Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
237/16.0T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
FUNÇÃO JURISDICIONAL
ERRO
RECURSO DE REVISÃO
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS.
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / RESPONSABILIDADE DAS ENTIDADES PÚBLICAS.
Doutrina:
- Ana Celeste Carvalho, Responsabilidade civil por erro judiciário, Cadernos do CEJ, Julho 2014;
- Cardoso da Costa, Sobre o Novo Regime da Responsabilidade do Estado por Actos da Função Judicial, RLJ, 3954º/162;
- Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Coimbra Editora, p. 197 e ss. e 277;
- Castanheira Neves, Escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, Da sua Metodologia e Outros, V. 2.º, Coimbra Editora, 1995, p. 191 ; Rev. Ministério Público 19º/40;
- Fátima Galante, Erro judiciário: a responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, p. 19 a 21, 26, 37 e 44 e ss.;
- Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Almedina, 7.ª ed., 2013, p. 674;
- Guilherme da Fonseca e Miguel Bettencourt da Câmara, revista Julgar nº 11, p. 19;
- Guilherme da Fonseca, A Responsabilidade Civil por Danos Decorrentes do Exercício da Função Jurisdicional (Em Especial, o Erro Judiciário), Revista Julgar. N.º 5/2008, p. 55;
- João Caupers, A Responsabilidade do Estado e Outros Entes Públicos, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa;
- Luís Fábrica, Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2013, p. 357 e ss.;
- Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 191.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º E SS..
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 22.º.
REGIME DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO (RRCEE), APROVADO PELA LEI N.º 67/2007, DE 31-12: - ARTIGO 13.º
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 08-07-1997, IN CJSTJ, 2º-153;
- DE 31-03-2004, PROCESSO N.º 51/04;
- DE 20-10-2005, PROCESSO N.º 2490/05;
- DE 08-09-2009, PROCESSO N.º 368/09.3YFLSB;
- DE 15-12-2011, PROCESSO N.º 364/08.0TCGMR.G1.S1;
- DE 28-02-2012, PROCESSO N.º 825/06.3TVLSB.L1.S1;
- DE 23-10-2014, PROCESSO N.º 1668/12.0TVLSB.L1.S1;
- DE 24-02-2015, PROCESSO N.º 2210/12.9TVLSB.L1.S1;
- PROCESSO N.º 97A774, SUMÁRIO IN WWW.DGSI.PT.
Jurisprudência Internacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (TJUE):

- DE 09-09-2015, FERREIRA DA SILVA E BRITO.
Sumário :

I - O regime próprio da responsabilidade civil extracontratual do Estado pelos danos causados por erro judiciário, consagrada no art. 13.° da Lei 67/2007 de 31-12 (RRCEE), é justificado pela especificidade da função jurisdicional, em relação às demais incumbências do Estado, traduzida na respectiva natureza e na independência dos juízes, mas também na forma como o respectivo exercício está estruturado, em que se realça o sistema de recursos.
II - Tais natureza e estrutura, embora não possam vedar a possibilidade de responsabilização efectiva, tanto do Estado como dos juízes – estes, por via de acção de regresso –, exigem a concepção do aludido regime como estando balizado pela necessidade de contenção do direito à indemnização e da imposição de limites.
III - Nessa senda, está excluída a responsabilidade do Estado pelo erro banal ou comum, por actos de simples interpretação do direito e/ou de apreciação e valoração dos factos, com uma intenção prática de uma racionalidade prático-normativa, porque inseridos na essência da especificidade da função jurisdicional, que, por isso, deve ser salvaguardada, não se podendo confundir uma decisão manifestamente injustificada (por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto) com uma decisão que, eventualmente, padeça de um menor acerto na ponderação dos elementos fácticos e probatórios em que se estribou a convicção para ela formada, nomeadamente à luz da actuação do limite normativo constituído pelo princípio penal in dúbio pro reo.
IV - Por outro lado, a responsabilidade do Estado, assentando numa especial e restritiva qualificação do erro, nos termos daquele art. 13.°, ou seja na comprovação da manifesta ilegalidade ou injustificação (por erro grosseiro), tem também subjacente a necessidade de demonstração, no mínimo, da culpa grave do juiz, não bastando a culpa leve.
V - Em princípio, o reconhecimento do fundamento do direito à reparação da responsabilidade do Estado pelos danos causados por erro judiciário – ou seja, de que a decisão de primeira instância seria totalmente estranha à prova produzida e em apreço, fruto de erro grosseiro de julgamento, manifesto e indesculpável – deve ser patenteado pelos termos da própria decisão revogatória proferida no processo judicial em que, alegadamente, foi cometido o erro.
VI - Contudo, se a mera revogação da decisão, em sede da sua reapreciação pela via do recurso pelo tribunal hierarquicamente superior a que o julgamento da questão foi deferido (sobrepondo-se ao de primeira instância) significa, apenas, que foram obtidas duas diferentes apreciações – ambas formadas com base nos elementos factuais e probatórios apresentados no processo, com sujeição exclusiva aos princípios que regem a prova e da independência dos juízes – , também o julgamento rescindente emitido pelo tribunal de revisão (na sequência de recurso extraordinário) – que nem sequer envolve a reponderação da primitiva decisão, designadamente, com a reapreciação da prova que para esta concorrera, mas, sim, uma nova instrução e um novo julgamento incidentes sobre diferentes elementos fácticos e probatórios, em parte, novos e, noutra, oferecidos em distintas circunstâncias – não encerra, como tal, necessariamente, a formulação de qualquer juízo sobre a eventual existência de erro, muito menos crasso, na decisão anulada, quanto à apreciação da prova produzida, no concreto contexto da instrução então efectuada e dos elementos que a constituíram.
VII - No caso, não se constata que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso nunca teria julgado pela forma como foi obtida a decisão judicial anulada, ou seja, que esta é claramente irrazoável, inadmissível, arbitrária, assente em conclusões absurdas, fruto de indiscutível erro judiciário, manifesto e revelador de falta de elementar zelo e de uma culpa grave dos Julgadores.

Decisão Texto Integral:



AA intentou acção contra o Estado Português,  pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 60.000, para reparação dos danos não patrimoniais alegadamente decorrentes de erro grosseiro no exercício da função jurisdicional, em concreto, na decisão que o condenou como autor de um crime de roubo.
 O R contestou, invocando que não ocorreu a prévia revogação da decisão condenatória por um tribunal superior e que o A, na sequência do decidido em recurso de revisão em que foram ouvidas duas testemunhas não arroladas no primeiro julgamento, veio a ser absolvido, mas com fundamento no princípio in dubio pro reo e não por se ter provado que não cometera o crime.
Foi proferido despacho saneador sentença, julgando improcedente a acção e, em consequência, absolvendo o R do pedido.
A Relação julgou improcedente a apelação interposta pelo A, confirmando, sem voto de vencido, a decisão proferida em 1ª instância.

O A interpôs revista excepcional desse acórdão, admitida pela competente Formação, tendo delimitado o objecto do recurso com conclusões em que suscita a questão de saber se invocara na acção fundamentos idóneos e suficientes para determinar o prosseguimento dos autos a fim de apurar o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do R Estado, assente no erro grosseiro cometido na decisão que o condenou, na vertente da errada apreciação da prova produzida.
Nas suas contra-alegações, o R, para além de adversar os argumentos aduzidos no recurso, suscitou a questão de saber se o direito de indemnização exercido pelo A teria de ser fundado na prévia revogação pela jurisdição competente da decisão alegadamente danosa.
*
Cumpre, pois, apreciar e decidir as questões enunciadas, para o que releva a matéria de facto considerada assente pela Relação.
*
A questão suscitada pelo recorrente impõe uma breve averiguação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado, assente no erro judiciário (de facto), em que assenta a pretensão a que o mesmo se arroga na acção.
A responsabilidade patrimonial do Estado por erro judiciário tem como fundamento constitucional o princípio que decorre directamente do disposto no artigo 22º da CRP e que veio a ser plasmado na lei ordinária, através dos arts. 12º e 13º da Lei 67/2007 de 31/12 (RRCEE), que estatuem:
 Art. 12º (Regime geral)
«Salvo o disposto nos artigos seguintes, é aplicável aos danos ilicitamente causados pela administração da justiça, …o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa».
Art. 13º (Responsabilidade por erro judiciário)
«1 - Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.
2 - O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.».
Por sua vez, o aí aludido regime especial aplicável, por força do comando constitucional contido no art. 29º nº 6 da CRP ([1]), aos casos de sentença penal condenatória injusta vem previsto nos arts. 449º e seguintes do CPP e dele se extrai para o que aqui releva:
- quando se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação é admissível a revisão de sentença transitada em julgado, embora não com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada (art. 449º).
- se a decisão revista tiver sido condenatória e o tribunal de revisão absolver o arguido, aquela decisão é anulada e o arguido restituído à situação jurídica anterior à condenação, atribuindo a sentença ao arguido indemnização pelos danos sofridos e mandando restituir-lhe as quantias relativas a custas e multas que tiver suportado (arts. 461º e 462º).
Assim se regulamentam as condições especiais de utilização do recurso de revisão, enquanto meio extraordinário de reapreciação de uma decisão transitada em julgado, a fim de se evitar uma sentença injusta e dar primazia à justiça material em detrimento de uma justiça formal, para o que se exige que sejam apresentados factos ou meios de prova novos, i. é, não ponderados no processo que conduziu à condenação e idóneos a gerar uma grave dúvida, não apenas uma qualquer dúvida, sobre a justiça dessa condenação.
Já a consagração da responsabilidade civil extracontratual do Estado pelos danos causados por erro judiciário é a novidade introduzida pelo regime criado pelo citado RRCEE, assim assumindo como certa a ideia, hoje consensual, de que o Estado deve ressarcir os danos decorrentes de acto ilícito e culposo cometido no exercício da função jurisdicional por um dos seus servidores, tal como sucede com os provocados no âmbito das demais funções estaduais ([2]).
Todavia, os pressupostos da responsabilidade do Estado pelos danos causados por erro judiciário são bem diversos e mais exigentes do que os fundamentos para a revisão de sentença penal condenatória injusta e decorrente reparação ao abrigo do aludido regime especial plasmado nos arts. 449º e seguintes do CPP, que se quedam, numa situação como a em apreço, pelas graves dúvidas sobre a justiça da condenação, suscitadas por novos factos ou meios de prova.
Com efeito, a «particular compreensão constitucional da função jurisdicional do Estado, aliada à consagração do princípio da irresponsabilidade dos juízes – “os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvo as excepções consignadas na lei” (artigo 218.º n.º 2 da Constituição) –, apontavam para a necessidade de criar uma legislação cuidada» ([3]) sobre a responsabilidade do Estado por erro judiciário, no quadro de um regime próprio, como logo patenteia o teor do dispositivo acima citado.
Esse regime específico próprio é justificado pela especificidade da função jurisdicional, face às diversas incumbências do Estado, traduzida na respectiva natureza e na independência dos juízes, mas também na forma como o respectivo exercício está estruturado, em que sobressaem o sistema de recursos e da hierarquia das instâncias, que contribui para o sucessivo aperfeiçoamento das decisões, reduzindo substancialmente a possibilidade de uma sentença injusta.
Ora, tais natureza e estrutura, embora não possam vedar a possibilidade de responsabilização efectiva, tanto do Estado como dos juízes – estes, por via de acção de regresso (cf. art. 14º do RRCEE) –, exigem a concepção do aludido regime como estando balizado pela «necessidade de contenção do direito à indemnização ou da imposição de limites que conduzam a esse resultado, por não ser de impor um maior sacrifício à generalidade dos cidadãos, traduzido em suportar financeiramente os encargos com as indemnizações» ([4]).
Realmente, como defende Gomes Canotilho ([5]), «sob pena de se paralisar o funcionamento da justiça e perturbar a independência dos juízes, impõe-se aqui um regime particularmente cauteloso, afastando, desde logo, qualquer acto de responsabilidade por actos de interpretação das normas de direito e pela valoração dos factos e da prova» (sublinhado nosso). E daí que, acrescenta o mesmo Autor ([6]), «salvo os casos de dolo ou culpa grave, a ‘culpa do juiz’ tem de se integrar na ideia de ‘funcionamento defeituoso do serviço de justiça’», também sob pena de se pôr «em causa as dimensões fundamentais do ius dicere (autonomia e independência)» ([7]).

Como dissemos, a pretensão invocada na acção convoca os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, regulada nos termos gerais dos arts. 483º e ss do CC ([8]), conformativos de um regime que, como se sabe, impõe ao lesado a prova, quer do carácter ilícito da conduta geradora dos danos, quer da culpa do agente ([9]).

Quanto à ilicitude e ao erro judiciário de direito, numa primeira abordagem, não pode olvidar-se que há muito está abandonada a concepção do juiz passivo, de mero aplicador ou “boca” da letra da lei, pois que, ao invés, o juiz é instado a fornecer «soluções concretas, não meramente automáticas de aplicação da literalidade, geral e abstracta da lei e, como consequência, de modo a alcançar o desiderato da justiça material, alarga-se o âmbito de intervenção pessoal ou individualizado da actividade jurisdicional» ([10]).
É o que ensina Castanheira Neves ([11]): «(…) os códigos, em lugar de se poderem ter por qualquer raizon écrite, mostravam-se obras legislativas precárias condenadas a serem historicamente ultrapassadas cada vez com maior rapidez e irremediavelmente lacunosas. O “fétichisme de la loi écrite et codifiée” (Gény) cessou com o reconhecimento da distinção entre o direito e a lei, na intenção normativa, nos critérios hermenêutica-normativos, indispensável integração e no aberto desenvolvimento extralegal da normatividade jurídica — e do mesmo modo a jurisprudência, bem longe de ser “la bouche de la loi”, revelava-se antes um poderoso e indispensável protagonista na histórica constituição do direito. A metodologia jurídica deixou de se esgotar na interpretação e esta passou a ser fundamentalmente problemático-normativo e teleológica-material. O Direito compreendeu-se não apenas como um estatuto dogmático-formal de uma racionalidade axiomática, mas com uma intenção prática de uma racionalidade também prática (prático-normativa) em que concorriam coordenadas axiológicas, políticas, sociológicas, etc. E era este direito, não outro, que os juristas haviam de compreender e assumir e as Faculdades de Direito eram chamadas a investigar e a ensinar.».
Mas, como imediatamente se alcança, à complexidade inerente ao que, nesse quadro conceptual, se exige do juiz, acresce a cada vez maior dificuldade dos processos judiciais, a falta de simplificação e a imoderada produção legislativa – com bastos diplomas avulsos, de pouca clareza e de qualidade técnica, por vezes, discutível – e a proliferação de regimes e de institutos jurídicos, com normas a carecer de preenchimento.
Identicamente quanto à apreciação dos pressupostos de facto, muitas são as possíveis causas que propiciam o surgimento do erro judiciário, como as frequentes circunstâncias de serem oferecidas diversas versões para uma mesma situação real e, sobretudo, a da falibilidade dos depoimentos das testemunhas e declarantes.
Além disso, se é certo que, no âmbito penal, a prova não se pode satisfazer pela mera probabilidade da verificação de um facto e que o princípio in dubio pro reo constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que, perante a persistência de uma dúvida razoável após a produção da prova sobre os factos decisivos para a solução da causa, estabelece a orientação vinculativa de que o tribunal decida ou se pronuncie a favor do arguido, por outro lado, a prova não pressupõe uma certeza absoluta, antes assenta no alto grau de probabilidade do facto suficiente para as necessidades práticas da vida ([12]): trata-se de uma liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou no dizer de Castanheira Neves da «liberdade para a objectividade» ([13]).
Por fim, não podemos olvidar que aquilo que os interessados no desfecho de um processo, muitas vezes, reputam de erro na valoração das provas produzidas mais não é do que uma mera divergência radicada na solução de facto que têm para si como boa e que, por isso, deveria ser provada, porquanto colocados numa perspectiva – diversa da do julgador – subjectiva e não equidistante. O mesmo se deve dizer da circunstância de a solução adoptada pelo tribunal inferior não ser sufragada posteriormente, quer pelo tribunal superior (em recurso normal), quer pelo tribunal de revisão (no recurso extraordinário), uma vez que daí não decorre, necessariamente, que qualquer dessas divergentes propostas e decisões tenha, necessariamente, de ser considerada errada e, muito menos, eivada de erro grosseiro, a única hipótese que nesta análise importaria.
«Tudo isto para dizer que, sendo a verdade absoluta inatingível, tem de admitir-se a hipótese de ocorrência de erros na decisão jurisdicional, quer de facto, quer de direito, porque nenhum dos intervenientes processuais, começando pelas partes e seus advogados, passando pelas testemunhas e peritos e terminando nos juízes, tem o dom da infalibilidade. (…) Demonstrada está, pois, a dificuldade de conciliar o princípio da independência dos tribunais, necessária ao desempenho imparcial da sua função soberana, com o princípio da responsabilidade do Estado por actos ilícitos dos juízes, hoje aceite nos ordenamentos jurídicos mais avançados.» ([14]).
Assim, quanto ao requisito “manifesta ilegalidade das decisões jurisdicionais” a que alude o preceito, «encontra-se subtraído do conceito de erro juridicamente relevante para efeitos de responsabilidade civil, a simples diferença de interpretação da lei, pois julgando o juiz segundo a sua convicção, formada com base nos elementos factuais demonstrados no processo e no quadro normativo vigente, essa interpretação na grande maioria das vezes não é singular, não sendo a única possível» ([15]).
Também o Ac. do STJ de 8/7/1997 (in CJSTJ, 2º-153) ponderou:
«(…) considerando a multiplicidade de factores, endógenos e exógenos, determinantes da opção final que o juiz toma – atentemos, desde logo, na variedade de critérios, por vezes de sentido divergente, que o próprio art. 9º do CC nos dá sobre a interpretação da lei –, bem se compreende que seja com grande frequência que se manifestam sobre a mesma questão opiniões diversas, cada uma delas capaz de polarizar larga adesão, e com isso se formando correntes jurisprudenciais das quais, se se pode ter a certeza de que não estão ambas certas, já difícil ou impossível será assentar em qual está errada. Daí que a própria reapreciação de decisões judiciais pela via do recurso não signifique, em caso de revogação da decisão recorrida, que esta estava errada; apenas significa que o julgamento da questão foi deferido a um tribunal hierarquicamente superior e que este, sobrepondo-se ao primeiro, decidiu de modo diverso.
Dentro deste quadro, a culpa do juiz só pode ser reconhecida, no tocante ao conteúdo da decisão que proferiu, quando esta é de todo desrazoável, evidenciando um desconhecimento do Direito ou uma falta de cuidado ao percorrer o “iter” decisório que a levem para fora do campo dentro do qual é natural a incerteza sobre qual vai ser o comando emitido. A circunstância de dois juízes decidirem em sentidos opostos a mesma questão de direito não significa necessariamente, face à problemática da responsabilidade extracontratual do Estado, que um deles terá agido com culpa, embora se não saiba qual; as mais das vezes, significará apenas que em ambos os casos funcionou, de modo correcto, a independência dos tribunais e dos juízes, contribuindo para o progresso do Direito através da dialéctica estabelecida entre opiniões e modos de ver que se confrontam e interinfluenciam, a exemplo do que se dá na doutrina.
(…) Fique, pois, claro que para o reconhecimento, em concreto, de uma obrigação de indemnizar, por parte do Estado, por facto do exercício da função jurisdicional não basta a discordância da parte que se diz lesada, nem sequer a convicção, que em processo como o presente sempre será possível formar, de que não foi justa ou a melhor a solução encontrada no julgamento que vier questionado. Impõe-se que haja a certeza de que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria nunca julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis» ([16]).
Por outro lado, quanto ao erro sobre a matéria de facto, estão ressalvadas as situações em que a respectiva decisão ainda se enquadre nos limites da contingência e da falibilidade de um juízo psicológico relativo à convicção sobre a valoração da prova, porquanto o mesmo, para ser relevante, deverá ser grosseiro, deverá constituir um clamoroso erro de avaliação dos meios de prova ([17]).
Na verdade, se o RRCEE não fornece uma noção de tal erro, para o reconhecimento do aqui pretendido direito à indemnização, o certo é que, ao circunscrever a responsabilidade do Estado aos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto indica as características e o grau de intensidade que esse erro deve assumir para poder gerar aquela responsabilidade.
 A utilização do conceito manifestamente, que, sendo indeterminado, também é imediatamente valorativo, traduz «uma elevada relevância ou importância, não bastando qualquer erro, o erro banal, corrente ou comum, mas antes aquele que o magistrado tem a obrigação de não cometer, por ser crasso e clamoroso» ([18]).

Quanto ao juízo sobre a culpa, relevam, sobretudo, padrões de diligência funcional média no exercício da actividade, aferidos «por um standard de actuação e rendimento normalmente exigível» ([19]). Por outro lado, a responsabilidade do Estado, assentando numa especial e, por isso, restritiva qualificação do erro, nos termos daquele art. 13º, ou seja na comprovação da manifesta ilegalidade ou injustificação, por erro grosseiro, tem também subjacente a necessidade de demonstração, no mínimo, da culpa grave do juiz, não bastando a culpa leve ([20]).

Posto isto, alega o recorrente que a sua condenação pelo acórdão proferido em primeira instância em 24-04-2008 e confirmada pela Relação é «decorrente de erro grosseiro, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que tornou a decisão judicial claramente arbitrária», como confirmaria o acórdão do Supremo Tribunal relativo ao recurso de revisão extraordinária e, ainda mais, a posterior decisão absolutória de 5-01-2015.
Mas não tem razão.
Desde logo, só poderia ter algum sentido o apelo que se tivesse feito à reponderação da primitiva decisão pela Relação, com a reapreciação, ainda que sem imediação de que beneficiaram os Julgadores em 1ª instância, da prova efectivamente oferecida no processo, nos exactos termos em que fora produzida e que para aquela decisão haviam concorrido. Todavia, afinal, o Tribunal Superior competente para a fixação definitiva da questionada matéria de facto não detectou qualquer concreto erro de julgamento e/ou patente irrazoabilidade, ainda que pontual, na convicção probatória formada com imediação ([21]), antes manteve na íntegra o acórdão recorrido.
Diferentemente, não é pertinentemente convocável o decidido no recurso extraordinário, uma vez que o Supremo Tribunal, para aferir da admissibilidade da revisão, se limitou a perscrutar se os novos factos ou meios de prova então apresentados eram idóneos, em abstracto, a suscitar graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
E o mesmo se terá de reconhecer com a decisão do Tribunal de revisão, obtida no segundo julgamento, que, embora anulando a primitiva decisão condenatória, não encerra, sequer implicitamente, a formulação de qualquer juízo sobre a eventual existência de erro na decisão anulada. O julgamento rescindente que a segunda decisão envolve não foi emitido, como num normal recurso, com base na reponderação da primitiva decisão, designadamente, com a reapreciação da prova que para esta concorrera, foi, sim, precedido de uma nova instrução e de um novo julgamento incidentes sobre diferentes elementos fácticos e probatórios porque, em parte, novos – com especial realce para duas testemunhas – e, no demais, oferecidos em distintas circunstâncias, não se concebendo que até os produzidos pelos mesmos intervenientes se tenham repetido em idênticos termos.
Por outro lado, decisivamente, o Tribunal de revisão, na expressão da motivação da sua convicção, apenas constatou a subsistência de uma dúvida razoável quanto à prática pelo ora recorrente dos factos que lhe eram assacados, sem afirmar a aquisição de uma realidade com a mesma incompatível: «o tribunal, na sua convicção negativa, teve em atenção o princípio do in dubio pro reo, vigente no nosso direito penal probatório de acordo com o qual um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido».
Mesmo que assim não fosse, a aferição do invocado erro grosseiro que, pretensamente, teria conduzido à dita condenação só poderia ser feita, como é evidente, em relação à apreciação da prova produzida e no concreto contexto da instrução então efectuada e dos elementos que a constituíram. Ora, estando nós perante uma convicção cuja formação assentou na imediação, não podemos deixar de observar que às razões pelas quais se confere credibilidade a determinados elementos de prova oralmente colhidos subjazem componentes de racionalidade e da experiência comum, mas nelas também se intrometem factores insindicáveis a posterior, de que o próprio tribunal de recurso não dispõe.
E tendo presentes os requisitos legalmente impostos para o preenchimento do fundamento do direito exercido pelo recorrente, não é confundível uma decisão manifestamente injustificada, por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto, com uma decisão eventualmente afectada dum menor acerto na ponderação dos elementos fácticos e probatórios em que se estribou a convicção para ela formada, nomeadamente à luz da actuação do limite normativo constituído pelo princípio in dubio pro reo.
Com efeito, por um lado, o apelo a este princípio, fundamentalmente como corolário da apreciação que o recorrente faz da prova produzida no primeiro julgamento, não colhe no caso em apreço, porquanto a leitura da motivação expressa para a questionada decisão de facto ostenta que os Julgadores não se defrontaram com qualquer dúvida na formação da convicção, contra ela resolvida.
Por outro lado, atentando nessa motivação, fica-se a conhecer, cristalinamente, o processo de formação da convicção dos Senhores Juízes, através do enunciado, cuidado e sem contradições ou obscuridades, sobre o exame crítico da prova, com a justificação das razões pelas quais foram valorados e tidos em consideração os depoimentos testemunhais, em conjugação com os demais meios de prova produzidos, em detrimento da defesa apresentada pelo então arguido e ora recorrente.
Na verdade, todos os elementos aí aduzidos, conjugados entre si, analisados criticamente segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente, facultariam, num mediano desempenho de qualquer julgador, as ilações quanto à matéria em apreço expostas na decisão censurada, incompatíveis com o acolhimento do sentido por que pugna agora o recorrente, quanto ao invocado erro, para mais grosseiro.
Não podendo deixar de se ter presentes os apontados pressupostos e o ponderado sobre a natureza e os princípios que caracterizam a atividade jurisdicional, a questionada decisão condenatória não ostenta qualquer erro crasso ou escandaloso, nem a convicção para ela formada pode ser tida por uma patente aberração, constituída por culpa grave dos Julgadores, putativamente incursos em erro.
Em suma, o enquadramento delineado pelo ora recorrente na configuração duma manifestamente injustificada apreciação dos pressupostos de facto, por erro grosseiro, não tem suporte algum na factualidade assente, o que inviabiliza, por tornar irrelevante, o prosseguimento dos autos a fim de se apurar o preenchimento dos demais pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do R.
Raciocínio que também se aplica à questão de saber se, no caso, se mostraria observada a condição da prévia revogação pela jurisdição competente da decisão alegadamente danosa, imposta pelo citado art. 13º nº 2 do RRCEE ([22]).

Por conseguinte, improcede o recurso.
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Síntese conclusiva:
1. O regime próprio da responsabilidade civil extracontratual do Estado pelos danos causados por erro judiciário, consagrada no art. 13º da Lei 67/2007 de 31/12 (RRCEE), é justificado pela especificidade da função jurisdicional, em relação às demais incumbências do Estado, traduzida na respectiva natureza e na independência dos juízes, mas também na forma como o respectivo exercício está estruturado, em que se realça o sistema de recursos.
 2. Tais natureza e estrutura, embora não possam vedar a possibilidade de responsabilização efectiva, tanto do Estado como dos juízes – estes, por via de acção de regresso –, exigem a concepção do aludido regime como estando balizado pela necessidade de contenção do direito à indemnização e da imposição de limites.
3. Nessa senda, está excluída a responsabilidade do Estado pelo erro banal ou comum, por actos de simples interpretação do direito e/ou de apreciação e valoração dos factos, com uma intenção prática de uma racionalidade prático-normativa, porque inseridos na essência da especificidade da função jurisdicional, que, por isso, deve ser salvaguardada, não se podendo confundir uma decisão manifestamente injustificada (por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto) com uma decisão que, eventualmente, padeça de um menor acerto na ponderação dos elementos fácticos e probatórios em que se estribou a convicção para ela formada, nomeadamente à luz da actuação do limite normativo constituído pelo princípio penal in dubio pro reo.
4. Por outro lado, a responsabilidade do Estado, assentando numa especial e restritiva qualificação do erro, nos termos daquele art. 13º, ou seja na comprovação da manifesta ilegalidade ou injustificação (por erro grosseiro), tem também subjacente a necessidade de demonstração, no mínimo, da culpa grave do juiz, não bastando a culpa leve.
5. Em princípio, o reconhecimento do fundamento do direito à reparação da responsabilidade do Estado pelos danos causados por erro judiciário – ou seja, de que a decisão de primeira instância seria totalmente estranha à prova produzida e em apreço, fruto de erro grosseiro de julgamento, manifesto e indesculpável – deve ser patenteado pelos termos da própria decisão revogatória proferida no processo judicial em que, alegadamente, foi cometido o erro.
6. Contudo, se a mera revogação da decisão, em sede da sua reapreciação pela via do recurso pelo tribunal hierarquicamente superior a que o julgamento da questão foi deferido (sobrepondo-se ao de primeira instância) significa, apenas, que foram obtidas duas diferentes apreciações – ambas formadas com base nos elementos factuais e probatórios apresentados no processo, com sujeição exclusiva aos princípios que regem a prova e da independência dos juízes –, também o julgamento rescindente emitido pelo tribunal de revisão (na sequência de recurso extraordinário) – que nem sequer envolve a reponderação da primitiva decisão, designadamente, com a reapreciação da prova que para esta concorrera, mas, sim, uma nova instrução e um novo julgamento incidentes sobre diferentes elementos fácticos e probatórios, em parte, novos e, noutra, oferecidos em distintas circunstâncias – não encerra, como tal, necessariamente, a formulação de qualquer juízo sobre a eventual existência de erro, muito menos crasso, na decisão anulada, quanto à apreciação da prova produzida, no concreto contexto da instrução então efectuada e dos elementos que a constituíram.
7. No caso, não se constata que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso nunca teria julgado pela forma como foi obtida a decisão judicial anulada, ou seja, que esta é claramente irrazoável, inadmissível, arbitrária, assente em conclusões absurdas, fruto de indiscutível erro judiciário, manifesto e revelador de falta de elementar zelo e de uma culpa grave dos Julgadores.
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Decisão:
Nos termos expostos, negando a revista, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.         

Lisboa, 12/7/2018

Alexandre Reis

Lima Gonçalves

Cabral Tavares
       

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[1] «Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos».

[2] «A ideia fundamental é a de que nada do que acontece em nome do Estado e no suposto interesse da colectividade, mediante as acções ou omissões das suas instituições, pode ser imune ao dever de reparar os danos provocados aos particulares. Podem discutir-se as condutas relevantes, os danos ressarcíveis, as circunstâncias, a profundidade, as condições e os limites da reparação, mas já não o princípio» (Fátima Galante “Erro judiciário: a responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional” p. 21).
[3] Idem, ibidem, p. 20.
[4] Ana Celeste Carvalho “Responsabilidade civil por erro judiciário”, Cadernos do CEJ, Julho 2014.

[5] Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Almedina, 7.ª ed., 2013, p. 674.
[6] Citado por Fátima Galante, na ob. já referenciada, p. 19.

[7] É o que também anotou João Caupers (“A Responsabilidade do Estado e Outros Entes Públicos, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa): «Já quanto ao erro judiciário, a questão é mais complexa e delicada (...).Por outro lado, existe um mecanismo específico para procurar evitar a consumação de decisões judiciais erradas: o sistema de recursos. A ideia, razoável, é a de que a possibilidade de erro se vai reduzindo à medida que mais magistrados são chamados a pronunciar-se sobre uma questão. Não admira, pois, a formulação restritiva da lei: somente são susceptíveis de engendrar responsabilidade para o Estado as decisões judiciais manifestamente inconstitucionais ou ilegais …». E Guilherme da Fonseca, em “A Responsabilidade Civil por Danos Decorrentes do Exercício da Função Jurisdicional (Em Especial, o Erro Judiciário)”, Revista Julgar. nº 5/2008, p. 55: «Ao erro grosseiro, todavia, parece ligar-se a ideia de culpa grave, na medida em que a decisão jurisdicional em causa reflecte uma diligência e zelo manifestamente inferiores aqueles a que se encontram obrigados os juízes em razão do cargo, na óptica do art. 8.º, n.º 1.».
[8] A integração da responsabilidade por deficiente funcionamento da justiça, designadamente por erro judiciário, no regime da responsabilidade aquiliana retira-se, imediata e linearmente do teor dos arts. 12º e 13º do RRCEE.
[9] Como parece evidente, perante o disposto no segmento inicial do citado art. 12º, não pode intervir no campo do erro judiciário qualquer das presunções relativas ao pressuposto consistente na culpa previstas no precedente art. 10º do diploma. Neste sentido, Celeste Carvalho, na ob. citada.
[10] Celeste Carvalho, ob. citada.
[11] DIGESTA “Escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, Da sua Metodologia e Outros”, V. 2.º, Coimbra Editora, 1995, p. 191.
[12] Como dizia Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, p. 191.
[13] Rev. Ministério Público 19º/40.
[14] Fátima Galante, no artigo já citado, p. 26, em que também pondera: «Ademais, a ciência do Direito não é exacta. Faz parte da sua essência a controvérsia, a argumentação e a interpretação. Por outro lado, o número de casos excederá sempre o número de leis e como não vivemos num mundo perfeito, também o legislador não é capaz de prever todas as hipóteses possíveis, nem os tribunais conseguem sempre, na prática, adequar sem distorções as leis às situações da vida que lhes compete apreciar.».
[15] Celeste Carvalho, ob. citada.
[16] Este pontificante Aresto, emitido no p. 97A774, tem também o respectivo sumário publicitado em www.dgsi.pt: «Para o reconhecimento, em concreto, de uma obrigação de indemnizar, por parte do Estado, por facto do exercício da função jurisdicional, não basta a discordância da parte que se diz lesada, nem sequer a convicção que, em alguns processos, sempre será possível formar, de que não foi justa ou a melhor a solução encontrada: impõe-se que haja a certeza de que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis».
A demais jurisprudência do nosso mais alto Tribunal, publicada na mesma base de dados, tem caminhado idêntico percurso. Assim:
- Ac. de 31/3/2004 (p. 51/04): «A autonomia na interpretação do direito e a sujeição exclusiva às fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas são manifestações essenciais do princípio da independência dos juízes. Os actos jurisdicionais de interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos factos e das provas, núcleo da função jurisdicional, são insindicáveis. O erro de direito praticado pelo juiz só poderá constituir fundamento de responsabilidade civil na jurisdição cível quando, salvaguardada a essência da função jurisdicional referida no ponto IV, seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível, e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas.».
- Ac. de 20/10/2005 (p. 2490/05): «(…) o dever de indemnização a cargo do Estado … pode e deve estender-se a outros casos de culpa grave, designadamente no que respeita a grave violação da lei resultante de negligência grosseira … a manifesta falta de razoabilidade da decisão, o dolo do juiz, o erro grosseiro em grave violação da lei …. Isto é … não basta a discordância da parte que se diz lesada, nem sequer a convicção que, em alguns processos, sempre será possível formar, de que não foi justa ou melhor a solução encontrada: impõe-se que haja a certeza de que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis. A mera revogação de uma decisão judicial não importa, à partida, um juízo de ilegalidade ou de ilicitude, nem significa que a decisão revogada estava errada; apenas significa que o julgamento da questão foi deferido a um Tribunal hierarquicamente superior e que este, sobrepondo-se ao primeiro, decidiu de modo diverso.».
- Ac. de 8/9/2009 (p. 368/09.3YFLSB ): «Para que não se corra o perigo de entorpecer o funcionamento da justiça e perturbar a independência dos juízes, impõe-se um regime particularmente cauteloso, afastando, desde logo, qualquer responsabilidade por actos de interpretação das normas de direito e pela valoração dos factos e da prova. Certo, ainda, que nesta perspectiva, o sistema de recursos, e a hierarquia das instâncias, contribuem, desde logo, para o sucessivo aperfeiçoamento da decisão, reduzindo substancialmente a possibilidade de uma sentença injusta. (…) O erro grosseiro é o que se revela indesculpável, intolerável, constituindo, enfim, uma “aberratio legis” por desconhecimento ou má compreensão flagrante do regime legal.».
- Ac. de 15/12/2011 (p. 364/08.0TCGMR.G1.S1): «A responsabilidade civil extracontratual do Estado-Juiz assenta na culpa do juiz, motivo pela qual não se verificando este requisito não há lugar a responsabilidade objectiva do Estado. O erro de direito praticado pelo juiz só poderá constituir fundamento de responsabilidade civil do Estado quando seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, demonstrativa de uma actividade dolosa ou gravemente negligente.».
- Ac. de 28/2/2012 (p. 825/06.3TVLSB.L1.S1): «Os actos de interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos factos e das provas, núcleo da função jurisdicional, são insindicáveis. O erro de direito só constituirá fundamento de responsabilidade civil quando, salvaguardada a referida essência da função jurisdicional, seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas».
- Ac. de 23/10/2014 (p. 1668/12.0TVLSB.L1.S1): «O erro de direito, para fundamentar a obrigação de indemnizar, terá de ser “escandaloso, crasso, supino, procedente de culpa grave do errante”, sendo que só o erro que conduza a uma decisão aberrante e reveladora de uma actuação dolosa ou gravemente negligente é susceptível de ser qualificada como inquinada de “erro grosseiro”».
- Ac. de 24/2/2015 (p. 2210/12.9TVLSB.L1.S1): «O erro de direito deve ser manifestamente inconstitucional ou ilegal: não basta a mera existência de inconstitucionalidade ou ilegalidade, devendo tratar-se de erro evidente, crasso e indesculpável de qualificação, subsunção ou aplicação de uma norma jurídica; o erro de facto deve ser clamoroso e grosseiro, no que toca á admissão e valoração dos meios de prova e á fixação dos factos materiais da causa.».
[17] Cf. Cardoso da Costa, em “Sobre o Novo Regime da Responsabilidade do Estado por Actos da Função Judicial”, in RLJ, 3954º/162.
[18] Celeste Carvalho, ob. citada, que acrescenta: «No âmbito do erro manifesto devem caber as situações em que o erro de direito é indesculpável, aquele em que não é de conceder, de modo algum, que a solução encontrada se possa apoiar na interpretação da lei, assim como as situações de aplicação de lei revogada ou de lei inaplicável, por ser totalmente estranha à situação jurídica, quando seja evidente que a decisão é contrária à Constituição e à lei e desconforme ao Direito. (…) Não deverão caber nesse conceito as interpretações possíveis ou plausíveis da lei, nem a utilização dos vários institutos legais com conexão para o caso, já que essa actividade se incluirá na liberdade de julgamento. (…) Como salienta KARL LARENZ, não existe “uma interpretação «absolutamente correcta», no sentido de que seja tanto definitiva, como válida para todas as épocas”, devendo entender-se a sua correcção, não como “uma verdade intemporal, mas correcção para esta ordem jurídica e para este momento”. Assim, para efeitos de responsabilidade civil por erro judiciário, releva apenas o erro manifesto ou grosseiro, extraído do juízo relativo à relevância jurídica do dano, de proporcionalidade e de repartição dos custos e encargos com o sistema de justiça (o dano indemnizável), sem prejuízo da relevância de qualquer erro para efeitos de revogação da decisão danosa.».
Também Carlos Alberto Fernandes Cadilha, “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas”, Coimbra Editora, pp 277, disse: «O legislador exige uma especial qualificação do erro de direito, não se bastando, para efeito do funcionamento do dever de indemnizar, com a mera existência da ilegalidade ou inconstitucionalidade da solução jurídica adoptada na decisão Judicial, quando esta tenha vindo a ser revogada por decisão de tribunal superior».
E Fátima Galante, no artigo citado, p. 37: «A responsabilidade do Estado só ocorre quando fundada em erro judiciário manifesto, patente, indesculpável, das decisões judiciais quanto à aplicação de normas constitucionais ou da legislação ordinária, não bastando uma interpretação mais ousada, peregrina da lei para fazer incorrer o Estado em responsabilidade civil. Os erros de interpretação e de aplicação da lei corrigem-se, por regra, através dos recursos, ordinários ou extraordinários, podendo ainda sanar-se através da arguição de nulidades.».

[19] Cf. Carlos Alberto Fernandes Cadilha, na ob. citada, pp 197 e s.
[20] Neste sentido, Celeste Carvalho, na ob. citada: «É de associar o erro grosseiro e manifesto à culpa grave, não fazendo sentido falar, quer em presunção de culpa, quer em culpa leve». Deve aqui reiterar-se que está arredada, como já se disse, a intervenção de qualquer presunção neste campo e que, na esteira do citado Ac. do STJ de 8/7/1997, não constitui indicador de culpa, muito menos grave, a «circunstância de dois juízes decidirem em sentidos opostos».

[21] Devendo anotar-se que a já salientada falta de imediação, sempre imporia a esse Tribunal de recurso alguma cautela na afirmação de tal irrazoabilidade. Como se sabe, apesar de as palavras serem importantes, só uma percentagem da nossa comunicação é feita verbalmente. Ora o simples registo audiofónico da prova não permite interpretar, na sua plenitude, as emoções reflectidas nos sinais não-verbais (desenvoltura, movimentos corporais, olhares ou expressões faciais), designadamente os involuntários e inconscientes, dos depoentes e demais intervenientes. Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, in “Princípios Gerais do Processo Penal”, p. 160, só a oralidade e a imediação permitem o indispensável contacto vivo com o arguido e a recolha deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por um lado, avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabelece-se com o tribunal de 1ª instância, e daí que a alteração da matéria de facto fixada deverá ter como pressuposto a existência de elemento que pela sua irrefutabilidade, não possa ser afectado pelo princípio da imediação.
[22] E, nomeadamente, a controversa questão de saber se o preceito não consentiria uma interpretação tal que nele se abarcasse, também, a anulação de uma sentença penal condenatória, na sequência de recurso de revisão, e não apenas a revogação pela jurisdição competente.
Num parêntesis, registamos que, como se sabe, a formulação restritiva da norma não tem sido pacificamente recebida (como anota Fátima Galante, no artigo já citado, p. 44 e s). Entre algumas das críticas que têm sido dirigidas ao preceito realçaríamos a manifestada por Luís Fábrica in “Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas”, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2013, pp 357 e ss), que sustenta a sua inconstitucionalidade, por violação do direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva, nos casos em que, por razões várias, a decisão não é susceptível de recurso, o que considera mais chocante por estarem causa em causa danos resultantes, não de ilícitos comuns, mas de ilegalidades manifestas e de erros grosseiros.
Guilherme da Fonseca e Miguel Bettencourt da Câmara, em opinião publicada na revista Julgar nº 11, p. 19, previnem: «O melhor teria sido prever, como pressuposto processual, a exigência de uma séria probabilidade da existência de erro judiciário, pois, a ser como está, pode a norma do n.º 2 brigar com o princípio da tutela judicial efectiva consagrado no art. 20.º da Constituição, conjugado com o direito fundamental à reparação dos danos que assiste a todos os cidadãos (vd. art. 22.º da CRP), nas situações em que se limita o direito de acção ou até se priva esse direito. A menos que se avance pela eliminação das alçadas em todas as jurisdições, o que nos parece ser impensável.».
Parece pertinente deixar, ainda, registo do Ac. da RC de 26/11/2013 (3422/12.0TBLRA.C1) que considerou que a norma do artigo 13º nº 2 da Lei nº 67/2007 não tem aplicação, desde logo, quando a decisão em crise não admite recurso ordinário.
Essas discordâncias têm sido, também, expressas quando está em causa a violação do direito da União por decisões que não sejam susceptíveis de recurso judicial de direito interno, havendo mesmo quem entenda que o preceito se revela em oposição à jurisprudência do TJUE, ao exigir a prévia revogação da decisão considerada violadora do direito comunitário, que será impossível no caso de a decisão ser proferida pelo último grau de jurisdição. Salienta-se, nessa controvérsia, a publicitação do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), de 9/9/2015 (Ferreira da Silva e Brito), que decidiu: «O direito da União e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça em matéria de responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do direito da União cometida por um órgão jurisdicional que decide em última instância devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que exige como condição prévia a revogação da decisão danosa proferida por esse órgão jurisdicional, quando essa revogação se encontra, na prática, excluída.».