Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1852/12.7TBLLE-C.E1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÂO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: INSOLVÊNCIA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
REGIME APLICÁVEL
VALOR DA CAUSA
ALÇADA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Data do Acordão: 09/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA
Área Temática: INSOLVÊNCIAS / DIREITO PROCESSUAL CIVIL / RECURSOSCAMINHOS PÚBLICOS
Legislação Nacional: CIRE: ART. 14.º, 15.º, 17.º, 189.º, N.º 2, AL. E), 230.º,
CC: ART. 12.º,
NCPC2013: ARTS. 629.º, N.º 2, 370.º, N.º 2,
CPC: ART. 678.º,
Jurisprudência Nacional: AC. RELAÇÃO DE GUIMARÃES 2-05-2013, PROC. N.º 2256/10.1TBFLG-E.G1
AC. RELAÇÃO DE COIMBRA 14-11-2006, PROC. N.º 1002/04.3TBTNV-C.C1;
Sumário :
I - São aplicáveis ao processo de insolvência as regras definidas no CPC para os recursos, salvo se do CIRE resultar regime diverso.

II - O art. 14.º do CIRE – ao restringir a admissibilidade do recurso de revista à hipótese de o acórdão recorrido estar em oposição com outro – não dispensa a verificação das condições gerais de admissibilidade de recurso, entre as quais figura a relação entre o valor da causa (e da sucumbência) e a alçada.

III - O art. 629.º, n.º 2, do NCPC (2013) veio reintroduzir um caso especial de admissibilidade de revista, restrito aos casos em que a razão da inadmissibilidade de recurso para o STJ seja estranha à alçada e o acórdão recorrido esteja em contradição com outro, da Relação, proferido «no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito (…)».

IV - A justificação para a previsão do art. 629.º, n.º 2, do NCPC (2013) é a de garantir que não fiquem sem possibilidade de resolução conflitos de jurisprudência verificados entre acórdãos das Relações em matérias que nunca podem vir a ser apreciadas pelo STJ, como é o caso das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, mas já não dos processos de insolvência.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA, Sociedade de Empreitadas, SA, veio reclamar para a conferência da decisão de fls. 460, que não admitiu o recurso que interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça, nos seguintes termos:


    «I. A fls. 413, foi proferido o seguinte despacho:

«1. Nas alegações que BB e CC apresentaram no recurso interposto por AA, Sociedade de Empreitadas, SA, vieram suscitar a questão da “irrecorribilidade do douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora”.

E observaram, ainda, que a recorrente não tinha apresentado cópia do acórdão fundamento, como é imprescindível para que o recurso seja apreciado.

2. Assim, nos termos previstos no nº 2 do artigo 655º do Código de Processo Civil, aplicável à revista (artigo 679º), convida-se a recorrente AA, Sociedade de Empreitadas, SA a pronunciar-se sobre os obstáculos à admissão do recurso que interpôs, suscitados pelos recorridos, a saber: “irrecorribilidade em razão da alçada” e “inexistência de oposição entre o douto acórdão recorrido e os acórdãos referidos pela Recorrente”.

Sem prejuízo de eventual decisão de inadmissibilidade do recurso, convida-se desde já a recorrente a juntar cópia certificada, com nota de trânsito, do acórdão em que fundamenta a oposição de julgados que invoca para justificar a admissibilidade do recurso, de entre aqueles que indica nas alegações que apresentou.

Lisboa, 8 de Abril de 2014».


II.  A recorrente veio sustentar a admissibilidade do recurso:

– porque, em processo de insolvência, basta a verificação da “oposição de acórdãos” da Relação a que se refere o artigo 14º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, para que a revista seja admissível. “Ora, na redacção do art. 14º do C.I.R.E. não consta qualquer limite quanto ao valor da acção para saber se a decisão é recorrível ou não”;

– porque “só após a venda dos bens integrantes da massa insolvente, coisa que até agora não sucedeu, é que se conseguirá apurar qual o valor real do processo de insolvência”, não relevando, assim, nem “o valor indicado pela ora Recorrente na sua petição inicial”, € 7.500,00, que é provisório (artigo 15º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), nem “o valor do activo” indicado no “auto de apreensão do administrador de insolvência”, € 29.780,00;

– porque assim decorre ainda do nº 2 do artigo 629º do Código de Processo Civil (admissibilidade de recurso em caso de contradição de acórdãos dos tribunais da Relação, se a razão pela qual não cabe recurso de revista for estranha à alçada do tribunal).


III. A recorrente veio ainda sustentar a existência de oposição de jurisprudência e requerer a prorrogação do prazo para apresentar cópia certificada do acórdão fundamento, que veio a juntar, a fls. 450.


IV. A recorrente sustenta, como se viu, que o valor da causa não releva para o efeito de ser admitido recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, caso se verifique a oposição prevista no artigo 14º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

    Mas não se pode entender assim tal preceito.

    Segundo o disposto no artigo 17º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, as regras aplicáveis ao processo de insolvência – e portanto, ao presente incidente de qualificação da insolvência – são as constantes do Código de Processo Civil, “em tudo o que não contrarie as disposições do” próprio Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

    Têm assim aplicação as regras definidas no Código de Processo Civil para os recursos, salvo se do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas resultar regime diverso; como sucede, no que respeita ao acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, com o nº 1 do respectivo artigo 14º, no respectivo âmbito.

    Sem dispor sobre nenhum outro ponto do regime dos recursos (prazos, pressupostos, etc.), o nº 1 do artigo 14º vem restringir a admissibilidade do recurso de revista à hipótese de o acórdão recorrido estar “em oposição com outro, proferido por alguma das Relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada” pelo Supremo Tribunal de Justiça “ com ele conforme”.

    Mas esta norma não dispensa a verificação das condições gerais de admissibilidade de recurso, entre as quais figura, desde logo, a da relação entre o valor da causa (e da sucumbência) e a alçada, constante, hoje do nº 1 do artigo 629º do Código de Processo Civil.

    A interpretação sustentada pela recorrente teria de resultar claramente do texto da lei, e não resulta; e nem tão pouco estaria de acordo com a intenção claramente restritiva do preceito.


V. É certo que o artigo 15º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas prevê que o valor da causa comece por corresponder ao “valor do activo do devedor indicado na petição” e possa vir a ser corrigido “logo que se verifique ser diferente o valor real”.

    Não consta, porém, que tenha havido qualquer decisão de alteração do valor fixado à causa, ainda que sem carácter de definitividade; o que significa que não é possível admitir o presente recurso, porque não foi definido para a causa um valor superior à alçada da Relação.


VI. A recorrente afirma ainda que o presente recurso sempre seria admissível, nos termos do nº 2 do artigo 629º do Código de Processo Civil.

Este preceito veio reintroduzir no Código de Processo Civil um caso especial de admissibilidade de revista, que tinha sido eliminado pela reforma de 2007 (Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto), admitindo a revista quando a razão da inadmissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça for estranha à alçada e o acórdão recorrido contrariar outro acórdão da Relação, proferido “no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito (…), salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme”.

Regra semelhante constava do nº 4 do artigo 678º do Código de Processo Civil anterior a essa reforma, preceito que, por sua vez, viera substituir o recurso para o Tribunal Pleno previsto no artigo 764º do Código de Processo Civil, na redacção anterior à reforma de 1994/1995.

Tem como justificação o objectivo de garantir que não fiquem sem possibilidade de resolução conflitos de jurisprudência verificados entre acórdãos das Relações, em matérias que nunca podem vir a ser apreciadas pelo Supremo Tribunal de Justiça, porque, independentemente do valor das causas a que respeitem, nunca se alcança o Supremo Tribunal de Justiça, por nunca ser admissível o recurso de revista.

É o que sucede, por exemplo, com as decisões proferidas em procedimentos cautelares (cfr. artigo 370º, nº 2 do Código de Processo Civil); mas não no processo de insolvência.

Na insolvência, e nomeadamente no âmbito do incidente da qualificação, pode caber recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, se o valor da causa exceder a alçada da Relação e ocorrer a contradição prevista no nº 1 do artigo 14º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Não está preenchida a letra do nº 2 do artigo 629º do Código de Processo Civil, nem se verifica a respectiva razão de ser.


VII. Sempre se acrescenta, todavia, que, mesmo que o valor da causa fosse superior à alçada da Relação, ainda assim não seria admissível a presente revista, por não se verificar a contradição exigida pelo nº 1 do artigo 14º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

    A “questão a decidir”, esclarece a recorrente, “é se o art. 189º do C.I.R.E., com a redacção dada pela Lei 16/2023 [2012]+, de 20.4, é aplicável a condutas praticadas antes da sua entrada em vigor”.

    O acórdão recorrido, confirmando a decisão da 1ª Instância quanto à qualificação da insolvência como culposa, pronunciou-se no seguinte sentido, invocando o artigo 12º do Código Civil: “Os efeitos das condutas são determinados pela lei vigente ao tempo em que foram praticadas, sendo certo que os factos que levaram à qualificação da insolvência como culposa ocorreram na vigência da antiga redacção do artigo 189º, não constando desta norma” a sanção que veio a ser acrescentada com o aditamento da alínea e) ao nº 2 do artigo 189º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas pela Lei nº 16/2012, de 12 de Abril: pagamento da indemnização aos credores, nos termos ali previstos.

    E o mesmo acórdão recorrido transcreveu ainda parte do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de Outubro de 2008, que distinguiu, de entre as normas relativas ao incidente de qualificação da insolvência, as normas substantivas – só aplicáveis a actuações posteriores à sua entrada em vigor, salvo se lhes tiver sido expressamente conferida eficácia retroactiva – e as normas adjectivas, aplicáveis a todos os processos posteriores a essa entrada em vigor.

    Ora, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2 de Maio de 2013, que a recorrente invoca como fundamento, em nada contraria a interpretação perfilhada pelo acórdão recorrido, uma vez que entende que apenas está em causa a aplicação no tempo de uma norma processual.

    Assim, e independentemente da circunstância de se tratarem de normas diferentes – a al e) do nº 2 do artigo 189º e a al. e) do nº 1 do artigo 230º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, relativas a questões diferentes –, o que naturalmente poderia conduzir a juízos sobre a respectiva aplicação no tempo de sentido oposto, sem todavia serem contraditórios, a verdade é que sempre faltaria a oposição exigida pelo artigo 14º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas como condição de admissibilidade do recurso.


VIII. Aqui chegados, verifica-se que também não pode ser admitido o recurso subordinado, porque foi interposto a título subsidiário.


Nestes termos, decide-se julgar findos os recursos.

Custas pela recorrente AA, Sociedade de Empreitadas, SA. »


2. Como fundamentos da reclamação, a reclamante apresenta novamente os dois primeiros fundamentos referidos no ponto II da decisão reclamada, acima transcrita, e afirma ainda aceitar “que o Supremo Tribunal de Justiça entenda que” o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2 de Maio de 2013, proc. nº 2256/10.1TBFLG-E.G1, invocado como fundamento do recurso, “em nada contraria a interpretação perfilhada pelo acórdão recorrido, uma vez que naquele se discute a aplicação no tempo de uma norma processual”; mas diz que também invocou a contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14 de Novembro de 2006, proferido no proc. nº 1002/04.3TBTNV-C.C1, “pois este decidiu qualificar uma insolvência como culposa, com fundamento em factos ocorridos três anos antes da entrada em vigor do Decreto-Lei 200/2004, de 18 de Agosto, ou seja, esta norma teve aplicação retroactiva”, contradição não apreciada na decisão reclamada.

BB e CC responderam à reclamação, sustentando a manutenção da decisão reclamada. Em particular, observaram que os acórdãos invocados, para além do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2 de Maio de 2013, não podem ser considerados e, se pudessem, não relevariam, desde logo porque “não foram proferidos no domínio da mesma legislação, o CIRE, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 16/2012, de 20 de Abril”.


3. Cumpre conhecer da reclamação.

Assim, e em primeiro lugar, reitera-se o que consta da decisão reclamada, mantendo-se os fundamentos de não admissão do recurso que ali se analisam e que por si sós são suficientes para a justificar. A reclamante não traz nenhum argumento novo que cumpra analisar.

Em segundo lugar, e no que toca à contradição apontada com o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14 de Novembro de 2006, proferido no proc. nº 1002/04.3TBTNV-C.C1, cabe apenas dizer que, independentemente de tudo o mais e como observam os reclamados, não se verifica manifestamente o requisito de se tratar de aplicação divergente ocorrida “no domínio da mesma legislação” (nº 1 do artigo 14º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas). A diferença não é apenas formal; basta ter em conta os efeitos da (nova) sanção introduzida pela Lei nº 16/2012, cuja aplicabilidade agora está em causa.

Seja como for, sempre seriam suficientes os demais fundamentos de inadmissibilidade do presente recurso.

4. Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando a decisão de julgar findo o recurso, por ser inadmissível.

Custas pela reclamante.


Lisboa, 18 de Setembro de 2014


Maria dos Prazeres Beleza (Relatora)

Salazar Casanova

Lopes do Rego