Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3136/20.8T8FNC.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: INVENTÁRIO
PARTILHA DA HERANÇA
CÔNJUGE SOBREVIVO
CONFERÊNCIA
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
DIREITO DE USO E HABITAÇÃO
DIREITO POTESTATIVO
TEMPESTIVIDADE
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - O momento da partilha a que se refere o art.º 2103-A do código civil é o momento da divisão dos bens e ela não ocorre na conferência preparatória quando não foi obtido acordo por unanimidade, por esta constituir apenas um dos actos preparatórios dessa futura e concreta divisão de bens.

II - Até que esteja concretizada a partilha tem o cônjuge sobrevivo direito de ser encabeçado no direito potestativo que lhe confere o art.º 2103-A do código civil, sendo, por isso, tempestivo o requerimento do cônjuge sobrevivo para exercício desse direito potestativo, quando apresentado no momento em que foi ouvida sobre a forma à partilha.

Decisão Texto Integral:  

I – Relatório

I.1 – Questões a decidir

AA, BB, CC e DD, interpuseram recurso de revista do Acórdão proferido pela ... Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em 10 de Março de 2022 que revogou a decisão de 12 de Outubro de 2021 do Tribunal Judicial da Comarca ...- Juízo Central Cível ... – Juiz ...  que tinha decidido que o direito de atribuição preferencial da casa de morada de família e uso do respectivo recheio fora extemporaneamente exercido, requerendo a revogação do acórdão recorrido com confirmação da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância.

Apresentaram alegações de recurso que culminam com as seguintes conclusões:

A. No que respeita à violação prevista no artigo 674.º, n.º 1, al. a) do CPC, importa referir que o tribunal recorrido violou a lei substantiva, sendo que esta violação reconduz-se a um erro de interpretação da norma aplicável.

B. Os AA. não concordam com a interpretação que o Tribunal da Relação fez do artigo 2103.º do CC.

C. Consideramos AA. que a supra citada norma deve ser interpretada no sentido que lhes atribuiu a sentença proferida em primeira instância, por ser aquela que mais se coaduna com a vontade da lei em decidir de forma justa.

D. O pedido de encabeçamento do direito de uso e habitação em apreço foi formulado pela Ré, pela primeira vez, aquando da pronúncia pelas partes sobre a forma da partilha, nos termos do n.º1 do art.57.º do RJPI, ou seja, já após a decisão acerca da partilha dos bens e respetiva adjudicação.

E. Momento manifestamente inapropriado e tardio, para os devidos efeitos

F. A admissão, adjudicação e integração de tal direito de habitação de casa de morada de família a favor da ora Ré, confronta, sem qualquer dúvida as expetativas dos restantes interessados, ora recorridos.

G.  Trata-se de um direito de preferência (atribuição preferencial) que, como resulta do art.º 2103-A.º CC, deve ser exercido no momento crucial da partilha, ou seja, no momento das adjudicações e não da forma à partilha, que trabalha com as adjudicações feitas e respetivos valores.

H. A ponderação desta circunstância terá repercussões nos direitos de cada um dos interessados, pelo que urge concluir que tal questão se reconduz, necessariamente, a questão que influi na partilha.

I. Saber se sobre os bens objeto de partilha irá recair o ónus do artigo 2103.º-A do CC influi sobre o modo de os partilhar.

J. Mas não só. O exercício do direito consagrado no dito artigo constitui uma questão que influi decisivamente nas demais adjudicações.

K. Sendo imperioso aos demais interessados a consciência de tal exercício, para poderem concorrer às adjudicações em condições corretas, e com todas as informações relevantes.

L. O valor da casa de morada de família e o próprio interesse pela mesma é totalmente diferente se tal bem for “onerado” com os direitos reais menores de habitação e de uso, com a ainda prevista longa indisponibilidade desse património.

M.  Tal conclusão é sustentada pelo regime estabelecido para os encargos ou ónus da herança, uma vez que estes igualmente apenas podem ser reclamados até à conferência preparatória.

N. Significa dizer-se que, tendo celebrado acordo quanto à composição dos quinhões e tomando a Ré conhecimento, nesse momento, que os bens em causa não lhe seriam adjudicados, deveria, nessa mesma altura, expressamente declarar pretender exercer o seu direito às atribuições preferenciais em causa.

O. Não o tendo feito, forçoso se torna concluir que o exercício de tal direito pela Ré foi exercido intempestivamente, pelo que não poderá ser considerado na partilha em apreço.

P. Sendo certo que esta interpretação do artigo 2103.º do CC é aquela que mais se coaduna com uma decisão justa e equitativa do litígio, pelo que não restam dúvidas que tal norma legal deveria ter sido interpretada neste sentido pelo tribunal a quo.

Q.  Pelo que forçoso se torna concluir que no caso em apreço esta questão deveria ter sido suscitada em sede de conferência preparatória.

R. Tendo sido neste sentido que decidiu o tribunal de primeira instância, em cuja decisão consta que a Ré, aqui recorrida, deixou passar o tempo legalmente estabelecido para formular o pedido em apreço e, por força disso, e da natureza potestativa dos direitos em causa, gerou-se a renuncia tácita aos referidos direitos de habitação e uso, pela falta de manifestação atempada da sua vontade.

S. Inclusive, acórdão recorrido, ao decidir como decidiu, está em absoluta contradição com anteriores acórdãos, conforme    acima exposto, nomeadamente: Ac. da Relação do Porto, proferido no processo n.º 9231043, Ac. do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo 0536414, Relator FERNANDO BAPTISTA, datado de 01 de dezembro de 2006; Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 10-02-1991, in CJ, 1991, t.I, p.249; de 25-0-1993, Pº9231043 (acima mencionado), e de 21-11-1995, in BMJ 451.º, p.504.

T. Posição relativamente à qual os recorridos manifestam plena concordância, pelo que pugnam para que a mesma seja mantida, em todos os seus termos.

A recorrida, EE apresentou contra-alegações defendendo a confirmação do acórdão recorrido que terminam com a formulação das seguintes conclusões:

1. Entende a recorrida que o recurso interposto por parte dos recorrentes é legalmente inadmissível, e como tal deverá ser a sua apreciação rejeitada.

2. Com efeito, e no que tange à aferição da admissibilidade do recurso de revista, não poderemos obliterar a aplicabilidade do disposto no capítulo I do Título V que prevê as disposições gerais aplicáveis aos recursos.

3. Neste concreto aspecto, urge atender desde logo ao denominado critério “das alçadas e da sucumbência” que limita a admissibilidade da pretensão recursiva e que se encontra prevista no n.º 1 do art.º 629.º do CPC.

4. Com efeito, resulta do referido inciso legal que: “1- O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.

5. Insurgem-se os recorrentes pela circunstância de se considerarem vencidos pela douta Deliberação proferida pelo Venerando tribunal da Relação de Lisboa, pela circunstância de haver reconhecido que o exercício da atribuição preferencial que a lei substantiva atribui ao cônjuge do de cujus designadamente, no caso dos presentes autos, o direito de habitação da casa de morada de família, ter sido exercido de forma válida, tempestiva e eficaz.

6. O referido direito de habitação da casa de morada de família incidiu sobre o prédio que foi relacionado sob a verba 1- prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º ...65 e descrito na crp da Ribeira ... sob o n.º 8044 da relação de bens e a que foi atribuído um VPA de 18.460,00€ conforme documentos juntos aos autos.

7. Sendo que, relativamente ao mencionado bem, e conforme decorre da acta da conferência preparatória junta aos autos, terá sido deliberado por maioria de 2/3 a sua adjudicação na proporção de ½ para o Herdeiro AA e de ¼ para cada uma das herdeiras CC e DD, aqui recorrentes.

8. Ora, o direito de habitação (cujo reconhecimento à ora recorrida, equivalará à medida do vencimento/ da sucumbência determinada pela prolação do tribunal da Relação de Lisboa) é que irá determinar, se efectivamente, in casu, ter-se-á ou não verificado cumulativamente os requisitos previstos no n.º 1 do art.º 629.º do CPC.

9. A sucumbência computar-se-á recorrendo ao critério legalmente fixado pelo art.º 13.º do CIMT aprovado pela Decreto-Lei nº 287/2003 de 12-11-2003 indica-nos qual o critério legal que deverá presidir à determinação do valor do direito de habitação, separado do valor da propriedade plena, designadamente nas suas alíneas a) e b).

10. Ora aplicando os referidos incisos normativos, e atendendo a circunstância conforme resulta da prova documental junta aos autos, da Apelante ter menos de 75 anos de idade e mais de 70, conclui-se que o valor da sucumbência quer na sua globalidade quer individualmente considerado para cada um dos AA a quem foi deliberado ser adjudicado nas referidas proporções o mencionado bem, não ultrapassa metade da alçada do tribunal a quo (cfr. art.º 44 da LOSJ).

11. Pelo que, e por esta razão deverá ser rejeitado o recurso por inadmissibilidade legal.

12. Por outro lado, atenha-se ainda a circunstância do recurso ter sido interposto por todos os AA.

13. Ora, salvo o devido e considerado respeito, afigura-se-nos pelas razões já supra expostas, e atendendo a que a decisão proferida pelo tribunal a quo, no que concerne ao reconhecimento do carácter válido, tempestivo e eficaz do exercício do direito de atribuição preferencial concernente ao direito de habitação da casa de morada de família por parte da ora recorrente afectar apenas aqueles à favor de quem existiu uma deliberação no sentido do mencionado bem lhes ser adjudicado, é que estariam investidos de legitimidade processual para poder recorrer, designadamente os AA CC, DD e AA, sendo que quanto aos demais, não se almeja a existência de qualquer legitimidade recursiva, pelo que nesta parte, deverão ser considerados partes ilegítimas na presente instância recursiva.

14. Sem prescindir e ainda que assim não se entenda, considera-se que o Acórdão sob escrutínio fez um correcta aplicação e interpretação do disposto no art.º 2103.º-A do Código Civil, pois que, e como bem resulta da insigne fundamentação expendida, tal direito poderá ser exercido pelo cônjuge supérstite, até ao momento da partilha, inexistindo na lei processual norma expressa que impunha um momento próprio para que o cônjuge possa exercer o referido direito.

15. Sendo certo que, é a lei substantiva, que define e determina o momento limite para o seu exercício efectivo: até ao momento da partilha. Ora a partilha enquanto acto material de individualização e especificação de uma massa de bens indivisa e ilíquida não ocorre conforme pugnam os recorrentes com a deliberação em sede de conferência de interessados, mas sim com o momento em que a respectiva autoridade (para)judicial em face de tal deliberação, profira despacho determinativo da partilha e concomitantemente seguindo-se o respetivo despacho homologatório,

16. Pelo que se deverá manter o douto Acórdão recorrido, pela interpretação nele veiculada do referido inciso legal se demonstra conforme com os cânones da hermenêutica jurídica.

                                                          ***

I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

Nos termos conjugados do disposto nos art.º 629.º, n.º1, 631.º, n.º1, 671.º, n.º1 e 674.º, n.º1, b) do Código de Processo Civil o recurso é admissível.

Estamos perante um recurso de revista da decisão que considerou intempestivo o exercício do direito do cônjuge sobrevivo de ser encabeçado no direito de habitação da casa de morada da família e direito de uso do respectivo recheio. Este direito tem para o cônjuge sobrevivo um valor total, no sentido de que ou lhe é permitido exercê-lo – ganhando-o por inteiro – ou não lhe é permitido – perdendo-o por inteiro -. Relativamente a cada um dos demais herdeiros poderia admitir-se que ele só prejudicará cada um daqueles a quem for adjudicado o bem e apenas na proporção do seu quinhão hereditário. Todavia, no caso de serem exercidos estes direitos o que só ocorre se a casa de morada de família não integrar o quinhão hereditário ou meação do cônjuge sobrevivo, terá este que pagar tornas aos co-herdeiros, também pelo valor total em que estes dois direitos forem avaliados o que afecta de modo pelo menos indirecto todos os co-herdeiros.

Não há qualquer norma expressa sobre a sucumbência nesta matéria, sendo, pelo menos imprecisa qual a sucumbência a atender. Como o direito ao recurso é uma garantia processual fundamental que só deve ser restringida nos casos previstos na lei, longe de qualquer dúvida interpretativa, dispõe o art.º 629º, n.º 1, parte final que deve atender-se ao valor da causa como o caminho a seguir para suprir as dúvidas sobre o valor da sucumbência, o que passamos a ter em conta.

                                                   *

I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar as seguintes questões:

1. Interpretação do disposto no art.º 2103.º A, n.º 1 do código civil circunscrita à expressão – momento da partilha -.

                                                            

                                                *

I.4 - Os factos

As instâncias consideraram provados os seguintes factos:

1. No Cartório Notarial ... corre, termos autos de inventário, sob o número 3...36/17, por morte de FF e GG;

2. Nos autos de inventário referidos em i., foi realizada conferência preparatória nos dias 24 de Setembro de 2018, 17 de Outubro de 2018 e 18 de Janeiro de 2019;

3. A Ré esteve representada por mandatário nas conferências referidas em ii.;

4. Na conferência preparatória de 18 de Janeiro de 2019 foi formado acordo quanto ao preenchimento dos quinhões, formado por dois terços dos interessados;

5. Na sequência do acordo referido em iv., foi concedida às partes a possibilidade de se pronunciarem quanto à forma da partilha;

6. Quando se pronunciou sobre a forma a dar à partilha, a Ré solicitou que lhe fosse atribuído direito de uso e habitação da casa de morada de família;

7. Por decisão proferida a 30 de Março de 2019 foi determinada a forma a dar à partilha, considerando o pedido da Ré EE;

8. Por decisão da Notária, foram as partes remetidas para os meios comuns quanto à questão da tempestividade do exercício do direito de uso e habitação da casa de morada de família.


*

II - Fundamentação

1.  Interpretação do disposto no art.º 2103.º A, n.º 1 do código civil circunscrita à expressão – momento da partilha

A questão suscitada nestes autos emergiu num processo de inventário submetido ao regime jurídico do processo de inventário notarial, introduzindo pela Lei n.º 23/2013 de 05 de Março, antes das alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 117/2019, de 13/09. Este regime jurídico, prevê a realização da conferência preparatória destinada a obter acordo sobre a composição dos quinhões, posto que estivessem resolvidas as questões suscitadas que sejam susceptíveis de influir na partilha e determinados os bens a partilhar, art.º 47.º da referida lei.

Nesta conferência 2/3 dos interessados deliberaram a adjudicação total das verbas relacionadas para os co-herdeiros ficando a recorrida, cônjuge sobrevivo, com direito ao recebimento de tornas. Não houve conferência de interessados e os interessados foram ouvidos pela Sr.ª Notária sobre a forma à partilha.

A recorrida, cônjuge sobrevivo, quando foi ouvida sobre a forma à partilha invocou a seu favor o disposto no art.º 2103-A do código civil. Em sede notarial foi tal requerimento considerado tempestivo, e organizado mapa de partilha que o teve em consideração.

Apresentada reclamação do mapa de partilha as partes vieram a ser remetidas para os meios comuns por ser tida por complexa a questão da tempestividade/intempestividade do exercício do direito a ser encabeçada no direito de habitação da casa de morada da família e no direito de uso do respectivo recheio – art.º 2103.º- A do código civil -.

O art.º 2103.º- A do código civil quando menciona – no momento da partilha – não fixa uma localização exacta no processo de inventário. Todavia, quando o referido art.º 2103.º- A do código civil entrou em vigor, estava vigente o Código de Processo Civil aprovado pelo Decreto-lei 44129, de 28 de Dezembro que regulava o inventário no CAPÍTULO XVI do seu Título IV – Dos processos especiais – o processo de inventário. Tal capítulo que se encontra dividido em secções regula na Secção IV – a conferência de interessados, na Secção V a avaliação dons bens e licitações e na Secção VI – a partilha. Segue o ritual processual não muito diverso do vigente à data em que foi proferida a decisão sobre esta questão no Notário de convite aos interessados apresentarem uma forma à partilha, elaboração do mapa de partilha, preenchimento dos quinhões, organização do mapa de partilha, pagamento de quotas, reclamações contra o mapa de partilha e sentença homologatória da partilha.

O legislador ao consagrar o disposto no art.º 2103.º- A do código civil não tinha qualquer dúvida que não poderia entender-se como momento da partilha qualquer fase processual que, pelo menos não estivesse dentro da regulamentação constante da referida secção VI – da partilha.

A sistemática do Código de Processo Civil não sofreu qualquer alteração com a profunda alteração que lhe foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro.

O novo Código de Processo Civil afastou-se, em matéria de inventário, ligeiramente da sistematização anterior mas, quanto ao Inventário destinado a fazer cessar a comunhão hereditária subdividiu-o em secções - Fase inicial; Oposições e verificação do passivo; Audiência prévia de interessados; Saneamento do processo e conferência de interessados; Incidente de inoficiosidade; Mapa da partilha e sentença homologatória – permitindo igualmente localizar as operações de partilha  numa fase posterior ao da audiência prévia de interessados e da conferência de interessados.

Para além deste elemento sistemático de arrumação lógica das matérias e consulta científica dos códigos, pelo menos dos que vieram à luz no século passado, a mera interpretação etimológica da expressão – momento da partilha – não pode conduzir-nos a um momento anterior à elaboração do mapa de partilha que é o roteiro que há-de orientar a efectivação da partilha dos bens que integram a herança. Ainda assim, a partilha dos bens não se confunde com o mapa de partilha e sempre é uma fase subsequente ainda que estritamente dele dependente.

Não se ignora que o valor de um imóvel é diverso, se estiver livre e desonerado ou se sobre ele incidir um direito real de uso e habitação e que os herdeiros que não sejam o cônjuge sobrevivo poderão não ter interesse em ficar com o bem onerado por aqueles direitos, ou pelo menos ter um interesse mais diminuído, dada a impossibilidade de usar e dispor do bem enquanto estiver onerado. Mas o cônjuge sobrevivo terá frequentemente interesse patrimonial, mas também afectivo e emocional de não chegar ao fim da sua vida e ter de abandonar a sua casa, estabelecer a sua vida noutro lugar e deixar as suas coisas e as suas memórias. O legislador quis inquestionavelmente proteger o cônjuge sobrevivo e garantir que, as mais das vezes já na sua velhice não terá de se ver constrangido pela partilha da herança a uma adicional perda do seu espaço, das suas rotinas, e pretendeu garantir-lhe que possa continuar a conviver com as memórias mais significativas da sua vida. Foi a clara opção do legislador na sequência da aprovação da primeira constituição em regime democrático.

Como se refere no preâmbulo DL 496/77 de 25 de Novembro:

A situação que o direito (então)vigente atribui ao cônjuge sobrevivo na escala dos sucessíveis legítimos, bem como a sua exclusão da sucessão legitimária, está longe de ajustar-se àquela concepção de família nuclear ou família conjugal já referida, que é a concepção dominante no tipo de sociedade a que se reconduz a actual sociedade portuguesa.

Dessa concepção decorre que ao cônjuge, entrado na família pelo casamento, deve caber um título sucessório semelhante em dignidade ao dos descendentes que na família entraram pela geração.

Por isso se justifica não só que ele prefira aos irmãos e restantes colaterais do de cuius, mas também que seja chamado a concorrer à herança com os descendentes e ascendentes.

Neste sentido, consagra-se agora que na sucessão legítima o cônjuge integre a primeira classe sucessória se à herança vierem descendentes do falecido; que ele integre a segunda classe se concorrer com ascendentes, na falta de descendentes, e, finalmente, que lhe caiba toda a herança, a não existirem descendentes nem ascendentes.

51. Altamente controvertida tem sido a questão de saber em que termos deve o cônjuge sobrevivo ser chamado a concorrer à herança com os parentes em linha recta do falecido, e designadamente com os descendentes.

Há quem sustente que lhe deverá ser atribuído apenas o usufruto da herança (ou de uma parte dela), como há quem defenda que ele deverá concorrer com os herdeiros em linha recta na propriedade da herança.

A favor da primeira solução, alega-se fundamentalmente que ela assegura ao cônjuge sobrevivo a manutenção do ambiente e do nível de vida em que estava inserido, ao mesmo tempo que torna possível conservar os bens na família (entendida esta como família-linhagem, formada pela cadeia de gerações). Além de que a concessão do usufruto é susceptível de favorecer o cônjuge nas pequenas heranças, em que uma quota da propriedade pode não produzir o rendimento de que carece para se manter.

Em defesa da segunda solução, observa-se ser a que melhor se adapta à moderna noção de família, em que o vínculo conjugal se equipara em dignidade ao do parentesco fundado no sangue.

Pondera-se, por outro lado, que a consagração de um legado de usufruto dificulta a gestão dos bens da herança, afecta a sua livre circulação e cria possibilidades de conflito entre o beneficiário do usufruto e o beneficiário da raiz.

Alega-se também que o estabelecimento dos filhos pode ser mais afectado pela concessão de um longo usufruto ao cônjuge sobrevivo do que pela atribuição de uma quota em propriedade. E não deixa de notar-se que o usufruto pode levar os filhos em dependência económica a vender a sua quota de raiz, com a consequente saída dos bens da família-linhagem.

Pelo que toca à preocupação de assegurar ao cônjuge sobrevivo a possibilidade de continuar vivendo no ambiente que era o seu, observa-se que tal preocupação encontrará resposta adequada na atribuição preferencial de certos direitos sobre a residência da família e o seu recheio, conforme adiante se dirá.

Tudo ponderado, foi à segunda das teses em presença que o Governo deu a sua preferência, no sentido de que ao cônjuge sobrevivo, quando concorra com descendentes, seja atribuída uma parte de filho, mas nunca inferior a um quarto da herança; e que, em caso de concurso com ascendentes, ele seja chamado a recolher dois terços da herança, cabendo aos ascendentes o restante.

52. A revalorização da posição sucessória do cônjuge sobrevivo leva também a incluí-lo entre os herdeiros legitimários.

No caso de concorrerem à sucessão o cônjuge sobrevivo e um ou mais descendentes, e bem assim na hipótese de o cônjuge sobrevivo concorrer com um ou mais ascendentes, perfilha-se a fixação da legítima em dois terços da herança.

Se o cônjuge sobrevivo vier à herança como único herdeiro legitimário, a legítima será de metade da herança.

(…)

53. A tutela sucessória do cônjuge sobrevivo projecta-se ainda de outro modo: reconhecendo-lhe o direito de exigir, em partilhas, que lhe seja atribuído o direito de habitação da casa de morada da família e, bem assim, o direito de uso do respectivo recheio (artigos 2103.º-A a 2103.º-C).

Se o valor destes direitos exceder o da sua parte sucessória, acrescida da meação, se a houver, terão os restantes herdeiros direito a tornas.”

O legislador em 1977 fez uma clara opção de valorização da posição sucessória do cônjuge sobrevivo e, desde então sempre consagrou o direito de exigir, em partilhas, que lhe seja atribuído o direito de habitação da casa de morada da família e, bem assim, o direito de uso do respectivo recheio priorizando a família sobre a linhagem de sangue.

 Para o cônjuge sobrevivo o direito potestativo de poder ser encabeçado nestes direitos só surge se e quando não lhe for adjudicada a casa de morada de família. Exigir que logo aí exerça o seu direito, ou o faça até em momento anterior para não ferir as expectativas dos demais herdeiros é esquecer as legitimas expectativas do cônjuge sobrevivo, aquelas que o legislador quis proteger. As mais das vezes a situação colocar-se-á após o cônjuge sobrevivo ter perdido o outro cônjuge, estar fragilizado pela perda, pela idade, pela doença e ter a legítima expectativa de não ser necessário fazer valer esse direito potestativo contra os seus filhos ou netos.

As relações familiares são, por vezes, muito complexas e disfuncionais. Mas os co-herdeiros nunca são apanhados de surpresa, este direito existe desde 1977 com a primeira reforma ao código civil na sequência da aprovação da Constituição da República Portuguesa. Estas questões deveriam ser acordadas entre os herdeiros sem carecerem de intervenção notarial ou judicial. Mas quando não se consegue estabelecer o diálogo, importa ter em consideração as possibilidades que a lei atribui ao cônjuge sobrevivo e adoptar no inventário a posição que melhor defenda os interesses de cada herdeiro, considerando que este direito potestativo pode ser exercido até ao momento da partilha. O momento da partilha é o momento da divisão dos bens e ela não ocorre na conferência preparatória quando não foi obtido acordo por unanimidade, como aqui acontece, por esta ser um dos actos preparatórios dessa futura e concreta divisão de bens.

Acompanhamos completamente a fundamentação do acórdão recorrido sobre esta questão que dando nota de muitas posições contrárias na doutrina e na jurisprudência faz uma análise jurídica correcta e consistente quer do art.º 2103-A do código civil quer do enquadramento processual que deve ser dado ao exercício deste direito, diferenciando de qualquer pretensão de adjudicação de bens.

Até que esteja concretizada a partilha tem o cônjuge sobrevivo direito de ser encabeçado no direito potestativo que lhe confere o art.º 2103-A do código civil. Não está definido um momento preciso para tornar claro que quer exercer o seu direito ou qualquer formalidade que deva seguir.

Em conclusão, no caso concreto fazendo saber com a sua posição sobre a forma a partilha que vem exercer esse direito potestativo, fá-lo dentro do período legalmente estabelecido para o efeito, de forma juridicamente eficaz.

O acórdão recorrido fez uma sábia e correcta interpretação da lei que aplicou ao caso concreto o que impõe a sua integral confirmação.


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III – Deliberação

Pelo exposto, nega-se a revista, e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.


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Lisboa, 10 de Novembro de 2022

Ana Paula Lobo (Relatora)

Afonso Henrique Cabral Ferreira

Maria Graça Trigo