Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | CATARINA SERRA | ||
Descritores: | AÇÃO EXECUTIVA PENHORA INOPONIBILIDADE DO NEGÓCIO ATO DE DISPOSIÇÃO EFICÁCIA DO NEGÓCIO VENDA JUDICIAL IMPUGNAÇÃO PAULIANA INTERESSE EM AGIR | ||
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Data do Acordão: | 03/02/2023 | ||
Nº Único do Processo: | |||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
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Sumário : | O facto de a autora ter requerido a execução e de, portanto, beneficiar da regra da inoponibilidade dos actos de disposição dos prédios (cfr. artigo 819.º do CC) e da preferência da penhora [que lhe assegura um pagamento com prioridade sobre os credores que não tenham garantia real anterior (cfr. artigo 822.º, n.º 1, do CC)] não impede ou limita a possibilidade de ela recorrer à impugnação pauliana, com vista fazer regressar os prédios ao património do réu. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I. RELATÓRIO
Recorrente: AA Recorrida: BB
1. BB, residente na ..., instaurou acção declarativa contra AA e CC, residentes em ..., pedindo se declarem ineficazes as 2 doações dos imóveis identificados na petição inicial, efectuadas, em 16.9.2019, entre o primeiro réu (doador) e a segunda ré (donatária), sendo os mesmos restituídos ao património do primeiro réu, para que a autora os aí possa executar, na medida do seu crédito. Para tanto, alegou, em síntese, ser titular de um crédito sobre o primeiro réu, que se encontra em execução no Tribunal ..., onde lhe foram penhorados os prédios identificados no artigo 3.º da p.i., únicos bens conhecidos ao executado e sobre os quais já pendia penhora fiscal. Que o primeiro réu, depois da constituição do crédito da autora e referidas penhoras, em conluio com a segunda ré, sua mãe, doou tais prédios a esta, para, assim, causar prejuízo à credora autora.
2. Os réus, em contestações autónomas, pugnaram pela improcedência da acção, alegando, para o efeito, que não estão preenchidos os pressupostos da impugnação pauliana, impugnando, por um lado, o alegado conluio e, por outro lado, alegando que a autora já tinha registadas as penhoras anteriormente à realização da doação.
3. A autora respondeu, alegando, que a doação foi efetuada para defraudar os credores e que quando o primeiro réu fez a doação à segunda ré havia, entretanto, adquirido mais ¼ do segundo prédio, não tendo sido efetuada a penhora sobre essa proporção do direito de propriedade.
4. Realizada a audiência prévia das partes, foi proferido saneador-sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo os réus do pedido.
5. A autora recorreu, tendo o Tribunal da Relação de Coimbra proferido Acórdão com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, assim se revogando a decisão recorrida, e, em consequência, procede o pedido da A., assim se declarando ineficazes as 2 doações dos imóveis identificados na petição inicial, efetuadas, em 16.9.2019, entre o primeiro R. (doador) e a segunda R. (donatária), sendo os mesmos restituídos ao património do primeiro R., para que a A. os possa executar, na medida do seu crédito”.
6. Vem agora AA interpor recurso, pugnando pela revogação do Acórdão e formulando as seguintes conclusões: “1. O Acórdão recorrido de fls., de 12.07.2022, debalde douto, deve ser revogado; 2. O exemplo clássico da impugnação pauliana, como é acautelado pela previsão normativa do artigo 610.º do Código Civil, é aquele em que o bem sai por completo da esfera patrimonial do devedor, deixando, dessa forma, de poder ser responsabilizado pelo pagamento do crédito alegado pelo Autor (A.), instituindo a lei, assim, e no capítulo dos “meios de conservação da garantia patrimonial”, um meio processual que visa impedir que, por meio da prática de um ato potencialmente lesivo, seja defraudada a garantia de pagamento do credor; 3. No caso dos autos, a A. não surge colocada na posição do “impugnante tipo”, dado que mesma beneficiava (e beneficia) de uma penhora constituída sobre a propriedade plena do imóvel correspondente à fração autónoma identificada pelas letras “AD” – v. ponto 4 dos factos provados –, 4. Beneficiando, concomitantemente, de uma penhora sobre a parte alíquota de ¼ correspondente à propriedade sobre a fração autónoma descrita pela letra “B” – v. o mesmo ponto 4 dos factos provados; 5. A penhora constitui uma garantia real, o que vale por dizer que, enquanto direito real de garantia que é, a penhora goza do direito de sequela, manifestado na previsão legal do artigo 819.º do CC; 6. Atenta a factualidade apurada pelas Instâncias, o caso dos autos não se reconduz linearmente ao exemplo padrão que justifica a tutela típica da impugnação pauliana, dado que o A. (e credor) beneficia ele próprio de uma tutela real que lhe permite ser pago com preferência sobre quaisquer terceiros que não beneficiem de garantia real anteriormente registada; 7. Decorre do artigo 610.º do CC que um dos pressupostos essenciais da procedência da impugnação pauliana é o de que tem de “Resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade”; 8. Pelo que duas questões essenciais se colocam, uma abstrata, e outra de ordem prática: 1.ª: quem tem o ónus de demonstrar que do ato (no caso, as doações efetuadas pelo 1.ª Réu (R.) à 2.ª R. tornam impossível para o credor obter a satisfação integral do seu crédito ou agravam essa (im)possibilidade?; a 2.ª: contêm os autos elementos de facto que permitam extrair essa conclusão?; 9. O artigo 611.º do CC, ao preceituar que “Incumbe ao credor a prova do montante das dívidas, e ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor.” mais não impõe que um ónus de (contra) alegação e prova subsequente à alegação, a cargo do credor (necessariamente…)de que do ato impugnado resulta a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade; 10. Assim, caberá ao A., ao abrigo do ónus geral de alegação e prova vertido no artigo 342.º, n.º 1, do CC, alegar essa impossibilidade de satisfação integral do seu crédito (ou o agravamento da mesma), dado tratar-se de um facto constitutivo essencial do direito que o A. alega; 11. Cabendo ao R., por seu turno, alegar e provar que possui bens penhoráveis de igual ou maior valor; 12. Compulsados os autos, tendo a A. alegado tal impossibilidade (ou agravamento), e tendo os RR. contestado a verificação desse facto, sempre se terá por controvertida essa impossibilidade, impondo que se coloque a seguinte questão: estando os bens em causa na presente ação penhorados a favor da A. (num dos casos, em parte, na proporção de ¼), caberá aos RR. (em particular, ao 1.º R.), necessariamente, e desde logo, em face daquela alegação da A., demonstrar que existem outros bens penhoráveis, ou deverá apurar-se, prima facie, se aquelas penhoras salvaguardam, ou não, adequadamente, o interesse do credor? 13. Tal indagação leva-nos para a relevância dos factos instrumentais e/ou concretizadores, dado que julgamos ser seguro dizer que, para haver lugar à prolação de uma sentença de mérito – fosse em que sentido fosse –, teriam os autos de fornecer elementos da seguinte realidade: Qual o valor real (de mercado) dos imóveis doados? E Qual o valor a obter por parte do A., expectavelmente, por meio da liquidação dos mesmos em sede executiva? 14. Compulsada a factualidade apurada nos autos, dela não decorre qual o valor real e de mercado dos bens e direitos penhorados, questão que se afigura determinante para aferir da necessidade de tutela da A. em sede de impugnação pauliana, 15. Tanto mais que, a proceder a impugnação – como entendeu, e em nossa perspetiva, mal, o Tribunal da Relação de Coimbra –, o A. não fica investido em mais direitos do que lhe confere a penhora em relação a credores que se mostrem investidos de garantia anteriormente registada, como seria, por hipótese, a CGD e a Autoridade Tributária; 16. Consequentemente, para se apurar da verificação do pressuposto axial da impossibilidade (ou respetivo agravamento) de satisfação do direito de crédito da A., seria essencial que se concluísse que, POR VIA DA PENHORA já realizada, tal satisfação não seria possível ou que seria seriamente agravada; 17. Conclusões que os autos não consentem, por manifesta insuficiência dos factos apurados pelas Instâncias; 18. O Tribunal recorrido limitou-se a olhar para a questão pelos cânones normais, desconsiderando o elemento axial da existência das penhoras a favor da A. e do impacto que as mesmas têm na verificação do pressuposto da impossibilidade de satisfação do crédito; 19. Quando, na realidade, se impunha a anulação do julgado de 1.ª Instância, enviando os autos para instrução e julgamento da causa – mormente com a produção de prova pericial –, de forma a apurarem-se os elementos de facto concretizadores daquela alegação do A. (que lhe incumbia fazer, em nosso entender), incluindo-se tal factualidade nos poderes de cognição e decisão judicial, como são configurados desde a reforma processual de 2013, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 5.º do CPC; 20. Impondo-se, assim, a revogação do douto Acórdão de 12.07.2022, de fls., do Tribunal da Relação de Coimbra, com a consequente devolução dos autos para que se promova a ampliação da matéria factual, o que terá como consequência a devolução do processo à 1.ª Instância para que se realize a instrução da causa e audiência de julgamento, revogando-se, dessa forma, a decisão por saneador-sentença; 21. Consequentemente, o Tribunal da Relação de Coimbra, por meio do douto Acórdão de fls., e com o devido respeito, interpretou erradamente as normas constantes dos artigos 610.º e 611.º do Código Civil, e, bem assim, o disposto no artigo 819.º do mesmo diploma legal, tendo reconduzido (e subsumido normativamente) o caso concreto a um esquema padrão, como bem ressuma da forma como coligiu o sumário – i.e., o A. alega o crédito e o R. prova que tem outros bens cujo valor garanta o mesmo –, 22. Ignorando as particularidades do caso concreto, decorrentes da existência de garantia real (decorrente de penhora) a favor da credora/A., com o alcance emergente daquele artigo 819.º do CC; 23. Impõe-se, portanto, reconhecer essa insuficiência factual, anulando-se a decisão recorrida de fls., com todas as legais consequências”.
6. A autora BB vem apresentar as suas contra-alegações, que, em “súmula conclusiva”, se consubstanciam no seguinte: “I. Limita-se a Recorrida a pugnar pela manutenção do julgado, tendo para si que logrou correta apreciação dos factos e adequada subsunção e aplicação do direito pertinente. II. Devendo a revista interposta improceder. Dessa feita, III. Insiste o Recorrente em louvar-se no entendimento que em concreto, do(s) ato(s) das ajuizadas doações não resultou a impossibilidade da credora obter a satisfação do vindicado crédito ou o agravamento dessa impossibilidade, atendendo às penhoras registadas, documentalmente provadas e assentes. IV. A Recorrida lançou mão de ação Pauliana em vista a obter tutela judicial e obter a realização do seu crédito, pelos bens objeto dos atos impugnados, único garante patrimonial do devedor, (Cf. item 4.º dos factos provados na sentença) V. Posteriormente às penhoras que havia realizado no âmbito da execução, (tal como documentado e matéria assente – itens 4 e 5 do probatório) verificou que o ora Recorrente era proprietário de maior proporção no imóvel, fração “B “, do que a que havia sido penhorada (1/4), por não se encontrar registada a sua propriedade naquela parte aquando da penhora. VI. Sendo, portanto, proprietário não de ¼ desse imóvel, mas sim de ½. VII. Não podendo promover penhora sobre essa parte por já haver sido feita a doação à mãe do Recorrente, não lhe restando mais que recorrer à Impugnação; VIII. Certo que a impugnação tem como tema e objeto a alienação gratuita dos bens das doações, qua tale, de cujo fundado a Recorrida se prevaleceu. IX. Mais que se encontra provado, a inexistência de outros bens e/ou rendimentos na esfera do devedor/impugnado (item 4.º dos factos provados) Mais, X. O Recorrente deleita-se em exposição excursiva sobre o instituto de impugnação pauliana, bem como do direito real de garantia que a penhora encerra e do direito de sequela de que aquela goza, fazendo crer que in casu prefigura-se situação excecional, quando os autos revelam que é recorrente a sofisticada forma de fazer perder a garantia patrimonial, por qualquer meio e a qualquer custo. XI. Fazendo persistir a ideia que a penhora do bem imóvel alcança os precisos efeitos da providência resultante de impugnação pauliana. XII. Porém, certo que a providência pauliana pode e deve levar também à penhora (face à natureza fundiária e alcance de sua restituição de propriedade que o instituto abrange e coenvolve se necessário para a realização e na medida do crédito a acautelar), pode ter um âmbito mais alargado, nomeadamente em função da pendência do titular do direito e enquanto pela penhora não haja mudança de titularidade. XIII. Não é indiferente ao credor qual o titular do direito de propriedade e, enquanto esta estiver na titularidade do devedor, ao credor é possibilitada a chance de penhorar também rendimentos do bem penhorado ao próprio devedor, situação que se tornou impossível pela mudança de titularidade, como ocorreu nos autos. XIV. No caso, a Recorrida penhorou ao devedor renda, como os autos ostentam (doc. 3 – auto de penhoras) que o devedor, mercê da doação impugnada, também almejou defraudar, pela mudança de titularidade que os atos demonstram. XV. Tendo a doação, contrariamente ao defendido, agravado a possibilidade de pagamento de jeito acrescido e frustração do crédito, a essa luz. XVI. A tutela conferida pela providência pauliana tem um espectro garantístico mais alargado e efetivo do que a tutela garantística imobiliária da penhora prévia, pois provê no ínterim, até à venda, a possibilidade de penhora dos rendimentos ao próprio alienante devedor. Ainda, XVII. A A./Recorrida demonstrou o seu direito e, ao invés do pretendido as penhoras registadas não excluem o direto à impugnação dos atos, nem as tornam inúteis. Pelo contrário. XVIII. E essa impugnação versa os atos de doação (que não os direitos de propriedade, objeto de penhora), sendo que no concernente à fração “B”, a impugnação é quanto a ½ (e não a ¼, como a penhora registada). XIX. A impugnação respeita aos atos dispositivos, que não às garantias prévias da penhora, que no caso, indelevelmente, não atinge a totalidade da propriedade alienada e a dever ser impugnada. XX. Também os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido (art.º 616 n.º 4 do C.C.) XXI. Ou seja, o impugnante adquire garantia especial relativamente aos bens indevidamente alienados, ao invés dos restantes credores que se vêm impedidos de poder executar ou exercer medidas conservatórias sobre os bens alienados pelo devedor. XXII. Verifica-se, pois, a existência dos requisitos, em concreto, do Instituto de impugnação pauliana, não ficando esta prejudicada pela existência de penhora prévia sobre os bens, mormente quando a alíquota de propriedade penhorada é inferior àquela que se verificou vir a ser a detida pelo Executado/Impugnado Por outro lado, XXIII.O Recorrente pretende agora a revogação do Acórdão da Relação de Coimbra, bem como a anulação da sentença do Tribunal primeira instância, com devolução do processo àquela instância, com vista à promoção de julgamento e eventual alteração da matéria de facto assente; XXIV. Na sua perspetiva, com vista a apurar-se das penhoras “e do impacto que as mesmas têm na verificação do pressuposto da impossibilidade de satisfação do crédito”, aprestando-se, ainda, a tecer considerações sobre valor dos imóveis, factos instrumentais e/ou concretizadores… XXV. Não lhe assistindo qualquer razão, parecendo é que, a pretexto de reapreciação da matéria de direito, pretende reabrir a questão de facto…o que nesta sede estará vedado. Porém, XXVI. Sempre se relembra que, o Réu/Recorrente, então advogado em causa própria, esteve presente na diligência de audiência prévia, tendo ali sido notificado que o Tribunal entendia ser possível conhecer de imediato o mérito da ação, não sendo necessária a produção de mais prova, para além da documental dos autos. (Cf. ata de audiência prévia de 14.01.2022, de fls… do autos) XXVII. Tendo, nessa altura, quando convidado pelo Tribunal para se pronunciar sobre tal posição, referido nada mais ter a acrescentar, e prescindido até da marcação de nova data para prolação da sentença. (Cf. ata de fls…) XXVIII. Não podendo agora, confrontado com decisão desfavorável, pretender subverter regras processuais e reivindicar produção de prova que atempada, avisada e expressamente dispensou. XXIX. Tendo-se conformado com a matéria de facto assente pela primeira instância, certo que não recorreu subordinadamente da mesma, nem sequer contra alegou, quanto a essa parte, (art.º 636 do C.P.C) em resposta ao recurso interposto. XXX. A ora Recorrida, credora, provou que o R/Recorrente, não pagou, não possuía saldos bancários e não tinha rendimentos penhoráveis e que apenas se encontravam registados em seu nome os imóveis indicados que o Recorrente doou à sua mãe. Ao doar esses bens ficou sem mais nada. (Cf. Itens 2.º, 4.º e 5.º do probatório) XXXI. Imóveis de baixo valor, onerados com hipoteca, e penhoras prévias, sendo que num deles apenas é comproprietário, na proporção de 1/2… (Cf. Item 4.º do probatório) XXXII. Aliás, quem tinha que ter alegado possuir bens penhoráveis de igual ou maior valor do que o do crédito seria o Recorrente que o não fez, nem promoveu prova nesse sentido, tendo até aceitado a dispensa de mais diligências processuais. XXXIII. Deverá, pois, manter-se sempre o julgado do Tribunal Recorrido, “qua tale” e legais efeitos, tendo logrado correta apreciação dos factos e aplicação do direito a que se vinculou, devendo improceder todas as conclusões de recurso”.
7. O Exmo. Senhor Desembargador do Tribunal da Relação de Coimbra proferiu o despacho com o seguinte teor: “Por ser recorrível, estar em tempo e ter legitimidade, admito a interposição de recurso do R., do acórdão que antecede, o qual é de Revista, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito devolutivo (arts. 671º, nº 1, 674º, 675º, nº 1, e 676º, nº 1, “a contrario”, do NCPC). - Notifique e após remeta ao STJ”.
* Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é a de saber se o Tribunal recorrido aplicou erradamente o regime da impugnação pauliana ao caso dos autos.
* II. FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido: 1. No âmbito do processo comum singular n.º 334/15...., comarca ..., Juiz ... do Juízo de Competência Genérica ..., em 7/2/2018, foi judicialmente homologado acordo entre a Autora e o 1.º Réu, relativamente ao pedido de indemnização civil, por sentença que entretanto transitou em julgado, nos seguintes termos: - “Fixar o pedido de indemnização cível formulado nos presentes autos para o valor de 35.812,66€ (trinta e cinco mil oitocentos e doze euros e sessenta e seis cêntimos); - Tal quantia será paga pelo demandado no prazo de 45 (quarenta e cinco) dias a contar da data de hoje, mediante cheque que será entregue pelo demandado/arguido à Defensora que o representa e que esta fará chegar à Ex. Mandatária da denunciante/demandante” – cfr. doc. 1 junto com a petição inicial; 2. Pese embora essa obrigação assumida, para ser cumprida no prazo de 45 dias, o 1º Reu nunca pagou qualquer valor à Autora, tendo esta instaurado, em 3 de abril de 2018, o processo executivo que corre termos sobre o número n.º 334/16.... no Juízo de Competência Genérica ... - Juiz ..., tendo em vista a cobrança da quantia de 35.812,66€, taxa de justiça e juros de mora vencidos, tudo no montante global de 36.495,85€ – cfr. doc. 2 junto com a petição inicial; 3. O valor em dívida ascende ao montante de 40.546,43€ - admitido por acordo; 4. No âmbito dessa execução apurou-se que o ora primeiro Réu não possuía saldos bancários e não tinha rendimentos penhoráveis e que apenas se encontravam registados em seu nome os seguintes imóveis – cfr. docs. 3, 4, 5 e 6 juntos com a petição inicial: A) fração autónoma designada pelas letras AD, correspondente ao 4º andar esquerdo frente, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, destinado à habitação, sito na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o Artigo ...77, descrito na Conservatório do Registo Predial ... sob o n.º ...19, com o valor patrimonial tributário atribuído no ano de 2016, para a totalidade da fração, de 47.551,95€; - Cujo direito de propriedade, pela ap. n.º ...24 de 24/07/2009, se encontrava registado em nome do ora primeiro réu; - E que, pela ap. ...75 de 18/09/2019, em consequência de doação efetuada, foi transmitido e registado em nome da ora segunda ré; - Sobre a qual consta registada, pela ap. ...25 de 24/07/2009, uma hipoteca constituída a favor da Caixa Geral de Depósitos, para garantia do capital de 45.000,00€, com o montante máximo assegurado de 63.332,10€; - Sobre a qual consta registada, pela ap. ...89 de 05/07/2018, uma penhora, a favor da ora autora, para garantia do pagamento da quantia exequenda de 36.495,85€, no âmbito da execução supra referida; - Sobre a qual consta registada, pela ap. ...91 de 20/07/2016, uma penhora, a favor da Fazenda Nacional, para garantia do pagamento da quantia exequenda de 1.669,63€; B) fração autónoma designada pela letra B, correspondente à cave frente, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, destinada comércio, sito na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...76, descrito na Conservatório do Registo Predial ... sob o n.º ...18, com o valor patrimonial tributário de 14.315,00€; - Cujo direito de compropriedade, na proporção de ¼, pela ap. n.º 1 de 28/09/1995, se encontrava registado em nome do ora primeiro réu; - Cujo direito de compropriedade, na proporção de ¼, pela ap. n.º 500 de 10/12/2018, se encontrava registado em nome do ora primeiro réu; - E que, pela ap. ...75 de 18/09/2019, em consequência de doação efetuada, foi transmitido e registado em nome da ora segunda ré, na proporção de ½; - Sobre a qual consta registada, pela ap. ...42 de 01/10/2014, uma penhora, a favor da Fazenda Nacional, para garantia do pagamento da quantia exequenda de 1.169,43€, na proporção de ¼; - Sobre a qual consta registada, pela ap. ...89 de 05/07/2018, uma penhora, a favor da ora autora, para garantia do pagamento da quantia exequenda de 36.495,85€, no âmbito da execução supra referida, na proporção de ¼; - Sobre a qual consta registada, pela ap. ...45 de 20/05/2019, uma penhora, a favor da Fazenda Nacional, para garantia do pagamento da quantia exequenda de 2.670,76€, na proporção de ½; 5. Tendo a Autora promovido o registo das penhoras sobre os referidos imóveis, para satisfazer os pagamentos da impetrada dívida, como se encontravam já registadas penhoras fiscais prévias nos bens indicados, a autora reclamou o seu crédito nos processos fiscais, que se encontram suspensos, mercê de acordos de pagamento entre o 1.º R. e a Administração Fiscal, que obstaculizaram e foram prejudiciais às expectáveis vendas, ficando a A. nessa jurisdição fiscal sem resultado – cfr. docs. 7, 8 e 9 juntos com a petição inicial; 6. Em sede de reclamação num daqueles processos (P.º n.º 17/20...., que correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal ..., no qual a A., ali reclamante, vinha insistindo para que a Administração Fiscal promovesse a venda do imóvel penhorado), a autora tomou conhecimento que o 1.º Réu havia doado os bens possuía (indicados no artigo 3.º desta P.I. – que haviam sido objeto de penhora pela autora) à sua mãe, aqui segunda Ré, CC, que aceitou tal doação, em 16 de Setembro de 2019 – cfr. docs. 5, 6, 9 e 10 juntos com a petição inicial; 7. Mediante escritura pública de doação, outorgada no dia 16 de setembro de 2019, o primeiro réu dou à segunda ré, que aceitou a doação, os seus direitos de propriedade e compropriedade sobre os prédios identificados em 4, pelos respetivos valores patrimoniais, cujo valor tributário ascendia 54.709,45€ - cfr. doc. n.º 10 junto com a petição inicial.
O DIREITO Na inversão do sentido da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, o Tribunal recorrido expôs a seguinte fundamentação: “Na decisão recorrida elencam-se adequadamente os 5 e únicos requisitos de procedência da acção de impugnação pauliana. O tribunal considerou estarem verificados os quatro primeiros e chegado ao quinto, verificar se do acto de doação resulta a impossibilidade de o credor/A. obter a satisfação integral do crédito ou o agravamento dessa impossibilidade, acaba por tergiversar, porquanto afirma, por um lado, que apesar de impender sobre os RR, devedor e o terceiro interessado na manutenção do acto, o ónus da prova de que o obrigado, o 1º R., possui bens penhoráveis de igual ou maior valor, factualidade que por ninguém foi alegada, de outro lado, constata que subsiste a questão prévia que é a de saber se o acto de doação impossibilitou a autora de obter a satisfação integral do seu crédito ou agravou essa possibilidade. Concluindo negativamente, dado que existem já penhoras sobre esses bens, que, por natureza, realizam a mesma finalidade. Quanto à verificação do aludido 5º requisito é inquestionável que o mesmo se verifica, pois, dos factos provados 4. e 7., resulta que no âmbito da execução que corre contra o R. apurou-se que o mesmo não possuía saldos bancários e não tinha rendimentos penhoráveis e que apenas se encontravam registados em seu nome os imóveis indicados e que tal R. doou à 2ª R., sua mãe. Ao doar tais bens ficou sem nada mais. Nos termos do art. 611º do CC, relativo à prova dos aludidos requisitos, incumbe ao credor/A. a prova do montante das dívidas, prova que a A. fez, e ao devedor/R. ou a terceiro interessado/a R. na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor, prova que não se fez, porque nem foi intentada ou sequer alegada. Ou seja, a A. comprovou todos os únicos requisitos legais suficientes para a procedência da acção pauliana. Por esta parte o recurso merece proceder. No entanto, a sentença recorrida, deslocou a verificação do apontado quinto requisito para a circunstância de havendo já penhoras sobre esses bens, que, por natureza, realizam a mesma finalidade, então não se divisar que tal doação impossibilitou a autora de obter a satisfação integral do seu crédito ou agravou essa possibilidade, porque beneficiando a A. das penhoras sobre tais imóveis, a doação posterior, incidindo sobre tais bens, não impossibilitou a A. de obter a satisfação integral do seu crédito, nem sequer agravou essa possibilidade, porquanto a penhora, constituído para estes efeitos, uma garantia do cumprimento das obrigações, nos termos dos arts. 817º, 818º e 819º do CC, determina a inoponibilidade dos actos de disposição efetuados sobre os concretos bens penhorados, e sendo inoponível o acto de disposição à penhora anteriormente efetuada, a ação pauliana não tem qualquer sentido. Posição que não acompanhamos. Se é certo que a impugnação pauliana e a penhora são meios de conservação da garantia geral das obrigações, uma não exclui a outra, nada dizendo a lei neste sentido, o que seria expectável e lógico que acontecesse. Aliás, do art. 615º, nº 1, do CC, até se vê que podem coexistir ao mesmo tempo dois meios de conservação da garantia geral das obrigações, o da declaração de nulidade (arts. 605º e 286º do CC) e o da impugnação pauliana. De outra parte, não podemos esquecer o que resulta relevantemente do art. 616º, nº 4, do mesmo código, isto é, que os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido. Desta estatuição legal decorre, portanto, que só a A. irá beneficiar da procedência da impugnação não tendo de concorrer com outros credores sobre tais bens (vide justificação para tanto em Varela, CC Anotado, Vol. I, 3ª Ed., artigo 616º, notas 1. e 5., pág. 602., A. Menezes Cordeiro, Tratado de D. Civil, Vol. X, D. Obrigações, Garantias, 2015, pág. 388/389, e J. Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 3ª Ed., págs. 225/226). Mercê desta disposição quebra-se a regra da par condicio creditorium. O bem alienado, através da dita impugnação, deixa de responder igualitariamente pelos créditos dos demais credores: fica preferencialmente afecto à garantia do impugnante. Significa isto que, com a impugnação pauliana, o impugnante adquire uma garantia especial. Ele dispõe da garantia geral, relativamente aos demais bens do devedor, concorrendo, em igualdade, com os diversos credores; e passa a dispor de uma garantia especial, centrada no bem indevidamente alienado. É um prémio à sua diligência e iniciativa por actuar aqui no seu exclusivo interesse. Como a impugnação pauliana não tem natureza anulatória, só relativamente ao impugnante é que a subtração á garantia patrimonial dos créditos comuns do bem retirado ao património do devedor, em consequência da transmissão operada, é ineficaz, pois quanto aos demais credores esse efeito é-lhes oponível, deixando estes de poder executar ou exercer medidas conservatórias sobre o bem alienado pelo devedor, após a sua transmissão para património de terceiro. De modo que estes credores, que se mantiveram passivos, concorrer com o credor impugnante na cobrança dos seus créditos pelo bem cuja alienação foi procedentemente impugnada. Assim, face ao que decorre do art. 616º, nº 1, do CC, a A. credora passa a ter o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse quantitativo creditício, e o direito de execução no património do obrigado à restituição, a R., que é a nova dona dos prédios (pelo que em rigor a restituição ao património do devedor, o R., não tem de ocorrer). Desta sorte, por aqui, o recurso também merece proceder. Finalmente, enfrentando, o outro obstáculo erigido na sentença recorrida, o de que estando dado por assente que a penhora sobre a fração “B” seja quanto a ¼ (e não ½, como alienado), essa questão não era atendível nem pronunciável pelo deferimento da providência face à insuficiência de alegação aportada ao item 3 da P.I. Tal objecção não pode ser aceite. No art. 3º da p.i. alegou-se que: ” No âmbito dessa execução apurou-se que o ora Réu não possuía saldos bancários e não tinha rendimentos penhoráveis, apenas se encontravam registados em seu nome os seguintes imóveis: - Fração designada pelas letras “AD”, composta pelo quarto andar esquerdo frente na zona B -destinado a habitação – 100m2 e arrecadação no sótão com 5 m2 – e ainda um espaço para estacionamento de viaturas na subcave, com 10 m2, também designado pela mesma letra, do prédio inscrito na matriz sob o Artigo ...77, da União de Freguesias ... ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...19, sito na Av. ... - 4.º Esq. Fr., ...; - Fração autónoma designada pela letra "B", do prédio inscrito na matriz sob o artigo ...76, da União de Freguesias ... ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...51, sito no Largo ..., na proporção de 1/4. (Cf. Docs. 3 e 4, que se juntam e reproduzem)”. Desde logo se salienta que na sua resposta à contestação a A. alegou que quando o R. fez a doação à R. havia, entretanto, adquirido mais ¼ da fração “B”, não tendo sido efetuada a penhora sobre essa proporção do direito de propriedade. Ora o que resulta dos factos provados 4., 5. e 7., é isso mesmo, que relativamente à indicada fração havia um direito de compropriedade, na proporção de ¼, registado em nome do R., e depois, mais um direito de compropriedade, na proporção de ¼, mas apenas registado em 12/2018, a seu favor, tendo sido transmitida à R., em 09/2019, essa totalidade, na proporção de ½, pelo que aquando do registo da penhora pela A., em 07/2018, em data anterior a 12/2018, só podia estar registada aquela proporção de ¼. Daí que, atenta as diversas datas, a Fazenda Nacional já tenha registado, logicamente, em 05/2019, uma penhora, a seu favor na nova proporção de ½. E foi isso mesmo que o R. doou à R., metade indivisa da referida fração, e que a R. exactamente registou (em 9/2019). Ora sabemos, que a A. peticionou se declarem ineficazes as 2 doações dos imóveis identificados na petição inicial, efetuadas, em 16.9.2019, entre o R. (doador) e a R. (donatária), o que abarca a ½ da fração “B”, não tendo razão séria de ser a diferenciação que se fez na sentença para obstaculizar o pedido integral da A. Procede o recurso em totum”[1]. Não pode deixar de se acompanhar, na globalidade, este entendimento e a solução adoptada, a final, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, cumprindo, contudo, proceder a uma ou duas precisões. Como pode ler-se no sumário do Acórdão proferido, em 25.03.2021, neste Supremo Tribunal (Proc. 12916/15.5T8LSB.L1.S1)[2], “[n]a disciplina da impugnação pauliana, nos termos do artigo 611.º do CC, a prova do montante das dívidas cabe ao credor ao passo que a prova da existência de bens penhoráveis de igual ou maior valor no património do devedor incumbe a este e ao terceiro interessado; [n]a ausência de prova da existência de bens penhoráveis de igual ou maior valor no património do devedor, deve dar-se por verificado o requisito da al. b) do artigo 610.º do CC, ou seja, a impossibilidade de satisfação integral do crédito por via do acto impugnado”. De facto, no artigo 610.º do CC, sobre os requisitos da impugnação pauliana, dispõe-se: “Os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes: a) Ser o crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor; b) Resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade”. Nos termos da al. b), exige-se um “nexo de causalidade” entre o acto e a impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade[3], devendo esta impossibilidade ser interpretada tendo em conta o previsto no artigo seguinte, in fine. No artigo seguinte – o artigo 611.º do CC – dispõe-se: “Incumbe ao credor a prova do montante das dívidas, e ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor”. A doutrina e a jurisprudência são unânimes no entendimento de que, em conformidade com este preceito, a impossibilidade referida na al. b) do artigo 610.º do CC deve ser interpretada como a situação em que o obrigado não possui bens com valor igual ou superior ao das dívidas. Quer isto dizer que, para afastar a procedência da impugnação pauliana, é necessário e suficiente, nos termos do artigo 611.º do CC, que o transmitente ou transmissário, na qualidade de interessado na manutenção da transmissão impugnada, prove que o montante das dívidas é inferior ou igual ao valor dos bens penhoráveis existentes no património do devedor, sendo que, na ausência de tal prova, a impossibilidade de satisfação integral do crédito por via do acto impugnado, que é exigida pela al. b) do artigo 610.º do CC, deve dar-se por verificada (por não ilidida a respectiva presunção). Explicam Pires de Lima e Antunes Varela, “[a] doutrina deste artigo afasta-se, em alguma medida, das regras gerais sobre o ónus da prova. Em princípio, numa acção de impugnação devia caber inteiramente ao autor fazer a prova dos requisitos necessários à procedência do pedido (cfr. art. 342.º) e, portanto, devia caber-lhe não só a prova do montante da dívida, como da diminuição da garantia patrimonial nos termos da alínea b) do artigo anterior. No entanto, por razões compreensíveis – dificuldade ou mesmo impossibilidade de provar que o devedor não tem bens – o artigo atribui a este o encargo de provar que possui bens penhoráveis de valor igual ou superior ao das dívidas. E igual encargo lança sobre o adquirente (terceiro) interessado na manutenção do acto” [4]. Também Cura Mariano entende que foi “[a] dificuldade de o credor reconhecer a situação patrimonial do devedor que sensibilizou o legislador a adoptar regras específicas no ónus da prova, de modo a atenuar o encargo probatório resultante da aplicação das regras gerais”[5]. A mesma leitura se encontra na jurisprudência, designadamente recente, do Supremo Tribunal de Justiça[6]. Visto isto, cumpre concluir que, tendo a autora logrado provar mais do que, em rigor, lhe competia (cfr., em especial, factos provados 4 e 7) e não tendo o recorrente logrado provar, como lhe competia, que havia no seu património bens penhoráveis de igual ou maior valor do que o valor das dívidas, é inevitável que se dê por provado (por presunção) o requisito da al. b) do art. 610.º do CC, sendo absolutamente irrelevantes outras alegações ou circunstâncias. Já se vê que (e por que) a alegação do réu / recorrente de que seria exigível à autora provar o preço de venda dos bens no âmbito da acção executiva, só assim podendo dar-se por demonstrada a impossibilidade de satisfação do crédito (cfr., sobretudo, conclusões 8 a 14), não procede. Como se disse, o problema é o da desrazoabilidade desta solução no plano da repartição do ónus probatório. Um dado deste tipo não é, de facto, susceptível de determinação prévia. O preço final da venda de um bem, em acção executiva bem como na generalidade dos casos, depende de variáveis que ninguém domina antecipadamente, a começar pelas condições do mercado, que, em geral, são extremamente voláteis. O que fica dito permite também refutar outras alegações do réu / recorrente, como a que se refere à circunstância de a autora beneficiar da penhora constituída sobre os prédios no âmbito de acção executiva por si requerida e de isso militar em desfavor da impossibilidade de obtenção da satisfação integral do crédito (cfr., entre outras, conclusões 3 a 6 e 15 a 22). Seja como for, pode esclarecer-se que a penhora é uma fase ou uma providência da acção executiva e esta é um meio de realização coativa da prestação, ou seja, um instrumento de reacção do credor à falta de cumprimento voluntário da obrigação / ao incumprimento do devedor[7]; já os meios de conservação da garantia patrimonial fazem parte daquilo da tutela preventiva do crédito e, consequentemente, prescindem do incumprimento. Concretizando: a penhora distingue-se da impugnação pauliana no plano funcional e, consequentemente, no plano dos respectivos pressupostos: enquanto aquela é, como viu, uma providência da acção executiva e serve o fim desta (a realização coativa do direito de crédito), esta tem, em princípio (tal como a declaração de nulidade e a sub-rogação do credor ao devedor), a função de assegurar a conservação da garantia patrimonial, podendo ser requerida quando o credor tenha fundadas razões para acreditar que algum acto do devedor põe em risco a garantia patrimonial do seu crédito. Voltando ao caso dos autos, o facto de a autora ter requerido a execução e de, portanto, beneficiar da regra da inoponibilidade dos actos de disposição dos prédios (cfr. artigo 819.º do CC) e da preferência da penhora, que lhe assegura um pagamento com prioridade sobre os credores que não tenham garantia real anterior (cfr. artigo 822.º, n.º 1, do CC), em nada contende, limita ou impede a possibilidade de ela agir com vista fazer regressar os prédios ao património do réu. Mas, mais do que isto, o facto de autora beneficiar da regra da inoponibilidade dos actos de disposição dos prédios (cfr. artigo 819.º do CC) e da preferência da penhora (cfr. artigo 822.º, n.º 1, do CC) não retira à impugnação pauliana o seu interesse para a autora. O que é compreensível. O efeito que a impugnação pauliana é dirigida a produzir (a ineficácia dos actos praticados pelo devedor) implica a restituição dos bens na medida do interesse do impugnante, aproveitando apenas a este (cfr. artigo 616.º, n.ºs 1 e 4, do CC) [8] [9]. Reside nisto a natureza pessoal da impugnação pauliana (“esta não beneficia senão o credor que a exerceu”[10]). Concretizando: a partir da doação, os prédios deixaram de fazer parte do património do devedor e passaram a integrar o património da donatária; nessa medida, deixaram de responder pela generalidade das obrigações, excepto quando exista garantia real sobre eles. A autora tem interesse na impugnação pauliana porque, se ela for julgada procedente, mantém, desde logo, intacta a possibilidade de executar os prédios, no património do devedor, recaindo sobre a donatária a obrigação da sua restituição na medida do direito da autora. Mas a posição privilegiada da autora não se reduz a esta vantagem. Equacione-se a hipótese de o devedor ser declarado insolvente. Por via da impugnação pauliana, o credor impugnante consegue furtar-se ao concurso dos restantes credores do devedor[11], se não enquanto executa o bem no património do devedor, pelo menos quando opte por executá-lo (como é possível e até mais habitual) no património do terceiro obrigado à restituição[12]. Quer isto dizer que a autora tem ainda, em concreto, um interesse objectivo na impugnação pauliana, porque esta lhe permite, na eventualidade de declaração de insolvência do devedor, a possibilidade de executar os prédios no património da donatária, sendo a única credora munida de um título que lhe permite atingir este património; os demais credores devem satisfazer os respectivos créditos através dos bens que estejam integrados no património do devedor ao tempo da sua declaração de insolvência. Aproveita-se aquilo que acaba de se dizer para fazer um derradeiro esclarecimento, que, aliás, reforça esta convicção quanto à existência de um interesse justificado da autora no recurso à impugnação pauliana. Resulta provado (cfr., sobretudo, factos provados 4, 5 e 7) que sobre a fracção B existe uma penhora a favor da autora apenas na proporção de ¼ e que, em data posterior, o devedor adquiriu a proporção adicional de ¼, logo por ele doada à 2.ª ré e também penhorada pela Fazenda Nacional. Quer isto dizer que há uma parte dos bens do devedor que “escapou” à penhora efectuada por impulso processual da autora e que, claramente, não está coberta pela protecção em que a preferência da penhora se traduza na prática[13]. A pretensão da autora de que esta parte dos bens seja, na prática, igualmente “afectada” pelos efeitos da impugnação pauliana é justificada, não se vendo nada que obste – não obsta, seguramente, a referida incidência apenas parcial da penhora – à declaração integral de ineficácia das duas doações (a doação da fracção AD e a doação de ½ da fração B), conforme peticionado. Chegados aqui, dir-se-á que o Acórdão recorrido não carece nem merece ser revogado, impondo-se, pelo contrário, confirmá-lo na íntegra.
* III. DECISÃO
Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.
* Custas pelo réu / recorrente.
* Lisboa, 2 de Março de 2023
Catarina Serra (Relatora)
Rijo Ferreira
Cura Mariano _____ [1] Sublinhados nossos. |