Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3397/14.1T8LLE.E1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: CABRAL TAVARES
Descritores: ALCOOLEMIA
EXAME DE PESQUISA DE ÁLCOOL
CONTRA-ORDENAÇÃO
VALOR EXTRAPROCESSUAL DAS PROVAS
ACÇÃO DE REGRESSO
AÇÃO DE REGRESSO
Data do Acordão: 07/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO ESTRADAL - PROCEDIMENTO PARA A FISCALIZAÇÃO DA CONDUÇÃO SOB INFLUÊNCIA DE ÁLCOOL.
DIREITO CONTRA-ORDANCIONAL - PROCESSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PROVA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / INSTRUÇÃO DO PROCESSO - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ) / RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 342.º, N.º 1.
CÓDIGO DA ESTRADA (CE): - ARTIGO 153.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 415.º, N.º 2, PARTE FINAL, 421.º, N.º1, 607.º, N.ºS 4 E 5, 662.º, N.º 4, 674.º, N.º 3, 682.º, N.ºS 1 E 2.
D.L. N.º 433/82, DE 27 DE OUTUBRO: - ARTIGOS 41.º, N.º1, 50.º, 79.º, N.º1.
DL N.º 291/2007, DE 21-08: - ARTIGO 27.º, N.º 1, AL. C), 1.ª PARTE.
REGULAMENTO DE FISCALIZAÇÃO DA CONDUÇÃO SOB INFLUÊNCIA DO ÁLCOOL OU DE SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS, ANEXO À LEI N.º 18/2007, DE 17-05: - ARTIGO 3.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 10-09-2009, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :

I - Em acção de regresso proposta com fundamento no disposto na 1.ª parte da al. c) do n.º 1 do art. 27.º do DL n.º 291/2007, de 21-08, os exames de pesquisa de álcool no sangue, realizados no mesmo analisador quantitativo, ordenados em relação ao processo contraordenacional e juntos pela seguradora, constituem prova pericial pré-constituída, por irrepetível em julgamento.
II - Em consequência de, no processo contraordenacional, o arguido se ter conformado com a decisão sancionatória proferida, aquela prova pericial tem o valor extraprocessual previsto no n.º 1 do art. 421.º do CPC, designadamente, na acção de regresso.
III - Ao negar valor extraprocessual aos exames periciais produzidos no processo contraordenacional e, com esse fundamento, dar por não provado os factos relativos à alcoolemia, seus efeitos e nexo de causalidade com o acidente, a Relação fez errada interpretação daquele preceito legal.
Decisão Texto Integral:

Acordam, na 1ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I

1.... Seguros, S.A. intentou contra BB ação declarativa com processo comum, pedindo que o R. seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 30.026,67, acrescida de juros.

Alega que, no âmbito de contrato de seguro automóvel celebrado com o R., despendeu a quantia de € 30.026,67 na reparação de acidente de viação; o acidente foi causado pelo R., o qual, circulando com uma taxa de álcool no sangue de 0,66 g/l, foi embater na traseira de outro veículo, quando este se encontrava a efetuar, pela esquerda, uma ultrapassagem, depois de previamente assinar com o “pisca” esquerdo essa manobra.

Contestou o R., contradizendo os factos alegados pela A. e sustentando, em síntese, que o direito de regresso por esta invocado não se basta com a mera alegação da condução sob a influência do álcool, sendo necessário provar a culpa do R. e o nexo de causalidade na produção do acidente; para efeitos de determinação da taxa de álcool, não basta a medição constante do auto de ocorrência, sendo necessários os registos de manutenção do aparelho medidor e a temperatura ambiente à hora do início da fiscalização, factos esses, cuja demonstração incumbindo à A., não se mostram alegados. Concluiu pela improcedência da ação.

Foi, a final, proferida sentença, julgando a acção procedente e condenando o R. no pagamento da quantia peticionada.

2. Apelou o R. para a Relação, a qual, julgando procedente a impugnação sobre a decisão da matéria de facto, na parte em que a 1ª instância havia dado como provado que o R. encontrava-se influenciado por uma taxa de álcool não inferior a 0,66 gramas de álcool por cada litro de sangue (respostas aos pontos 13º e 14º), revogou a decisão recorrida e absolveu o R. do pedido.

3. Recorre agora a A. para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando na respetiva alegação as seguintes conclusões:

«1. As questões que o presente recurso pretende ver discutidas prendem-se com a questão de saber se a realização da contraprova da pesquisa de álcool no mesmo instrumento de medição em que foi realizado o exame inicial observou as formalidades previstas na lei, bem como, saber se tal prova pode ser considerada válida e, nessa sequência, apurar se, conduzindo o ora Réu com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, tal deu causa ao acidente em discussão nos presentes autos, devendo o Réu ser condenado no pagamento à Autora dos montantes que esta despendeu com a regularização do sinistro.

2. A ora Recorrente, salvo o devido respeito, não pode estar de acordo com o decidido pelo douto Acórdão no que diz respeito à absolvição do Réu, na parte em que entendeu considerar a contraprova da pesquisa de álcool, uma prova inválida e concluiu não se encontrar demonstrado que o condutor do veículo com a matrícula ... era portador de uma TAS.

3. Uma vez alterada a matéria de facto, considerou a Veneranda Relação que não se encontrava demonstrada a TAS apresentada pelo condutor do veículo FN, logo não se poderia concluir que, na referida data, aquele conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ficando ainda indemonstrado um dos pressupostos do peticionado direito de regresso da Seguradora, ora Autora.

4. A verdade é que a realização da contraprova da pesquisa de álcool no mesmo instrumento de  medição em que foi realizado o exame inicial, observou as formalidades previstas na lei para a formação do exame de pesquisa no ar expirado.

5. Mais, ao Réu lhe foi, efectivamente, assegurada a contraprova do exame inicial de pesquisa do álcool no ar expirado, conforme dispõe o artigo 153º do Código da Estrada, e como tal, a prova assim obtida é válida.

6. Dúvidas não subsistem quanto ao facto de, tendo o resultado do primeiro exame sido positivo, e havendo necessidade de contraprova, tendo o Réu optado por realizar um "novo exame", conforme elencado na al. a) do n.º 3 do artigo 153.º do Código da Estrada, verificado estava o único requisito legal exigido para a sua realização: a aprovação do referido aparelho (leia-se, "aparelho aprovado").

7. Constituindo, por isso mesmo, um meio de prova válido, a contraprova efectuada no mesmo aparelho do primeiro sopro.

8. Quanto a esta questão, sempre se dirá que, naturalmente, e se necessário for, por qualquer razão (que não diz respeito à obrigatoriedade de recorrer a aparelhos diferentes para o exame e a contraprova), mas, por exemplo, porque o aparelho deixou de funcionar ou não estão reunidas as condições espaciais para a realização da contraprova que existiam no momento do primeiro exame, o examinando pode ser conduzido a um local onde a contraprova possa ser efectuada (153.º, n.º: 4 do CE).

9. Por outro lado, permite-se que a contraprova seja efectuada através de análise ao sangue para que o arguido possa dissipar quaisquer dúvidas quanto à fiabilidade do aparelho em que efectuou o primeiro exame.

10. No caso sub judice, não ficou provada qualquer circunstância que pusesse em causa a fiabilidade do aparelho em que o Réu efectuou o primeiro exame, tendo o Réu que escolhido efectuar a contraprova no mesmo aparelho em que tinha efectuado o primeiro exame, em vez de requerer a análise ao sangue.

11. Ora, e salvo o devido respeito (que é muito), não dispunha a Veneranda Relação de factualidade que permitisse concluir que a realização da contraprova da pesquisa de álcool no mesmo instrumento de medição em que foi realizado o exame inicial não observou as formalidades previstas na lei.

12. Pelo que, sempre se deverá considerar como provado o ponto 13º, e bem assim, a matéria constante do ponto 14.º, por constituir ilação do segmento do ponto 13.º.

13. Ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que o direito à contraprova conferido aos condutores nos casos de realização de exame de pesquisa de álcool é uma garantia de defesa do arguido em processo penal e contraordenacional e, quando o mesmo se encontre a ser julgado pelo crime de condução sob o efeito do álcool.

14. Não tendo, por isso, aplicação ao caso concreto, porquanto se trata de âmbitos distintos, uma vez que no âmbito do processo civil valerá o princípio da livre apreciação da prova pelo Juiz sendo o julgador livre de formar a sua convicção quanto à prova carreada para os autos pelas partes.

15. Face ao exposto, existiam nos autos elementos suficientes para que o douto Tribunal de 1ª Instância desse como provado, e bem, em nossa opinião, o facto de que o ora Réu se encontrava influenciado por uma T.A.S não inferior a 0,66 g/L, devendo como tal improceder todas as conclusões da Veneranda Relação, no que a este ponto respeita, e ser mantida a douta sentença proferida pelo Tribunal da 1.ª Instância, nos precisos termos que dela constam.

16. No que concerne ao direito de regresso da Seguradora e, partindo-se, naturalmente, do pressuposto de que a contraprova da pesquisa de álcool no ar expirado, é regular e legal, não padecendo de qualquer invalidade, conforme supra explanado, resulta evidente que o acidente ficou a dever-se à circunstância do Réu, que conduzindo o veículo com a matrícula ..., veio a embater com a frente do seu veículo na parte traseira do veículo com matrícula ...

17. Actualmente, e de acordo com a letra da lei, exige-se a verificação cumulativa de dois pressupostos: a) Que o condutor tenha dado causa ao acidente; e b) Que conduza com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida.

18. Ou seja, sem abdicar do nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o dano que foi indemnizado (em relação ao qual se estabelece o direito de regresso) presumiu o legislador que a prova de que o acidente se deveu ao condutor alcoolizado era suficiente para considerar que o acidente e os subsequentes danos se deveram à influência do álcool.

19. Nesse sentido, veja-se o Acórdão do STJ de 08.10.2009 (in www.dgsi.pt): "(...) agora as coisas são claras - o condutor dá causa ao acidente (qualquer que seja a causa) e se conduzia com uma taxa de alcoolémia superior à permitida por lei, a seguradora tem direito de regresso contra ela».

20. Ainda neste sentido, ensina o Acórdão do STJ de 28.11.2013 (disponível em in www.dgsi.pt – Proc. 995/10.6TVPRT.P1.S1): "O artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, atribui à entidade seguradora o direito de regresso contra o condutor do veículo culpado pela eclosão do sinistro, sempre que a condução se tenha operado com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida e sem necessidade de comprovar o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente." (negrito e sublinhado nossos)

21. Assim, da interpretação da norma constante do artigo 27.º n.º 1 alínea c) do Decreto-Lei n.º 291/2007, fica excluída a exigência do ónus da prova do nexo de causalidade entre o álcool e a causa do acidente, procedendo o direito de regresso quando verificados dois pressupostos: o condutor ter dado causa ao acidente e conduza com T.A.S superior ao legalmente permitido, ou seja igual ou superior a 0,5 g/l.

22. Face ao supra exposto, a douta sentença da Primeira Instância aplicou, em nosso entendimento, devidamente a referida legislação, uma vez que o Réu conduzia com uma T.A.S de 0,66 g/l e foi o único responsável pela produção do acidente em apreço nos presentes autos.

23. Ficou, portanto, claramente demonstrado que foi o Réu o único e exclusivo culpado pelo deflagrar do embate em causa nos autos, na medida em que não agiu com a cautela e diligência a que estava obrigado, violando, o disposto nos artigos 18.º n.º 1, 41.º n.º 2 e 81º n.º 2 do Código da Estrada.

24. Ora, se o Réu conduzia na altura do acidente, com uma T. A. S. de 0,66 g/l é certo que não se encontrava na posse de todas as suas faculdades físicas, psíquicas e emocionais, padecendo de uma capacidade de concentração, de discernimento e reacção diminuída.

25. Tanto mais quando a culpa pelo acidente e o nexo de causalidade em apreço haviam ficado assentes no Processo n.º 2418/11.4TBLLE, conforme se extrai da leitura da sentença junta aos presentes autos e relativamente à qual não pode deixar de se fazer referência.

26. Por outro, a ora Recorrente fez igualmente prova dos efeitos do álcool no organismo e da sua influência na condução, designadamente através do depoimento da testemunha Dr. CC, que esclareceu os efeitos do álcool no organismo e as suas consequências na aptidão para a condução.

27. Do exposto conclui-se igualmente que, salvo o devido respeito e melhor entendimento em contrário, andou bem o douto Tribunal de Primeira Instância ao julgar provados os pontos 10.º, 13.º e 14.º, devendo manter-se a douta decisão de facto constante da Sentença e, em conformidade, condenar o Ré nos pedidos formulados nos autos pela Autora.

28. Por fim, e tendo ficando demonstrado que a ora Recorrente procedeu ao pagamento de todos os danos e despesas que resultaram do acidente provocado pelo ora Réu, tendo em conta o contrato de seguro celebrado, tem a mesma o direito de regresso referente às quantias liquidadas e que se encontram, aliás, alegadas e provadas nos presentes autos.

29. (…)».

O R. não ofereceu contra-alegações.

4. Vistos os autos, cumpre decidir.


II

5. Consideradas as transcritas conclusões da alegação da ré, ora recorrente (CPC, arts. 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2), constituem questões a decidir no presente recurso: (i) alcance, na presente ação, da sentença, transitada em julgado, proferida no Proc. 2418/11.4TBLLE – conclusão nº. 25; (ii) invalidade da prova pericial préconstituída, considerado o regime de prova previsto e regulado no art. 153º do Código da Estrada (CE), designadamente o de contraprova, constante dos seus nºs. 3 e ss., dada a realização da contraprova em causa no mesmo instrumento de medição em que foi efetuado o exame inicial de pesquisa de álcool – conclusões nºs. 1 a 12; (iii) não aplicação daquele regime legal à presente ação – conclusões nºs. 13, 14 e 15.

As demais conclusões (nºs. 16 a 24 e 26 a 29) da alegação da Recorrente, serão, ou não, conclusivamente determinadas pelas respostas dadas às enunciadas questões.

6. Importa às questões a decidir apenas transcrever o que antes constava dos pontos 13º e 14º (este «por constituir ilação do segmento do ponto 13º agora julgado como não provado») – a decisão da 1ª instância fundamentara-se no «resultado do exame ao ar expirado documentado a fls. 107 que deu origem ao auto de contraordenação» –, que a Relação, nessa parte julgando procedente a impugnação sobre a decisão da matéria de facto fixada em 1ª instância, considerou como não provado:

«(…)

13.º O condutor do veículo ... encontrava-se influenciado por uma taxa de álcool não inferior a 0,66 gramas de álcool por cada litro de sangue e por via disso foi levantando pelas autoridades policiais que tomaram conta da ocorrência o auto de contra ordenação número 2-6695039-6.

14.º O Réu havia ingerido bebidas alcoólicas que alteraram o seu estado físico e psíquico, nomeadamente, deixaram-no eufórico e com os reflexos e coordenação motora diminuídos e mais lentos.

(…)»

7. Passando-se ao exame das questões a decidir. Pela ordem indicada (supra, 5).

7.1. Relativamente ao pretendido alcance, na presente ação, da sentença, proferida em anterior processo – tendo-se aí dado como provado a culpa do R. na produção do acidente, a condução com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida e a existência de nexo de causalidade –, em que a seguradora, ora Recorrente, foi condenada ao pagamento da indemnização, cujo direito de regresso vem agora acionado, não pode falar-se de caso julgado.

Naquela anterior ação, embora lhe fosse expressamente facultado pelo nº 2 do art. 64º do citado DL 291/2007, a seguradora não cuidou de nela fazer intervir o tomador de seguro, o aqui R.

7.2. Relativamente à segunda questão indicada – inadmissibilidade, no quadro do sistema de prova estabelecido no art. 153º do CE, da realização da contraprova no mesmo instrumento de medição quantitativa em que foi efetuado o exame inicial de pesquisa de álcool.

7.2.1. O art. 153º do CE regula «o exame de pesquisa de álcool no ar expirado (…) realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito» (nº 1; realce acresc.).

O resultado desse exame, sendo positivo, está, por vontade do examinando, sujeito a contraprova, ou por análise de sangue, ou com novo exame, igualmente através de aparelho aprovado; o resultado da contraprova prevalece sobre o resultado do exame inicial (nºs. 2 a 6, não interessando agora cuidar de situações marginais previstas nos nºs. 7 e 8; redacção actual do artigo correspondente à 5ª versão, dada pelo DL 44/2005, de 23 de Fevereiro).

O art. 3º do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, anexo à Lei 18/2007, de 17 de Maio, reporta-se expressamente à contraprova prevista no nº 3 do art. 153º do CE.

7.2.2. Quanto à inadmissibilidade de realização do exame inicial e contraprova no mesmo alcoolímetro, escreveu-se no acórdão da Relação, assinalando-se ser entendimento pacífico na jurisprudência das Relações:

«A lei não diz expressamente que exame inicial e contraprova não podem ser realizadas no mesmo instrumento de mediação mas a circunstância de prever que o novo exame deve ser efetuado através de aparelho aprovado e que o examinando deve ser, de imediato, a ele sujeito e, se necessário, conduzido a local onde o referido exame possa ser efetuado apontam para o entendimento que o aparelho de medição não deverá ser o mesmo, uma vez que o aparelho do exame inicial tem necessariamente que se encontrar aprovado (artº 153º, nº1, do CE) e, pela própria natureza das coisas, no local da realização do exame inicial.

Entendimento para que concorre, aliás, a dimensão conceptual do direito do arguido à contraprova, uma vez que reportando-se o mesmo à impugnação do resultado obtido no exame inicial, este tanto pode resultar do mau uso do aparelho de medição como de deficientes condições do seu funcionamento e estas não poderão considerar-se removidas pela mera repetição do exame.»

7.2.3. Atenta a complexidade e precisão técnica instrumentalmente implicadas nos resultados dos testes de ar expirado realizados em analisador quantitativo (já não na análise de sangue, na qual vai suposto um elevado grau de certeza científica), racionalmente se adequa que a confirmação ou a infirmação do primeiro resultado, a não ser obtido por análise de sangue, o seja através de outro aparelho.

A contraprova de factos constitutivos da inculpação em processo contraordenacional ou criminal, pela sua natureza e alcance, não pode degradar-se em uma repetição de prova.

7.3. Resta, agora, examinar a aplicação do apontado regime legal, no quadro da presente ação cível.

7.3.1. Tida a prova do grau de alcoolemia por inválida, em vista do regime estabelecido no art. 153º do CE, a questão foi equacionada no acórdão da Relação nos seguintes termos:

«(…) considerar que as regras de normalização processual impedem validar no processo civil provas irregular ou invalidamente formadas noutros domínios processuais designadamente no processo contraordenacional; de facto, se a lei exige para a válida formação dum exame, no processo contraordenacional, um determinado procedimento e este não foi observado e a irregularidade não foi, ou já não pode ser como é o caso, sanada não se vê como lhe conferir força probatória no processo civil, ou até em qualquer outro processo em que venha a ingressar como meio de prova.

Valor extraprocessual não se lhe pode reconhecer porque este exige, além doutros requisitos, que sejam respeitados as garantias da formação da prova, pois só respeitadas estas se pode aquilatar se são inferiores ou superiores às do processo em que se pretende fazer valer (artº 421º, nº1, do CPC) e valor enquanto meio de prova sujeito à livre apreciação do tribunal (arts. 388º e 389º, ambos do CC e 417º, nº1, do CPC) também se lhe não poderá atribuir, porque a liberdade de apreciação da prova não significa, nas palavras de Rodrigues Bastos, que ao juiz seja “permitido julgar só pela impressão que as provas oferecidas pelos litigantes produziram no seu espírito, antes se lhe exige que julgue conforme a convicção que aquela prova determinou, e cujo caráter racional se expressará na correspondente motivação” [Notas ao Código de Processo Civil, vol III, 3ª ed., pág. 175] e não se vê como racionalmente se poderá expressar a convicção da prova dum facto, com recurso a uma prova cuja formação ocorreu com inobservância das formalidades legais que, ademais e no caso concreto, validamente suscita reservas quanto ao seu resultado (note-se que o registo do exame inicial foi uma TAS de 0,69 g/l e o registo da repetição foi uma TAS de 0,66 g/l a que corresponde, no dizer da decisão administrativa uma TAS de 0,61 g/l, sem que exista qualquer explicação nos autos para esta diferença de valores).»

7.3.2. Reitera a Recorrente, na sua alegação, que o direito à contraprova, nos termos em que vem regulado no art. 153º do CE (nºs 3 e ss.), situa-se no quadro das garantias de defesa do arguido em processo penal e contraordenacional, como tal não transferível e inaplicável em processo civil, onde «valerá o princípio da livre apreciação da prova pelo Juiz sendo o julgador livre de formar a sua convicção quanto à prova carreada para os autos pelas partes», sendo que, no caso, «existiam nos autos elementos suficientes para que o douto Tribunal de 1ª Instância desse como provado, e bem, em nossa opinião, o facto de que o ora Réu se encontrava influenciado por uma T.A.S. não inferior a 0,66 g/L» (conclusões nºs. 13/15, cits.; cf., ainda, sem mais desenvolvimentos, corpo da alegação, a fls.347/8).

7.3.3. Pretende a seguradora, ora Recorrente, com a presente ação, e uma vez satisfeita a indemnização, exercer o direito de regresso «contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida» [1ª parte da alínea c) do nº 1 do art. 27º do DL 291/2007, de 21 de Agosto].

No quadro da presente ação, impende sobre a seguradora o ónus de provar que o condutor estava sob o efeito do álcool no momento do acidente e que esse estado foi causal da ocorrência do mesmo (art. 342º, nº 1 do CC).

Valendo aqui, como alega a Recorrente, o princípio da livre apreciação da prova, nos termos regulados nos nºs. 4 e 5 do art. 607º do CPC, o julgamento da Relação, na parte em que deu como não provado o estado de alcoolemia do condutor, procedendo à alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto pela 1ª instância, seria insindicável pelo STJ (CPC, arts. 662º, nº 4, 674º, nº 3 e 682º, nºs. 1 e 2).

Com efeito, a alteração estabelecida pela Relação consubstancia a decisão da mesma sobre a impugnação da matéria de facto (supra, 6).

A pretensão da Recorrente, ao visar a alteração da decisão da Relação sobre esse concreto ponto da matéria de facto, supõe uma interpretação a contrario da norma excecional contida na 2ª parte do nº 3 do art. 674º do CPC: não se está perante ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto, mas, ao invés, de invocado erro de interpretação e aplicação ao caso dos autos do regime de prova estabelecido no art. 153º do CE.

Nada impediria, no entanto, que o juiz, ao analisar e apreciar, crítica e livremente, as provas, segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (nºs. 4 e 5 do art. 607º do CPC, cits.), prudencialmente se orientasse ou recorresse ao arrimo do desenho probatório constante da disposição em causa do CE.

Não foi esse, todavia, o percurso decisório da Relação.

Nestes termos, dimensionada como questão de direito, cabe dela conhecer.

7.3.4. A Recorrente, para fazer prova do facto constitutivo do direito alegado, no que respeita à condução com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, juntou os resultados dos exames realizados, através de analisador quantitativo, por agente de autoridade e que estiveram na base de instauração de processo de contraordenação.

A Recorrente socorreu-se, para tanto, de prova pericial préconstituída, por irrepetível em julgamento, naquele outro processo (quanto à classificação como prova pericial, lato sensu, ASTJ de 10-09-2009, disponível em www.dgsi.pt; não se cuidando aqui da controvérsia doutrinária acerca da natureza desta prova – prova pericial ou prova documental).

Tratando-se de prova préconstituída, como se refere no acórdão recorrido, «deve facultar‐se à parte a impugnação, tanto da respetiva admissão como da sua força probatória» (CPC, art. 415º, nº 2, parte final).

Acontece que a prova préconstituída em causa foi ordenada em relação ao processo contraordenacional, com cuja decisão sancionatória o arguido, aqui R., se conformou, não a tendo impugnado judicialmente.

O carácter definitivo da decisão da autoridade administrativa preclude, desde logo, a possibilidade de reapreciação de tal facto como contraordenação (art. 79º, nº 1 do DL 433/82, de 27 de Outubro).

Decisão proferida em processo, subsidiariamente regido pelas normas do processo penal e em que foi garantida a audiência e defesa do arguido, o aqui R. (arts. 41º, nº 1 e 50º do DL 433/82).

Não pode, a esta luz, negar-se ao documento pericial em causa valor extraprocessual, nos termos do nº 1 do art. 421º do CPC.

A Relação, ao negar valor extraprocessual aos exames periciais produzidos nesse processo contraordenacional e com esse fundamento dar como não provados os pontos 13º e 14º, fez errada interpretação e aplicação da citada disposição do CPC.


III

Nos termos expostos, e por diferentes razões das alegadas, acorda-se em conceder revista, anulando-se o acórdão recorrido, na parte em que deu como não provados os pontos 13º e 14º da matéria de facto, com apoio no fundamento da invalidade da contraprova, devendo o processo voltar à Relação para, nessa parte, ser reapreciada, pelos mesmos juízes, sendo possível, sem o aludido fundamento e decidir, de seguida, de direito, em conformidade com a decisão em sede de matéria de facto.

Custas, a final.

Lisboa, 11 de Julho de 2017.

Cabral Tavares (Relator)

Sebastião Póvoas

Paulo Sá