queda, aderindo ainda aos fundamentos da contestação da 1ª R.

     A fls. 443 foi proferida sentença que julgou o pedido formulado na petição inicial parcialmente procedente e, em consequência:

- Condenou a R. BB Seguros, S.A.. no pagamento à A. DD da quantia de € 14.426,1, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal aplicável às dívidas civis a contar da citação até integral e efectivo pagamento.

- Condenou a R. AA, Lda. no pagamento à A. DD da quantia de € 1.602,90, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, correspondente à franquia do contrato de seguro de 10%, acrescida de juros à taxa legal aplicável às dívidas civis a contar da citação até integral e efectivo pagamento.

- Absolveu as RR. do demais peticionado.


   Inconformada, a R. BB Seguros, S.A.. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, pedindo a modificação da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.


Por decisão de fls. 529 foi declarado habilitado como herdeiro da A., entretanto falecida, o seu filho EE.

Por requerimento de fls. 543v, veio a CC, S.A.. dizer ter a BB Seguros, S.A.. sido incorporada, por fusão, em 30/12/2016, na Companhia de Seguros FF, S.A. e que esta na mesma data alterou a sua denominação para CC, S.A., pelo que assume a posição processual da extinta BB Seguros, S.A..


    Por despacho do Exmo. Juiz Desembargador relator (a fls. 553) foram as partes notificadas para se pronunciarem quanto à possibilidade de, vindo a apelação da 2ª R. (seguradora) a ser julgada procedente, ser de conhecer da questão da eventual responsabilidade civil exclusiva da 1ª R. (segurada), que não fora apreciada em 1ª instância por ter ficado prejudicada pela solução dada ao litígio.


    Por acórdão de fls. 570 foi mantida a decisão relativa à matéria de facto e, a final, foi proferida a seguinte decisão:

“… julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida, substituindo-a por outra cuja parte decisória passa a ter a seguinte redação:

1. Absolver a Ré CC, S.A. dos pedidos formulados contra si.

2. Condenar a Ré AA, Ld.ª no pagamento à Autora DD da quantia de €16.029,00 (dezasseis mil e vinte e nove cêntimos), a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal aplicável a juros civis, a contar da citação até integral e efetivo pagamento.”


2. Vem a R. AA - Gabinete de Reabilitação Física, Lda. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

“1. Ao pessoal auxiliar da Recorrente não é aplicável a nota anexa à apólice dos autos, pelo que não está excluída da respectiva cobertura a auxiliar de fisioterapia a quem é directamente assacada a responsabilidade pelo evento.

2. Na exclusão de coberturas não é aceitável interpretação que não tenha um mínimo de correspondência verbal na norma (art. 9°, n° 1 e 2 Cód. Civil).

3. Quando se trata de exclusão de coberturas, cláusulas não podem prestar-se a qualquer tipo de dúvida.

4. Cláusula em questão não faz qualquer alusão a pessoal auxiliar, o que não pode deixar de ser uma opção deliberada.

5. Médicos, fisiatras, fisioterapeutas e enfermeiros são técnicos detentores de licenciatura e/ou mestrado, o que não sucede com o pessoal auxiliar.

6. Considerando o disposto no art. 9° do Cód. Civil, "similares" a médicos, fisiatras, fisioterapeutas e enfermeiros não pode integrar pessoal auxiliar.

7. É também equívoca a aplicação/interpretação do art. 236.° do Cód. Civil, porquanto um declaratário diligente nunca poderia interpretar que similares a médicos, fisiatras, fisioterapeutas e enfermeiros pudesse incluir pessoal auxiliar.

8. Como fundamento da sua decisão, o Acórdão recorrido apresenta a doutrina e jurisprudência que apontam para a concorrência da responsabilidade contratual com a responsabilidade extracontratual; a chamada teoria do cúmulo ou consunção.

9. Qual decisão surpresa, julga em sentido oposto à doutrina que expõe na respectiva fundamentação.

10. Considera o Tribunal a quo que "não podemos deixar de considerar que no caso concreto ocorre violação das leges artis na feitura da sessão de fisioterapia em causa."

11. E assim, que "(…), tal facto ilícito conduziu à violação do direito subjectivo da Autora à integridade física e à saúde."

12. Caindo, assim, no âmbito da responsabilidade delitual.

13. Afirmando o douto acórdão recorrido que, "Não obstante ocorrer presunção de culpa, por se tratar também de responsabilidade contratual (...)" (sublinhado nosso).

14. Assim confirmando estarmos em presença de um caso de concorrência real entre responsabilidade contratual e extracontratual,

15. Em que existe um único dano produzido por um único facto.

16. Facto esse que, além de constituir uma violação contratual, é também lesivo do direito absoluto à vida ou à integridade física.

17. É a chamada teoria da consunção ou do cúmulo, em que o facto gerador da responsabilidade é simultaneamente violador do contrato e um ilícito extracontratual.

18. O que as partes pretendem com o contrato, de acordo com Luís Filipe Pires de Sousa, não é "renunciarem à posição geral que a lei lhes confere. O que pretendem é criar uma protecção acrescida.".

19. É, por isso, incompreensível que o acórdão recorrido discorra abundantemente sobre esta problemática, apresentando-a nos seus devidos termos e, a final, conclua que a apólice em questão não cobre o evento danoso por estar limitada à responsabilidade extracontratual.

20. É que a única conclusão lógica, coerente com a respectiva fundamentação e de acordo com a lei e doutrina aplicáveis seria a da concorrência entre os dois tipos de responsabilidade: contratual e delitual.

21. Ademais, prevalecendo entre nós a teoria da consunção, a responsabilidade delitual decorrente da violação das leges artis é consumida pela responsabilidade contratual decorrente do contrato de prestação de serviços celebrado.

22. Mas não deixa de existir.

23. Tanto mais que no âmbito dos direitos absolutos (como é o caso da integridade física) a intervenção danosa do médico pode sempre ser vista como violadora daqueles direitos e, como tal, enquadrada na responsabilidade delitual.

24. Ou seja, existe um cúmulo de responsabilidade civil contratual e extracontratual, pelo que a apólice em questão não pode deixar de cobrir os eventos em apreço.

25. Decisão a quo é, simultaneamente, nula, nos termos do art. 615.°, n° 1, al. c) do Cód. Proc. Civil, por estarem em oposição os fundamentos e a decisão proferida.

26. É que o Tribunal a quo apresenta todos os argumentos a favor da teoria da concorrência entre a responsabilidade contratual e extracontratual, apresenta, concordando, com a doutrina e jurisprudência mais relevante sobre a matéria, transcreve partes da sentença de 1ª instância que o reafirmam e, a final, decide de forma totalmente oposta a tal fundamentação.

27. Nota anexa à apólice (de exclusão de responsabilidade) é nula por violar de forma grosseira os princípios da interpretação dos negócios jurídicos.

28. Tal cláusula, a admitir-se como válida, tornaria inteiramente inexistente, por falta de objecto, o contrato de seguro em questão.

29. É que, se por um lado, o âmbito do contrato (cláusula 2ª, n° 2 das condições especiais) é definido como "os actos que no desempenho das suas funções realize o pessoal do segurado", por outro lado a famigerada Nota Anexa exclui do âmbito do mesmo contrato todo o pessoal que executa as funções do e para o segurado.

30. Ou seja, teríamos um contrato cujo objecto visa cobrir as funções desempenhadas pelo pessoal do segurado e uma nota anexa que exclui da cobertura os actos praticados no exercício de funções pelo pessoal do segurado!

29. É o que se chama uma esquizofrenia contratual.

31. Por outras palavras, tal cláusula de exclusão teria como efeito que o seguro contratado cobrisse (em abstracto) o risco decorrente da actividade prestada pelos profissionais do segurado, excepto todo o que decorresse de actos causados a terceiros pelos respectivos profissionais.

32. Salvo o devido respeito, é o próprio texto do acórdão recorrido que aponta e sustenta a decisão de nulidade da cláusula (nota anexa) em apreço.

33. É que, como bem refere o acórdão recorrido, no tocante a cláusulas de exclusão, são nulas aquelas em que a cobertura fique aquém daquela com que o tomador do seguro podia de boa-fé contar.

34. No caso em apreço, não se trataria de ficar aquém. Tratar-se-ia de inexistir cobertura em face da cláusula abusivamente aposta pela ora Recorrida.

35. Cláusula que, uma vez mais, em face do art,. 236., n° 1 do Cód. Civil, deverá ser considerada nula.

36. Pois nenhum declaratário normal poderia admitir que o sentido do comportamento da ora Recorrida fosse o de que o seguro em questão não cobria, afinal, a actividade da ora Recorrente.

37. Nem tal respeitaria o princípio da boa-fé contratual que preside à interpretação dos negócios jurídicos.

38. Devendo, em consequência, tal cláusula ser julgada nula, com todas as consequências legais.”

Termina, pedindo a revogação do acórdão recorrido e a repristinação da decisão da 1ª instância.


A Recorrida CC, S.A.. contra-alegou, concluindo nos seguintes termos:

“1. O douto Acórdão proferido pelo Tribunal "a quo" não merece qualquer reparo.

2. O contrato de seguro celebrado entre a Recorrente e a Recorrida tem por objecto a garantia de responsabilidade civil extracontratual que, ao abrigo da lei civil, seja imputável ao Segurado enquanto na qualidade ou no exercício da actividade expressamente definida nas Condições Particulares, in casu, a actividade de reabilitação física, até ao limite de 100.000,00€ por sinistro e por ano.

3. Na nota anexa à apólice refere-se expressamente que em caso algum ficarão ao abrigo desta apólice as perdas ou danos provocados a terceiros decorrentes de Responsabilidade Civil Profissional de médicos, paramédicos, fisiatras, fisioterapeutas, enfermeiros ou similares.

4. A vontade das partes foi a de não transferir para a Recorrida a responsabilidade civil profissional eventualmente imputável aos médicos, paramédicos, fisiatras, fisioterapeutas, enfermeiros ou similares

5. Conforme decorre da factualidade provada, a GG exercia na Recorrente funções de massagista, enquanto técnica auxiliar de fisioterapia.

6. Quando a nota anexa à apólice se reporta à exclusão da responsabilidade profissional de fisioterapeutas e similares pretende abranger os técnicos auxiliares de fisioterapia.

7. Esse é o entendimento que um declaratário normal teria, conhecendo o objecto do contrato de seguro, quando confrontado com tal exclusão, visto que o referido contrato não tem como escopo garantir a responsabilidade civil profissional, mas apenas a responsabilidade civil extracontratual imputável à Recorrente.

8. O contrato de seguro celebrado entre a Recorrida e a Recorrente não pode deixar de ser interpretado no seu todo, percebendo-se qual foi a vontade das partes quando celebraram o contrato.

9. O facto de se verificar a concorrência da responsabilidade civil contratual com a extracontratual, não significa que tal responsabilidade incida sobre a mesma pessoa.

10. Seria absurdo admitir a solução preconizada pela Recorrente, na medida em que o contrato de seguro, excluindo expressamente a responsabilidade civil profissional, jamais poderia vir a garanti-la, à luz da teoria da consunção, sob a "capa" da responsabilidade civil extracontratual.

11. Ainda que se concluísse que a violação das leges artis, in casu, seria imputável à Recorrente, sempre essa responsabilidade estaria excluída das garantias do contrato de seguro que, como vimos, apenas abrange a responsabilidade civil extracontratual decorrente da exploração da actividade da Recorrente

12. Na Nota Anexa à Apólice encontra-se expressamente prevista a exclusão da responsabilidade civil profissional.

13. A medida da responsabilidade transferida é aquela que as partes convencionaram ao abrigo do princípio da liberdade contratual.

14. O contrato de seguro celebrado entre a Recorrente e a Recorrida não é vazio de conteúdo e as cláusulas de exclusão da responsabilidade não são contrárias à boa fé.

15. A nota anexa à apólice não consubstancia uma cláusula contratual geral, mas antes uma condição especial do contrato celebrado, pelo que a Recorrente podia e devia ter procedido à sua análise e, não concordando, procurado a sua alteração em conformidade, negociando o respectivo conteúdo, embora com eventuais reflexos no prémio a pagar.

16. A Recorrente nunca alegou a sua frustração pelo contrato de seguro celebrado com a Recorrida, sendo certo que à luz dos documentos constantes dos autos, não é possível afirmar que a recorrente tenha ficado defraudada com a invocada cláusula de exclusão.

17. A Recorrente teve a oportunidade de fazer valer os seus interesses negociando as cláusulas apresentadas com as quais não concordava (entre elas a cláusula de exclusão em apreço), mas nada fez nesse sentido.”

   Termina pugnando pela manutenção da decisão do acórdão recorrido.


     Cumpre decidir.


3. Vem provado o seguinte (mantêm-se a identificação e a redacção das instâncias):


1. A Autora nasceu a 09 de abril de 1925.

2. À data de 23/10/2014 a Autora padecia e padece de doenças crónicas, designadamente hipertensão arterial secundária, insuficiência renal crónica, insuficiência cardíaca, grau iv, Linfoma de Hodgkin aos 70 anos, glaucoma, insuficiência venosa com dermatite de estase nos membros inferiores, hipoacusia bilateral, artrite gotosa.

3. A Autora era e é ainda portadora de prótese bilateral da anca direita e esquerda desde 2013.

4. Com a finalidade de manutenção da sua mobilidade, a médica de família Dra. HH sugeriu à Autora sessões de fisioterapia e de reabilitação.

5. Em conformidade, a Autora escolheu as instalações e serviços da 1.ª Ré AA, Lda. para aí dar cumprimento à prescrição médica supra referida.

6. A 1.ª Ré é uma sociedade unipessoal por quotas cuja gerente é II e que explora uma clínica médica que se dedica a tratamentos de medicina física e reabilitação, possuindo licença de funcionamento n.º 3841 desde 2011 emitida pela Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, I.P..

7. Para dar seguimento à sugestão médica supra referida, a Autora marcou em 04/08/2013 uma consulta de Fisiatria nas instalações da 1.ª Ré, tendo sido avaliada por uma médica fisiatra da 1.ª Ré, que lhe prescreveu sessões de fisioterapia e de reabilitação traduzidas em mobilização passiva dos membros inferiores; massagem manual nos joelhos, ultrassons nos joelhos, fortalecimento dos membros inferiores 2 ou 3 vezes por semana.

8. Nessa altura, a Autora deslocou-se à clínica da Ré em cadeira de rodas.

9. Em 04/09/2013 a Autora dirigiu-se à clínica da 1.ª Ré, deslocando-se com duas pirâmides, tendo-lhe sido prescritos ultrassons na palma das mãos, mobilização passiva dos membros inferiores, massagem manual nos joelhos, fortalecimento dos membros inferiores duas vezes por semana.

10. Após um período de ausência retornou à clínica da 1.ª Ré em 20/5/2014, deslocando-se com duas canadianas, tendo-lhe sido prescrito ultrassonoterapia à palma das mãos, massagem manual aos joelhos, mobilização e fortalecimento dos membros inferiores duas vezes por semana.

11. Em 07/10/2014 a Autora voltou à clínica Ré, deslocando-se com duas canadianas e acompanhada por uma empregada sua, queixando-se, nessa altura, de dor ao sentar e deitar, parestesias nos dedos das mãos já não conseguindo escrever, dor intensa à mobilização de ambas as ancas.

12. Então, foram-lhe prescritos pela médica fisioterapeuta da Ré JJ 12 sessões de fisioterapia e de reabilitação traduzidas em onda curta nos joelhos, massagem manual nas mãos, ultrassons na palma das mãos, pressões alternativas (Jobst) nos membros inferiores, fortalecimento dos membros inferiores.

13. Os tratamentos decorriam duas vezes por semana às segundas e quintas-feiras, sempre com início às 14h00 e com a duração de cerca de uma hora.

14. A primeira parte do tratamento (cerca de 30 minutos) compreendia uma sessão de massagem manual nas mãos, ultrassons na palma das mãos e de onda curta nos joelhos e a segunda parte do tratamento (cerca de 30 minutos) a utilização de máquinas de manutenção onde efetuava vários exercícios físicos para mobilidade e fortalecimento dos membros inferiores.

15. A Autora pagava à 1.ª Ré nos dias dos tratamentos os honorários em numerário no valor de €35,80.

16. No dia 23 de outubro de 2014, quinta-feira, a Autora deslocou-se às instalações da 1.ª Ré para dar início a mais uma sessão de fisioterapia e de reabilitação mencionada em 12.

17. À data do acidente a Autora era parcialmente dependente de terceiros na alimentação, no vestir, na higiene pessoal, quer nas transferências de leito, quer no levantar-se, sentar-se e deitar-se, assumir posição de pé ou decúbito, devido às dores intensas que os movimentos necessários para as realizar desencadeavam.

18. Chegada à clínica da 1.ª Ré, a Autora deslocava-se com canadianas e acompanhamento de uma empregada sua.

19. Percorrendo com o auxílio de canadianas o percurso de cerca de 150 metros que vai desde o portão da clínica ao local dos tratamentos.

20. Iniciou a primeira fase do tratamento com massagens nas mãos pela massagista, técnica auxiliar de fisioterapia, GG, fazendo-o deitada numa marquesa, com 80/90 cm de altura.

21. Completado o tratamento de massagem, a Autora deveria dar início ao tratamento de máquina com ondas curtas, tendo a massagista da 1.ª Ré a ajudado a levantar-se e a sair da marquesa, colocando-se na posição de pé.

22. Para realizar o tratamento de máquina com ondas curtas, a Autora tinha necessidade de se deslocar para a respetiva zona da máquina de ondas curtas, que distava da marquesa cerca de 2,5 metros.

23. A respetiva deslocação deveria ser feita com canadianas estando a Autora devidamente acompanhada por auxiliar ou colaborador credenciado da 1.ª Ré.

24. Isto porque a Autora tem mobilidade reduzida e, fruto da sua idade, das próteses na anca e das dores que sofria, necessitava de ser acompanhada nessa deslocação.

25. Porém, nesse dia e por volta das 14h30, durante a sessão de fisioterapia, na fase de transição entre a parte da massagem e a parte da utilização das máquinas de ondas curtas, no decurso da deslocação mencionada em 22., que a Autora fazia sozinha e de pé, esta desequilibrou-se e caiu.

26. Vindo o seu corpo a embater com violência no chão.

27. A Autora foi de imediato socorrida pela massagista GG e pela fisioterapeuta KK.

28. Tanto a idade da Autora e consequente fragilidade física, como a prótese na anca, e as dores à mobilização constituíam fatores de risco de queda durante o tratamento, designadamente nos diversos exercícios a efetuar durante as sessões de fisioterapia e especialmente na deslocação entre tarefas (transição entre a massagem e a máquina de ondas curtas) e requeria um cuidado especial por forma a minimizar esse risco de queda.

29. A massagista da 1.ª Ré e a 1.ª Ré sabiam que a Autora era portadora de prótese bilateral na anca e sofria de dor intensa à mobilização de ambas as ancas.

30. Porém, a A. fazia a deslocação a pé e sem a ajuda necessária para se deslocar em segurança para a máquina de ondas curtas, por parte de algum técnico auxiliar de fisioterapia da 1.º R., ou da responsável massagista GG, que após ajudar a A. a colocar-se de pé, deixou de estar junto dela, afastando-se para fazer um outro serviço.

31. No interior da clínica da 1.ª Ré, no percurso mencionado em 22, o piso autonivelante é regular e à data dos factos encontrava-se em bom estado de conservação.

32. Como sua consequência direta e necessária da queda, a Autora sofreu as seguintes lesões no seu corpo:

a) - Hematoma periorbitário à esquerda;

b) - Fratura periprotética do fémur à esquerda;

c) - Dores por todo o corpo.

33. Lesões que motivaram a sua imediata condução ao HPP-Hospital de …, onde deu entrada durante a tarde do dia 23 de outubro de 2015.

34. No dia 24 de outubro de 2014 foi transferida para o “Serviço: Cirurgia Especialidades Cirúrgicas” do HPP-Hospital de …, onde, por sua vez, deu entrada às 17h33.

35. A Autora foi operada no dia 30 de outubro de 2014, operação que se prolongou desde as 10h5m às 12h05m com a seguinte descrição operatória:

“Via externa; limpeza de cimento endomedular e reposicionamento da haste; ajustamento com cable sistem; reforço eterno com placa de apoio trocantérico, com cabos e parafusos; revisão de hemóstase; redivack; encerramento por planos”.

36. Durante o período de internamento a Autora necessitou de ajuda total de terceiros nas atividades da vida diária quer de higiene pessoal, quer na alimentação, quer nas transferências do leito, quer no vestir.

37. A Autora teve alta clínica no dia 07 de novembro de 2014, embora a alta administrativa ocorresse apenas no dia 10 de novembro de 2014.

38. A alta médica dada em 10/11/2014 foi atribuída com indicação de realizar treino de marcha com andarilho (apoio parcial), aplicação de gelo 3x dia durante 15 minutos no membro operado, remoção de agrafos a 14/11/2014 e próxima reavaliação ortopédica a 19/12/2014. Sendo melhorada a sua condição de saúde em MFR.

39. Depois da alta a Autora não recolheu a casa.

40. Foi internada na “LL, Lda” (designada habitualmente por LL), sita na Rua …, n.º …, concelho de …, onde continuou a sua recuperação e onde ainda se encontrava na data da realização da audiência sem previsão de data para a sua saída.

41. As lesões que sofreu provocaram-lhe intensas e prolongadas dores físicas, tanto no momento do acidente como na intervenção cirúrgica como no decurso do período de recuperação.

42. Sendo que, além das dores propriamente ditas, as dificuldades que a Autora sentia em movimentar a perna esquerda em consequência das artroses e da prótese da anca, acentuaram-se com a fratura do fémur resultante da queda.

43. As limitações físicas traduzidas na diminuição da amplitude movimentos da articulação coxofemoral e do joelho resultantes do evento traumático mas também das artroses nas referidas articulações e prótese bilateral, da dor ao nível dos membros superiores, mais propriamente no ombro direito e no terceiro dedo da mão direita e da fraqueza muscular ao nível de ambos os membros superiores e mãos, interferem nas atividades de vida diária da Autora e levam a que não consiga realizar por si as mais simples tarefas diárias pessoais, como cuidar da sua higiene, vestir-se, levantar-se, sentar-se, alimentar-se, nas transferência do leito e alternância de decúbito.

44. Do relatório de avaliação multidisciplinar efetuado pelo LL em 05/12/2014 retira-se entre outras coisas o seguinte:

- “A doente foi admitida no dia 10/11/2014 na clínica LL, tendo sido constatado diminuição da amplitude movimentos da articulação coxofemoral e do joelho resultantes do evento traumático e recobro cirúrgico.

Era notória ainda dor e edema generalizado do membro inferior esquerdo.

- “No final da reabilitação efetuada na clínica, persistem as queixas álgicas do membro inferior esquerdo”.

- “[...] Foi possível constatar regressão do edema e melhoria na mobilidade do membro inferior esquerdo mas necessitando de ajuda para o fazer. A doente participou de forma gradual mais progressiva na transferência do leito para a cadeira”.

45. De fls. 1 do mesmo relatório assinada pela Direção/Coordenação da LL, de fls. 119 dos autos, datado de 10/12/2014 consta que era previsível mais um mês de intervenção, para tentar alcançar uma melhoria na autonomia e qualidade de vida da D. DD, dependendo da avaliação a efetuar na semana anterior ao términus deste período.

46. Do relatório de Enfermagem resulta - Doc. 7, fls. 4:

“[...]

- “Dependência em grau elevado em todos os Autocuidados, exceto no Autocuidado:

Alimentar-se, dependente em grau moderado;

- Cair (Risco): risco moderado;

- Dor: presente;

-úlcera de pressão (Risco): Risco alto:

[...]”

47. Consta da carta de enfermagem constante do doc. 7 de fls. 5 a 7 que a Autora a 8/12/2014 necessitava de ajuda parcial na alimentação e hidratação e dependente na higiene pessoal e no vestir-se. Não necessitando o uso de fralda, locomovendo-se em cadeira de rodas, sendo dependente nas transferências e na alternância de decúbitos.

48. Prossegue o relatório de Fisioterapia e Terapia Ocupacional de 04/12/2014:

- “A amplitude de movimento do coxofemoral e do joelho esquerdo estão diminuídas consequentes não só da fratura, mas também das artroses nas referidas articulações, que por conseguinte levam à dor sentida e manifestada pela utente.”- Doc. 7, fls. 8;

- “A utente apresenta também edema ao longo de toda a coxofemoral esquerda, assim como fraqueza muscular essencialmente dos músculos quadricípite e isquiotibiais [...].” -Doc. 7, fls. 8;

- “[...] à apalpação a utente manifesta sentir dor intensa em todo bordo inferior da rótula.” -Doc. 7, fls. 8,

Objetivos gerais:

1. Promover o fortalecimento muscular e amplitude de movimentos.

2. Diminuir a dor/edema da coxa femoral e joelho esquerdo.

3. Potenciar a participação nas transferências do leito para a cedeira e vice-versa”.

49. A Autora está internada na referida unidade de saúde sita em … (LL) em virtude de nessa cidade residir o seu único filho, permitindo assim um acompanhamento mais próximo do seu familiar.

50. Porém, esta situação obrigou a Autora a abandonar a sua residência habitual na …, concelho de …, onde viviam antes da queda.

51. A Autora ficou afetada, triste, ansiosa e deprimida com as dores e lesões decorrentes da queda.

52. No relatório de Terapia Ocupacional de 04/12/2014:

- “Apresenta dor ao nível dos membros superiores, mais propriamente no ombro direito e no terceiro dedo da mão direita. Verificou-se também fraqueza muscular ao nível de ambos os membros superiores e mãos, pelo que interfere nas atividades de vida diária da utente, bem como noutras áreas de ocupação, tal como nas atividades de lazer, por exemplo, fazer tricô e cuidar de flores; embora consiga realizá-las, revela muita dor na execução das mesmas. A utente refere as supracitadas como algumas das suas atividades significativas, que mais têm impacto no seu dia-a-dia, já que é uma pessoa que vive sozinha.

Objetivos gerais:

1. Promover a diminuição da dor no ombro e mão direita;

2. Aumentar a autonomia, promovendo o novo envolvimento nas suas atividades mais significativas da utente(…)

Constatam-se melhorias significativas no que respeita ao nível de dor, quer durante o dia quer durante a noite. Nesta área recomenda-se uma continuidade do tratamento para manutenção e preservação das competências”.

53. Consta do relatório da fisioterapeuta da LL de 04/12/2014 no que respeita às Atividades/Técnicas: Crioterapia: aplicação de gelo ao nível da coxa femoral joelho esquerdo; mobilização passiva, ativo assistida, ativo-resistida de membros inferiores. Fortalecimento dos membros inferiores essencialmente do membro inferior esquerdo. Massagem de drenagem e de alongamento de toda a musculatura/articulações afetadas, assim como relaxamento de toda a musculatura coxofemoral. Electro terapia de analgesia ao nível do joelho esquerdo assim como de estimulação ao nível do músculo quadricípite.

54. No que respeita aos resultados mais significativos alcançados com a intervenção no mesmo relatório e mesmas fls.: o aumento de amplitude de movimentos de flexão e abdução da coxa-femoral esquerda e flexão do joelho é notório, verifica-se uma maior tolerância à dor durante a mobilização passiva, assim como durante o movimento ativo. O edema apresentado inicialmente diminuiu. Durante a intervenção a D. DD tem evidenciado mais tolerância aos movimentos e aos alongamentos sem manifestar os sinais de dor que demonstrava sentir. Como consequência da diminuição da dor, aumento de amplitudes articulares, assim como da força muscular (quadricípite), a utente participa de forma mais eficaz nas transferências do leito para a cadeira e vice-versa. Recomenda-se uma continuidade para manutenção e também melhoria das competências”.

55. Devido ao mencionado em 17. à data do acidente a Autora era acompanhada e vigiada diariamente quer de dia quer de noite por empregada, uma para o período do dia e outra para o período da noite.

56. Na presente data a Autora atingiu o máximo possível de cura das lesões mencionadas em 32 persistindo, no entanto, dor durante a mobilização e menor amplitude de movimentos de flexão e abdução da coxa femoral esquerda, porquanto a cura total, devido à idade, às artroses e à prótese da anca, é remota, continuando a fazer fisioterapia para manutenção e preservação das competências, deslocando-se de cadeira de rodas e encontrando-se ainda internada na instituição referida referido em 40 que lhe ministra as sessões de fisioterapia.

57. Com o transporte entre o Hospital de … (HPP-Hospital de …) e a instituição onde atualmente se encontra internada, a Autora pagou aos “A.H. Bombeiros Voluntários de …” o valor de €413,00.

58. Com despesas em tratamento a A. pagou as seguintes faturas:

59. A MM, Lda. emitiu a fatura 11/11274 em 14-11-2014 no valor de €148,50 relativo à aquisição de cadeira de rodas Cad. Breezy 90, paga pela Autora.

60. A MM, Lda. emitiu ainda a fatura n.º 11/11372 em 21-11-2014 no valor de €40,00 paga pela A.

61. A NN, Lda. emitiu em nome da Autora que as pagou as faturas e recibos n.ºs 1…5/7…2, 1..5/8…5, 1..5/1…4; 1…5/1…4; 1…5/1…5, 1...5/1…8; 1…5/2…3, 1…5/3..4, 1…5/1…9; 1...5/2…7, 1…5/2…3; 1…5/1…7, 1…5/3…2, 1…5/3…7, 1...5/1…3, 1…5/3…3, 1…5/1…5, 1…5/3…3, 1…5/3…2; 1…5/4…5, 1…5/2…4, 1…5/4…9, 1…5/4…2, 1…5/2…4, 1…5/4…5, 1…5/5..8, 1…5/2…4, 1…5/5…5, 1…5/2…9, 1…5/5…5, 1…5/5…8, 1…5/3…2, 1...5/5…2, 1…5/3…4, 1…5/6…8, 1…5/6…5 1…5/3…0, 1…5/6…7, 1…5/3…6, 1…5/6…2, 1…5/7…9 e 1…5/3…4.

62. A empresa LL, Lda. onde a A. se encontra internada emitiu as seguintes faturas em nome da A. e pagas por esta:

63. FR 2…4/60 de 22-12-2014 que contém o seguinte descritivo: alojamento em cuidados continuados no valor de €2.400, fisioterapia: €1.200, desconto relativo ao protocolo com a casa do professor €340,00, o que perfaz um total de €3.240,00.

64. FR 2…5/2 de 28-01-2015 que contém o seguinte descritivo: alojamento em cuidados continuados no valor de €1.200, fisioterapia: €600, desconto relativo ao protocolo com a casa do professor €180,00, o que perfaz um total de €1.620,00.

65. FR 2…5/10 de 13-02-2015 que contém o seguinte descritivo: alojamento em cuidados continuados no valor de €1.200, fisioterapia: €600, desconto relativo ao protocolo com a casa do professor €180,00, o que perfaz um total de €1.620,00.

66. FR 2…5/17 de 01-04-2015 que contém o seguinte descritivo: alojamento em cuidados continuados no valor de €1.200, fisioterapia: €600, desconto relativo ao protocolo com a casa do professor €180,00, o que perfaz um total de €1.620,00.

67. FR 2…5/26 de 21-05-2015 que contém o seguinte descritivo: alojamento em cuidados continuados no valor de €1.200, fisioterapia: €600, desconto relativo ao protocolo com a casa do professor €180,00, o que perfaz um total de €1.620,00.

68. FR 2…5/32 de 12-06-2015 que contém o seguinte descritivo: alojamento em cuidados continuados no valor de €1.200, fisioterapia: €600, desconto relativo ao protocolo com a casa do professor €180,00, o que perfaz um total de €1.620,00.

69. FR 2…5/42 de 24-07-2015 que contém o seguinte descritivo: alojamento em cuidados continuados no valor de €1.200, fisioterapia: €600, desconto relativo ao protocolo com a casa do professor €180,00, o que perfaz um total de €1.620,00.

70. FR 2…5/66 de 14-08-2015 que contém o seguinte descritivo: alojamento em cuidados continuados no valor de €1.200, fisioterapia: €600, desconto relativo ao protocolo com a casa do professor €180,00, o que perfaz um total de €1.620,00.

71. FR 2…5/75 de 22-09-2015 que contém o seguinte descritivo: alojamento em cuidados continuados no valor de €1.200, fisioterapia: €600, desconto relativo ao protocolo com a casa do professor €180,00, o que perfaz um total de €1.620,00.

72. FR 2…5/90 de 19-10-2015 que contém o seguinte descritivo: alojamento em cuidados continuados no valor de €1.200, fisioterapia: €600, desconto relativo ao protocolo com a casa do professor €180,00, o que perfaz um total de €1.620,00.

73. No valor total de €17.820,00 até esta data, continuando a partir daí até ao presente internada nessa instituição despendendo a A. para o efeito a quantia mensal de €1.620,00.

74. Várias vezes instada para o efeito, a 2.ª Ré recusou-se a indemnizar a Autora declinando qualquer responsabilidade, conforme consta da missiva enviada ao Dr. EE (filho da Autora) - Considerando que “o caso em apreço consubstancia um lamentável acidente pessoal”.

75. Classificando o acidente como uma “queda após o tratamento de mobilização leve ministrado pela fisioterapeuta Dra. GG [...]”.

76. No exercício da sua atividade, a OO - Companhia de Seguros, S.A. celebrou com a AA, Ld.ª um contrato de seguro do Ramo Responsabilidade Civil Geral, titulado pela apólice n.º 20…42 válida e eficaz à data do acidente, pelo qual a 1.ª Ré transferiu para a 2.ª Ré a responsabilidade civil decorrente da sua atividade de unidade de medicina física e de reabilitação.

77. Em 24.01.2011, a OO - Companhia de Seguros, S.A.. foi incorporada, por fusão, na Companhia de Seguros BB, S.A., adquirindo esta última, todos os direitos e obrigações da extinta OO - Companhia de Seguros, S.A..

78. Posteriormente, no dia 05.06.2013, a Companhia de Seguros BB, S.A. alterou a sua denominação social para BB Seguros, S.A..

79. Por via da fusão supra referida, o contrato de seguro em causa nos autos foi renumerado, passando a ser titulado pela apólice n.º 50….42.

80. As condições particulares, gerais e especiais mantiveram-se, todavia, inalteradas [conforme documentos juntos à contestação da R. Companhia de Seguros sob os n.º 1, 2 e 3].

81. O referido contrato de seguro tem por objeto a garantia da responsabilidade civil extracontratual que, ao abrigo da lei civil, seja imputável ao Segurado enquanto na qualidade ou no exercício da atividade expressamente definida nas Condições Particulares, in casu, a atividade de reabilitação física, até ao limite de 100.000,00€ por sinistro e por ano.

82. Ficou ainda estabelecido que o Tomador do Seguro, em caso de sinistro, suportará uma franquia contratual relativa a danos materiais correspondente a 10% do valor da indemnização apurada, com um valor mínimo de €250,00.


Foram dados como não provados os seguintes factos:

a) Era desejo da Autora retornar a casa.

b) Desde que sofreu o acidente a Autora tem frequentemente pesadelos, dormindo com dificuldade ou passando noites em claro.

c) Acresce que, a Autora tem noção da gravidade das lesões que sofreu e das respetivas sequelas, condicionam o seu relacionamento e convívio com os seus amigos.

d) Já que se encontra longe deles e ainda que estivesse perto, estaria impossibilitada de conviver com eles já que se encontra internada, o que é fonte de grande frustração, desgosto e abatimento.

e) A gravidade das lesões sempre a Autora impedirá de realizar atividades com amigos e familiares.

f) As quantias constantes das faturas mencionadas em 60 e 61 tenham sido despendidas em pagamento de despesas com danos consequência da queda em causa nos autos.

g) A passagem, que não deslocação, da marquesa para a cadeira onde iria realizar tratamento de ultrassons, não carece de acompanhamento por parte dos colaboradores da R.

h) Mais, o processo de reabilitação motora em que a Autora se encontrava há pouco mais de um ano até o desaconselha.

i) Era até a própria Autora, sempre balizada pela opinião técnica, que pretendia reforçar a autonomia nas suas deslocações, procurando fazer sozinha tudo quanto lhe era possível e aconselhável.

j) Após colocar-se em pé, a Autora, como habitualmente, iniciou a marcha com o auxílio das suas canadianas.

k) Instada sobre o motivo da queda, a Autora referiu ter sentido falta de força na perna esquerda.

l) Em outubro de 2014, a Autora deambulava sozinha em piso regular.


4. Tendo em conta o disposto no nº 4, do art. 635º, do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões. Assim, o presente recurso tem como objecto as seguintes questões (indicadas por ordem de precedência):

- Apreciar da alegada nulidade do acórdão recorrido por contradição entre a fundamentação e a decisão;

- Saber se o objecto do contrato de seguro dos autos abrange ou não o acidente sofrido pela A. e os danos dele resultantes;

- Saber se a actividade exercida pela técnica auxiliar de fisioterapia da 1ª R., GG, se encontra ou não excluída da cobertura do seguro dos autos


5. Antes de proceder à apreciação das questões objecto de recurso, importa considerar o sentido em que as instâncias decidiram e os termos das respectivas fundamentações.

         A 1ª instância entendeu, em síntese, o seguinte:

- A factualidade provada insere-se tanto no domínio da responsabilidade civil contratual como no da responsabilidade civil extracontratual, ocorrendo assim uma situação de concurso de responsabilidade;

- Os pressupostos de uma e outra forma de responsabilidade são idênticos;

- No caso dos autos, tais pressupostos encontram-se preenchidos, sendo que, no que se refere ao pressuposto da culpa, vigora a presunção de culpa do art. 799º do Código Civil (por existir responsabilidade contratual), mas sendo certo também que, de qualquer forma, a negligência da 1ª R. e dos seus funcionários se encontra provada.


Assim sendo, deu como provados diversos tipos de danos, fixando o valor global da indemnização a atribuir à A. em € 16.029,00, condenando a 2ª R. (seguradora) a pagar a parcela de € 14.426,10 e a 1ª R. (segurada) a pagar a parcela de € 1,602,90, correspondente à franquia do seguro; uma e outra condenação acrescida de juros moratórios.


    O acórdão da Relação revogou a decisão da 1ª instância com a seguinte fundamentação:

- Reconhecendo que o caso dos autos configura uma situação de concurso de responsabilidade civil, contratual e extracontratual, faz extensas referências à doutrina e à jurisprudência, sem, contudo, optar claramente pelo regime de uma ou outra modalidade de responsabilidade;

- De seguida aprecia a questão da responsabilidade da 2ª R. (seguradora), concluindo que, uma vez que o contrato de seguro celebrado com a 1ª R. tem como objecto a “responsabilidade civil extracontratual, imputável ao segurado no exercício da exploração da sua actividade”, o sinistro dos autos se encontra dele excluído;

- Tal exclusão ocorre também pelo facto de, de acordo com a “Nota anexa à Apólice”, ter sido excluída da cobertura do seguro a “Responsabilidade Civil Profissional de médicos, paramédicos, fisiatras, fisioterapeutas, enfermeiros ou similares”, devendo entender-se que a massagista/técnica auxiliar de fisioterapia cuja conduta está em causa, se integra na categoria de “similares”;

- Considerou também que esta cláusula de exclusão não é nula, uma vez que, inserindo-se a mesma nas Condições Particulares do contrato de seguro e nada tendo sido alegado ou provado sobre as circunstâncias do processo negocial, não lhe é aplicável o regime legal das Cláusulas Contratuais Gerais.


Afastada a responsabilidade da 2ª R. e verificados os pressupostos da responsabilidade civil da 1ª R., condenou esta última a pagar ao herdeiro habilitado da A. a totalidade dos danos provados.


6. Relativamente à questão da alegada nulidade do acórdão recorrido por contradição entre a fundamentação e a decisão (art. 615º, nº 1, alínea c), primeira parte, do CPC), alega a Recorrente, em síntese, que “o Tribunal ‘a quo’ apresenta todos os argumentos a favor da teoria da concorrência entre a responsabilidade contratual e extracontratual, apresenta, concordando, com a doutrina e jurisprudência mais relevante sobre a matéria, transcreve partes da sentença de 1ª instância que o reafirmam e, a final, decide de forma totalmente oposta a tal fundamentação”.

         Vejamos.

Tal como se indicou no ponto 5 do presente acórdão, constata-se que a Relação entendeu que, no caso dos autos, ocorre uma situação de concurso de responsabilidade civil, contratual e extracontratual, convocando para tal inúmeras referências doutrinais e jurisprudenciais, de sentido nem sempre coincidente. Sem afirmar claramente qual o regime a seguir na hipótese de concurso de responsabilidade, o acórdão recorrido veio a concluir pelo afastamento da responsabilidade da 2ª R. (seguradora), em virtude de o objecto do seguro respeitar à “responsabilidade civil extracontratual, imputável ao segurado [a 1ª R.] no exercício da exploração da sua actividade”, decidindo, a final, absolver a 2ª R. dos pedidos.

Considera-se que, não obstante se detectarem algumas incoerências na fundamentação do acórdão, não se identifica propriamente uma contradição entre os fundamentos e a decisão (nos termos e para os efeitos do art. 615º, nº 1, alínea c), do CPC) que comprometa a compreensão da decisão e das razões que a sustentam.

Afigura-se que aquelas incoerências poderão antes integrar um eventual erro de julgamento, o qual foi (também) invocado pela Recorrente (cfr. aquela que indicamos como sendo a segunda questão objecto do recurso) e como tal será conhecido de seguida.

Conclui-se, assim, pela inexistência da alegada nulidade.


7. Questão central do presente recurso é assim saber se o objecto do contrato de seguro dos autos abrange ou não o acidente sofrido pela A. e os danos dele resultantes.

  Da factualidade dada como provada resulta que a A., tendo contratado com a clínica da 1ª R. a realização de tratamentos de reabilitação física, no decurso de uma das sessões deu uma queda ao transitar de um local de tratamento para outro, dentro das instalações da clínica, tendo sofrido lesões físicas com diversas consequências danosas. Deste modo, não oferece dúvidas que, tal como entenderam as instâncias, nos encontramos perante uma situação que se enquadra tanto no âmbito da responsabilidade civil contratual (por ter ocorrido um cumprimento defeituoso do contrato de prestação de serviços celebrado entre a A. e a 1ª R.), como no âmbito da responsabilidade civil extracontratual (por ter ocorrido a violação de um direito absoluto, o direito à integridade física da A.). Confirma-se assim (o que, aliás, não foi posto em causa pelas partes), verificar-se uma situação de concurso de fundamentos para a mesma pretensão indemnizatória da A.

   Partindo desta conclusão, a 1ª instância apreciou o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, socorrendo-se essencialmente do regime da responsabilidade contratual. Sem se debruçar sobre o clausulado do contrato de seguro, deu como assente que o sinistro dos autos se encontra coberto pela respectiva apólice, condenando a 2ª R. (seguradora) a ressarcir a A., salvo quanto ao montante da franquia, valor pelo qual condenou a 1ª R. (segurada).

  Diversamente entendeu a Relação que, estando o objecto do contrato de seguro dos autos definido (nos termos conjugados do artigo 2º das Condições Gerais e da cláusula 1ª das Condições Especiais) em função da “responsabilidade civil extracontratual, imputável ao segurado [a 1ª R.] no exercício da exploração da sua actividade”, o acidente sofrido pela A. não se encontra coberto pelo referido seguro.

    Contra esta interpretação do âmbito do objecto contratual se insurge a Recorrente.

         Vejamos.

Entende-se que a pergunta decisiva para a resolução da questão subjacente é a seguinte: existindo, quanto ao mesmo evento lesivo, concurso de responsabilidade civil, contratual e extracontratual, deve considerar-se tal evento coberto por contrato de seguro que tem como objecto a responsabilidade civil extracontratual da entidade responsável.

Ora, de acordo com o princípio normativo, válido para a interpretação contratual, segundo o qual a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal colocado na situação do declaratário real lhe atribuiria (art. 236º, nº 1, do Código Civil), a resposta não pode deixar de ser afirmativa. Ao delimitar-se o objecto do contrato de seguro em função da “responsabilidade civil extracontratual, imputável ao segurado no exercício da exploração da sua actividade” (que consiste na realização de tratamentos de reabilitação física), é indubitável que, em primeira linha, se pretende abranger o risco de lesões físicas de que os utentes da clínica possam ser vítimas, que corresponde afinal ao risco de afectação de direitos absolutos tutelados pelo princípio geral da responsabilidade delitual, consagrado no art. 483º, nº 1, do CC. Que, simultaneamente, tais ofensas à integridade física dos pacientes da clínica possam ser também qualificadas como formas de cumprimento defeituoso do contrato de prestação de serviços celebrado entre cada um dos pacientes e a 1ª R., em nada altera o juízo anterior.

Por outras palavras, verificando-se uma situação geradora de responsabilidade civil extracontratual da 1ª R. no decurso da exploração da clínica de reabilitação de que é detentora, encontra-se tal situação abrangida pelo contrato de seguro dos autos, independentemente de que a pretensão indemnizatória do lesado possa ser fundada, em alternativa, em responsabilidade contratual.

    Na verdade, aquilo que o objecto do contrato de seguro dos autos não abrange são as situações subsumíveis exclusivamente no domínio da responsabilidade contratual como, por exemplo, danos causados por dívidas não saldadas a fornecedores, a trabalhadores ou a clientes.

     A interpretação aqui defendida, segundo a qual a situação dos autos, gerando responsabilidade civil extracontratual, aferida pelo regime legal que lhe é próprio (como veremos infra), se encontra abrangida pelo objecto do contrato de seguro celebrado entre a 1ª e a 2ª RR., não apenas corresponde ao teor literal da cláusula contratual como é a única interpretação que evita o “esvaziamento” do objecto do referido contrato. Com efeito, se a “responsabilidade civil extracontratual, imputável ao segurado no exercício da exploração da sua actividade” não incluísse as situações de danos causados por lesões físicas sofridas pelos pacientes no decurso da realização dos tratamentos, teríamos de nos interrogar sobre qual seria afinal o âmbito do contrato. Será que abrangeria apenas a responsabilidade civil da 1ª R. perante visitantes da clínica ou acompanhantes dos pacientes? Mas, em tais hipóteses, até que ponto seria possível considerar que aquelas categorias de lesados se inserem na exploração da actividade de reabilitação exercida pela 1ª R.?

    Que a 2ª R., aqui Recorrida, está ciente de que – ao pretender fazer prevalecer a interpretação restritiva do objecto do contrato (no que respeita à responsabilidade pela conduta de quem nela presta serviço), adoptada pelo acórdão recorrido – a cobertura do seguro ficará reduzida a quase nada, torna-se patente ao declarar, em sede de contra-alegações, que “o contrato de seguro celebrado entre a Recorrida e a Recorrente tinha como cobertura a responsabilidade civil [da] exploração, pelo que a Recorrida seria responsável na eventualidade da queda [da A.] ter ocorrido pela quebra da marquesa, pelo facto do piso se encontrar molhado ou em deficiente estado de conservação ou na eventualidade desta [a A.] ter tropeçado num objecto que se encontrava em local de passagem, entre outras inúmeras possibilidades.”

    O que mais surpreende na leitura deste elenco de eventos lesivos que, segundo a Recorrida, estariam abrangidos pelo objecto do contrato de seguro dos autos, é constatar que, no plano da natureza jurídica, nada os distingue do evento lesivo dos autos. Aqui a A. sofreu uma queda enquanto transitava, sem o auxílio necessário, de um tratamento para outro. Naqueles outros exemplos, elencados pela Recorrida seguradora, a queda do paciente ou pacientes teria outras causas que, todas elas, poderiam ser igualmente imputáveis à conduta negligente, activa ou omissa, dos funcionários da clínica. Se acaso a queda da A. tivesse ocorrido por uma dessas razões (por exemplo, por a A. ter tropeçado num objecto deixado num local de passagem), estaríamos igualmente perante uma situação de concurso de responsabilidade civil, contratual e extracontratual, e a 2ª R. viria, com elevada probabilidade, invocar a não inserção do evento lesivo no âmbito do contrato de seguro.

   Pelo exposto, é de concluir que o acidente dos autos, enquanto gerador de responsabilidade civil extracontratual, imputável à segurada (a aqui 1ª R.) no decurso da exploração da sua actividade de prestação de serviços de reabilitação física, se insere no objecto do contrato de seguro celebrado entre aquela e a 2ª R.


Aqui chegados, esclareça-se que esta conclusão não permite, sem mais, dar como procedente a pretensão da Recorrente no sentido da responsabilização da 2ª R. Por um lado, por faltar reapreciar a questão do âmbito da cláusula de exclusão da Nota Anexa à Apólice, o que faremos em seguida. Por outro lado – e esta ressalva é essencial para a cabal compreensão de tudo o que foi sendo afirmado sobre o objecto do contrato de seguro – porque, para responsabilizar a 2ª R. pela pretensão indemnizatória da A. fundada em responsabilidade civil extracontratual da 1ª R., é necessário confirmar a verificação dos respectivos pressupostos em função do regime legal desta modalidade de responsabilidade (e não do regime da responsabilidade contratual como foi considerado na sentença condenatória).


8. Passemos a conhecer da questão de saber se a actividade exercida pela técnica auxiliar de fisioterapia da 1ª R., GG, se encontra ou não excluída da cobertura do seguro.

   Estão em causa as seguintes cláusulas do contrato de seguro celebrado entre a 1ª e a 2ª RR.:


Apólice

Condições particulares

Atividade: Gabinete de Reabilitação Física.

Cobertura: Responsabilidade civil exploração, nos termos das condições gerais da apólice e da condição especial anexa.


Nota anexa à Apólice nº 20…42.

Exclusões:

Em caso algum ficarão ao abrigo desta apólice as perdas ou danos provocados a terceiros decorrentes de:

1. Responsabilidade Civil Profissional de médicos, paramédicos, fisiatras, fisioterapeutas, enfermeiros ou similares.”


O acórdão recorrido interpretou a cláusula de exclusão da Nota anexa à Apólice no sentido de que a técnica auxiliar de fisioterapia, GG, cuja conduta omissa deu causa à queda da A., se insere na categoria de similares. Em consequência, também por este fundamento, decidiu não ser a 2ª R. obrigada a indemnizar os danos sofridos pela A., mas sim a 1ª R., aqui Recorrente.

Contra esta interpretação se insurge esta última, concluindo essencialmente o seguinte: a “Nota anexa à apólice (de exclusão de responsabilidade) é nula por violar de forma grosseira os princípios da interpretação dos negócios jurídicos”; “Tal cláusula, a admitir-se como válida, tornaria inteiramente inexistente, por falta de objecto, o contrato de seguro em questão”; “É que, se por um lado, o âmbito do contrato (cláusula 2ª, nº 2 das condições especiais) é definido como “os actos que no desempenho das suas funções realize o pessoal do segurado”, por outro lado a famigerada Nota Anexa exclui do âmbito do mesmo contrato todo o pessoal que executa as funções do e para o segurado.”

         Vejamos.

   Invoca a Recorrente a nulidade da cláusula de exclusão. Tal como entendeu o acórdão recorrido, inserindo-se a cláusula, não nas Condições Gerais ou nas Condições Especiais do contrato, mas numa Nota anexa à Apólice, da qual (apólice) constam as Condições Particulares, específicas para a segurada, a aqui 1ª R., e nada mais tendo sido alegado ou provado quanto à negociação e formação do contrato, não se pode concluir encontrar-se tal cláusula de exclusão abrangida pelo regime legal das Cláusulas Contratuais Gerais. Assim, e não tendo sido invocada qualquer outra causa de invalidade da cláusula de exclusão, não se afigura que se possa acolher a pretensão da Recorrente no sentido do seu afastamento.

   O que não dispensa que se proceda à tarefa interpretativa da referida cláusula de exclusão, no contexto global do clausulado do contrato de seguro.

Para o efeito, com razão invoca a Recorrente o teor da Cláusula 2ª, nº 2, das Condições Especiais (doc. nº 2, junto com a contestação da 2ª R. – cfr. fls. 233) na qual se prevê o seguinte:


“Para além do disposto nas Condições Gerais o presente contrato cobre a responsabilidade civil em que incorre o Segurado:

(…)

2. Responsabilidade por actos ou omissões de outros

Pelos actos que, no desempenho das suas funções, realize o pessoal do Segurado ou quem actue para e por conta dele, ainda que sem relação de dependência laboral, quer no interior das instalações quer em qualquer lugar onde se encontrem a trabalhar.”


     Perante a amplitude desta cláusula das Condições Especiais, não deixa de surpreender a inserção, na Nota anexa à Apólice, de uma cláusula de exclusão quanto à “Responsabilidade Civil Profissional de médicos, paramédicos, fisiatras, fisioterapeutas, enfermeiros ou similares.”

    Contudo, não podendo, como se concluiu supra, pôr-se em causa a validade desta cláusula de exclusão, impõe-se – de acordo com os critérios normativos da interpretação da declaração negocial dos arts. 236º e segs. do CC – proceder a uma interpretação de tal cláusula que, também aqui, e como alega a Recorrente, não esvazie por inteiro a previsão da Cláusula 2ª, nº 2, das Condições Especiais, segundo a qual o objecto do contrato abrange a responsabilidade por actos ou omissões do “pessoal do Segurado ou quem actue para e por conta dele ainda que sem relação de dependência laboral”.  

   Com efeito, se do âmbito de cobertura do seguro se excluírem as condutas de “médicos, paramédicos, fisiatras, fisioterapeutas, enfermeiros” e se, como fez o acórdão recorrido e advoga a Recorrida, se equipararem (em função da expressão “similares”) todos os funcionários/profissionais que exerçam funções de auxiliares daquelas outras categorias (como seria o caso da auxiliar de fisioterapia, GG), teríamos de nos interrogar sobre que hipóteses de responsabilidade da clínica por conduta de outrem estariam afinal cobertas pelo seguro. Hipóteses de responsabilidade pela conduta de funcionários administrativos da clínica? Mas até que ponto é plausível que a conduta de tais funcionários possa gerar responsabilidade civil extracontratual da 1ª R. na exploração da sua actividade de reabilitação física?

Um esforço interpretativo que, dando um sentido útil à cláusula de exclusão da Nota anexa à Apólice, não permita, porém, desvirtuar de tal modo o objecto do contrato de seguro, que poderia chegar a descaracterizar-se o próprio tipo contratual (de que o risco é elemento essencial), implica que – num caso de dúvida qualificativa como o presente acerca da natureza da função de uma auxiliar de fisioterapia – se opte por uma solução restritiva, isto é, pela não equiparação de tal categoria profissional às elencadas na dita cláusula de exclusão.

Em sentido equivalente se pronunciou este Supremo Tribunal de Justiça, por exemplo, no acórdão de 03/05/2016 (proc. n.º 613/08.2TBSSB.E1.S1), consultável em www.dgsi.pt, advogando que na interpretação de um contrato de seguro que cobria os riscos de danos causados por animais perigosos ou potencialmente perigosos, não é admissível que se interprete uma cláusula de exclusão em termos tais que se ponha “em causa o próprio risco que é essencial ao contrato de seguro”.

   Conclui-se, assim, que a cobertura do seguro dos autos abrange a conduta da auxiliar de fisioterapia, GG.


9. Como se enunciou supra, resolvidas as questões anteriores no sentido de que o seguro dos autos é apto a cobrir o sinistro que vitimou a A. e os danos dele resultantes, falta ainda confirmar a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil em função do regime legal próprio da responsabilidade extracontratual (que, como se sabe, apresenta algumas diferenças com o regime legal da responsabilidade contratual convocado pela sentença condenatória).

        

Relevam os seguintes factos provados:

20. [A A.] Iniciou a primeira fase do tratamento com massagens nas mãos pela massagista, técnica auxiliar de fisioterapia, GG, fazendo-o deitada numa marquesa, com 80/90 cm de altura.

21. Completado o tratamento de massagem, a Autora deveria dar início ao tratamento de máquina com ondas curtas, tendo a massagista da 1.ª Ré a ajudado a levantar-se e a sair da marquesa, colocando-se na posição de pé.

22. Para realizar o tratamento de máquina com ondas curtas, a Autora tinha necessidade de se deslocar para a respetiva zona da máquina de ondas curtas, que distava da marquesa cerca de 2,5 metros.

23. A respetiva deslocação deveria ser feita com canadianas estando a Autora devidamente acompanhada por auxiliar ou colaborador credenciado da 1.ª Ré.

24. Isto porque a Autora tem mobilidade reduzida e, fruto da sua idade, das próteses na anca e das dores que sofria, necessitava de ser acompanhada nessa deslocação.

25. Porém, nesse dia e por volta das 14h30, durante a sessão de fisioterapia, na fase de transição entre a parte da massagem e a parte da utilização das máquinas de ondas curtas, no decurso da deslocação mencionada em 22., que a Autora fazia sozinha e de pé, esta desequilibrou-se e caiu.

26. Vindo o seu corpo a embater com violência no chão.

27. A Autora foi de imediato socorrida pela massagista GG e pela fisioterapeuta KK.

28. Tanto a idade da Autora e consequente fragilidade física, como a prótese na anca, e as dores à mobilização constituíam fatores de risco de queda durante o tratamento, designadamente nos diversos exercícios a efetuar durante as sessões de fisioterapia e especialmente na deslocação entre tarefas (transição entre a massagem e a máquina de ondas curtas) e requeria um cuidado especial por forma a minimizar esse risco de queda.

29. A massagista da 1.ª Ré e a 1.ª Ré sabiam que a Autora era portadora de prótese bilateral na anca e sofria de dor intensa à mobilização de ambas as ancas.

30. Porém, a A. fazia a deslocação a pé e sem a ajuda necessária para se deslocar em segurança para a máquina de ondas curtas, por parte de algum técnico auxiliar de fisioterapia da 1.º R., ou da responsável massagista GG, que após ajudar a A. a colocar-se de pé, deixou de estar junto dela, afastando-se para fazer um outro serviço.


   Da factualidade provada resulta claramente provada a conduta ilícita e culposa da funcionária da 1ª R., assim como a prova dos danos e do nexo causal entre a conduta e os danos. Assim, nos termos conjugados dos arts. 483º, nº 1, 486º, 487º e 563º, todos do Código Civil, encontram-se verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual da funcionária da 1ª R.

Encontrando-se a mesma funcionária em relação de subordinação para com a 1ª R. (independentemente da natureza do vínculo contratual entre ambas), sendo tal funcionária pessoalmente responsabilizável, e tendo o evento lesivo ocorrido no exercício das funções, estão reunidos os pressupostos dos nºs 1 e 2 do art. 500º do CC, de que depende – no domínio da responsabilidade extracontratual – a responsabilização da 1ª R., enquanto comitente, pela conduta de outrem.

    Como corolário, sendo a 1ª R. responsável pelos danos sofridos pela A. e estando esta responsabilidade coberta pelo seguro dos autos (deduzido do valor da franquia), considera-se correcta, ainda que com fundamentação não inteiramente coincidente, a decisão da sentença.

        

10. Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o acórdão recorrido e repristinando-se – com fundamentação não inteiramente coincidente – a decisão da sentença.


Custas na acção e nos recursos pelas partes, na proporção do decaimento.


Lisboa, 31 de Janeiro de 2019


Maria da Graça Trigo (Relator)

Maria Rosa Tching

Rosa Maria Ribeiro Coelho