Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1744/05.6TBAMT.P1 S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
PARTILHA EM VIDA
DOAÇÃO
NEGÓCIO GRATUITO
TORNAS
Data do Acordão: 04/16/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL - DIREITO DA FAMÍLIA / CASAMENTO / DÍVIDAS DOS CONJUGES - DIREITO DAS SUCESSÕES / PARTILHA EM VIDA.
DIREITO COMERCIAL - DÍVIDAS COMERCIAIS.
Doutrina:
- António Pinto Monteiro-Paulo Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, p. 401.
- Capelo de Sousa, Lições de Direito das Suces­sões, II, p. 47 e sgs..
- Leite de Campos, Benjamim Rodrigues e Lopes de Sousa, LGT Comentada e anotada,136.
- Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, p. 499.
- Luís Meneses Leitão, Direito das Obrigações, 3ª edição, III, p. 214.
- Manuel Baptista Lopes, das Doações, p. 37 e sgs..
- Nuno Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, Vol. I, 240.
- Pires de Lima-Antunes Varela, CC Anotado, VI, p. 22.
- Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, VII, p. 244.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 610.º, 612.º, N.º1, 940.º, N.º1, 1691.º, N.º 1, D), 2029.º.
CÓDIGO COMERCIAL (C.COM.): - ARTIGO 15.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 8/11/2007, Pº 07B3586, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
-DE 2/2/2010, Pº 3573/06.OTBOAZ.P1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :

I - O negócio de partilha em vida (art. 2029.º do CC) é qualificável como um contrato de doação (art. 940.º, n.º 1, do CC) e, portanto, como um negócio gratuito em que não existe nenhuma contrapartida pecuniária em relação à transmissão dos bens, já que importa sacrifícios económicos apenas para uma das partes – o doador.

II - Não há na partilha em vida atribuições patrimoniais que devam ser tidas como prestações correspectivas fazendo dela um negócio oneroso, ou seja, um negócio em que cada uma das atribuições é, segundo a vontade das partes, a contrapartida da outra; e a existência de tornas a que haja lugar funcionam como meio de composição dos quinhões dos herdeiros legitimários, tendo por finalidade propiciar a igualação da partilha que se efectuou através da doação efectuada.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

Em representação da Fazenda Pública – Estado Português, o  Ministério Público propôs uma acção ordinária contra os réus AA e sua mulher BB, CC e DD.

Após alteração que foi admitida, pediu que:

a) Seja declarado que o crédito do autor relativo ao IVA dos anos de 1999 e 2000 e juros compensatórios, estes contados até 25/08/03, ascendia a 825.918,07 € e 205.237,91 €, respectivamente, e é anterior à escritura de partilha em vida impugnada, celebrada no Cartório Notarial de Amarante, em 21/07/03;

b) Seja declarado que os réus outorgaram a escritura com conhecimento das dívidas de imposto e da proximidade da sua cobrança;

c) Seja declarado que a partilha em vida é um negócio gratuito: uma doação;

d) Seja declarado que os réus AA e mulher não possuem, por via do negócio jurídico impugnado, património fundiário ou outro susceptível de garantir o cumprimento da obrigação em dívida;

e) Seja declarado que o autor se encontra impossibilitado de satisfazer integralmente o seu crédito, a não ser no património objecto da partilha em vida/doação;

f) Seja declarada procedente a presente acção de impugnação da partilha em vida e, por via disso, o autor autorizado a executar no património dos donatários, os réus CC e DD a, os bens imóveis necessários e suficientes à satisfação do seu crédito;

g) De forma a ver-se pago do seu crédito por via da venda executiva subsequente à penhora dos bens transmitidos em exclusividade e sem concorrência de outros;

h) Seja declarado que pode usar dos meios cautelares necessários a garantir a disponibilidade executiva sobre o património que adveio aos réus donatários da partilha em vida.

Alegou que o réu AA é devedor de IVA ao Estado, num total de 825.918,07 €, acrescido de juros compensatórios; que por escritura de doação e partilha os réus AA e mulher declararam doar aos restantes réus, seus filhos, os imóveis identificados na petição inicial; que todos os réus actuaram com o propósito de prejudicar a Fazenda Nacional, tornando impossível a cobrança, sendo certo que conheciam aquele crédito; que quiseram obstar à penhora dos prédios; e que os primeiros réus não possuem quaisquer outros bens.

Os réus contestaram invocando, por excepção, a nulidade da citação, a ineptidão da petição inicial e a ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio passivo, dado que não foi demandado o marido da ré DD, sendo ambos casados em comunhão de adquiridos; no mais, impugnaram os factos alegados pelo autor, concluindo pela improcedência da acção e pela sua absolvição dos pedidos.

O autor replicou, deduzindo incidente de chamamento à demanda – intervenção principal passiva – do marido da ré DD e reduzindo e alterando o pedido.

Foi admitida a intervenção do chamado, que não contestou.

No despacho saneador admitiu-se a alteração do pedido e julgaram-se improcedentes as excepções dilatórias invocadas pelos réus.

Realizado o julgamento e estabelecidos os factos foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, decidiu nos seguintes termos, que se transcrevem:

“a) declarar que o crédito do autor Fazenda Pública – Estado Português relativo ao IVA dos anos de 1999 e 2000 e juros compensatórios, estes contados até 25/08/03, ascendia a € 825.918,07 e 205.237,91, respectivamente, e é anterior à escritura de partilha em vida impugnada, celebrada no Cartório Notarial de Amarante, em 21/07/03;

b) declarar que o réu AA outorgou a escritura com conhecimento das dívidas de imposto e da proximidade da sua cobrança;

c) declarar que a partilha em vida é um negócio gratuito: uma doação;

d) declarar que os réus AA e mulher BB não possuem, por via do negócio jurídico impugnado, património fundiário ou outro susceptível de garantir o cumprimento da obrigação em dívida;

e) declarar que o autor se encontra impossibilitado de satisfazer integralmente o seu crédito, a não ser no património objecto da partilha em vida/doação;

f) julgar procedente a impugnação da partilha em vida e, por via disso, autoriza-se o autor a executar no património dos donatários, os réus CC e DD, os bens imóveis a eles doados nessa escritura necessários e suficientes à satisfação do seu crédito, de forma a ver-se pago do seu crédito por via da venda executiva subsequente à penhora dos bens transmitidos;

g) declarar que o autor pode usar dos meios cautelares necessários a garantir a disponibilidade executiva sobre o património que adveio aos réus donatários da partilha em vida;

h) absolver os réus do demais peticionado”.

Os réus apelaram, mas sem êxito, pois a Relação do Porto, por acórdão de 11/10/12 (fls 565 e sgs), confirmou a sentença.

Daí o presente recurso de revista, cuja alegação os réus encerraram com as seguintes conclusões:

1ª) – A partilha em vida impugnada, tal qual vem configurada no respectivo título, constitui negócio oneroso nos termos e para os efeitos do disposto no artº 612º CC;

2ª) – O acórdão sob recurso, ao confirmar, nessa parte, a sentença da 1ª instância, interpretou e aplicou erradamente o artº 612º, em conjugação com o artº 2029º, ambos do CC;

3ª) – A ter-se como correctamente interpretado o artº 612º, em conjugação com o artº 2029º, ambos do CC – como faz o acórdão recorrido – no sentido de a partilha em vida ser considerada, para efeitos de impugnação pauliana, como acto gratuito quando haja atribuição e pagamento de tornas por algum dos interessados, as normas ínsitas naqueles preceitos legais são materialmente inconstitucionais, por violação dos princípios da proporcionalidade, da justiça e da tutela jurisdicional efectiva;

4ª) – Ao considerar o crédito do autor anterior ao acto impugnado, o acórdão recorrido violou o artº 610º, al. a), CC, devendo ter-se tal crédito como existente unicamente a partir da liquidação respectiva pela administração tributária e sua subsequente notificação ao contribuinte devedor;

5ª) – Ao confirmar a procedência da impugnação relativamente à ré Maria Emília, o acórdão recorrido, na medida em que as dívidas de IVA do seu cônjuge não são dívidas comerciais e, em todo o caso, não foi dado como provado que foram contraídas por ele no exercício profissional de actividade comercial, viola o disposto nos artº 1691º, nº 1, d), CC e 15º Código Comercial, em conjugação com os artºs 610º e sgs CC;

6ª) – Não estão verificados todos os requisitos legalmente exigíveis para a procedência da impugnação, confirmada pelo acórdão recorrido.

O autor contra alegou, defendendo a confirmação do julgado.

II. Fundamentação

a) Matéria de Facto

A Relação considerou provados os seguintes factos:

1) Pela escritura de partilha em vida de fls. 71, cujo teor se dá por repetido, celebrada em 21 de Julho de 2003, os réus AA e mulher BB declararam doar a seus filhos, os réus CC e DD, como adiantamento das respectivas quotas hereditárias, os prédios identificados na relação de fls. 76, cujo teor se dá por repetido.

2) O réu AA exercia a actividade de comércio de automóveis

3) E foi objecto de uma acção inspectiva no âmbito do IVA, que teve início em 23 de Janeiro de 2003, tendo o referido réu sido notificado, por carta remetida a 22.05.2003, do "Projecto de Conclusões do Relatório de Inspecção" para, querendo, exercer o direito de audição.

4) Depois de uma tentativa frustrada, por o réu não ter reclamado nos CTT a carta que lhe foi enviada em 03.07.2003, o réu foi notificado, em 29.07.2003, do relatório final da acção inspectiva, que registava IVA em falta, no total de € 825.918,07, sendo € 677.729,58 do ano de 1999 e € 148.188,49 do ano de 2000.

5) Em 25 de Agosto de 2003, foi efectuada a liquidação do IVA, estando em falta por parte do réu AA € 825.918,07, acrescido de juros compensatórios no total de € 205.237,91.

6) Com a escritura referida em 1, o Estado ficou impossibilitado de reaver, no todo ou em parte, o IVA referido em 4, já que ao réu AA não são conhecidos outros bens para além de uns depósitos bancários que não se mostraram suficientes para o pagamento de quantia não superior a € 10.000,00.

7) Por sentença proferida em 12.03.2010 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, foi julgada improcedente a impugnação judicial da decisão que negou provimento ao recurso hierárquico interposto da decisão de indeferimento da reclamação graciosa das liquidações adicionais de IVA e correspondentes juros compensatórios, respeitantes aos anos de 1999 e 1º trimestre de 2000, nos valores de 677.729,58€ e 148.188,49€, na importância total de 1.031.155,98€, conforme certidão de fls. 366 a 398, aqui dada por integralmente reproduzida.

b) Matéria de Direito

A apelação dos réus improcedeu porque a Relação confirmou o julgamento da 1ª instância no sentido de que no caso presente se verificam todos os requisitos da impugnação pauliana fixados nos artºs 610º e 612º do Código Civil (diploma a que, salvo menção em contrário, pertencem todos os artigos citados).

Nesta revista, como se vê das conclusões destacadas, os recorrentes censuram o acórdão recorrido na parte em que, com referência àqueles requisitos, considerou estar-se em presença dum negócio gratuito (o que leva à dispensa do requisito da má fé, nos termos do artº 612º, nº 1) e dum crédito anterior ao acto impugnado. Sustentam, por um lado, que a partilha em vida formalizada na escritura de 21/7/03 (facto 1) constitui um acto oneroso, porquanto “há diversas atribuições patrimoniais de que beneficiam os diferentes outorgantes à custa de outros dos outorgantes, ficando o réu António obrigado a dar tornas (como deu) quer à irmã, quer aos pais” (fls 616); e alegam, por outro lado, que só o acto tributário de liquidação validamente notificado ao sujeito passivo tem a virtualidade de definir a existência do crédito do Estado correspondente ao valor do imposto e juros compensatórios liquidados para efeitos de impugnação pauliana, razão pela qual deve entender-se que, para os efeitos indicados no artº 610º, o crédito do autor é posterior ao negócio impugnado.

Estas duas questões foram já colocadas na apelação, sendo certo que a Relação as decidiu por forma que merece a nossa inteira concordância, e com fundamentação rigorosa e adequada, para a qual se remete, sem prejuízo do que a seguir se refere.

Assim, quanto ao negócio da partilha em vida, cabe referir que a doutrina e a jurisprudência são praticamente unânimes, ao que sabemos, no que toca à sua qualificação como um contrato de doação e, portanto, como um negócio gratuito, ou seja, um negócio em que não existe nenhuma contrapartida pecuniária em relação à transmissão dos bens, já que importa sacrifícios económicos apenas para uma das uma das partes - o doador. Negócio gratuito, dito doutra forma, porque, como ensinam António Pinto Monteiro-Paulo Mota Pinto, nele se cria, e há acordo das partes quanto a isso,  “uma vantagem patrimonial para um dos sujeitos sem nenhum equivalente.” [1]. Como claramente resulta do artº 2029º a partilha em vida é efectivamente uma doação, tal como definida no artº 940º, nº 1, muito embora com um regime particular, específico, que lhe advém de ser feita a presumidos herdeiros legitimários e com encargos a favor dos outros presumidos herdeiros legitimários [2]. Não há na partilha em vida, e não houve na que se discutiu neste processo, atribuições patrimoniais entre os réus que devam ser tidas como prestações correspectivas fazendo dela um negócio oneroso, ou seja, um negócio em que cada uma das atribuições é, segundo a vontade das partes, a contrapartida da outra; e a existência de tornas em nada influencia a gratuitidade do negócio, já que as tornas a que haja lugar funcionam como meio de composição dos quinhões dos herdeiros legitimários, tendo por finalidade propiciar a igualação da partilha que se efectuou através da doação efectuada (neste sentido cfr. o acórdão do STJ de 8.11.07 - Pº 07B3586, acessível em www.stj.pt).

Quanto à anterioridade do crédito, reproduzimos as considerações desenvolvidas no acórdão recorrido, que respondem cabalmente, a nosso ver, às objeções colocadas pelos recorrentes:

“Sustentam também os Recorrentes o crédito do autor, para os efeitos previstos no art. 610º, só pode considerar-se constituído com a notificação da liquidação, pelo que é posterior ao acto impugnado. E sendo posterior, a procedência da impugnação estava dependente da alegação e prova do dolo, o que não foi feito.

Afigura-se-nos que não têm razão também quanto a esta questão, entendendo-se, como na sentença recorrida, que crédito se constituiu no momento em que decorreu o prazo legal para o pagamento daquele IVA, sem que tal pagamento tivesse sido efectuado, e não com o acto tributário de liquidação adicional que, na sequência da acção inspectiva, veio a ser notificado ao sujeito passivo do imposto.

Nos termos do art. 36º nº 1 da Lei Geral Tributária (LGT), a relação jurídica tributária constitui-se com o facto tributário.

"O facto tributário é, assim, o pressuposto legal, de carácter fáctico, que determina o nascimento da obrigação tributária.

Um facto material produz efeitos tributários sempre que se enquadre num tipo legal de imposto. Nos tipos legais de imposto podem distinguir-se dois elementos: o objectivo e o subjectivo. O elemento objectivo corresponde ao facto ou aos factos que o legislador previu como determinando o nascimento do imposto. O elemento subjectivo traduz a conexão entre o elemento objectivo (factos) e o sujeito passivo"[3].

O IVA é um imposto geral sobre a despesa (aplica-se a todas as operações económicas), plurifásico (aplica-se a todas as fases do circuito económico) e sem efeitos cumulativos (incide apenas sobre o aumento de valor que os bens passam a ter em cada fase)[4].

Estão sujeitos a este imposto, designadamente, as transmissões e as importações de bens – art. 1º a) e b) do CIVA.

O facto gerador e a exigibilidade do imposto vêm previstos nos arts. 7º e 8º deste diploma: em regra, o imposto é devido e torna-se exigível no momento em que os bens são postos à disposição do adquirente, no momento do despacho aduaneiro ou da realização da venda (importações) ou no momento da emissão da factura.

O montante do imposto exigível deve ser pago periodicamente, acompanhando as declarações periódicas (no caso, trimestrais) – arts. 27º e 41º do CIVA.

Da factualidade provada decorre que o réu AA procedeu a incorrecta declaração e liquidação do IVA, relativamente a operações comerciais que realizou nos anos de 1999 e 2000.

Deveria ter pago no trimestre subsequente a cada uma das operações o imposto que se veio a apurar estar em falta.

Daí que se tenha considerado que incorreu nas correspondentes infracções fiscais. Daí também a justificação para o cálculo de juros compensatórios, uma vez que, por culpa sua, retardou a liquidação e pagamento de parte do imposto devido – art. 35º da LGT. O imposto em falta deveria ter sido pago nos anos de 1999 e 2000.

Entende-se, por conseguinte, como se referiu, que o crédito do Estado se constituiu no momento em que decorreu o prazo legal para o pagamento do aludido imposto, sem que tal pagamento tivesse sido efectuado, sendo, consequentemente, anterior ao acto aqui impugnado, não dependendo a procedência da impugnação da alegação e prova do dolo – art. 610º a)”.

E pode ainda chamar-se à colação, para afastar a tese dos recorrentes a respeito desta questão, o acerto da doutrina acolhida no acórdão da Relação do Porto de 2/2/10 (Pº 3573/06.OTBOAZ.P1, acessível em www.dgsi.pt), citado na contra alegação do autor, segundo a qual “em acção de impugnação pauliana e estando em causa créditos fiscais, o requisito da anterioridade destes – para os efeitos do artº 610º, alínea a), do CC – deve reportar-se à data da constituição dessas dívidas, nada tendo que ver com a respectiva extracção de certidão ou a instauração dos correspondentes processos de execução fiscal. E estando esses créditos dependentes duma obrigação declarativa dos contribuintes – casos do IRS, IRC ou IVA – não releva aqui que tais tributos só tenham vindo a lume em acção de fiscalização dos serviços tributários, pois se o contribuinte tem que fazer essa declaração, a constituição desse tipo de dívidas não depende da data em que a administração tributária descobre a sua falta”.   

Quanto à questão posta na conclusão 5ª basta ter na devida atenção o facto 2) o réu AA exercia a actividade de comércio de automóveis e as disposições conjugadas dos artºs 15º do CComercial e 1691º, nº 1, d), CC para se ver que os recorrentes carecem por inteiro de razão ao pretender que a ré BB seja absolvida do pedido. Efectivamente, sendo o réu AA comerciante e a dívida em causa comercial, pois decorre da sua actividade comercial, presume-se que foi contraída em proveito comum do casal, sendo certo que esta presunção não foi ilidida pelos réus; logo, é dívida também da responsabilidade da ré BB, nos termos do citado artº 1691º, nº 1, d), CC.

Finalmente, quanto à questão de inconstitucionalidade material colocada na 3ª conclusão da minuta, importa dizer que a diferença de tratamento estabelecida no artº 612º CC entre actos onerosos e actos gratuitos, exigindo-se a má fé do devedor e do terceiro somente no primeiro caso,  tem uma razão de ser: entende-se (entendeu o legislador) que os direitos do terceiro para quem os bens foram transferidos gratuitamente devem ceder em face dos direitos dos credores, sob pena de se verificar um enriquecimento injusto daqueles à custa destes; já se o acto for oneroso, a sua impugnação, quando não exista má fé do terceiro, apresentar-se-á como um prejuízo e, ao mesmo tempo, uma grave injustiça para este. Deste modo, e uma vez que, consoante acima se explicou, a existência de tornas na partilha em vida não a transforma num negócio oneroso, não se vê nenhum fundamento atendível para imputar a violação em concreto dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da tutela jurisdicional efectiva à interpretação a que se procedeu, aqui e nas instâncias, dos artºs 612º e 2029º CC, violação que, de resto, os recorrentes não concretizaram suficientemente nas alegações, já que se limitaram, praticamente, a tirar a conclusão sem apoio em argumentos jurídicos susceptíveis de adequada análise e ponderação.

Improcedem, consequentemente, todas as conclusões do recurso.

III. Decisão

Nos termos expostos, acorda-se em negar a revista.

Custas pelos réus.

Lisboa, 16 de Abril de 2013

Nuno Cameira (Relator)
Sousa Leite
Salreta Pereira

______________________


[1] Teoria Geral do Direito Civil,  4ª edição, pág. 401.
[2] Neste sentido cfr. entre outros, Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, VII, pág. 244; Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, pág. 499; Manuel Baptista Lopes, das Doações, pág. 37 e sgs; Pires de Lima-Antunes Varela, CC Anotado, VI, pág. 22; Capelo de Sousa, Lições de Direito das Suces­sões, II, pág. 47 e sgs; Luís Meneses Leitão, Direito das Obrigações, 3ª edição, III, pág. 214.
[3] Leite de Campos, Benjamim Rodrigues e Lopes de Sousa, LGT Comentada e anotada,136.
[4] Cfr. N. Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, Vol. I, 240.