Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
032623
Nº Convencional: JSTJ00004095
Relator: DIAS FREIRE
Descritores: AMNISTIA
REINCIDÊNCIA
FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ196901290326233
Data do Acordão: 01/29/1969
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: DR IS 1969/02/27, PÁG. 238 - BMJ Nº 183, ANO 1969, PÁG. 131
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO.
Decisão: TIRADO ASSENTO.
Indicações Eventuais: ASSENTO DO STJ.
Área Temática: DIR CRIM - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: DL 47702 DE 1967/05/15 ARTIGO 1 N5 ARTIGO 12 PAR1.
CPP29 ARTIGO 646 N6 ARTIGO 669.
CPC67 ARTIGO 764 N4 ARTIGO 766 N3.
CP852 ARTIGO 120.
CP886 ARTIGO 30 ARTIGO 31 ARTIGO 35 PAR1 ARTIGO 100 ARTIGO 125 N3.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1968/05/22 IN BMJ N177 PAG156.
Sumário :
A circunstancia agravante da reincidencia, ainda que modificativa, não obsta a aplicação do n. 5 do artigo 1 do Decreto-Lei n. 47702, de 15 de Maio de 1967, desde que o crime simples seja punivel com prisão ate seis meses, com ou sem multa.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, em Tribunal Pleno:

Ao abrigo do disposto no artigo 669 do Codigo de Processo Penal, o excelentissimo Procurador da Republica junto do Tribunal da Relação de Lisboa recorreu extraordinariamente para o Tribunal Pleno do acordão de 8 de Novembro de 1967, da mesma Relação, alegando que não admitia recurso ordinario para este Supremo e que esta em oposição com o do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 26 de Julho de 1967.
Admitido o recurso, o recorrente apresentou a alegação junta a folhas 7-8 na qual desenvolve considerações tendentes a demonstrar que existe a invocada oposição entre os dois acordãos, juntos, por certidão, a folhas 4-5 e 14-18.
A secção criminal decidiu que se verificam os pressupostos legais relativos ao prosseguimento do recurso e consequente conhecimento do seu objecto pelo Tribunal Pleno (acordão a folhas 27).
A seguir, o excelentissimo Ajudante do Procurador-Geral da Republica apresentou a alegação de folhas 31-35.
Sustenta que se deve lavrar assento no sentido da decisão do acordão da Relação do Porto e nos termos que formula.
Obtidos os vistos legais, cumpre decidir.
I - Como este Tribunal Pleno não pode considerar definitivamente resolvida a questão preliminar relativa a existencia da oposição que serve de fundamento ao recurso (artigo 766, n. 3, do Codigo de Processo Civil), temos de começar pela solução deste problema.
Vejamos, pois:
São pressupostos da admissibilidade do recurso extraordinario: a) A existencia de acordão de uma Relação de que não possa interpor-se recurso ordinario para este Supremo Tribunal; b) A oposição desse acordão com outro, ja transitado em julgado, da mesma ou de outra Relação, sobre a mesma materia de direito, apreciada a face da mesma legislação.
Ora o acordão recorrido foi proferido pela Relação de Lisboa no dia 8 de Novembro de 1967, num processo de policia correccional, pelo que não admitia recurso ordinario para este Supremo (artigo 646, n. 6, do Codigo de Processo Penal).
O acordão anterior foi proferido tambem num processo de policia correccional, no dia 26 de Julho daquele ano, pelo Tribunal da Relação do Porto e deve considerar-se transitado em julgado (artigo 764, n. 4, do Codigo de Processo Civil).
Em ambos se interpretou o artigo 1 e seu n. 5 do Decreto-Lei n. 47702 de 15 de Maio de 1967 que dispõem:
"Artigo 1 - São amnistiados:"
"5 - Os crimes contra a propriedade, puniveis com pena de prisão ate seis meses, com ou sem multa".
O acordão da Relação do Porto entendeu que a pena a que se refere este n. 5 e a que em abstracto corresponde ao crime, pelo que não obsta a aplicação da amnistia a circunstancia modificativa da reincidencia. Por isso decidiu que se aplicava a um crime de furto punido com pena superior a seis meses de prisão so por ter sido cometido por um reincidente.
O acordão recorrido entendeu que, não distinguindo a lei "entre a punibilidade do crime base e a correspondente a circunstancias modificativas, sejam reais, sejam pessoais e nestas a reincidencia, sucessão e declaração de dificil correcção", não se podia aplicar a amnistia concedida pelo transcrito n. 5, a crimes de furto e de burla punidos com pena superior a seis meses de prisão por terem sido cometidos por um reincidente.
O acordão recorrido entendeu que, não distinguindo a lei "entre a punibilidade do crime base e a correspondente a circunstancias modificativas, sejam reais, sejam pessoais e nestas a reincidencia, sucessão e declaração de dificil correcção", não se podia aplicar a amnistia concedida pelo transcrito n. 5, a crimes de furto e de burla punidos com pena superior a seis meses de prisão por terem sido cometidos por um reincidente.
Evidente a existencia dos dois enunciados pressupostos, designadamente o da oposição, invocada pelo magistrado recorrente.
Temos, portanto, de apreciar e decidir o conflito de jurisprudencia, suscitado pelos dois mencionados acordãos.
II - Ja em meados de 1925 a Revista de Legislação e de Jurisprudencia, ano 58, pagina 56, ensinava:
Enquanto "a prescrição afecta o procedimento criminal ou a pena e o perdão atinge so a pena, a amnistia actua sobre a propria infracção cometida, retirando-lhe todos os efeitos, tudo se passando, sob o ponto de vista penal como se ela não tivesse sido praticada.
E este o conceito corrente de amnistia, Lei do esquecimento lhe chamaram os antigos e a propria etimologia da palavra, de origem grega, assim o recorda.
Por isso se tem entendido que ela apaga a lembrança do crime, sob o ponto de vista juridico penal, destruindo os seus efeitos.
"A amnistia, ao mesmo tempo que faz cessar para o futuro todos os actos da instrução ou do procedimento criminal, pelos factos amnistiados, afirma Ortolan, extingue tambem os efeitos das condenações penais pronunciadas em virtude destes mesmos factos, porque estes factos foram judiciariamente relegados para o esquecimento".
Tambem na lição de Silva Ferrão a amnistia "e o esquecimento perpetuo do crime, a abolição da culpa quer antes, quer depois da sentença condenatoria...".
Segundo o texto do artigo 120 do Codigo Penal de 1852 " o acto real da amnistia e aquele que, por determinação generica, manda que fiquem em esquecimento os factos que anuncia, antes praticados, e acerca deles proibe a aplicação das leis penais".
Este preceito não passou para o actual Codigo Penal - que se limita a enunciar efeitos da amnistia (artigos 125, n. 3, e 35, paragrafo 1) - mas tudo indica que apenas por influencia da critica de Silva Ferrão que o considerava, alem de imperfeito, desnecessario.
E o que e certo e que nenhuma norma se formulou no sentido de pretender introduzir qualquer alteração fundamental nos principios da amnistia.
A referencia no paragrafo 1 do citado artigo 35 a pena amnistiada em vez de referencia a crime amnistiado "deve explicar-se por se ter querido harmonizar melhor o paragrafo com o corpo do artigo. Este exige uma condenação para que haja reincidencia, e, portanto, que uma pena se tenha aplicado".
Ainda no ano 58, pagina 91, a citada Revista, para manter a sua refutada opinião no sentido de que as leis de amnistia, quando não façam expressamente qualquer restrição, aplicam-se tanto aos crimes cujas penas se não cumpriram como aqueles em que as penas ja se executaram, insistiu na fundamentação deste principio: a amnistia não atinge exclusivamente a pena mas o proprio crime destruindo todos os seus efeitos.
E em logica aplicação do mesmo principio, lembra:
As leis de amnistia "são por sua natureza retroactivas visto que se aplicam a factos anteriores a sua vigencia.
As leis da amnistia, diz Manzini, olham para o passado e não para o futuro".
Bastante mais tarde - ano 71, pagina 337 - voltou aquela Revista - agora com a assinatura de Beleza dos Santos - a repetir identicos ensinamentos, assinalando:
"E doutrina tradicional entre nos que a amnistia elimina todos os efeitos juridicos da infracção sob o ponto de vista criminal, salvos os direitos de terceiro".
III - Em perfeita harmonia com o exposto conceito de amnistia e seus efeitos entende-se geralmente que ela tem caracter geral e objectivo, aplicando-se aos crimes indicados na lei que a concede. Não a determinados delinquentes. Pode dizer-se que estes lhe são indiferentes.
Nesta orientação, Manzini, citado por Maia Gonçalves no seu recente Codigo Penal na Doutrina e na Jurisprudencia, doutrinou: "Se o diploma legal concede amnistia a todos ou determinados crimes punidos no maximo com uma certa pena, dever-se-a atender a pena abstractamente cominada na lei para o crime imputado, e não a pena concretamente aplicavel, ja que o magistrado não pode nem deve indagar as condições subjectivas da punibilidade, a não ser que o diploma expressamente disponha o contrario...".
IV - A reincidencia nunca e elemento que tenha de concorrer no facto ilicito para que este constitua uma infracção.
Indiferente a ilicitude, não fundamenta a culpabilidade.
Apenas a gradua. Sem efectar a essencia do crime, cicunda-o alterando a sua quantidade.
Como circunstancia agravante, inerente ao agente e, portanto, relativa a culpa, apenas aumenta a responsabilidade criminal (artigos 30-31) determinando um agravamento das penas dentro dos limites gerais abstractos destas ou mesmo uma modificação que permite elevar o limite geral maximo (artigo 100, este e aqueles do Codigo Penal).
Mas o crime cuja pena a reincidencia agrava não destroi a qualificação base. Cometido por um delinquente primario ou por um reincidente permanece "estruturalmente o mesmo".
Por isso não parece, na verdade, justificavel excluir de uma lei de amnistia dirigida a um certo tipo de crimes, individualizados pela pena maxima com que são "puniveis", os crimes do mesmo tipo - estruturalmente identicos - a que corresponde uma pena que pode exceder aquele limite, somente por ter sido cometido por um reincidente.
O que se amnistia e o crime, e nos elementos que o configuram não cabe a reincidencia.
Na esteira desta orientação ja a secção criminal deste Supremo Tribunal em acordão de 22 de Maio de 1986 decidiu em termos que o n. 177 do Boletim sumariou a paginas 156, nos seguintes termos;
A amnistia e uma medida de clemencia de caracter impessoal, objectivo, pelo que pode e deve ser aplicada no inicio do processo, com abstracção da pessoa do delinquente. Por isso, quando a lei amnistia as infracções puniveis com pena ate certo limite, abrange as infracções cujos agentes so por circunstancia qualificativa que lhes e inerente (reincidencia, habitualidade, etc.), são passiveis de pena que exceda esse limite.
V - Convem acrescentar agora:
Como se salienta no n. 5 da alegação do Ministerio Publico, o Decreto-Lei n. 47702 contem tres partes:
A primeira relativa a "delinquentes pertencentes as Forças Armadas e as Forças Militarizadas";
A terceira subordinada a rubrica - "Disposições comuns".
Ora a referencia a "reincidentes" e a "delinquentes de dificil correccção", para os excluir de alguns beneficios concedidos pelo diploma, so aparece no paragrafo 1 do artigo 12 que esta integrado na II parte.

Na primeira parte, que abrange os delinquentes civis, não se estabeleceu qualquer limitação ou excepção quanto aos reincidentes.
Mas a primeira parte e que contem o preceito do n. 5 do artigo 1.
Parece, pois, claro que o proprio pensamento do legislador foi não recusar a amnistia aos crimes enunciados no artigo
1, ainda que cometidos por delinquentes civis reincidentes ou de dificil correcção.
Foi este o entendimento que a Administração veio a expressar por intermedio dos seus orgãos proprios e que tem servido de apoio a grande numero de decisões judiciais.
VI - Nestes termos concedem provimento ao recurso e formulam o seguinte assento:
A circunstancia agravante da reincidencia, ainda que modificativa, não obsta a aplicação do n. 5 do artigo 1 do Decreto-Lei n. 47702, de 15 de Maio de 1967, desde que o crime simples seja punivel com prisão ate seis meses, com ou sem multa.
Sem imposto de justiça.

Lisboa, 29 de Janeiro de 1969

H. Dias Freire (Relator) - Lopes Cardoso - Albuquerque Rocha - Torres Paulo - Ludovico da Costa - Joaquim de Melo
- Fernando Bernardes de Miranda - Oliveira Carvalho - Francisco Soares - Adriano Vera Jardim - J. Santos Carvalho Junior - Eduardo Correia Guedes - Adriano de Campos de Carvalho - Jose Manuel da Cunha Ferreira - Rui Guimarães.