Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7571/17.0T8CBR.C1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ACÁCIO DAS NEVES
Descritores: ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
SEGURO DE VIDA
PRÉMIO DE SEGURO
FALTA DE PAGAMENTO
RESOLUÇÃO
COMUNICAÇÃO
CÔNJUGE
DECURSO DO TEMPO
PEDIDO
Data do Acordão: 12/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / PETIÇÃO INICIAL / RECURSOS / APELAÇÃO / JULGAMENTO DO RECURSO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 552.º, N.º 1, ALÍNEA A), 637.º, N.º 1, 641.º, N.º 5 E 652.º, N.º 1, ALÍNEA B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 11-12-2012, PROCESSO N.º 116/07.2TBMCN.P1.S1;
- DE 27-04-2017, PROCESSO N.º 1192/12.1TVLSB.L1.S1;
- DE 07-03-2019, PROCESSO N.º 499/14.8T8EVR.E1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I- O abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium resulta da violação do princípio da confiança, traduzida no facto de o demandante agir, de forma claramente ofensiva, contra as fundadas expetativas por ele criadas no demandado, no sentido do não exercício do direito.
II - Agem com abuso de direito os autores ao acionar, em 2017, o seguro de vida celebrado entre os seus pais (falecidos, o pai em 2016 e a mãe em 2017) e a ré seguradora, quando, apesar de a resolução do contrato com fundamento na falta de pagamento de prémios de seguro ter sido comunicada apenas ao pai dos autores em finais de dezembro de 2005, a mãe dos autores, em 2007, tomando conhecimento dessa resolução, ficou convencida de que o contrato havia sido considerado extinto (tendo solicitado à seguradora a revogação da anulação) e durante 10 anos, ou seja, até à sua morte (bem como o falecido pai), nada mais fez, no sentido de pugnar pela validade do contrato ou de proceder ao pagamento dos prémios de seguro.
III - Com tal conduta, a mãe dos autores criou na ré a fundada convicção de que os segurados aceitaram que o contrato deixou de vigorar e que, por isso, jamais lhe viria a ser exigido o pagamento do capital objeto do seguro.
IV - Ao exigirem da ré o pagamento do capital do seguro dez anos depois e apenas após o falecimento dos segurados, os autores agem em manifesta contradição com o comportamento omissivo dos seus antecessores e com as fundadas expetativas por estes criadas na ré, no sentido do não exercício do direito que ora invocam com a presente ação.
Decisão Texto Integral:

        

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA e BB intentaram ação declarativa comum contra CC , S.A., pedindo:

- Que se declare inoperante e ineficaz relativamente a DD e Autores seus sucessores, qualquer resolução contratual da iniciativa da Ré Seguradora e suas antecessoras legais;

- Que seja declarado válido e em vigor o contrato de seguro a que corresponde a apólice n° 000000, certificado n° 0000000;

- Que seja a Ré Seguradora a pagar, entregando ao ....., S.A.

- ou, subsidiariamente, aos Autores, a quantia de 144.680,92€ correspondente ao montante em dívida nos três empréstimos em causa nesta ação face à superveniência do óbito de DD;

- Que seja ainda condenada em juros moratórias à taxa supletiva legal em vigor desde a citação para esta ação até efetivo e integral pagamento.

Alegaram para o efeito e em resumo que a Ré se recusa a assumir o cumprimento das obrigações que assumiu num contrato de seguro de grupo (ramo vida) que celebrou com os falecidos pais dos Autores, por entender que tal contrato foi por si resolvido em 2006 por falta de pagamento de prémios, mas que tal resolução não foi validamente efetuada, nos termos previstos na lei e, por isso, a falta de pagamento dos prémios fez incorrer apenas os segurados em mora.

Na sua contestação, a Ré invocou a extinção do contrato de seguro por causa imputável aos pais dos autores em face da falta de pagamento dos prémios do seguro por cerca de 10 anos consecutivos, desde 2006 até ao falecimento daqueles, em 2017.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, na qual, julgando-se parcialmente procedente a ação, se decidiu:

- Declarar inoperante e ineficaz a resolução operada pela Ré, considerando válido e em vigor o contrato de seguro a que corresponde a apólice n.º 000000, certificado n.º 0000000;

- Condenar a Ré a pagar ao Banco credor a quantia necessária para amortização do empréstimo à data do falecimento da segurada DD – no valor de €144.680,92 (cento e quarenta e quatro mil seiscentos e oitenta euros e noventa e dois cêntimos), e revertendo o remanescente do valor segurado de €238.425,39 a favor dos Autores, no valor de €93.744,47, mas devendo os Autores assumirem o pagamento dos prémios relativos a tal quantia, no valor de €63.662,13, pelo que apenas têm direito a receber o remanescente de €30.082,34 (trinta mil e oitenta e dois euros e trinta e quatro cêntimos), acrescidos de juros à taxa de 4% até integral e efetivo pagamento, contados desde a presente decisão uma vez que a quantia era ilíquida (Portaria n.º 291/2003 de 08/04 e face ao disposto nos arts. 804º, 805º, nº. 3, do Cód. Civil);

- E absolver a Ré do mais peticionado.

Na sequência e no âmbito de apelações da Ré (recurso principal) e dos Autores (recurso Subordinado), a Relação de ..........., julgando procedente a apelação da Ré e improcedente o recurso subordinado dos Autores, revogou a sentença e absolveu a Ré do pedido.

Inconformados, interpuseram os Autores o presente recurso de revista, no qual formularam as seguintes conclusões:

A - Há abuso de direito mas a montante de qualquer conduta da falecida DD, em conduta anterior da Ré que cometeu o «pecado» original da resolução ilícita e ineficaz: antes de qualquer venire contra factum proprium há abuso na modalidade tum quoque: quem prima facie despreza, grosseira e reiteradamente, o direito, como fez a Seguradora, não pode, depois e abstraindo de tal violação, vir clamar pelo direito; a ofensa clamorosa da justiça e boa-fé, o excesso manifesto, encontram-se do lado da Seguradora, na incúria e sobranceria que emprestou ao trato contratual;

B - “A pessoa que viole uma situação jurídica perturba o equilíbrio material subjacente. Nessas condições, exigir à contraparte um procedimento equivalente ao que se seguiria se nada tivesse acontecido, equivaleria ao predomínio do formal: substancialmente, a situação está alterada, pelo que a conduta requerida já não poderá ser a mesma” - Acórdão e autor citados;

C – “(…) a invocação da ineficácia da resolução do contrato pelo cônjuge do tomador de seguro, enquanto pessoa segura, por tal declaração rescisória não lhe ter sido dirigida, não integra uma situação de exercício abusivo do direito, uma vez que foi a seguradora que se colocou na situação de manter o contrato de seguro como subsistente em relação àquela segurada, quer por falta de notificação admonitória para efetuar o pagamento dos prémios em dívida, quer por falta da comunicação da decisão rescisória” - Acórdão citado;

D - Ao arrepio da indivisibilidade do contrato, a Ré omitiu, reiteradamente, cautelas elementares de um bom segurador:

- a comunicação enviada a EE não recorreu a registo com A.R.; a sua receção não foi provada, não tem teor de índole admonitória, nem observou a antecedência legal;

- não enviou carta registada a interpelar admonitoriamente/resolver o contrato por falta de pagamento de prémios a DD;

- não enviou carta registada com o mesmo fito ao Banco tomador;

- quando recebe a missiva registada enviada por advogado de DD, solicitando a revogação da anulação (carta de 25/06/2007), responde por missiva de 01/08/2007, uma vez mais sem registo e com ampla amputação de endereço postal, manifestamente impeditiva de entrega à destinatária, não provada, também;

E - Isto quando na missiva de ...... DD, através de advogado:

- rogou a revogação da anulação de que só contemporaneamente tomara conhecimento, pelas razões ali explicadas;

- sinalizou a sua boa-fé e vontade de cumprir, pagando tudo o que estava em dívida até à data de anulação;

- solicitou que lhe fossem emitidos aviso de pagamento para pagamentos futuros, pós anulação;

F - A pessoa segura à morte da qual foram acionadas as responsabilidades da Ré Seguradora foi DD e apenas esta (pessoa não dotada de qualquer formação jurídica); para se evitar o resultado que a Ré agora enjeita (pagar o capital seguro) e que se poderia ter evitado se tivesse atuado com cuidado mínimo, cair­se-á numa situação muito mais grave - como caiu a Relação de ........... - de completa desproteção da pessoa segura e perda previsível do direito à própria habitação familiar;

G - Se não houve pagamento de prémios por anos, dos mesmos anos dispôs a Ré para dar conta dos seus erros e omissões e os suprir, nada fazendo nesse sentido apesar de para tal instada - a ilicitude original e persistência na mesma são, sempre, suas;

H - Os Autores não deixaram volver qualquer prazo de prescrição/caducidade previsto no nosso ordenamento jurídico para acionamento da Seguradora; a própria ordem jurídica dá sinal que o tempo decorrido não é de molde ao desvanecimento de direitos;

I - A decisão da 1ª Instância permitia repor o sinalagma, o equilíbrio perdido da economia contratual; o Acórdão da Relação de ........... não permite recuperar tal sinalagma e deixa a primacial ilicitude da Seguradora completamente impune e inconsequente, premiando uma atuação temerária em contexto de seguro de vidas com a mais completa desoneração obrigacional - não se vislumbra, aqui, justiça;

J - A pessoa segura à morte da qual foram acionadas as responsabilidades da Ré Seguradora foi DD, pessoa relativamente à qual, indubitavelmente, o contrato de seguro nunca foi valida e eficazmente resolvido;

L - Só não houve pagamentos por DD pelo período pós Fevereiro de 2006 à razão da Ré ter resolvido o contrato (com efeitos a 01 de Janeiro desse ano) e, em coerência, nunca mais emitir avisos/recibos de pagamento que permitissem à falecida algo mais pagar; é de conhecimento e experiência comum no trato com Seguradoras que para efetuar pagamentos um seguro tem que estar ativo, têm que ser gerados avisos/recibos de pagamento e o pagamento imputado a uma apólice vigente;

M - Não há qualquer mora ou abstenção de pagamentos por parte de DD; há mora, isso sim, da Ré Seguradora em receber - mora creditoris - pois que nunca se dispôs a inverter a anulação: não consta uma única comunicação, um único aviso de pagamento dirigido pela Seguradora a DD que esta não tivesse solvido; falta aqui, sempre, o excesso manifesto, a má fé, para que se possa falar de abuso de direito de DD e seus sucessores;

N - Dizer-se, como se fez no Acórdão recorrido, que em 2006 o prémio mensal era de 280,03€ e nesse ano o S.M.N. era de 385,90€, extrapolando que DD poderia não ter interesse em manter o contrato de seguro ou com isso se conformou é fazer letra morta dos pagamentos efetuados por aquela até Junho de 2007 e da comunicação de advogado de 25/06/2007, resultando numa conjetura que nada tem a ver com presunção ipso facto: o facto conhecido é a vontade de DD pagar tudo o que estivesse em dívida, que fosse repristinada a apólice e emitidos os correspondentes avisos de pagamento no futuro, sem descurar a prova que se fez acerca da sua índole adimplente (facto provado "M");

O - Só ficou provado o envio pela Seguradora a EE da carta datada de 26/12/2005 (Doc. nº 1 junto no seu requerimento de 05/12/2007 - facto provado "V"), nunca a respetiva receção e, como bem assinalou a 1ª Instância foi, então, enviada carta que “nem obedecia ao prazo legal previsto (…), pelo que se mostra insuficiente para produzir o efeito pretendido, pois que tal carta não contém qualquer interpelação admonitória, sendo o seu teor de cariz apenas resolutivo e tendo apenas como destinatário o mencionado EE e com prazo inferior ao devido" (…), não se lhe podendo atribuir a eficácia resolutiva pois “o conteúdo da mesma não cobre a finalidade de interpelação admonitória, nem observa o prazo aplicável” - a conclusão vertida no Acórdão da Relação de ........... (que EE ficou ciente que o contrato já não vigorava) não se mostra suportada em facto algum;

P - O Acórdão oblitera o que ficou provado em “W” e DD chegou a recorrer aos serviços do advogado que elaborou a carta registada de 25/06/2007 (Doc. nº2 junto ao requerimento da Ré de 05/12/2017), na mesma reclamando reposição da apólice, pagando tudo o que estava por pagar e solicitando emissão de avisos/recibo para pagamentos futuros; só da Seguradora dependia a reposição do contrato;

Q - Quanto à possibilidade de celebração de um novo contrato, a conclusão que se retira é antípoda do Acórdão recorrido - se DD celebrasse novo contrato, então sim, daria sinal de conformação com a extinção do seguro; ao não celebrar outro contrato a falecida deixou sinal perene que considerava que o seguro se mantinha vigente;

R - Como bem notou a lª Instância “a falecida DD contactou a Ré, informou das ocorrências detetadas e a Ré ficou expressamente de dar resposta, o que apenas fez para uma morada incompleta, que não chegou ao destinatário, pelo que não se pode tirar conclusões com o decurso do tempo, pois que tal sempre seria reversível, na medida em que se a falta de pagamento se prolongou demasiado no tempo, desse tempo todo também usufruiu a seguradora para exigir o cumprimento, ou até a resolução, do contrato e nada provou ter feito em tal sentido”;

S - A Ré Seguradora estava ciente que os contactos no âmbito de seguros de vidas devem ser legalmente estabelecidos pelo seguro do correio, meio de comunicação que declinou em todos as comunicações que deveria ter estabelecido com os segurados; ao proceder assim criou um risco e, configurando o mesmo, conformou-se com as consequências que daí poderiam advir - subsistência duradoura do contrato;

T - A resolução é, por carecida de fundamento, ilegal, e, ademais, ineficaz, não determinando a cessação do contrato; a sentença da 1ª Instância, com a correção introduzida pelo Tribunal da Relação de ........... quanto à matéria de facto, ponto “CC”, é aquela que mais justiça traz ao caso concreto;

U - Acresce que o divórcio entre EE e DD “efetivamente, correspondeu a separação de facto do casal que não mais partilhou leito, teto, mesa, vida em comum” - facto provado “J”;

V - Que no artigo 16° da Contestação a Ré reconheceu que “de facto o divórcio não altera o contrato de seguro (...)”;

X - Que se o divórcio, separando pessoas e alterando o estado civil, não é de molde a contender com o risco seguro (vida), também não contenderá com tal risco a partilha de bens;

Z - Que a Seguradora não invocou qualquer cláusula contratual que fizesse corresponder ao divórcio ou à partilha conjugal modificação ou resolução contratual;

AA - Que do ofício remetido pelo ....., S.A. aos autos em 27/07/2018 (“Os devedores dos mútuos são DD e EE e não temos evidência da exoneração do mutuário EE") resulta que nenhum dos segurados foi exonerado pelo Banco, pelo que nunca perderam o interesse no contrato de seguro associado; quando pagou os prémios que estavam em atraso (facto provado "AA"), DD pagou o que estava em dívida por ambos:

BB - A Ré ficou ciente das consequências do seu «autismo», tanto que trouxe aos autos os documentos juntos nas sessões de julgamento de 28/09/2018 e de 23/1 0/2018 :

- contabilizou prémios pelas duas pessoas seguras até ao mais recente decesso de DD;

- a própria junção - assim o impõe a mais elementar coerência - constituiu confissão dos dois primeiros pedidos formulados pelos Autores (só reconhecendo que a apólice se mantém vigente a Seguradora se pode arrogar titular de créditos por sucessivos prémios mensais de 2006 a 2017) e,

- para pior, verificação daquilo que a Veneranda Relação de ........... aventou como impossível - reclamação pela Seguradora dos prémios devidos desde Fevereiro de 2006.

C - A Seguradora posterga a boa fé - apostou, primeiro, numa resolução válida e eficaz do contrato de seguro; verificando que tal tese soçobraria, solicitou que fossem levados em conta os prémios que lhe são devidos; quando assim aconteceu em sentença final ainda veio, em sede de recurso, clamar por abuso de direito - venire contra factum proprium - abuso que, bem vistos os factos, foi sempre e apenas seu;

DD - A motivação recursiva apresentada pela Ré no Juízo Central Cível de ...........-Juiz 1 não foi dirigida a nenhum Tribunal ad quem;

EE - No seu recurso para o Tribunal da Relação de ........... a Ré não formulou nenhum pedido de alteração/anulação/revogação da sentença:

FF - O Tribunal da Relação de ........... não se pronunciou sobre tais debilidades e suas repercussões na tempestividade do recurso, apesar de tais questões terem sido expressamente suscitadas em contra-alegações; foi omitida pronúncia, geradora de nulidade.

Estes os termos em que, e com outros que, melhores de direito, esse Supremo Tribunal doutamente provirá, se suplica revogação do Acórdão do Tribunal da Relação de ........... e sua substituição por decisão que:

1°) declare inoperante e ineficaz relativamente a DD e Autores seus sucessores a resolução operada pela Ré Seguradora, considerando válido e em vigor o contrato de seguro a que corresponde a apólice n.º 000000, certificado n.º 0000000;

2°) condene a Ré Seguradora a pagar ao Banco credor (....., S.A.) a quantia necessária para amortização dos três empréstimos em causa nos autos à data do falecimento da segurada DD - no valor de 144.680,92€, revertendo o remanescente do valor segurado de 238.425,39 € a favor dos Autores, na quantia de 93.744,47 €, contra assunção, por estes, do pagamento dos prémios relativos a tal quantia junto da Ré Seguradora, em valor a apurar, compreendido entre o montante mínimo de 37.500,00€ e máximo 63.662,13€, recebendo estes apenas o remanescente, seja quantia nunca inferior a 30.082,34 €, acrescida de juros civis à taxa de 4% até integral e efetivo pagamento.

            Não foram apresentadas contra-alegações.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir:

Atento o conteúdo das conclusões recursórias, enquanto delimitadoras do objeto da revista, são as seguintes as questões de que cumpre conhecer:

            - omissão de pronúncia;

            - inexistência de abuso de direito dos autores.

 

É a seguinte a factualidade dada como provada pelas instâncias:

Factos provados:

A) Em 2012, fundiram-se a FF e a CC sob a designação da Ré (matéria do art. 8.º da petição inicial);

B) No dia 25 de Fevereiro de 2017, faleceu DD, no estado de divorciada de EE, tendo os Autores sido habilitados como seus únicos e universais herdeiros, aceitando tal herança (matéria dos arts. 9.º a 11.º e 38.º da petição inicial);

C) Em 24/3/2017, o Banco ..... comunicou à Autora o bloqueio das contas bancárias de que era co-titular na quota-parte correspondente à herança até integral conclusão do processo de habilitação de herdeiros (matéria do art. 13.º da petição inicial);

D) No ano de 2001, para fazer face à aquisição e obras... em ........... (imóvel a que corresponde a descrição predial n.º 0000000000 da freguesia de Sto. ......, concelho de ..........., inscrito na respetiva matriz sob o artigo nº 0000), destinada a acolher a família em habitação própria permanente DD e EE, pais dos Autores, então entre si casados no regime de bens da comunhão de adquiridos, contraíram três empréstimos junto da Companhia Geral de ............, S.A, todos visando aquele fito:

a)- em 11/12/2001 celebraram contrato de empréstimo pelo qual o ............, S.A. emprestou, entregando ao casal, a quantia de 109.210,76€ pelo prazo de 23 anos contados a partir daquela data, contra reembolso da mesma em 276 prestações mensais sucessivas de capital e juros, sendo a taxa de juros nominal de 5,125% durante os primeiros 3 meses de vigência contratual, passando depois à taxa composta pela Euribor a 6 meses acrescida do spread de 2%, sendo este reduzido a 0,6% caso o casal mantivesse preenchidas pelo menos 3 de 8 condições indicadas pela Instituição de Crédito (domiciliação de ordenado, saldo médio em aplicações superior a 1.496,39€, crédito ao consumo superior a 1.496,39€, ter um contrato de A.L.D./Leasing, detenção de cartão de crédito efetivamente utilizado, efetuar no mínimo duas ordens de pagamento a favor de terceiros sobre a conta à ordem, detenção de títulos ou cofre de aluguer, abrangência em protocolo coletivo com vista à concessão de crédito ou acesso a produtos financeiros); cobertura de seguro do imóvel em companhia seguradora aceite pela Instituição de Crédito; seguro de vida dos Mutuários por 100% do valor do crédito atenta a taxa de esforço do casal de devedores; os seguros só podiam ser alterados ou anulados por intermédio da Instituição de Crédito ou com o seu prévio acordo uma vez que esta poderia até optar por pagar os mesmos por conta dos devedores (contrato nº 00000000000 de --/--/--);

b) em 11/12/2001 celebraram contrato de empréstimo pelo qual o ............, S.A. emprestou, entregando ao casal, a quantia de 27.610,95€ pelo prazo de 23 anos contados a partir daquela data, contra reembolso da mesma em 276 prestações mensais sucessivas de capital e juros, sendo a taxa de juros nominal de 5,125% durante os primeiros 3 meses de vigência contratual, passando depois à taxa composta pela Euribor a 6 meses acrescida do spread de 2%, sendo este reduzido a 0,6% caso o casal mantivesse preenchidas pelo menos 3 de 8 condições indicadas pela Instituição de Crédito (domiciliação de ordenado, saldo médio em aplicações superior a 1.496,39€, crédito ao consumo superior a 1.496,39€, ter um contrato de A.L.D./Leasing, detenção de cartão de crédito efetivamente utilizado, efetuar no mínimo duas ordens de pagamento a favor de terceiros sobre a conta à ordem, detenção de títulos ou cofre de aluguer, abrangência em protocolo coletivo com vista à concessão de crédito ou acesso a produtos financeiros); cobertura de seguro do imóvel em companhia seguradora aceite pela Instituição de Crédito; seguro de vida dos Mutuários por 100% do valor do crédito atenta a taxa de esforço do casal de devedores; os seguros só podiam ser alterados ou anulados por intermédio da Instituição de Crédito ou com o seu prévio acordo uma vez que esta poderia até optar por pagar os mesmos por conta dos devedores (contrato nº 00000000 de ../../..;

c) em 11/12/2001 celebraram contrato de empréstimo pelo qual o ............ S.A. emprestou, entregando ao casal, a quantia de 99.759,58€ pelo prazo de 23 anos contados a partir daquela data, contra reembolso da mesma em 276 prestações mensais sucessivas de capital e juros, sendo a taxa de juros nominal de 5,125% durante os primeiros 3 meses de vigência contratual, passando depois à taxa composta pela Euribor a 6 meses acrescida do spread de 2%, sendo este reduzido a 0,6% caso o casal mantivesse preenchidas pelo menos 3 de 8 condições indicadas pela Instituição de Crédito (domiciliação de ordenado, saldo médio em aplicações superior a 1.496,39€, crédito ao consumo superior a 1.496,39€, ter um contrato de A.L.D./Leasing, detenção de cartão de crédito efetivamente utilizado, efetuar no mínimo duas ordens de pagamento a favor de terceiros sobre a conta à ordem, detenção de títulos ou cofre de aluguer, abrangência em protocolo coletivo com vista à concessão de crédito ou acesso a produtos financeiros); cobertura de seguro do imóvel em companhia seguradora aceite pela Instituição de Crédito; seguro de vida dos Mutuários por 100% do valor do crédito atenta a taxa de esforço do casal de devedores; os seguros só podiam ser alterados ou anulados por intermédio da Instituição de Crédito ou com o seu prévio acordo uma vez que esta poderia até optar por pagar os mesmos por conta dos devedores (contrato nº00000000 de ../../.. (matéria dos arts. 15.º e 16.º da petição inicial);

E) Foram constituídas, para garantia dos mútuos referidos em D) hipotecas, a favor do ............, S.A. do prédio urbano descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de ........... sob o nº 00000000 da freguesia de Sto. ......, inscrito na respetiva matriz sob o artigo nº 0000, registadas pelas apresentações n.º ...de ..... e nºs 146, 147 e 148, todas de 28 de Dezembro de 2001 (matéria do art. 17.º da petição inicial);

F) Contemporaneamente à contração dos mútuos junto do ............, S.A., DD e EE celebraram com a FF - Companhia de Seguros, S.A., pessoa coletiva nº 0000000, contrato de seguro de vida designado “.............”, autorizando EE o correspondente débito em conta dos prémios, em conta bancária do.......... de que era titular, ali constando como este como 1.ª pessoa segura e aquela como 2.ª pessoa segura, com a morada de U........., Rua B,....., 0000 ........... e sendo o banco beneficiário do seguro (matéria dos arts. 18.º e 20.º da petição inicial);

G) O contrato referido em F) tinha longevidade que acompanhava a duração dos mútuos, e obteve confirmação de subscrição por parte da Seguradora datada de 07 de .... , apólice 000000 e certificado nº 0000000 (matéria do art. 19.º da petição inicial e 3.º da contestação);

H) A Ré por sua vez, obrigou-se a entregar €238.425,39 ao ............ S.A. (na qualidade de credor hipotecário com carácter irrevogável) ou aos descendentes dos Segurados, pagando-lhes tudo o que estivesse em dívida nos três empréstimos supra à superveniência do evento morte de qualquer um dos Segurados, sendo o eventual remanescente para os filhos em partes iguais (matéria dos arts. 22.º e 23.º da petição inicial; 7.º da contestação; 5.º, 10.º e 12.º do articulado superveniente e i) e p) da resposta ao articulado superveniente);

I) O capital seguro, abrangendo o capital em dívida ao ............, S.A. pelos três empréstimos supra, era, por cada uma das pessoas seguras, de 238.425,39€, garantindo a Seguradora o pagamento total em caso de fatalidade para um dos segurados (matéria do art. 24.º da petição inicial; 5.º, 10.º e 12.º do articulado superveniente e i) e p) da resposta ao articulado superveniente);

J) Em 05/07/2002 foi dissolvido, por divórcio por mútuo consentimento, o casamento entre DD e aquele EE, divórcio que, efetivamente, correspondeu a separação de facto do casal que não mais partilhou leito, teto, mesa, vida em comum (matéria do art. 32.º da petição inicial e 10.º da contestação);

K) Na subsequente partilha, celebrada a 28 de Abril de 2004 no Terceiro Cartório Notarial de ..........., foi adjudicado a DD o imóvel que constituía a casa de morada de família, correspondente à descrição predial nº 0000000000 da freguesia de Sto. ...... bem assim, o correspondente passivo contraído junto do ............, S.A. para aquisição e manutenção do mesmo que então consubstanciava uma dívida ao ............, S.A. no valor de €220.554,20, resultante dos três empréstimos acima referidos (matéria dos arts. 33.º a 35.º da petição inicial e art. 10.º da contestação);

K/A) Nesta escritura de partilha ficou a constar o seguinte:

«…com a advertência de que o primeiro outorgante [trata-se de EE] só fica exonerado da referida obrigação [trata-se do pagamento do passivo relativo aos mútuos contraídos pelo ex-casal] contraída perante a referida instituição de crédito [tratava-se à data do banco ............], após o consentimento desta…» (aditado pela Relação);

K/B) A Ré não foi informada do referido em J) e K) até à receção da carta de 25-6-2007 referida em W) (aditado pela Relação);

L) Em 15 de Outubro de 2004 o ............, S.A. incorporou, por fusão, o Banco Totta e Açores, S.A. e o Banco Santander Portugal, S.A., tendo o Banco incorporante alterado a sua denominação social para Banco ....., S.A. (matéria do art. 36.º da petição inicial);

M) DD provia ao pagamento pontual de todas as prestações e demais encargos associados aos três empréstimos que lhe eram regularmente debitados em conta, nunca incorrendo em mora ou incumprimento por nenhum deles (matéria dos arts. 37.º e 57.º da petição inicial);

N) Ao tempo do óbito DD mantinha dívida por capital emergente dos três empréstimos supra, nas seguintes quantias:

a)- empréstimo crédito hipotecário n.º 00000000000, renumerado 0000.000000, com o capital inicial concedido de 109.210,76€ - dívida por capital de 66.594,31€;

b)- empréstimo crédito hipotecário n.º 00000000, renumerado 0000.00000000, com o capital inicial concedido de 27.610,95€ - dívida por capital de 16.899,24€;

c)- empréstimo crédito hipotecário n.º00000000, renumerado 00000000000, com o capital inicial concedido de 99.759,58€ - dívida por capital de 61.187,37€, tudo num total de 144.680,92€ (matéria do art. 40.º da petição inicial);

O) O Banco ..... não detetou nos seus registos qualquer seguro de vida associado aos créditos referidos em N) (matéria do art. 41.º da petição inicial);

P) A Ré informou os Autores que a apólice referida em F) fora anulada em janeiro de 2006, tendo enviado uma comunicação dirigida ao Banco Comercial Português datada de 26/12/2005, com o assunto de “cessação de contrato por falta de pagamento de prémios”, informando que a apólice 000000 do cliente EE apresentava falta de liquidação de recibos, que se não fossem liquidados em 15 dias, geraria a anulação da apólice (matéria dos arts. 42.º a 44.º da petição inicial);

Q) O Banco Comercial Português nada mutuou a DD ou EE nem na data referida em P) tinha relação de participação social ou sucessão obrigacional com o ............ (matéria dos arts. 45.º e 46.º da petição inicial);

R) A Seguradora nunca efetuou a DD qualquer comunicação para a morada referida em F), fosse solicitando pagamento, fosse de advertência para anulação da apólice (matéria do art. 49.º da petição inicial);

S) A Ré enviou recibo de pagamento de prémio referente ao período entre 1/1/2006 e 1/2/2006, com data limite de pagamento a 31/1/2006, que foi pago a 2/2/2006 (matéria dos arts. 54.º e 55.º da petição inicial);

T) Em 28/5/2016, faleceu EE, no estado de divorciado de DD (matéria do art. 56.º da petição inicial);

U) De 2002 a 2005, o EE continuou a proceder aos pagamentos dos prémios que se venciam ao dia 1 de cada mês, não tendo o divórcio reflexos no pagamento (matéria dos arts. 15.º e 16.º da contestação);

V) A Ré enviou comunicação dirigida a EE, datada de 26/12/2005, para a morada U.........te, Lote .., 3.... ..........., com o assunto de pagamento de recibos de prémios em atraso, informando que se não fossem liquidados em 15 dias, geraria a anulação da apólice, descrevendo os prémios em falta como de 1/9/2003 a 1/10/2003 no valor de €206,89 e de 1/2/2004 a 1/4/2004 no valor de € 455,96, no valor global de € 662,85 (matéria dos arts. 17.º e 28.º da contestação);

W) Em 25/6/2007, um advogado, intitulando-se mandatário de DD informou a Ré do divórcio e partilha, declarando que a Ré não notificou aquela da falta de pagamento de prémios e que tomou conhecimento da anulação efetuada pela Ré ao pretender reforçar a hipoteca, sendo que a Ré não teria informando nem DD de Almeida nem o ............, e designado então Banco ....., credor hipotecário, mais advertindo a Ré para revogar a anulação do contrato de seguro e solicitando a indicação das quantias em falta a fim de proceder ao pagamento sem encargos adicionais (matéria do art. 23.º da contestação);

X) Em 1/8/2007, a Ré respondeu ao sr. advogado dizendo que responderia diretamente a DD por aquele não ter junto procuração (matéria do art. 24.º da contestação);

Y) A Ré enviou comunicação dirigida a DD, datada de 1/8/2007, para a morada Rua...., Lote .., ..............., acusando a receção da carta descrita em W), lamentando a demora na resposta, justificando tal com o historial a consultar, informando que havia uma alteração nas cláusulas contratuais nunca comunicada, nomeadamente a exoneração de EE, e que antes de poderem proceder a qualquer alteração na apólice seria necessário o envio da declaração da entidade bancária a autorizar a exoneração do referido José Pires, bem como a data da mesma, mais informando que havia sido comunicado a 26/12/2005 ao 1.º titular da apólice que se os recibos em falta não fossem liquidados em 15 dias, geraria a anulação da apólice (matéria dos arts. 26.º e 29.º da contestação);

Z)DD não enviou resposta à Ré, após o referido em Y) (matéria do art. 30.º da contestação);

AA) DD pagou os recibos em aberto anteriores ao mencionado em S), depois disso não havendo mais pagamentos (matéria das als. b) e c) da resposta ao articulado superveniente);

BB) EE não informou a seguradora de qualquer mudança de residência (matéria das als. d) e f) da resposta ao articulado superveniente);

CC) Os prémios em dívida desde a data referida em S) até à data referida em B), para o capital referido em H) encontram-se compreendidos entre o montante mínimo de €37.500,00 e o máximo de €63.662,13 (matéria das als. n) e q) da resposta ao articulado superveniente) (alterado pela Relação).

Factos não provados:

1) Que após o decesso da mãe, tendo de impulsionar as necessárias formalidades post mortem, tivessem os Autores de se inteirar de ativos patrimoniais e passivos do de cujus, o que fizeram para efeitos de habilitação de herdeiros e apresentação de relação de bens para sequente liquidação de imposto de selo, deslocando-se ao Banco ....., S.A., para se inteirarem das obrigações e direitos da falecida mãe (matéria dos arts. 12.º e 39.º da petição inicial);

2) Que após a receção da comunicação referida em C), os Autores se dirigissem a agência sita em ........... indagando acerca de aplicações, responsabilidades e seguros de vida associados às mesmas, imbuídos do conhecimento comum que os Bancos fazem acompanhar a celebração de créditos habitacionais hipotecários da contração de seguros de vida pelos seus mutuários (matéria do art. 13.º da petição inicial);

3) [Eliminado pela Relação];

4) Que a comunicação referida em Y) fosse endereçada para o local habitual (matéria do art. 18.º da contestação).

            Quanto à omissão de pronúncia:

Invocam os Autores recorrentes a nulidade do acórdão recorrido, com fundamento em omissão de pronúncia, alegando para o efeito que, não tendo a motivação recursiva apresentada pela Ré sido dirigida a nenhum Tribunal ad quem e não tendo esta formulado nenhum pedido de alteração/anulação/revogação da sentença, a Relação não se pronunciou sobre tais debilidades e sua repercussões, apesar de tais questões terem sido expressamente suscitadas nas contra-alegações.

Trata-se de questão que apenas poderia ter a ver com a admissibilidade da apelação.                       

Ora sucede que o recurso, após ter sido admitido na 1ª instância (fls. 271) e mandado subir, veio a ser admitido na Relação por despacho do respetivo Relator (fls. 274) – despacho este proferido ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 641º, nº 5 e 652º, nº 1, al. b) do CPC.

Assim, não concordando com este despacho, cabia aos Autores ora recorrentes reclamar para a conferência, nos termos do disposto no nº 3 deste último artigo – o que não fizeram.

Por tal razão, precludido ficou o conhecimento das invocadas “debilidades” – razão pela qual as mesmas não tinham que ser apreciadas no acórdão recorrido.

           

Não obstante, sempre se dirá que, contrariamente ao que sucede com a apresentação da petição inicial [na qual o autor deve designar o tribunal onde a ação é proposta, nos termos do disposto no artigo 552º, nº 1, al. a) do CPC], a lei não exige que o recorrente indique no requerimento de interposição de recurso qual o tribunal superior a que este é dirigido.

Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 637º do CPC apenas se exige que o requerimento de interposição de recurso seja dirigido ao tribunal que proferiu a decisão recorrida.

E, quanto à falta de formulação de pedido de alteração, revogação ou anulação, tal não corresponde à verdade, na medida em que, conforme se alcança da última conclusão [conclusão O) a fls. 241 vº] a Ré tomou posição no sentido de peticionar a sua absolvição e, como tal, a revogação da sentença, ao dizer que “não pode a seguradora ser condenada a pagar-lhe o capital, por não ser parte na ação, nem o banco beneficiado em receber uma indemnização de um direito que ele próprio confessa não ser detentor”.

           

Improcedem assim claramente, nesta parte, as conclusões recursórias.

Quanto à inexistência de abuso de direito dos autores:

Está em causa nos autos um contrato de seguro do ramo vida, celebrado entre os pais dos Autores, entretanto falecidos, e a Ré seguradora, contrato esse associado e como garantia de mútuo para habitação (3 empréstimos), ficando o Banco credor como tomador do seguro.

Resultou provado que, face à falta de pagamento dos prémios do seguro em finais de dezembro de 2005, a ré enviou carta ao pai dos autores advertindo para a falta de pagamento com a consequente anulação passados que fossem 15 dias sem liquidação dos prémios vencidos.

Todavia, a 1ª instância considerou inoperante tal resolução pelo facto de a Ré não ter procedido à resolução também relativamente a um dos segurados: a mãe dos Autores.

Assim, entendendo que a apólice contratada se mantinha em vigor, a 1ª instância considerou que a Ré devia pagar ao Banco credor a quantia necessária à amortização do empréstimo à data do falecimento da mãe dos autores, no montante de € 144.680,92, revertendo o valor remanescente de € 93.744,47 a favor dos Autores (atento o valor do seguro: € 238.425,39), acrescido de juros de mora desde a data da sentença (nos termos constantes da decisão proferida e supra mencionada)

E, tomando posição sobre o abuso de direito, de conhecimento oficioso, veio a considerar que o mesmo se não verificava, uma vez que “a seguradora gozou de tempo suficiente para se precaver de qualquer indesejada demanda e apesar disso, não quis, ou não soube, usá-lo na defesa dos direitos que lhe assistiam”.

           

Todavia, considerou que, pressupondo o acionamento de um seguro a vigência de um contrato durante o qual é suposto haver, pela contraparte da seguradora, o pagamento periódico de um prémio, para evitar qualquer abuso de direito, os autores deviam assumir o pagamento dos prémios em falta no valor de € 63.662,13 – e daí considerar que os mesmos apenas teriam direito ao remanescente de € 30.082,34.

A Relação veio a subscrever o entendimento da 1ª instância relativo à não resolução do contrato de seguro em questão, pelo facto de não ter demonstrado, conforme lhe competia, que tinha comunicado a decisão de revogar o contrato a ambos os segurados, ou seja, também em relação à mãe dos Autores.

            Todavia veio a considerar que os Autores, com a presente ação, agem com abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, uma vez que os pais agiram considerando o contrato como extinto, dado que, nos termos da factualidade provada, a mãe se conformou ou quis mesmo que o contrato de seguro, declarado extinto pela seguradora, continuasse extinto.

            E daí, a revogação da sentença e a absolvição da ré do pedido.

É contra tal entendimento que se manifestam os recorrentes, nos termos das conclusões recursórias supra transcritas.

            Todavia, desde já se diga que, a nosso ver, sem razão.

            Com efeito, atenta a factualidade dada como provada nos autos, somos levados a concordar inteiramente com o entendimento da Relação plasmado no acórdão recorrido cuja fundamentação subscrevemos.

Não estando sequer em causa o entendimento a que uniformemente chegaram as instâncias no sentido da inexistência de resolução válida do contrato de seguro, por parte da Ré seguradora, ora recorrida, estamos assim de acordo com o entendimento plasmado no acórdão recorrido no sentido de que ao virem a exigir o pagamento do valor do seguro, nas circunstâncias apuradas, os Autores agem com abuso de direito (nos termos do artigo 334º do C. Civil) na modalidade de venire contra factum proprium.

            Nos termos do disposto no referido artigo 334º, há abuso de direito quando o titular do direito o exercer de forma a ofender manifestamente os limites da boa-fé, dos bons costumes e do fim social e económico do direito.

            E, conforme tem vindo a ser entendido pacificamente na jurisprudência, o abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium resulta da violação do princípio da confiança, traduzida no facto de o demandante a agir, de forma claramente ofensiva, contra as fundadas expetativas por ele criadas no demandado, no sentido do não exercício do direito.

Nesse sentido, entre outros, vide acórdãos do STJ (in www.dgsi.pt):

- De 11.12.2012, proferido no proc. nº 116/07.2TBMCN.P1.S1:“ Esta vertente do abuso de direito inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adota uma conduta inconciliável com as expetativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes atuara”.

- De 27.04.2017, proferido no proc. nº 1192/12.1TVLSB.L1.S1: “I - Para que ocorra o abuso do direito, é necessário que o titular do direito o exerça de forma clamorosamente ofensiva da justiça e dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito. Não é necessária a consciência de que se excederam os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. É suficiente que esses limites sejam ultrapassados. O excesso deve ser manifesto. II - Como modalidade do abuso do direito, a doutrina e a jurisprudência, apontam o venire contra factum proprium, abuso que ocorre quando o exercício do agente contradiz uma conduta antes presumida ou proclamada pelo mesmo.”

E de 07.03.2019, proferido no proc. nº 499/14.8T8EVR.E1.S1: “O abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium, tem como pressuposto a existência de uma situação objetiva de confiança, cuja relevância é aferida pelo necessário para convencer uma pessoa normal e razoável, colocada na posição do confiante, e de um elemento subjetivo, ou seja, a criação, na pessoa do confiante, de uma confiança legítima e justificada.”

Compulsada a factualidade dada como provada pelas instâncias, e com interesse específico para a questão do abuso de direito, relevam no essencial os seguintes elementos factuais:

- O contrato de seguro em questão (ramo vida) foi celebrado entre os pais dos Autores e a antecessora da Ré em dezembro de 2001, para garantia dos 3 em préstimos contraídos junto do ............, atualmente Banco ..... SA (beneficiário do seguro); 

- O pagamento dos prémios era feito por débito em conta do pai dos Autores (1ª pessoa segura);                    

            - Ficou a constar como morada dos pais dos Autores a U.........te, Rua... Lote .., 0000...........;

- Os pais dos Autores divorciaram-se por mútuo consentimento em 05.07.2002 e em 28.0422004 efetuaram partilha dos bens, sendo o imóvel adjudicado à mãe, e bem assim a dívida relativa aos empréstimos;

           - Do que a Ré não foi informada, até à receção da carta de 25.06.2006;

- Apesar da partilha, o pai dos Autores continuou a proceder ao pagamento dos prémios de 2002 a 2005;

- Os pais dos Autores faleceram em 28.05.2016 (pai) e em 25.02.2017 (mãe);

            - Por carta de 26.12.2005 dirigida ao pai dos Autores para a morada indicada no contrato, a Ré solicitou o pagamento dos prémios, em dívida, de 01.092003 a 01.10.2003 (€ 206,89) e de 01.02.2004 a 01.04.2004 (€ 455,96), no prazo de 15 dias sob pena de anulação da apólice;

- A Ré ainda enviou recibo de pagamento de prémio referente ao período entre 1/1/2006 e 1/2/2006, com data limite de pagamento a 31/1/2006, que foi pago a 2/2/2006 ;

- A mãe dos autores pagou os recibos em aberto anteriores, depois disso não havendo mais pagamentos;

- Em 25/6/2007, um advogado, intitulando-se mandatário de DD informou a Ré do divórcio e partilha, declarando que a Ré não notificou aquela da falta de pagamento de prémios e que tomou conhecimento da anulação efetuada pela Ré ao pretender reforçar a hipoteca, sendo que a Ré não teria informando nem DD nem o ............, e designado então Banco ....., credor hipotecário, mais advertindo a Ré para revogar a anulação do contrato de seguro e solicitando a indicação das quantias em falta a fim de proceder ao pagamento sem encargos adicionais;

- A Ré respondeu, dizendo que responderia diretamente à mãe dos Autores por aquele não ter junto procuração;

- A Ré enviou comunicação dirigida à mãe dos Autores, datada de 1/8/2007, para a morada Rua..., Lote ..,0000 ..........., acusando a receção da carta que lhe foi enviada pelo advogado, lamentando a demora na resposta, justificando tal com o historial a consultar, informando que havia uma alteração nas cláusulas contratuais nunca comunicada, nomeadamente a exoneração de EE, e que antes de poderem proceder a qualquer alteração na apólice seria necessário o envio da declaração da entidade bancária a autorizar a exoneração do referido Es, bem como a data da mesma, mais informando que havia sido comunicado a 26/12/2005 ao 1.º titular da apólice que se os recibos em falta não fossem liquidados em 15 dias, geraria a anulação da apólice;

- A mãe dos autores não enviou resposta à Ré;

- O pai dos Autores não informou a Ré de qualquer mudança de residência;

- Os prémios em dívida posteriores a o de fevereiro de 2006 até à data do falecimento da mãe dos Autores encontram-se compreendidos entre o montante mínimo de €37.500,00 e o máximo de €63.662,13;

Resulta assim de tal factualidade, desde logo que, não obstante a Ré não ter solicitado à mãe dos Autores o pagamento dos prémios do seguro em dívida em finais de 2005, com a cominação da anulação do contrato de seguro, conforme o fez em relação ao pai dos Autores, o certo é que para além de a Ré nada saber sobre o divórcio e partilha dos pais dos Autores (já que tal não lhe foi comunicado), se constata que à data da celebração do contrato, estes eram casados, viviam na mesma residência, que foi indicada no contrato, e que foi o pai que ficou com a responsabilidade do pagamento por débito na sua conta (sendo que tal forma de pagamento ainda perdurou por algum tempo).

            Desta forma, apesar de a interpelação para pagamento sob cominação ter sido formalmente incorreta (porque dirigida apenas a um dos segurados contratantes), haveremos de concluir no sentido da boa fé da Ré, que ao agir assim e ao considerar como anulado o contrato.

E o certo é que o pai dos Autores (falecido em 28.05.2016) nada veio a fazer (pagar ou questionar o que quer que fosse) - o que significa claramente ter aceite como válida a anulação do contrato.

            Apenas a mãe dos Autores veio posteriormente proceder aos pagamentos em falta até fevereiro de 2006.

Todavia, a partir daí nada mais pagou, sendo que pelo menos em 25.06.2007 (pela carta dirigida à Ré através de advogado) ficou a saber que (bem ou mal) a Ré tinha procedido à anulação do contrato.

E o facto de com aquela missiva pretender que a Ré procedesse à revogação da anulação do contrato, significa que também ela terá ficado convencida de que o contrato havia sido dado como extinto - sendo que, desde então (2007) e até à sua morte, em 25.02.2017, nada mais pagou e nada mais fez, designadamente no sentido de pugnar pela validade do contrato e/ou proceder ao pagamento dos prémios referentes a tal período.

            E isto independentemente de se saber se a carta datada de 01.08.2007 que lhe foi dirigida pela Ré (mas para a morada indicada no contrato) e à qual não foi dada resposta, foi por si rececionada.

            Assim, com tal conduta omissiva, durante dez anos, a mãe dos Autores (e por maioria de razão também o pai destes, e desde data anterior), criou na Ré a fundada e justa convicção de que, também os segurados aceitaram que o contrato de seguro deixou de vigorar e que, por isso, jamais lhe viria a ser exigido o pagamento do capital objeto do seguro, razão pela qual nada mais lhe foi pago, em matéria de prémios (o que, de resto, também jamais exigiu deles).

Assim, a conduta dos Autores, ao virem exigir da Ré o pagamento do capital do seguro (e apenas na qualidade de sucessores daqueles) dez anos depois e apenas após o falecimento dos segurados, está em manifesta contradição com o supra referido comportamento dos seus antecessores e com as fundadas expetativas por estes criadas na Ré, no sentido do não exercício do direito que ora invocam com a presente ação.

           

Estamos assim inteiramente de acordo com a Relação quando, a propósito, expende no acórdão recorrido:

“A mãe dos Autores sabia que tinha assumido perante o ex-marido o pagamento do passivo, ou seja, assumiu o pagamento das despesas inerentes à casa de habitação que o ex-casal tinha adquirido, pois tendo-lhe sido adjudicada a casa na partilha dos bens comuns, suportaria o passivo correspondente.

Soube que o seu ex-marido tinha deixado de pagar alguns dos prémios do seguro e que a Ré seguradora, por causa da falta de pagamento, tinha anulado o contrato de seguro.

A mãe dos Autores quis restaurar o contrato de seguro e pagou os prémios que estavam em dívida, mas feito este pagamento não pagou mais qualquer prémio até falecer, ou seja, não pagou qualquer prémio entre Fevereiro de 2006 e Fevereiro de 2017, isto é, durante 11 anos.

Que conclusão se pode retirar destes factos no âmbito da intenção, vontade e decisão da mãe dos Autores quanto à vigência do contrato de seguro?

Afigura-se indubitável que a mãe dos Autores não tendo pago mais qualquer prémio depois de fevereiro de 2006 teve como certo que o contrato de seguro que tinha sido extinto pela seguradora continuaria extinto e conformou-se ou quis mesmo que continuasse extinto, pois se não fosse essa a sua vontade teria feito contatos junto da seguradora e teria reposto o contrato ou teria celebrado um novo contrato, o que não sucedeu.

Acresce que a mãe dos Autores poderia não ter interesse em manter o contrato de seguro, pois não existindo contrato evitava pagar todos os meses uma quantia significativa que, com o seu envelhecimento, seria todos os anos mais elevada.

Recorde-se que o último pagamento mensal que fez foi em fevereiros de 2006, no montante de €280,03 euros, e que em 0000 o salário mínimo nacional era de €385,90 (Decreto Lei n.º 238/2005 de 30/12).

 E, como é sabido, estes contratos de seguro de vida resultam, em regra, do crédito à aquisição de bens, de exigências feitas aos mutuários pelos bancos mutuantes, adquirindo eles mais uma garantia de que o seu crédito será pago, caso o mutuário venha a falecer ou a ficar incapacitado de angariar rendimentos.

É de concluir, por conseguinte, face aos factos provados, que a mãe dos Autores se conformou ou quis mesmo que o contrato de seguro, declarado extinto pela seguradora, continuasse extinto.

Concluindo-se como se conclui, então não pode deixar de se verificar uma situação de abuso de direito por parte dos Autores, os quais sucedem na posição dos seus pais quanto às relações jurídicas resultantes do contrato de seguro.

Se os seus pais agiram considerando o contrato extinto, não podem agora os seus herdeiros venire contra factum proprium, isto é, agir em contradição com a postura dos seus pais, como se o contrato sempre tivesse estado em vigor para eles (pais).”.

Em face do exposto, soçobram claramente os argumentos invocado pelos recorrentes, razão pela qual se impõe a confirmação do acórdão recorrido.

Em síntese:

I. O abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium resulta da violação do princípio da confiança, traduzida no facto de o demandante agir, de forma claramente ofensiva, contra as fundadas expetativas por ele criadas no demandado, no sentido do não exercício do direito.

II. Agem com abuso de direito os autores ao acionar, em 2017, o seguro de vida celebrado entre os seus pais (falecidos, o pai em 2016 e a mãe em 2017) e a ré seguradora, quando, apesar de a resolução do contrato com fundamento na falta de pagamento de prémios de seguro ter sido comunicada apenas ao pai dos autores em finais de dezembro de 2005, a mãe dos autores, 2007, tomando conhecimento dessa resolução, ficou convencida de que o contrato havia sido considerado extinto (tendo solicitado à seguradora a revogação da anulação) e durante 10 anos, ou seja, até à sua morte (bem como o falecido pai), nada mais fez, no sentido de pugnar pela validade do contrato ou de proceder ao pagamento dos prémios de seguro.

III. Com tal conduta, a mãe dos autores criou na ré a fundada convicção de que os segurados aceitaram que o contrato deixou de vigorar e que, por isso, jamais lhe viria a ser exigido o pagamento do capital objeto do seguro.

IV. Ao exigirem da ré o pagamento do capital do seguro dez anos depois e apenas após o falecimento dos segurados, os autores agem em manifesta contradição com o comportamento omissivo dos seus antecessores e com as fundadas expetativas por estes criadas na Ré, no sentido do não exercício do direito que ora invocam com a presente ação.

Termos em que se acorda em negar a revista e em confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 10 de dezembro de 2019

           

                                       


Acácio das Neves (Relator)

          
Fernando Samões

         
Maria João Vaz Tomé


(Acórdão e sumário redigidos ao abrigo do novo Acordo Ortográfico)