Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P1212
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RODRIGUES DA COSTA
Descritores: HOMICÍDIO
HOMICÍDIO PRIVILEGIADO
COMPREENSÍVEL EMOÇÃO VIOLENTA
ACORDÃO DA RELAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO
COMPETÊNCIA DA RELAÇÃO
DEPOIMENTO INDIRECTO
TESTEMUNHA
DEPOIMENTO
RECUSA DE PARENTES E AFINS
PROIBIÇÃO DE PROVA
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
MEDIDA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
CULPA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Nº do Documento: SJ200810230012125
Data do Acordão: 10/23/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :

I - A fundamentação do Tribunal da Relação está naturalmente vinculada ao objecto do recurso e às questões colocadas, não lhe competindo o mesmo tipo de fundamentação exigido pelo art. 374.º, n.º 2, do CPP.
II - Como se tem entendido neste STJ, as normas atinentes aos recursos, nomeadamente o art. 425.º do CPP, não remetem directamente para o art. 374.º, mas para o art. 379.º, estabelecendo o n.º 4 daquele art. 425.º que “é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto nos artigos 379.º e 380.º, sendo o acórdão ainda nulo quando for lavrado contra o vencido, ou sem o necessário vencimento”. Portanto, o art. 374.º só indirectamente é aplicável, através do art. 379.º, mas com as devidas adaptações (correspondentemente), sendo que essas adaptações têm de levar em conta que os Tribunais de Relação, embora tenham competência em matéria de facto, não apreciam directamente a prova produzida e não a apreciam nos mesmos termos da 1.ª instância, com subordinação aos princípios da imediação e da oralidade, pelo que a fundamentação exigida para as suas decisões tem de estar em consonância com a natureza do seu objecto, que é a reapreciação de uma outra decisão, no universo de questões levantadas pelo recurso.
III - A possibilidade de recusar o depoimento, nos termos do art. 134.º, n.º 1, als. a) e b), do CPP, não está relacionada com a intromissão na vida privada; a possibilidade de recusa relaciona-se tão-só com o facto de as pessoas mais intimamente ligadas ao arguido não serem obrigadas a depor contra ele, sujeitando-se à prestação de juramento e consequências inerentes (art. 91.º do CPP).
IV - A situação configurada nos autos [em que foi valorado depoimento prestado por testemunha, que, além do mais, relatou conversa tida com a mulher do arguido, que se recusou a depor em audiência], na perspectiva do depoimento indirecto (art. 129.º do CPP), não teria como consequência que o depoimento produzido, na parte identificada, não pudesse valer como prova. É que a recusa da mulher do arguido a depor, sendo embora legítima e impossibilitando o confronto com o declarado pela testemunha que validamente depôs, cairia no âmbito da excepção prevista na 2.ª parte do n.º 1 do art. 129.º: não ser possível a inquirição da pessoa indicada.
V - A «perturbação da memória ou da capacidade de avaliação», a que se refere a al. b) do n.º 2 do art. 126.º do CPP não se aplica no caso do acesso de uma testemunha, antes de ser inquirida em julgamento, a declarações por si prestadas em sede de inquérito. Isto porque tal perturbação tem de consistir no emprego de um meio, por parte da autoridade judiciária ou policial que procede à recolha da prova, que altere artificialmente o funcionamento normal da memória ou a capacidade de avaliação do sujeito que constitui fonte de prova. No caso do acesso prévio a declarações por si prestadas em sede de inquérito, antes de ser inquirida em julgamento, a testemunha não foi sujeita por qualquer autoridade judiciária ou policial, contra sua vontade ou independentemente da sua vontade, a qualquer meio artificial para condicionar essas suas faculdades naturais.
VI - O acesso da testemunha a declarações suas anteriores, fosse por meio de apontamentos de que dispusesse, fosse por meio de cópia ou fotocópia, fora do controle do tribunal e fora do próprio processo, não enquadra nenhuma forma de pressão ou condicionamento ilegítimos que pudesse sequer arremedar um método proibido de prova. A situação reconduzir-se-á aos termos normais de valoração do depoimento, considerando todas as circunstâncias em que foi prestado, e aí a questão ultrapassa os poderes deste Tribunal.
VII - Nos termos do art. 133.º do CP, o privilegiamento do homicídio deriva de o agente ter actuado sob o domínio de uma compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, quando seja de concluir por uma sensível diminuição da sua culpa.
VIII - Estas são circunstâncias que actuam ao nível da culpa, traduzindo-se numa menor exigibilidade, ou numa diminuição sensível da exigibilidade de outro comportamento. Para tanto o agente tem de ter actuado sob o império de um desses designados estados de afecto, de forma a poder afirmar-se uma culpa sensivelmente diminuída, como decorrência de uma menor exigibilidade de outro comportamento em face daquelas circunstâncias. Essa menor exigibilidade tem de ser vista à luz do comportamento de um homem normal, respeitador das normas jurídicas, e não do particular ponto de vista do agente. Nessa perspectiva, vistas as circunstâncias do caso, tem de poder afirmar-se que um homem desse tipo teria também sofrido a sua influência, se colocado numa situação semelhante, e teria, por via disso, sido afectado no seu comportamento ou no processo normal de reagir (Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo I, pág. 48).
IX - Analisando os elementos privilegiadores, esclarece o citado autor (ob. cit., pág. 50) que «compreensível emoção violenta é um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente “fiel ao direito” não deixaria de ser sensível. Não se trata aqui de qualquer valoração social ou (muito menos) moral do estado de afecto, mas apenas a sua verificação nos termos preditos (…)».
X - A matéria de facto considerada provada não integra o apontado elemento privilegiador. Com efeito, segundo tal matéria, o recorrente agiu de forma deliberada e livre ao dirigir o veículo contra a vítima, embora o fizesse e tivesse inclusive acelerado o veículo por ter avistado a vítima junto do carro onde se encontrava a mulher e suspeitando já que entre ambos existia um envolvimento amoroso (ou emocional, como consta dos factos provados), sendo certo que entre o arguido e a vítima havia também uma relação de amizade. Ora, não poderá equiparar-se a situação descrita a uma emoção violenta. Da matéria de facto considerada provada, poderá resultar que o arguido agiu movido pelo ciúme, mas com intuito de vingança, visto que suspeitava já dessa ligação, não o tendo tal facto impedido de agir deliberada e livremente quando lançou o veículo sobre a vítima. Estas circunstâncias não inculcam que o recorrente tenha agido sob o impulso de uma emoção violenta que tivesse diminuído sensivelmente a sua culpa.
XI - Acresce que a acção do arguido não será compreensível, à luz de um “homem fiel ao direito”. O homem normal, sobretudo nos dias de hoje, de império dos mass media, de entranhamento na consciência da colectividade de que a situação conjugal, para se manter, tem de ter o acordo sempre actualizado de duas autónomas vontades, de duas pessoas livres para seguirem o seu caminho, poderia ficar perturbado ao tomar conhecimento da existência de uma relação extraconjugal mantida pela sua mulher com um indivíduo que considerava seu amigo, mas não reagiria da mesma forma que o recorrente. Provavelmente, nesta sociedade de frequentes e mútuas infidelidades conjugais, “tiraria as coisas a limpo com o seu cônjuge”, isto é, tentaria avaliar o estado em que se encontrava a relação e ver se ela se poderia manter ou se teria de fracassar. Pelos vistos, a relação que a mulher do arguido manteve com a vítima não foi impeditiva da continuação da relação conjugal. Ora, esse mesmo resultado não teria sido conseguido com o tal “tirar as coisas a limpo”, sem o excessivo preço de uma morte?
XII - O elemento da compreensibilidade tem de ser, além disso, apreendido nas suas «conexões objectivas de sentido», como salienta, na esteira da doutrina e da jurisprudência estrangeiras com soluções semelhantes às do nosso direito, o autor acima referido (ob. e loc. cit.). Ora, o arguido, agindo deliberadamente, continuando, segundo as aparências, a viver com a mulher como até aí, quis sobretudo eliminar o seu concorrente. Não resulta, pois, da matéria de facto provada qualquer elemento que permita considerar o seu crime como privilegiado.
XIII - A ideia-directriz do instituto da atenuação especial da pena é a de que funciona como válvula de segurança (loc. cit. pág. 302). Significa ela que a atenuação especial da pena deve abranger apenas aqueles casos em que se verifique a ocorrência de circunstâncias que se traduzam numa diminuição acentuada da culpa ou da necessidade da pena – casos verdadeiramente excepcionais em relação ao comum dos casos previstos pelo legislador ao estabelecer a moldura penal correspondente ao respectivo tipo legal de crime. Em tais hipóteses, porém, a atenuação especial é obrigatória – o tribunal atenua, diz a lei, após a revisão de 1995 – segundo um critério de discricionariedade vinculada e não dependente do livre arbítrio do tribunal.
XIV - Nessa perspectiva, o facto tem de revestir uma tal fisionomia que se possa dizer, face à imagem especialmente atenuada que dele se colha, que encaixá-lo na moldura penal prevista para a realização do tipo seria uma violência. Por outras palavras, sendo as molduras penais correspondentes aos diversos tipos de crime pensadas para, dentro de uma latitude suficientemente ampla, nelas caber a vasta gama de situações que a vida real nos oferece, desde as mais simples às mais complexas, por vezes sucede que uma dada situação, por excepcional, não se amolda a nenhuma das gradações comportáveis pela moldura penal, nomeadamente quando o caso reveste uma fisionomia particularmente pouco acentuada em termos de gravidade da infracção, seja por via da culpa/ilicitude, seja por via da necessidade da pena. Para esses casos é que foi concebida uma moldura penal especialmente atenuada, que actua sobre a moldura penal abstracta cabível aos diversos tipos de crime.
XV - Da análise da matéria de facto considerada provada não se extraem elementos que preencham qualquer das circunstâncias atenuantes previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do citado preceito, ou outras de natureza equivalente. Atenta a gravidade dos factos praticados pelo arguido e a sua conduta posterior – não prestando qualquer auxílio ao ofendido, que abandonou caído no meio da estrada, e não demonstrando qualquer arrependimento –, não se vislumbra que, apesar do contexto do âmbito do qual agiu e da ausência de antecedentes criminais, se mostre consideravelmente diminuída a culpa, a ilicitude ou a necessidade de pena. É certo que decorreu já muito tempo após a data do crime, não constando que, neste lapso de tempo, tivesse voltado a delinquir e mostrando-se que vem residindo com a esposa e dois filhos, estando socialmente integrado no meio onde reside. Todavia, essas circunstâncias não são suficientemente fortes, face ao desvalor da conduta e ao desvalor do resultado, para acarretarem uma diminuição acentuada da ilicitude e da culpa ou da necessidade da pena.
XVI - A determinação da medida concreta da pena, inscrevendo-se na moldura penal abstracta prevista no respectivo tipo legal, obedece a parâmetros que têm como vectores fundamentais a culpa e a prevenção, consistindo as finalidades da pena na tutela dos bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade (art. 40.º, n.º 1, do CP). Estas finalidades convergem para um mesmo resultado: a prevenção de comportamentos danosos, com vista à protecção de bens jurídicos comunitariamente relevantes, cuja violação constitui crime. À finalidade de prevenção, na sua vertente de prevenção geral positiva ou de integração, cabe fornecer a medida de tutela dos bens jurídicos entre um ponto considerado óptimo para a satisfação das expectativas comunitárias na manutenção ou reforço da norma jurídica violada e um ponto considerado mínimo, correspondente ao conteúdo mínimo de prevenção, sem a salvaguarda do qual periclita a defesa da ordem jurídica. À culpa compete, nos termos do art. 41.º, n.º 2, do CP, a função de limitar as exigências de prevenção geral, impondo um limite para além do qual a pena deixaria de ter um fundamento ético para passar a instrumentalizar o condenado em função de puros objectivos de prevenção. Entre o limite máximo e o limite mínimo traçado pela designada submoldura de prevenção, actuam as exigências de prevenção especial ou de socialização, as quais, devendo subordinar-se ao objectivo primordial de tutela dos bens jurídicos, constituem um elemento determinante na fixação da pena.
XVII - No caso presente:
- as exigências de prevenção especial mostram-se esbatidas, face à reconhecida inserção social, familiar e profissional do arguido;
- o tempo decorrido, sendo já considerável, também atenua as exigências de prevenção geral;
- não atenua as exigências de prevenção geral o facto de o crime ter sido cometido noutro país, pois, se assim fosse, valeria a pena praticar um crime de tal gravidade no estrangeiro e fugir depois para o país de origem, argumentando-se com a circunstância de o crime não ter provocado alarme social neste último; além de que tal argumento se revela falacioso, já que o sentimento da comunidade face ao conhecimento de tal crime não envolve menos repulsa, nem menos reprovação; o direito à vida humana é um direito, se não absoluto (porque não há direitos absolutos), tendencialmente absoluto e universal;
- as circunstâncias em que o arguido agiu atenuam, sob certo prisma que, sendo cada vez menos ético-socialmente relevante, a sua culpa, e o arguido interiorizou de alguma forma o desvalor da conduta, apresentando-se às autoridades portuguesas;
- não tem antecedentes criminais.
neste contexto, será de atenuar-se-lhe a pena, embora de feição muito ligeira, visto que a pena aplicada [9 anos de prisão] pouco ultrapassa o mínimo correspondente à moldura penal; assim, esse abaixamento não pode ir além de 6 meses, pelo que se tem como adequada a pena de 8 anos e 6 meses de prisão.

Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO
1. No Tribunal Judicial de Santa Comba Dão, no âmbito do processo comum colectivo n.º 2163/97.1JACBR, foi julgado o arguido AA, identificado nos autos, e condenado como autor de um crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal, na pena de 9 (nove) anos de prisão.

2. Inconformado com essa decisão, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por decisão de 26-04-2006 (fls. 1643-1664, vol. 7.º), negou provimento ao recurso.
Desta decisão recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça que, por Acórdão de 10-01-2007 (fls. 1730-1743, vol. 8.º), anulou o Acórdão recorrido.
O Tribunal da Relação de Coimbra proferiu, em 28-03-2007, novo Acórdão (fls. 1755-1778, vol. 8.º), que negou provimento ao recurso.
O arguido recorreu de novo desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça que, por Acórdão de 12-09-2007 (fls. 1841-1866, vol. 8.º), anulou novamente o Acórdão recorrido.
O Tribunal da Relação de Coimbra proferiu novo Acórdão, em 12-12-2007 (fls. 1879-1912, vol. 8.º), que igualmente negou provimento ao recurso.

3. Ainda inconformado, o arguido recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça, apresentando motivação que termina com as conclusões seguintes:
1 - O douto Acórdão recorrido enferma da nulidade por omissão de pronúncia prevista na alínea c) do art. 379.º do CPP, ex vi art. 425.º, n.º 4, do mesmo diploma, porque, tendo sido interposto recurso da matéria de facto e de direito, dando-se integral cumprimento ao disposto no art. 412.º, n.ºs 2, 3 e 4, do CPP no texto da sua motivação, sumariando-se tal conteúdo nas conclusões:
1.1. Não apreciou, dando resposta positiva ou negativa, em juízo autónomo, sobre a adequação, a força e compatibilidade probatórias entre os factos impugnados nas questões sumariadas nas conclusões n.ºs 17 a 20, 23, 25 a 31 (inclusive) do recurso para ele apresentado,
1.2. Não enunciou as provas que serviram de base à sua convicção, nem especificou, em juízo autónomo, da força e compatibilidade probatória entre os factos impugnados e as provas que serviram de base à convicção, cuja análise, nas específicas partes em que se deixou exposto nessa motivação, servia de suporte ao alegado pelo recorrente.
1.3. Limitando-se a conferir da validade formal ou da lógica interna da decisão sob recurso, assim violando o art. 428.º do CPP.
Sem prescindir,
2 - Mesmo que se admita que o recorrente, não deu cabal cumprimento ao disposto no art. 410.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, na interpretação de que lhe seria exigível verter nas suas conclusões extraídas as especificações expostas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 e do n.º 4 do art. 412.º do CPP, sempre se imporia ao Tribunal a quo a notificação do recorrente para corrigir as suas conclusões, pois,
3 - Considerando que o recurso apresentado, na sua motivação, contém, de forma exaustiva, com recurso a efectiva transcrição no seu texto, dos específicos segmentos dos meios probatórios que impunham a prolação de diferente decisão, com a efectiva indicação dos mesmos por referência aos respectivos suportes depois transcritos,
4 - Sempre será inconstitucional, por violação do direito ao processo equitativo e do direito ao recurso, constitucionalmente consagrados no art. 32.º, n.º 1, da CRP, a interpretação das normas constantes do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções expressadas em tais normas, tem como efeito a sua rejeição liminar (ou o seu não conhecimento) sem que lhe seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência;
5 - O douto Acórdão enferma ainda de nulidade por omissão de pronúncia – art. 379.º, alínea c), ex vi art. 425.º, n.º 4, do CPP – porquanto, relativamente à conclusão enunciada pelo recorrente com o n.º 9, renova o non liquet da 1.ª instância, não cuidando sequer de se pronunciar sobre a verificação do elemento de “conformação com o resultado morte” cuja prova é essencial para a punição do recorrente a titulo de homicídio simples com dolo eventual; pois,
5.1. O douto Acórdão recorrido não verificou, com o cuidado exigível, os dois elementos – intelectual e volitivo – do dolo eventual com que puniu o recorrente;
5.2. Efectivamente, relativamente a tal matéria no douto Acórdão recorrido o Tribunal limita-se a enunciar que seria incongruente e inverosímil, segundo as regras da experiência comum, considerar que, quem acelera rapidamente um veículo dirigindo a trajectória do mesmo de molde em embater em outrem não admite a morte dessa pessoa, sem, no entanto, responder, como devia, à questão da conformação com esse resultado.
6 - O douto Acórdão é ainda absolutamente omisso relativamente à invocada violação do princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º do CPP) ao não dar resposta às questões suscitadas pelo recorrente sumariadas nas conclusões 10 a 12 do recurso, nomeadamente,
6.1. Qual o critério objectivo utilizado para valorar, como valorou, de forma especial, o depoimento da testemunha BB como “claro e imparcial”, quando os factos julgados provados contrariam, em parte substancial, tal depoimento? e,
6.2. Qual o critério objectivo utilizado para, relativamente ao depoimento prestado por essa testemunha, não valorar o que nele favorecia o recorrente?
7 - O douto Acórdão recorrido não conheceu também, em concreto, as questões colocadas atinentes à aplicação da atenuação especial que, por verificadas, se lhe impunham decidir, sumariadas nas conclusões 21 e 22, padecendo, igualmente nesta matéria, de nulidade por verificação do disposto no art. 379.º, alínea c), aplicável pelo art. 425.º, n.º 4, ambos do CPP.
Sem prescindir,
Da revista:
8 - Foi valorada prova proibida na decisão de manutenção da valoração do relato de declarações da mulher do recorrente, que em audiência de julgamento, validamente, se recusou a depor;
8.1. Tal decisão ocorreu em evidente detrimento da protecção devida à reserva da vida familiar – consagrada, legalmente, nas disposições dos arts. 134.º, n.ºs 1 e 2, do CPP e, constitucionalmente, no art. 32.º, n.º 8, da CRP – que não é afastada pela previsão genérica do art. 129.º do CPP que, definindo as situações em que é valorável o testemunho “por ouvir dizer”, não inclui, literalmente, na sua previsão, os casos em que exista recusa válida de depor pela pessoa a quem são imputadas as declarações ouvidas dizer.
8.2. Sendo inconstitucional, por violação daquela norma constitucional e ainda por violação do art. 134.º, n.º 1, do CPP, pois esvaziaria tais normas de conteúdo, a interpretação do art. 129.º, n.º 1, do CPP, no sentido de que este permite que sejam valorados os testemunhos de ouvir dizer quando a pessoa de quem a testemunha refere ter ouvido seja um familiar a quem a lei confere a faculdade de recusar depor e que, validamente, exerce tal recusa.
9 - O acesso de uma testemunha à leitura das declarações por si prestadas em sede de inquérito, por si não solicitado, “para dar uma revisão”, na data da audiência de julgamento, em momento imediatamente anterior à prestação do seu depoimento nessa audiência – em violação das normas dos arts. 138.º, n.º 4, do CPP e 356.º, n.ºs 2, alínea b), e 5, do CPP – constitui um método de prova proibido (art. 126.º, n.º 2, alínea b), do CPP), por perturbar a capacidade de memória e de avaliação dessa testemunha;
9.1. O acesso a essas declarações só pode ocorrer em audiência de julgamento, sujeito a contraditório, por decisão fundamentada do Juiz do processo – art. 356.º, n.º 7, do CPP – a requerimento da testemunha ou de qualquer sujeito processual;
9.2. O depoimento prestado em audiência de julgamento por testemunha que contacta com as declarações por si prestadas em sede de inquérito, nas condições descritas em 10., é nulo, nos termos do disposto no art. 126.º, n.º 1, do CPP, porque obtido após condicionamento, insustentável, da espontaneidade e necessária liberdade que devem presidir à produção de tal meio de prova;
9.3. É inconstitucional, por violação do disposto no art. 32.º, n.º 1, da CRP, que institui um direito, com dignidade constitucional, ao processo penal equitativo, a interpretação do art. 126.º, n.º 2, alínea b), do CPP no sentido de não cominar com a nulidade prevista no n.º 1 do art. 126.º desse mesmo diploma, o depoimento prestado em audiência de julgamento por testemunha que, nesse mesmo dia, em momento prévio, acede ao teor das declarações por si prestadas em inquérito, por se entender que tal procedimento não é perturbador da sua capacidade de memória e de avaliação.
10 - A decisão do Tribunal a quo de não julgar provado o facto de o recorrente, em 25 de Agosto de 1998, se ter apresentado, voluntariamente, às autoridades portuguesas, que se trata de uma decisão judicial transitada – tal facto resulta cristalino da mera leitura do auto de interrogatório judicial de arguido a fls. 20 a 25 dos autos – viola a norma do art. 169.º do CPP, conjugada com a norma do n.º 2 do art. 363.º do CC, incorrendo em vício de erro notório na apreciação da prova previsto no art. 410.º, n.º 2, do CPP;
10.1. Impõe-se, desta forma, a sanação de tal vício, julgando-se tal matéria como provada, com as consequências legais.
11 - O douto Acórdão recorrido incorre em violação do princípio in dubio pro reo (art. 32.º, n.º 2, da CRP) ao decidir contra o recorrente (arguido), imputando-lhe a prática de um homicídio simples com dolo eventual quando decide que, não obstante a vítima se possa ter deslocado, a colheu na trajectória que traçou para o seu veículo;
11.1. Na dúvida insanável e confessada em que o Tribunal permaneceu relativamente ao local do atropelamento, tendo-se a vítima deslocado, é manifesto que pode ter sido colhida já não dentro da trajectória traçada pelo recorrente, mas noutro ponto no qual confluíram,
11.2. Tal dúvida tem de ser resolvida a favor do arguido, aqui recorrente, o que afasta a sua punição como autor de um crime de homicídio simples com dolo eventual.
Sem prescindir:
12 - O douto Acórdão recorrido, ao aplicar a pena de 9 anos de prisão, viola o princípio da culpa como limite máximo da pena – art. 40.º, n.º 2, do CP;
13 - Pois, tal decisão punitiva não valora, como devia, que os factos foram praticados com dolo eventual – a mais benigna forma de imputação dolosa em termos de censurabilidade – e que o recorrente agiu em estado de emoção – pois o que o levou a agir foi o envolvimento emocional da vítima com a sua mulher –, que se apresentou voluntariamente às autoridades competentes e que tem bom comportamento anterior e posterior aos factos – o que, considerando o exposto nos art. 71.º do CP e do art. 131.º do mesmo diploma, imporia que a pena fixada nunca ultrapasse o seu limite mínimo – 8 anos de prisão;
Porém,
14 - O douto Acórdão recorrido, ao não ter valorado devidamente o estado emocional do recorrente – traduzido na consideração da existência de um nexo causal entre a constatação do encontro entre a sua mulher e a vítima e a sua actuação –, fazendo intervir, na qualificação dos factos, o contexto passional em que estes ocorreram, violou as normas dos arts. 131.º e 133.º do CP.
15- É que, resulta da decisão proferida, que:
a) o que levou o recorrente à prática dos factos foi o envolvimento da sua mulher com a vítima;
b) o recorrente era amigo da vítima, o que conduziu a que esta encetasse tal relacionamento com a mulher deste;
c) os factos ocorreram no seio de um clima de suspeita do recorrente acerca da existência desse envolvimento extra-conjugal;
d) o recorrente, quando se deparou com o encontro entre a sua mulher e a vítima, ficou passado, ficou perdido, abstraindo-se, por completo, das circunstâncias que o rodeavam,
e) tendo iniciado a marcha do seu veículo em direcção ao local do encontro sem se certificar se o semáforo que regulava a circulação do sentido que tomou, estava vermelho;
16 - O que impunha ao Tribunal a quo, a concreta avaliação da emoção que o invadiu e que o dominou revelada pelos factos que julgou assentes e que se subsume à previsão do art. 133.º do CP;
16.1. Sendo errado o afastamento da integração da factualidade nessa previsão legal por apelo à exigência de proporcionalidade entre o facto injusto provocador e o facto ilícito provocado;
16.2. É também errada a decisão de afastar a ideia de contemporaneidade entre a violenta emoção e o acto criminoso com o simples argumento de que o recorrente já suspeitava da existência do relacionamento extra-conjugal da sua mulher com a vítima;
16.3. Pois essa prévia suspeita não afasta, antes explica, a intensidade (dominadora) da emoção “actual” aquando do seu confronto com o encontro entre a sua mulher e o amante, pois aí a suspeita volve-se em certeza;
16.4. É que, da suspeita nasce uma atenção concentrada no sentido de conseguir a certeza, feita do exame dos gestos mais insignificantes para neles encontrar uma prova e, deste estado de expectativa e de concentração da atenção, deriva uma fatal deformação que, mesmo sem chegar a verdadeiros fenómenos ilusórios, leva a um erro de juízo.
17 - O confronto do recorrente com o encontro da mulher com o amante, quando circula conduzindo o seu veículo automóvel, que comprova a sua anterior suspeita, actua como um percursor: tolda-lhe a capacidade de discernimento, condicionando a sua capacidade de querer e de fazer, suportando a diminuição do seu posicionamento ético.
18 - Concluindo-se que o recorrente agiu com e sob o efeito dominador de uma séria perturbação da afectividade que foi apto a destruir a sua capacidade de reflexão e o induziu à acção de forma não reflectida.
Mesmo que assim se não entenda,
19 - Os factos recolhidos do douto Acórdão recorrido (por total adesão à decisão de 1.ª instância), sumariados na conclusão 15, sempre deverão conduzir, na decisão final, à valorização do “quadro passional” ainda que no quadro da atenuação especial – art. 72.º do CP, pois,
20 - Da efectiva e concreta ponderação dos mesmos resulta uma diminuição acentuada da ilicitude dos factos, da culpa do recorrente e da necessidade da pena.
21 - A consideração do contexto passional afasta a actuação do recorrente do normal quadro fáctico de verificação do crime de homicídio simples, pois,
21.1. Se a emoção decorrente do confronto com a infidelidade recebe hoje, socialmente, uma avaliação de desvalor que não consente a isenção de responsabilidade criminal ou de justificação de “acto desesperado”, é também certo que essa mesma sociedade erige ainda como valor atendível a defesa da honra no seio conjugal;
21.2. Que, no limite, sempre configuraria uma situação de provocação injusta ou ofensa imerecida, a considerar no seio da atenuação especial, reforçada pelo facto de o recorrente ter decidido manter um projecto de vida comum com a sua mulher – apesar da comprovada infidelidade –, o que comprova a fortaleza do seu sentimento para com ela e a correspectiva força e intensidade com que reage no momento da verificação dessa traição;
22 - Os factos ocorreram há quase 11 anos e desde Agosto de 1998 que o recorrente cumpre, em liberdade, de forma escrupulosa, as medidas de coação a que está sujeito e que, apesar da condenação, o Tribunal não sentiu necessidade de rever.
23 - O que revela ser o recorrente um indivíduo capaz de manter uma conduta fiel ao direito, facto que se comprova ainda pela sua ausência de antecedentes criminais.
24 - Os factos ocorreram nos Estados Unidos da América o que esbate, na óptica da prevenção geral, as necessidades de protecção da ordem e tranquilidade públicas demandadas pelo nosso ordenamento jurídico;
25 - A decisão de que a utilização do veículo automóvel é uma condição de agravante geral é errada, porquanto o recorrente estava a conduzir quando se deparou com o encontro extra-conjugal da sua mulher, tendo agido nas concretas circunstâncias em que se encontrava – não procurou o meio.
26 - O douto acórdão recorrido errou, ainda, ao não considerar relevante a confissão do recorrente relativamente à autoria dos factos, nisso violando o disposto no art. 71.º do CP,
27 - Da ponderação de tudo o supra exposto, a factualidade julgada provada configura um caso excepcional que revela uma imagem global do facto com gravidade diminuída relativamente aos casos-tipo pensados pelo legislador para o preenchimento do tipo de homicídio simples, para o qual previu um limite mínimo de pena situado em 8 anos de pena de prisão, pelo que,
28 - Se impõe a atenuação especial da pena prevista no art. 72.º do CP e, ainda,
29 - A emissão de um juízo de prognose favorável relativamente à capacidade de o recorrente manter conduta fiel ao direito, o que resultará na decisão de suspensão da aplicação de pena de prisão em que venha a ser condenado,
30 - A decisão de agravamento da condenação em custas do recorrente é ilegal porquanto o pune, sem fundamento, por actividade judicial que decorreu por imperativo da decisão deste Tribunal que anulou as anteriores decisões.
Foram violadas as normas constantes dos artigos:
- 379.º, alínea c), 425.º, n.º 4, 428.º, 126.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 127.º; 129.º, n.º 1, 134.º, n.º 1, 169.º, 410.º, n.º 2, alíneas b) e c), 513.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal,. 32.º, n.ºs 1, 2 e 8, da Constituição da República Portuguesa, 363.º, n.º 2, do Código Civil, e 40.º, n.º 2, 50.º, 71.º, 72.º, 131.º e 133.º do Código Penal;
No final, o recorrente pede: se anule o Acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art. 379.º, alínea c), ex vi art. 425.º, n.º 4, por referência ao disposto no art. 428.º, todos do Código de Processo Penal; se revogue o Acórdão recorrido, substituindo-se por nova decisão que acolha a motivação explanada.

4. Respondeu o Ministério Público junto do tribunal a quo, defendendo a manutenção da decisão recorrida, sustentando que:
- o Acórdão recorrido não padece de falta de fundamentação, insuficiências, omissão de pronúncia, erro de apreciação ou qualquer irregularidade ou nulidade;
- a pretensão do recorrente carece de fundamento, pelo que deve ser julgada improcedente e negado provimento ao recurso;
- o Acórdão recorrido é correcto, não violou qualquer dispositivo legal, nem os direitos de defesa do arguido, pelo que, não merecendo censura, deve ser mantido e confirmado nos seus precisos termos.

5. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público pronunciou-se em parecer, concluindo não se verificarem as omissões apontadas e inexistirem fundamentos para ser alterada a medida da pena pela autoria do crime de homicídio.
Notificado do parecer, o arguido reiterou a motivação anteriormente apresentada.

6. Colhidos os vistos em simultâneo e tendo o arguido requerido a apreciação do recurso em audiência de julgamento, procedeu-se a esta de acordo com o que se acha determinado legalmente, tendo o arguido e o Ministério Público reiterado as suas posições.

II. FUNDAMENTAÇÃO
7. Matéria de facto apurada
7.1. Factos dados como provados:
1) No dia 25 de Junho de 1997, cerca das 18 horas e 20 minutos, existindo luz diurna e ausência de humidade, junto ao n.º .........., sita em ......., Estado de New Jersey, Estados Unidos da América, o arguido AA, apesar de à data não ser titular de licença de condução americana, conduzia o veículo automóvel tipo pick-up, marca Toyota, de cor beije, matricula ....... e n.º de identificação de veículo ............, registada a favor de CC, sua mulher, residente no mesmo endereço do arguido, no sentido Norte da mencionada Avenida, sendo o local uma área industrial, sem habitações ou lojas comerciais, possuindo a via quatro faixas de rodagem, com pavimento em asfalto.
2) Quando provinha da DD que entronca na referida ...... o arguido avistou, na faixa de rodagem desta, EE, de nacionalidade portuguesa, residente em 7 Holly Court, Middlesez, New Jersey, o qual se encontrava junto de um automóvel que estava estacionado na supra mencionada artéria Doremus Avenue, de marca Pontiac, com a matrícula ............., de cor verde, no qual se encontrava a mulher do arguido, CC, e propriedade desta.
3) Junto do referido veiculo, marca Pontiac, estava estacionado o veículo do EE, da marca GMC, tipo pick-up, de cor vermelha, matrícula ......... estando ambos os veículos do lado oriental da Doremus Avenue, na direcção Norte.
4) O arguido, suspeitando da existência de um envolvimento emocional entre a sua mulher e o EE, até porque já os havia encontrado no interior da carrinha dela 1/2 meses antes, acelerou rapidamente o veículo automóvel que conduzia, sem respeitar o sinal que entretanto ficara vermelho, e dirigiu a trajectória do mesmo de molde a conseguir embater no corpo do EE, o que veio a acontecer, tendo o embate ocorrido junto ao n.º37 da Doremus Avenue, localizado a Sul das passagens superiores 1 e 9.
5) Em consequência do embate, o corpo de EE foi projectado contra o pára-brisas do veiculo conduzido pelo arguido, caindo sobre o capot deste, onde permaneceu durante alguns momentos, após o que foi atirado pelo ar, vindo a imobilizar-se, em posição de decúbito dorsal, a cerca de 30 metros da parte da frente do seu veículo automóvel (GMC), junto da berma do passeio, do lado oriental da Doremus Avenue, com a cabeça apontando para o lado Norte e os pés para o lado Sul, estando próximo dele a haste do limpa pára-brisas do veículo conduzido pelo arguido, tendo o veículo da marca GMC ficado com o espelho do lado esquerdo danificado.
6) Em consequência directa e necessária de tal embate o EE sofreu laceração e contusão do couro cabeludo com fractura do crânio e hemorragia subaracnóide do cérebro, deslocação atlantooccipital e corte transversal da medula espinal cervical, contusão pulmonar e levação do lóbulo inferior direito, corte transversal das vértebras torácica ao nível do 8.º e 9.º disco vertebral, separação parcial da oitava costela torácica no disco costo-vertebral e laceração muscular intercostal, hemotórax bilateral, 1800 ml, laceração superficial do fígado, laceração do lado direito das costas e região superior da nádega esquerda, contusão/laceração das extremidades, fractura da fíbula distal esquerda, sendo tais lesões múltiplas, causa directa, adequada e necessária da sua morte.
7) Em seguida, o arguido abandonou rapidamente o local, seguindo em direcção a Norte, sem sequer se inteirar do estado de saúde de EE, tendo ainda sido abordado pela testemunha FF, junto de um semáforo que se encontra na esquina com a Raymond Blvd., que o alertou para o facto de ter atropelado um homem, tendo-se aproximado, então, a mulher do arguido que o abraçou e beijou, após o que se colocou entre o veículo do arguido e o do referido FF, aproveitando o arguido esse facto para sair do local, após o que se dirigiu para sua casa, abandonando o veículo que conduzia debaixo de uma ponte, junto ao n.º 2 da Poanoke Avenue, sita em Newark, onde veio a ser encontrado, com danos na parte da frente e com falta de um limpa pára-brisas.
8) Após ter chegado à sua residência, sita em 151 Fleming Avenue, 1ST. FL. Newark, New Jersey, o arguido dirigiu-se no referido veículo da marca Pontiac a casa de BB e Lurdes Alves, contando aquele o sucedido, tendo, depois de tal conversa, o arguido decidido regressar de imediato a Portugal.
9) Para o efeito, a mulher do arguido, CC, efectuou os procedimentos tendentes à compra de uma passagem aérea, tendo o arguido embarcado no aeroporto internacional de Newark, cerca das 20.50 horas do dia 25/06/1997, em voo da “Continental Airlines” com destino a Portugal, tendo utilizado o passaporte do seu irmão, dado que o seu estava entregue a um advogado para lhe tratar da legalização da sua situação nos Estados Unidos da América.
10) O arguido conhecia o falecido desde 1995 em virtude de o mesmo ser frequentador habitual de uma lanchonete, “Fleming Lunch”, sita na 141 Fleming Avenue, onde a sua mulher trabalhava, tendo-se até tornado amigos, frequentando a casa um do outro, sendo também em função desse conhecimento próximo que o falecido e a mulher do arguido se envolveram afectivamente.
11) O arguido possui nacionalidade portuguesa e veio a ser encontrado em Portugal quando residia em casa dos seus sogros, em Parada, Carregal do Sal, área desta comarca.
12) Ao actuar da forma descrita, o arguido representou a morte do mencionadoEE como consequência possível da sua conduta, resultado com que se conformou.
13) O arguido AA actuou de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
14) O arguido reside com a mulher e dois filhos de 10 e 12 anos.
15) O filho mais novo tem problemas de saúde e já fez uma "Operação do Ross", sendo acompanhado no pediátrico de Coimbra.
16) É empreiteiro;
17) A esposa é empregada fabril auferindo o SMN.
18) É uma pessoa socialmente integrada no meio onde reside.
19) Do CRC do arguido não consta que tenha antecedentes.

7.2. Factos dados como não provados:
- que quando o arguido avistou na faixa de rodagem o EE este estava a dirigir-se para junto do veículo de marca Pontiac (provou-se que, quando o arguido o avistou, o mesmo já estava junto da Pontiac);
- que o arguido tivesse estado à espera que o semáforo onde estava imobilizado ficasse vermelho (apenas se provou que o arguido não respeitou o sinal vermelho, o que é distinto de se afirmar que o mesmo esteve à espera que caísse o sinal vermelho);
- que com o embate o corpo do EE tivesse ficado entalado entre a carrinha do arguido e o seu veículo automóvel;
- que a mulher do arguido tenha conseguido o bilhete de avião por intermédio de um Viegas, dono de uma seguradora (só se provou que efectuou procedimentos tendentes à compra da passagem).

7.3. Motivação da convicção:
a) Nos factos provados:
A convicção do tribunal nos factos provados estribou-se na análise critica e ponderada de toda a prova produzida (depoimentos prestados em audiência, documentos juntos aos autos, relatórios periciais e exames), tendo sempre em conta as regras da experiência, nomeadamente:
- Nas declarações do arguido que admitiu em audiência de julgamento ter colhido o EE com a viatura que conduzia, uma Toyota, tipo pick up, na altura e no local referidos na acusação.
Na verdade, o arguido declarou, em Tribunal, que, no dia referido na acusação, por volta das 18 h, encontrava-se parado num semáforo, pretendendo virar à esquerda para aceder à Doremus Avenue, no sentido Norte, quando avistou o EE a conversar com a sua mulher CC, que se encontrava dentro da viatura de marca Pontiac estacionada no lado oriental da Doremus Avenue na direcção norte, encontrando-se, por sua vez, a viatura do EE, de marca GMC, estacionada atrás da Pontiac.
Declarou ainda o arguido, não obstante ter referido que não tinha intenção de atingir o EE, que “ficou passado”, arrancou e atingiu-o com o mesmo (não conseguindo esclarecer se quando arrancou, o semáforo estava verde ou vermelho, mas admitindo que poderia estar vermelho). Quando sentiu que o tinha atingido, acelerou, ainda mais, saiu dali para fora, tendo parado, já numa outra Rua, num semáforo, altura em que se apercebe que foi seguido pela sua esposa, que lhe disse para ir para casa, e por um senhor de raça negra. Fugiu dali e foi para casa, tendo abandonado o veículo que conduzia. De sua casa foi na Pontiac a casa do Sr. BB, seu amigo, a quem contou o que se passou e pediu para o deixar ir para a quinta do patrão. Como este não acedeu a tal regressou a casa, acompanhado pelo BB. Em casa, onde se encontrava a sua esposa, solicitou-lhe que lhe fosse comprar um bilhete para embarcar para Portugal, utilizando para tal o passaporte do irmão, pois o seu estava entregue a um advogado para lhe tratar da sua legalização nos EUA.
Com interesse referiu, ainda, o arguido que quer a Pontiac quer o Toyota eram propriedade da sua mulher e que não tinham quaisquer danos antes do acidente. Também confirmou que era amigo da vítima.
Confirmou, ainda, ao Tribunal que algum tempo antes do acidente, cerca de um/dois meses antes, viu a sua mulher e a vítima conversarem dentro da carrinha, tendo, na altura, desconfiado que se passava alguma coisa entre eles.
As declarações do arguido relevaram, ainda, no que tange às suas condições pessoais.
- No teor do depoimento da testemunha GG, que assistiu aos factos, pois encontrava-se parado nos semáforos na Doremus Avenue, circulando na direcção sul, oposta ao acidente, quando os mesmos ocorreram. Referiu a testemunha que, no sentido de marcha contrário ao que circulava, apercebeu-se de duas carrinhas paradas na berma, uma vermelha e uma verde, encontrando-se a verde parada à frente da vermelha, atento o sentido norte da avenida, e de um indivíduo que falava com alguém que se encontrava dentro da carrinha verde.
A certa altura viu uma carrinha de cor beije, a vir, em grande velocidade, de uma rua à sua direita e a entrar na Doremus Avenue, no sentido norte, carrinha essa que embateu no indivíduo que estava a conversar com a pessoa da carrinha verde e continuou a sua marcha sem parar. De imediato telefonou a pedir ajuda e deslocou-se para junto da vítima, tendo verificado que a mesma já se encontrava morta.
Esta testemunha esclareceu, ainda, o Tribunal das características da via no local do acidente, tendo referido, nomeadamente que a via em causa tem 4 faixas de rodagem (duas para cada lado) e que a faixa mais esquerda, atento o sentido norte, na altura do embate, estava livre, pois havia pouco trânsito, podendo o arguido circular pela faixa mais à esquerda se o desejasse, bem como que, na altura, o piso estava seco e, ainda, era dia.
Referiu, ainda, a testemunha que logo após o acidente a carrinha verde arrancou e foi atrás da carrinha beije.
- No teor do depoimento da testemunha HH que referiu em Tribunal conhecer o arguido, a vítima e a esposa do arguido, mantendo uma relação de amizade com todos, tendo esta última trabalhado para si numa lanchonete que possuía chamada “Fleming Lunch”, lanchonete essa que era frequentada pela vítima e pelo arguido.
O depoimento desta testemunha ajudou o Tribunal a perceber qual era o tipo de relacionamento existente entre a vítima e a esposa do arguido, tendo resultado claro que os mesmos tinham um envolvimento emocional.
De facto, esta testemunha, de forma espontânea e clara, declarou que a vítima e a esposa do arguido comportavam-se, nomeadamente na”Fleming Lunch”, como se fossem “namorados”, trocando carícias e dando comida um ao outro na boca, sendo tal relacionamento conhecido de toda a gente. Referiu, ainda, a testemunha que se apercebeu muitas vezes, da vítima e da esposa do arguido, durante o horário de trabalho deste, a entrarem na residência do mesmo (residência do casal CC e arguido) que se situava perto da lanchonete.
Confirmou a testemunha que a Pontiac verde era propriedade da esposa do arguido e que este e a vítima eram amigos.
Com interesse declarou, ainda, a testemunha que era amiga da vítima e do arguido, tendo avisado várias vezes aquele para acabar com o seu relacionamento com a CC, pois as coisas podiam acabar mal, nunca tendo avisado o arguido de tal relacionamento, apesar de ser seu amigo, precisamente, com medo da sua reacção, inclusive que acontecesse uma tragédia, como aquela que, de facto, veio a acontecer.
No teor do depoimento da testemunha II, sobrinho da vítima EE, que referiu em Tribunal que o tio lhe confirmou que mantinha um relacionamento sexual com a CC, e isto, depois de o ter confrontado com a situação, uma vez que ele e a CC comportavam-se como se fossem namorados.
- No teor do depoimento da testemunha JJ, amigo do arguido e da vítima, e a quem o arguido confidenciou, logo após os factos, que tinha dado uma cacetada com o carro no EE.
Esta testemunha, cujo depoimento primou pela clareza e imparcialidade, declarou, em Tribunal, que estava em casa, por volta das 19 h, quando lhe apareceu o AA e lhe pediu que o escondesse na quinta do patrão, pois tinha dado uma cacetada ao EE; ao que lhe respondeu que não lhe podia fazer isso, e que o melhor, se tinha feito alguma coisa, era irem à polícia. Então, saíram de casa, o arguido na Pontiac da mulher e a testemunha atrás, na sua viatura. A certa altura o arguido parou o veículo e disse-lhe que não ia à polícia, mas para casa. Nessa altura pediu-lhe que lhe contasse a verdade e seguiu-o até casa. Em casa do arguido apercebeu-se de uma grande confusão, nomeadamente da esposa deste que saía e entrava em casa e chamava vários nomes ao AA.
Perante isto, mais uma vez pediu ao AA que lhe contasse a verdade, tendo-lhe o mesmo confidenciado que viu a mulher parada dentro do carro a falar com o EE, que ficou perdido, e foi directo com o carro na direcção deste para lhe dar uma cacetada.
Esclareceu, ainda, esta testemunha que a CC, passados uns momentos, apareceu com um bilhete de avião e que o tio do arguido o levou ao aeroporto.
Com interesse referiu, ainda, a testemunha que a CC lhe confirmou que estava com o EE e que “O AA veio lançado com a pick up e deu-lhe uma cacetada”.
Esta testemunha confirmou, igualmente, que a relação da vítima com a Maria da Fátima era comentada e que o próprio arguido já lhe tinha perguntado se tinha conhecimento de alguma coisa.
- No teor do depoimento da testemunha KK, detective, e que confirmou que depois do acidente foi feita uma perícia onde concluíram que o pára-brisas encontrado no local dos factos encaixava no carro do arguido.
- No teor do depoimento da testemunha LL, detective de polícia, que se deslocou ao local logo após o acidente tendo verificado, nomeadamente, que a pick up GMC se encontrava estacionada na Doremus Avenue, no sentido norte e o mais à direita possível, e o corpo da vítima encontrava-se a cerca de 100 pés da viatura. Referiu, ainda, esta testemunha que o carro que mais tarde constataram pertencer à vítima tinha o vidro lateral, do lado esquerdo, partido.
Esclareceu, ainda, a testemunha das características da via no local do acidente, bem como do local, onde, mais tarde, foi encontrado o carro que o arguido conduzia na altura dos factos.
- No teor do depoimento da testemunha MM, ex-patrão do arguido, e que referiu, em Tribunal, nomeadamente, que o arguido trabalhava para ele e que saía do emprego por volta das 18 h.
- No teor do depoimento da testemunha NN que circulava na DD, atrás da pick up conduzida pelo arguido, e que viu o referido veículo, em grande velocidade, a virar para a esquerda, para a ......., desrespeitando o sinal vermelho, e a dirigir a trajectória na direcção de um indivíduo que se encontrava na faixa de rodagem mais à direita da Doremus Avenue, ao pé de umas viaturas que se encontravam estacionadas, tendo atingido esse individuo.
Esta testemunha esclareceu, ainda, o tribunal das características da via no local do acidente, tendo referido, inclusive que a via tinha 4 faixas de rodagem, duas em cada sentido, e que, na altura dos factos, havia pouco trânsito, tendo o condutor da pick up beije a faixa mais esquerda livre caso tivesse desejado circular sobre a mesma.
Com interesse referiu, ainda, a testemunha que tendo em conta a trajectória que a viatura seguiu ficou convencido que o condutor da mesma queria deliberadamente atingir o indivíduo que se encontrava na faixa de rodagem.
- No teor do depoimento da testemunha FF Jr. que assistiu aos factos, pois encontrava-se parado num semáforo que entronca na Doremus Avenue, quando viu a pick up de cor beije (que mais tarde se constou ser conduzida pelo arguido), a colher um indivíduo que se encontrava na faixa de rodagem perto de uma viatura que se encontrava estacionada nessa mesma faixa, mas o mais à direita possível. Esclareceu, ainda, a testemunha que o indivíduo que foi atingido caiu para cima do capot da viatura que o atropelou e, depois, foi projectado, tendo o veículo atropelante, continuado sempre a sua marcha, motivo pelo qual o decidiu seguir, tendo-o conseguido alcançar uns semáforos mais à frente, alertando-o para o facto de ter atropelado um indivíduo. No entanto, apareceu uma mulher, a falar uma língua que não conhecia, mulher essa que abraçou e beijou o condutor do veículo atropelante e que se colocou entre tal veículo e o da ora testemunha, possibilitando de novo a fuga do condutor da pick up beije.
O depoimento desta testemunha relevou ainda no que respeita às condições da via, na altura dos factos, tendo a testemunha esclarecido o Tribunal, nomeadamente, de que a via tinha 4 faixas, duas em cada sentido, e que o condutor do veículo atropelante, caso o tivesse desejado, poderia ter utilizado a via mais à esquerda que se encontrava livre e contornado, sem qualquer dificuldade, a vítima.
No depoimento das testemunhas de defesa, GM, EP, E M, LC e P R, familiares e amigos do arguido no que tange às suas condições pessoais.
Todos os depoimentos foram prestados de forma isenta e clara, não demonstrando as testemunhas, nomeadamente as de acusação, que, ou não conheciam o arguido, ou eram seus amigos, qualquer interesse particular na causa, tendo tais depoimentos merecido toda a credibilidade do Tribunal.
- No teor da Certidão de Nascimento de EE junta a fls. 211.
- No teor do passaporte do arguido junto a fls. 195.
- No teor do CRC do arguido junto a fls. 288.
- No teor da cópia do documento junto a fls. 361 e 369, onde consta que a Toyota Pick-up se encontrava registada a favor de CC;
- No teor de cópia do documento junto a fls. 362, onde constam as características do veículo de marca GMC referido na acusação
- No teor da cópia da lista junta a fls. 390 e segs. onde consta que um tal A L (irmão do arguido) embarcou no dia 25/6/97 em voo da “Continental Airlines” com destino a Portugal.
- No teor do relatório de autópsia cuja tradução se encontra junta a fls. 609 e segs..
- No teor do relatório de veículo rebocado cuja tradução se encontra junta a fls. 614, onde se extrai, nomeadamente que o veículo conduzido pelo arguido tinha danos no pára-choques da frente, farolim e no limpa pára-brisas e que a viatura de marca GMC apresentava danos do espelho lateral e porta e, ainda, que no local do acidente foi recolhida uma lâmina de limpa-brisas.
- No teor do relatório toxicológico cuja tradução se encontra junta a fls. 654.
- No teor do relatório de serologia cuja tradução se encontra junta a fls. 667.
- No teor do assento de nascimento do arguido junto a fls. 713, onde consta que o mesmo é casado com CC.
- No teor das fotografias juntas aos autos que permitiram ao Tribunal visualizar o local do acidente, bem como aperceber-se dos danos sofridos pela viatura conduzida pelo arguido e pela viatura da vítima.
- No teor do relatório do acidente cuja cópia se encontra a fls. 975 donde se extrai que a vítima foi projectada, tendo ficado a cerca de 100 pés do veículo automóvel GMC (e não a cerca de 100 metros como, por lapso refere a acusação, sendo certo que cerca de 100 pés são cerca de 30 metros).
No teor da cópia doc. junto a fls. 1162, onde se extrai que o filho do arguido foi operado, sendo acompanhado no pediátrico de Coimbra.
Toda esta prova, conjugada entre si, permitiu ao Tribunal fixar a matéria de facto da forma relatada, nomeadamente que o arguido ao actuar da forma descrita, representou a morte do mencionado EE como consequência possível da sua conduta, resultado com que se conformou, facto este que resulta, desde logo, das regras da experiência.
De facto, resultou demonstrado, que o arguido – sendo aliás o próprio arguido que o confessa ao seu amigo BB – foi directo ao EE para lhe dar uma cacetada, depois de o ter visto com a sua mulher.
Ora, alguém que conduz um veículo com as características do do arguido, uma pick up, sendo tal veículo um meio particularmente perigoso, e o atira, intencionalmente, para cima de um indivíduo que se encontra na faixa de rodagem tem de representar a morte desse indivíduo como consequências possível da sua conduta, resultado esse com que se conforma.
Aliás, a nosso ver, o contrário, ou seja o defender-se que alguém, mesmo que exaltado, atira um carro para cima de outrem de forma intencional e não se conforma com o resultado morte que a sua conduta possa originar, viola as regras da experiência.
É certo que o arguido não confessa o elemento subjectivo do tipo. Contudo, como é óbvio, tal confissão não é necessária para que o Tribunal o possa dar como provado
O elemento subjectivo do tipo terá de ser extraído de toda a prova produzida, nomeadamente dos factos objectivos dados como provados.
Na situação dos autos, existem vários elementos objectivos, nomeadamente as circunstâncias da vítima ser amante da mulher do arguido; deste andar desconfiado de tal relação; de os ter visto juntos na altura dos factos; de ter dirigido a trajectória da pick up na direcção da vítima; de a ter colhido, e não obstante tal, ter continuado a sua marcha, sem parar e, essencialmente, de ter confirmado a uma testemunha que foi direito à vitima para lhe dar uma cacetada, que levam o Tribunal a concluir que o arguido actuou dolosamente, na modalidade de dolo eventual.
Nestas circunstâncias as regras da experiência ensinam que alguém que atira com uma pick up para cima de outrem propositadamente, faz admitir que o agente tenha representado a morte da vítima como consequência da sua conduta, conformando-se com tal resultado.
b) Nos factos não provados:
O Tribunal deu como não provados os factos supra referidos uma vez que sobre os mesmos a prova produzida ou foi insuficiente, ou inexistente.
Não se provou que quando o arguido avistou na faixa de rodagem o EE, este estava a dirigir-se para junto do veículo de marca Pontiac, uma vez que resultou, quer das declarações do arguido, quer da prova testemunhal, que aquele, quando os avistou, já a vítima se encontrava junto à Pontiac a falar com a CC que se encontrava no interior da mesma.
Também entendeu o Tribunal que não se provou que o arguido tenha estado à espera que o sinal ficasse vermelho para arrancar. De facto, o que resultou, das declarações do arguido e da prova testemunhal, é que aquele não respeitou o semáforo vermelho, o que é distinto de se afirmar que o mesmo esteve propositadamente à espera que caísse o sinal vermelho para arrancar. A convicção com que o Tribunal ficou é que o arguido, ao ver a mulher e a vítima juntos, acelerou o veículo que conduzia e dirigiu a trajectória na direcção desta última sem se certificar da cor do semáforo, tendo passado no vermelho.
Igualmente não se provou que com o embate o corpo do EE tivesse ficado entalado entre a carrinha do arguido e o seu veículo automóvel, uma vez que nem as declarações do arguido nem a prova testemunhal esclareceram tal facto. O arguido disse não se recordar da forma como ocorreu o embate, só se recordando de ter colhido a vítima, depois de a ter visto com a sua mulher. Por seu turno, as testemunhas presenciais, tendo em conta o tempo já decorrido, também não conseguiram esclarecer se a vítima ficou entalada entre a sua viatura e a do arguido e só depois é que caiu para cima do capot do carro deste último, ou se caiu logo quando foi colhida. Aliás, as testemunhas também não conseguiram esclarecer, com clareza, o local exacto do embate, nomeadamente se o mesmo se deu junto à Pontiac ou junto à pick up da vítima, que se encontrava mesmo atrás da Pontiac, atento o sentido norte.
Contudo, não obstante não conseguirem esclarecer estes pormenores, tendo em conta o tempo já decorrido, foram peremptórias ao afirmarem que viram a vítima ao pé da Pontiac, bem corno o arguido a dirigir a trajectória da sua pick up na direcção da vítima e a colhê-la. No entanto, não conseguem esclarecer se o acidente se deu junto à Pontiac ou se a vítima, no lapso de tempo que o arguido dirigiu a trajectória da viatura na sua direcção, se deslocou para a sua viatura e se, consequentemente, o embate já se deu aqui.
É certo que resulta provado que o espelho lateral esquerdo da pick up da vítima, em consequência dos factos, ficou partido.
No entanto, tal não significa que a vítima teve que ficar entalada entre o seu veículo e a carrinha do arguido, pois, como é óbvio, o arguido antes de colher a vítima, pode ter batido com o carro, nomeadamente com o seu espelho, no espelho da pick up vermelha.
Finalmente não se provou que a mulher do arguido conseguiu o bilhete de avião por intermédio de um Viegas, dono de uma seguradora, uma vez que sobre tal não foi feita prova.

8. Questões a decidir:
- Omissão de pronúncia;
- Valoração de prova proibida;
- Erro notório na apreciação da prova;
- Violação do princípio in dubio pro reo;
- Qualificação dos factos
- Medida da pena
- Suspensão da execução da pena
- Agravamento da condenação em custas

8.1. A primeira questão a decidir consiste na invocada nulidade por omissão de pronúncia do Tribunal da Relação, quanto aos pontos indicados pelo recorrente nas conclusões 1.ª a 7.ª.
Renovando as conclusões que apresentara no recurso que interpusera do anterior Acórdão da Relação (o qual veio a ser anulado pelo Acórdão deste STJ de 12-09-2007), sustenta o recorrente que o Tribunal recorrido: não apreciou, dando resposta positiva ou negativa, em juízo autónomo, sobre a adequação, a força e compatibilidade probatórias entre os factos impugnados nas questões sumariadas nas conclusões n.ºs 17 a 20, 23 e 25 a 31 do recurso apresentado; não enunciou as provas que serviram de base à sua convicção, nem especificou, em juízo autónomo, da força e compatibilidade probatória entre os factos impugnados e as provas que serviram de base à convicção, cuja análise servia de suporte ao alegado pelo recorrente; limitou-se a conferir da validade formal ou da lógica interna da decisão sob recurso, assim violando o art. 428.º do CPP.
Conforme análise efectuada no indicado Acórdão deste STJ de 12-09-2007:
«O recorrente, no recurso interposto para a Relação, pretendia a alteração da matéria de facto, provada, no sentido de que entendia deverem ficar provados determinados factos que indicou e que não se encontravam consagrados no acórdão da 1.ª instância.
O recorrente especificou tais factos na motivação desse recurso com indicação das provas que impunham (no seu entendimento) decisão diversa da recorrida, e fazendo referência aos respectivos suportes técnicos, informando, na motivação do recurso interposto para o Supremo, que tais elementos constavam nessa referida motivação sob o n.º 2 fls. 32 e segs. e que descreveu em:
A: 1. a), 1. b), 1. d), 3, 4, 4. a), 4. b), 8., 8. a), 8. b), 8. c), 11.
B: 18, 18 a), 18. b).
O recorrente pretendia a análise crítica de toda a prova constante dos autos aludida em A) (fls. 54 a 61 do recurso interposto para a Relação), por entender que dela resulta provada a matéria aí elencada, da qual extrairá, no seu entendimento, que o arguido agiu num estado de perturbação volitiva, dominado por compreensível emoção violenta; e que tal emoção foi determinada por facto que lhe não é imputável e lhe estorvou o cumprimento das suas normais intenções, donde teria ocorrido a prática pelo recorrente do crime de homicídio privilegiado, p. e p. pelo art. 133.º do C. Penal, com dolo eventual (v., conclusões 17 a 20 da motivação do recurso para a Relação)».
Ora, o Tribunal da Relação debruçou-se sobre essa pretensão do recorrente a fls. 1894 e segs. do acórdão recorrido, procurando demonstrar que ela não era suportada pela prova produzida, sendo uma construção do recorrente sem apoio probatório. Para tanto, transcreveu e analisou determinados depoimentos, de que se destaca o da testemunha FF, ouvida com intérprete, que presenciou os factos e seguiu o arguido até este parar no semáforo, depois de ter atropelado a vítima sem nunca ter abrandado a sua marcha, tendo-o a testemunha interpelado nesse semáforo e incitado a ir para trás, por causa do atropelamento, apelo a que o arguido não correspondeu, conseguindo escapulir-se. Também o das testemunhas LAAJW, que conheciam o arguido e a mulher, bem como a vítima, e as relações que estes últimos mantinham um com o outro nos Estados Unidos da América, e depuseram acerca do comportamento do arguido e também da mulher, antes e depois dos factos.
Através desses depoimentos, o Tribunal “a quo”, inferiu que o acto praticado pelo arguido foi intencional e livremente determinado, afastando qualquer ideia de motivação do comportamento com base numa emoção violenta e corroborando a conclusão a que chegou a 1.ª instância.

8.1.1. Relacionada com esta matéria e seguindo um critério lógico de apreciação, encontra-se a conclusão n.º 6 do recurso interposto para este Supremo Tribunal, na qual invoca o recorrente a nulidade por omissão de pronúncia do Tribunal da Relação relativamente às questões sumariadas nas conclusões 10.ª a 12.ª do recurso, as quais têm a redacção seguinte:
10.ª «A intenção e a conformação do arguido com o resultado é, no essencial, extraída da especial valoração do depoimento da testemunha BB que foi julgado pelo Tribunal a quo como “claro e imparcial”»;
11.ª «Porém, a especial valoração desse depoimento na questão essencial da definição da culpa do arguido não é consentânea com a decisão proferida sobre a matéria de facto julgada provada que contraria esse depoimento em questões essenciais, o que constitui erro notório na apreciação da prova, que encerra em si insanável contradição de julgamento»;
12.ª «A não se entender assim, há violação do disposto no art. 127.º do CPP ao não ser julgado provado e, consequentemente, valorado, de forma idêntica o depoimento dessa testemunha na parte em que incide directamente sobre a intenção do arguido».
Na motivação do recurso em causa, sustenta o recorrente que «tendo o Tribunal dado especial relevo ao depoimento da testemunha BB impunha-se a consideração deste no seu todo, muito concretamente, impunha-se a decisão de dar como provado que o arguido não pretendeu matar a vítima mas tão-só dar-lhe uma “cacetada”, uma “lição”, retirando desse depoimento todas as consequências jurídicas».
Ora, o recorrente, nas aludidas questões, coloca essencialmente em causa a decisão de facto, tais a intenção e a conformação do arguido com o resultado, bem como a valoração que as instâncias e em particular a Relação fizeram de certos depoimentos, nomeadamente o depoimento da testemunha BB, afirmando que a matéria julgada provada «contraria esse depoimento em questões essenciais», enfermando de «erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável de julgamento».
Resulta claro de tal alegação que o recorrente pretende pôr em causa a prova produzida e o julgamento feito com base nessa prova, confundindo o erro de julgamento com os vícios da decisão de facto, que, inquinando-a de base (isto é, na sua lógica interna, na estrutura factual indispensável para obter uma correcta solução jurídica ou por erro manifesto, imediatamente detectável, quanto à percepção e avaliação da prova que a sustenta) deveriam ressaltar do próprio texto da decisão recorrida, considerada por si só ou em conjugação com as regras gerais da experiência comum (vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP), mas com exclusão de recurso a quaisquer outros elementos extrínsecos, nomeadamente a prova produzida. Ora, é por demais evidente que o Supremo Tribunal de Justiça não pode reapreciar as questões colocadas, por inerentes à decisão de facto e, mais do que isso, envolvendo a valoração e apreciação da prova produzida na audiência de julgamento, sendo o STJ um tribunal de revista. O que o recorrente continua a exprimir, ignorando essa função, é a sua discordância em relação à pronúncia emitida pelas instâncias sobre a mesma prova produzida. Porém, a questão de facto está encerrada.
De sorte que, tendo o tribunal “a quo” encarado tais questões, deu-lhes resposta considerada consentânea com a prova produzida – resposta essa que não compete a este Tribunal, como se disse, reapreciar, travestindo-se de uma terceira instância com jurisdição em matéria de facto – vindo essa resposta a traduzir-se neste juízo do tribunal “a quo”: «Sobre a ousada tese de que estaríamos apenas perante um crime de ofensas corporais agravadas pelo resultado, somos apenas a dizer que seria incongruente e inverosímil, segundo as normas gerais da experiência comum de um normal cidadão não admitir a morte de alguém contra quem “acelerou rapidamente o veículo-automóvel que conduzia, sem respeitar o sinal que entretanto ficara vermelho, e dirigiu a trajectória do mesmo de molde a conseguir embater no corpo do EE, o que veio a acontecer”…».

8.1.2. Ainda sobre esta questão, na conclusão n.º 5, o recorrente insiste na invocação de nulidade por omissão de pronúncia do Tribunal da Relação, sustentando que, relativamente à conclusão que enunciara sob o n.º 9, é renovado «o non liquet da 1.ª instância, não cuidando sequer de se pronunciar sobre a verificação do elemento de “conformação com o resultado morte” cuja prova é essencial para a punição do recorrente a título de homicídio simples com dolo eventual».
A aludida conclusão n.º 9 do recurso interposto para o Tribunal da Relação tem a redacção seguinte: «As regras da experiência comum e os factos objectivos em que o Tribunal estriba a sua convicção para fundamentar a prova da conformação do arguido com o resultado morte são consentâneos com a prática de outro(s) tipo(s) de crime(s), nomeadamente com o crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado – art. 145.º do CP –, constituindo assim uma não decisão».
Ora, esta afirmação é puramente falaciosa. Na verdade, o tribunal “a quo” foi suficientemente explícito no seu raciocínio, como vimos. Há um resultado objectivo que foi produzido e que é incontornável: a morte da vítima, como consequência directa, causalmente adequada, do embate do veículo no corpo daquela. Esse embate foi procurado pelo arguido, visto que dirigiu a trajectória de tal veículo de forma a atingir a vítima e acelerando-o, sem sequer respeitar o sinal que entretanto ficara vermelho. Resulta, além disso, da factualidade assente, com base na prova produzida, que o arguido continuou a sua marcha e só parou no semáforo seguinte. Aí, tendo sido seguido por uma testemunha – FF -, que lhe disse que tinha atropelado uma pessoa e que tinha de voltar para trás, não o fez, tendo a sua mulher aparecido e o arguido conseguido escapar. Todo este conjunto de circunstâncias inculca objectivamente e segundo as regras da experiência comum que o arguido, tendo usado um instrumento tão perigoso como um veículo automóvel, acelerado propositadamente em direcção à vítima, não podia deixar de representar, ao menos, como possível, a morte daquela, que efectivamente veio a provocar, tendo-se conformado com tal resultado. Um carro usado em tais circunstâncias e em tais termos, normalmente é para matar, não para ferir. Ou, ao menos, qualquer cidadão normal representa como possível que tal morte possa ocorrer em resultado desse comportamento, acrescendo que a atitude do arguido, continuando a sua marcha como se nada fosse, escapulindo-se mesmo depois de chamado à realidade por um terceiro, fugindo para Portugal, como resulta da decisão recorrida, que aponta e transcreve os depoimentos das testemunhas de onde tal comportamento se deduz, se conformou com aquele resultado. Foi esse o juízo feito pelo tribunal “a quo”, o qual se encontra sintetizado na súmula acima referida e disseminado em vários outros comentários que sublinham certas passagens dos depoimentos. Ora, esse juízo é perfeitamente adequado, segundo as regras gerais da experiência comum, à prova produzida e referenciada na decisão recorrida, que assim se mostra devidamente fundamentada e não apresentando tal conclusão como obra de um mero capricho do julgador ou como resultado de uma decisão aleatória e imotivada. Só neste caso é que teria sido violado o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127.º do CPP.
Quanto aos elementos intelectual e volitivo do dolo, que o recorrente, com o seu espírito de decomposição analítica levado a uma exigência laboratorial, detecta não estarem devidamente descriminados na decisão recorrida, dir-se-á que eles se encontram na forma como foi fundamentada tal decisão e que acima foi exposta. O arguido quis, de vontade livre, praticar o acto – embater no corpo da vítima – representando que a morte desta podia advir, com toda a probabilidade, desse seu comportamento, e conformou-se com tal resultado.
Não tem, pois o recorrente razão, quer quando alega omissão de pronúncia sobre as questões acima referidas, quer quando quer ver reapreciado o juízo feito pelas instâncias sobre a prova produzida com respeito a tais questões e, nomeadamente, sobre o elemento subjectivo do crime, no que diz respeito à representação, por si, do resultado morte como consequência possível da sua conduta e ainda da sua conformação com tal representação. E também não tem razão, quando alude a uma falta de fundamentação ou violação do princípio da livre apreciação da prova no que respeita à caracterização da conduta do arguido como preenchendo o tipo subjectivo do ilícito na modalidade de dolo eventual.

8.1.4. Diga-se ainda a propósito de tais questões que é descabida a invocação pelo recorrente a alegada interpretação inconstitucional do art. 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP e a violação do art. 32.º, n.º 1 da Constituição, pois o tribunal “a quo” não se eximiu de as apreciar, acontecendo apenas que o recorrente discorda, como se disse, da apreciação e valoração da prova produzida.
Por outro lado, o tribunal “a quo” não se limitou «a conferir a validade formal da lógica interna da decisão sob recurso», o que resulta patente de toda a exposição precedente.
E quanto à apontada falta, na decisão recorrida, de um juízo autónomo e de enumeração das provas que serviram para formar a convicção, há dois apontamentos a fazer:
- 1.º O tribunal “a quo” emitiu um juízo sobre as questões de facto que não se confunde pura e simplesmente com o da 1.ª instância, embora o corrobore.
- 2.º É preciso ver que estamos em face de uma decisão de recurso, cuja fundamentação se exerce sobre uma outra fundamentação – a da 1.ª instância – essa, sim, baseada nas provas que foram produzidas directamente no julgamento sob a alçada dos princípios da imediação, da oralidade, da concentração, da continuidade e do contraditório.
A fundamentação do Tribunal da Relação está naturalmente vinculada ao objecto do recurso e às questões colocadas, não lhe competindo o mesmo tipo de fundamentação exigido pelo art. 374.º, n.º 2 do CPP. Aliás, como se tem entendido neste Supremo Tribunal de Justiça, as normas atinentes aos recursos, nomeadamente o art. 425.º do CPP, não remetem directamente para o art. 374.º, mas para o art. 379.º, estabelecendo o n.º 4 daquele art. 425.º que “é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto nos artigos 379.º e 380.º, sendo o acórdão ainda nulo quando for lavrado contra o vencido, ou sem o necessário vencimento”.
Portanto, o art. 374.º só indirectamente é aplicável, através do art. 379.º, mas com as devidas adaptações (correspondentemente), sendo que essas adaptações têm de levar em conta que os tribunais de relação, embora tenham competência em matéria de facto, não apreciam directamente a prova produzida e não a apreciam nos mesmos termos da 1.ª instância, com subordinação aos princípios da imediação e da oralidade, pelo que a fundamentação exigida para as suas decisões tem de estar em consonância com a natureza do seu objecto, que é a reapreciação de uma outra decisão, no universo de questões levantadas pelo recurso (Cf., entre outros, os acórdãos de 25/5/2006, Proc. n.º 1183-06 e de 17/1/2008, Proc. n.º 607/07, ambos da 5.ª Secção).
Ora, a decisão da Relação está fundamentada ao seu nível de apreciação, com indicação e exame crítico das provas que serviram para a sua tomada de posição no sentido de corroborar a fundamentação da 1.ª instância. Todavia, como é bom de ver, muitas vezes remete para o bem fundado dessa decisão, pois não se torna necessário que a Relação elabore uma outra fundamentação inteiramente distinta da da 1.ª instância. O que importa é que se percebam as razões pelas quais a Relação faz ressaltar a boa fundamentação que preside à decisão recorrida, em consonância com as questões colocadas. Ora, o tribunal “a quo” exteriorizou compreensivelmente, embora de forma sucinta, as razões por que se louvou na fundamentação da decisão da 1.ª instância quanto à decisão de facto, ao mesmo tempo que reforçou de forma autónoma as posições tomadas naquela, o que fez com a demonstração de depoimentos que transcreveu e comentou criticamente, repelindo por inadequadas às provas examinadas as pretensões do recorrente.
Por este lado, falece igualmente razão ao recorrente.

8.1.5. Na conclusão n.º 7 do recurso interposto para este Supremo Tribunal, invoca o recorrente a nulidade por omissão de pronúncia quanto às questões atinentes à aplicação da atenuação especial, sumariadas nas conclusões 21.ª e 22.ª, as quais têm a redacção seguinte:
21.ª «A não se julgar provado que o arguido agiu dominado sob compreensível emoção violenta, estando provado que foi levado à prática do crime pelo envolvimento da sua mulher com a vítima, haveria de considerar-se que o mesmo sofreu comoção que diminuiu, de forma acentuada, a sua culpa»;
22.ª «Tal circunstancialismo deve conduzir, mediante os mecanismos da atenuação especial – art. 72.º e 73.º do C. Penal –, a uma sanção não distante da que deveria fixar-se sob a égide do art. 133.º do C.P., ou, pelo menos, determinar uma atenuação em termos gerais».
Relativamente a estas questões, bem como à matéria sumariada na conclusão n.º 23 do recurso apresentado para o Tribunal da Relação – no campo da atenuação especial, deveria ainda ter sido considerado o tempo decorrido desde a prática dos factos e o comportamento anterior e posterior do arguido –, pronunciou-se o acórdão recorrido nos termos seguintes:
«Assim se não entendendo, bate-se o recorrente pela aplicação dos arts. 72.º e 73.° do CP, impetrando a aplicação de uma pena menos severa.
Mas, para efeitos da alínea d) do n.º 2 do art. 73.° CP, não basta ter o crime sido cometido há muito tempo e haver o delinquente mantido boa conduta; é fundamental que isso tenha mexido profundamente no facto ou no agente; que, por exemplo, o alvoroço social se tenha esfumado ou a personalidade se tenha modificado para muito melhor.
A atenuação especial da pena deverá ter lugar quando, na imagem global do facto e de todas as circunstâncias envolventes, a culpa do arguido e a necessidade da pena se apresentem especialmente diminuídas.
A atenuação especial da pena só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, isto é, quando é de concluir que a adequação à culpa e às necessidades de prevenção geral e especial, não é possível dentro da moldura geral abstracta, escolhida pelo legislador para o tipo respectivo. Fora destes casos, é dentro da moldura normal que aquela adequação pode e deve ser procurada.
Do que, o mero decurso do tempo, independentemente das razões que provocaram a demora não possa servir de suporte à aplicação do instituto da atenuação especial da pena.
Destarte que, neste item, o recorrido Acórdão faz uma análise crítica, imparcial, desprendida, lógica e racional da prova, não merecendo qualquer censura, mas antes, a nossa inteira adesão e aplauso, porque não dizê-lo.
(…) Por fim e acrescendo ao que se disse, não se encontram dos autos quaisquer razões para uma invocada atenuação especial.
O instituto da atenuação especial da pena é uma válvula de segurança do sistema pensada para casos especiais de diminuição da ilicitude ou da culpa. Citando o Prof. Figueiredo Dias "Quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo normal de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, aí teremos mais um caso de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto, por outra menos severa".
Com dúvidas embora, parece-nos que o recorrente lança mão do regime de atenuação especial da pena – arts. 72.º e 73.° CP - sem deixar de lado a subsunção ao crime de homicídio privilegiado – art. 133.°.
E sem nos debruçarmos sobre a autonomização destes itens, convém referir que a emoção violenta (a compaixão ou o desespero) só terão relevância quando diminuem por forma sensível, a exigibilidade de o agente poder agir de outra maneira e como tal constitui elemento relevante unicamente em termos de culpa: o efeito diminuidor da culpa ficar-se-á a dever ao reconhecimento de que, naquela situação (endógena e exógena) também o agente normalmente fiel ao direito (conformado com a ordem jurídico-penal) teria sido sensível ao conflito espiritual que lhe foi criado e por ele afectado na sua decisão, no sentido de lhe ter sido estorvado o normal cumprimento das suas intenções.
Os motivos (estados emotivos) marcados pela lei não funcionam por si automaticamente, tão só de per si, havendo que estar conexionados com uma concreta situação de exigibilidade diminuída, por eles causalmente determinada.
A reacção do agente há-de inserir-se num contexto de causalidade adequada, na perspectiva de um cidadão médio, com o seu estado emocional.
Para que se verifique a diminuição da culpa, é ainda necessário que exista uma estrita contemporaneidade entre essas circunstâncias e o acto praticado.
Ora se alguma emoção lhe provocou a situação que se lhe deparou - a mulher a conversar com a vítima - já não era novidade para o recorrente, perante o acervo factual assente: … suspeitando da existência de um envolvimento emocional entre a sua mulher e o EE, até porque já os havia encontrado no interior da carrinha dela 1/2 meses antes ... arredando-se, assim, a contemporaneidade, a concomitância entre a violenta emoção - não apurada mas admitida em termos académicos - e o acto criminoso.
O que não quer dizer que arrede, de todo, a ponderação sobre este item – estado emocional do recorrente - havendo que fazê-lo intervir em sede geral, como foi, e não como integrante de um crime de homicídio privilegiado.
De tudo o que supra se deixou exposto, não se encontram razões para que se atenda a qualquer diminuição, de forma acentuada, das exigências de punição, quer a nível de homicídio privilegiado quer ao de atenuação especial de homicídio simples».

Ora, esta é a resposta mais cabal de que a decisão recorrida não omitiu pronúncia sobre as aludidas questões.

8.1.6. Quanto à matéria constante das conclusões 25.º a 31.º do recurso para a Relação, o recorrente também alega ter sido omitida pronúncia quanto à compatibilidade probatória entre os factos impugnados. Todavia, extrai-se do acórdão recorrido o seguinte:

«Das conclusões 23.ª a 31.ª, colhe-se apenas que, em primeira linha, o recorrente pretende ver diminuída a pena, aduzindo o circunstancialismo envolvente, o qual "revela ser um indivíduo capaz de manter uma conduta fiel ao direito".
Invoca, ainda que deverão ser dados como provados os factos elencados em 8.
Vemo-nos obrigados a repetir que a análise crítica feita pelo tribunal recorrido é diferente da que preside ao recorrente, mormente no seu aspecto valorativo, mas que, a nosso ver, aquela se mostra de uma lógica irrefutável, nos pontos assentes no acervo factual.
Na incapacidade de encontrar novos argumentos para aquele raciocínio lógico-dedutivo e com eles concordando no todo, torna-se inútil, a nosso ver, "repisá-los".
Dir-se-á, no entanto, ainda que com esta pretensão do recorrente, não se harmoniza a prova:
⌠Aqui o tribunal “a quo” transcreve novamente vários depoimentos e, se bem que não proceda a uma análise deles, remete para a fundamentação da decisão de 1.ª instância, na incapacidade de forjar outra melhor, sendo certo que, como salienta, o que está em causa é uma pura divergência de valoração da prova:⌡
Vemo-nos obrigados a repetir que a análise crítica feita pelo tribunal recorrido é diferente da que preside ao recorrente, mormente no seu aspecto valorativo, mas que, a nosso ver, aquela se mostra de uma lógica irrefutável, nos pontos assentes no acervo factual.
Na incapacidade de encontrar novos argumentos para aquele raciocínio lógico-dedutivo e com eles concordando no todo, torna-se inútil, a nosso ver, "repisá-los".

A seguir, o acórdão recorrido passa à determinação concreta da pena, tomando como referência, dentro dos critérios legais, a matéria de facto dada como provada.
Ora, mais uma vez se constata que o tribunal “a quo” não omitiu pronúncia, tendo encarado e resolvido a questão colocada, embora sem ser a contento do recorrente. O problema, aliás, seria mais de fundamentação da sua posição, visto ser nítido que o tribunal “a quo” não atende a pretensão do recorrente, considerando – e bem – que o ponto de discordância reside numa diferente valoração da prova produzida E, colocadas as coisas nesse pé, o tribunal “a quo”, vincando a sua posição, louva-se sobretudo na fundamentação da decisão da 1.ª instância, exarando que não conseguia encontrar melhor argumentação do que aquela que ali consta, sendo inútil voltar a repeti-la. Ora, uma tal posição é legítima, dada a característica já acentuada da fundamentação na decisão de recurso. O que não é admissível é que o recorrente insista na questão de facto num recurso que devia ser estritamente limitado à matéria de direito.

8.2. A segunda questão a resolver diz respeito à alegada valoração de prova proibida (conclusões 8.ª e 9.ª da motivação de recurso).
8.2.1. Alega o recorrente que foi valorado testemunho de ouvir dizer (o de BB), pois relatou conversas tidas com a sua mulher, que validamente se recusou a depor na audiência de julgamento.
Vejamos como foi fundamentada a convicção do tribunal de 1.ª instância neste ponto:
Refere-se naquela parte da decisão que LMA era «amigo do arguido e da vítima, e a quem o arguido confidenciou, logo após os factos, que tinha dado uma cacetada com o carro no EE». E prossegue-se:
Esta testemunha, cujo depoimento primou pela clareza e imparcialidade, declarou, em Tribunal, que estava em casa, por volta das 19 h, quando lhe apareceu o AA e lhe pediu que o escondesse na quinta do patrão, pois tinha dado uma cacetada ao EE; ao que lhe respondeu que não lhe podia fazer isso, e que o melhor, se tinha feito alguma coisa, era irem à polícia. Então, saíram de casa, o arguido na Pontiac da mulher e a testemunha atrás, na sua viatura. A certa altura o arguido parou o veículo e disse-lhe que não ia à polícia, mas para casa. Nessa altura pediu-lhe que lhe contasse a verdade e seguiu-o até casa. Em casa do arguido apercebeu-se de uma grande confusão, nomeadamente da esposa deste que saía e entrava em casa e chamava vários nomes ao AA.
Perante isto, mais uma vez pediu ao AA que lhe contasse a verdade, tendo-lhe o mesmo confidenciado que viu a mulher parada dentro do carro a falar com o EE, que ficou perdido, e foi directo com o carro na direcção deste para lhe dar uma cacetada.
Esclareceu, ainda, esta testemunha que a CC, passados uns momentos, apareceu com um bilhete de avião e que o tio do arguido o levou ao aeroporto.
Com interesse referiu, ainda, a testemunha que a CC lhe confirmou que estava com o EE e que “O AA veio lançado com a pick up e deu-lhe uma cacetada”.
Esta testemunha confirmou, igualmente, que a relação da vítima com a CC era comentada e que o próprio arguido já lhe tinha perguntado se tinha conhecimento de alguma coisa.

Como se vê, o que nesta testemunha foi valorado é praticamente tudo relacionado com o comportamento do arguido. Por isso, não admira que a Relação, com respeito a esta questão tenha exarado:
Insurge-se ainda o recorrente contra a valoração do que diz ser depoimento indirecto – o facto contra o qual sobremaneira se rebela foi relatado pelo próprio arguido e ora recorrente – com violação do princípio do contraditório. E certo sendo que no nosso processo penal pontifica o princípio da verdade material, suportado embora por uma estrutura acusatória – art. 32.º, n.º 5 da CRP – onde relevam a imediação e a contraditoriedade na produção da prova, designadamente em julgamento – art. 301.º do CPP – o chamado testemunho “por ouvir dizer” é inócuo mas apenas quando “a testemunha se recuse ou não esteja em condições de referenciar a fonte da sua ciência”
Ora, estando presente o recorrente, não se antevê de qualquer dificuldade e menos impossibilidade que logo ali contraditasse a testemunha que só agora vem questionar, no (único) intuito de obter solução favorável (lateralizada, embora) de anulação do julgamento e tanto mais que após a produção de prova, veio (se limitou a) “prestar alguns esclarecimentos”.
Daí que se veja, no mínimo, como não curial que aproveite o recurso para tentar descredibilizar o depoimento da testemunha BB, quando, como se disse, o poderia ter feito em tempo e lugar oportunos, o mesmo podendo ter acontecido no que respeita às conversas havidas com a mulher do arguido/recorrente, que se limitou a uma posição de inteira passividade que recusou-se validamente a depor em Audiência de Julgamento.
Ou seja, sendo o arguido a pessoa visada no depoimento, no qual se referem alguns factos transmitidos pelo mesmo arguido (alguns apenas, porque, quanto ao resto, trata-se de factos em que a própria testemunha participou directamente), o depoimento só não poderia ser valorado na parte correspondente se a testemunha não estivesse em condições de (ou se recusasse a) indicar a fonte através da qual tomou conhecimento dos factos. Todavia, essa pessoa era o próprio arguido, a quem a testemunha se referiu expressamente, e o arguido, estando presente não só se podia pronunciar sobre o depoimento prestado, como efectivamente “prestou alguns esclarecimentos”.
Daí que, quanto a ele, o depoimento não estivesse afectado de qualquer ineficácia, podendo valer inteiramente como prova e concorrer para a formação da convicção do tribunal.
Acontece, porém, que o recorrente alega que se pretendia referir ao depoimento dessa testemunha por causa da mulher, isto é, por esta se ter recusado validamente a depor e a testemunha ter focado o que ela terá dito. Todavia, o que a testemunha refere acerca da mulher do arguido, enquanto valorado pelo tribunal na formação da convicção, são praticamente factos objectivos por ela (testemunha) directamente percepcionados. Assim, o facto de aquela ter aparecido com o bilhete de avião e de a relação dela com a vítima ser comentada entre várias pessoas.
A única confidência que a mulher do arguido terá feito ao depoente foi a confirmação de que, no dia dos acontecimentos, estava com o EE e que o arguido seu marido veio “lançado com a pic up”, dando-lhe uma cacetada.
Porém, estes factos são factos objectivos que foram presenciados por outras pessoas e inclusive foram confirmados pelas declarações do próprio arguido, até na motivação de recurso, apenas questionando a qualificação deles como crime de homicídio.
Deste modo, a relevância da referência feita pela testemunha perde o significado que o recorrente lhe pretende atribuir e não tem peso valorativo no conjunto da prova produzida.
Acresce que a única questão que aqui poderia estar implicada era pura e simplesmente a do depoimento indirecto (art. 129.º do CPP) e não já a da nulidade da prova (sempre restrita àquela ínfima parte do depoimento que se refere à declaração da mulher do arguido) em consequência da utilização de método proibido (art. 126.º do mesmo diploma legal).
É que a possibilidade de recusar o depoimento, nos termos do art. 134.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPP, não está relacionada com a intromissão na vida privada, onde o recorrente a quer encaixar à força com o fim de a fazer abrigar nos métodos proibidos de prova (n.º 3 do referido art. 126.º). A possibilidade de recusa (note-se que a testemunha não está afectada de qualquer impedimento) relaciona-se tão-só com o facto de as pessoas mais intimamente ligadas ao arguido não serem obrigadas a depor contra ele, sujeitando-se à prestação de juramento e consequências inerentes (art. 91.º do CPP).
Ora, nesta perspectiva (a de depoimento indirecto), a situação configurada nos autos não teria como consequência que o depoimento produzido, na parte identificada, não pudesse valer como prova. É que a recusa da mulher do arguido a depor, sendo embora legítima e impossibilitando o confronto com o declarado pela testemunha que validamente depôs, cairia no âmbito da excepção prevista na segunda parte do n.º 1 do art. 129.º: não ser possível a inquirição da pessoa indicada. O Tribunal Constitucional (TC) já assim o considerou numa hipótese mais grave: o de declarações de co-arguido que incrimina outro, que se recusa a prestar declarações, usando o direito ao silêncio (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 440/99, Proc. n.º 268/99, de 8/7/1999, relatado pelo Conselheiro Messias Bento, disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.
. Nesse aresto, o TC concluiu que (…) o artigo 129.º, n.º 1 (conjugado com o artigo 128.º, n.º 1) do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas que relatem conversas tidas com um co-arguido, que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido.
Como quer que seja, a consequência resultante da violação da lei seria a ineficácia do depoimento na parte respectiva (não valer como meio de prova), Ora, a ineficácia como meio de prova não teria, aqui, consequência prática, já que a parte do depoimento que teria de ser considerada como não valendo como meio de prova seria só, como vimos, a parte afectada, sem relevância no conjunto da prova produzida.
E o mesmo aconteceria se por acaso estivesse em causa a nulidade prevista no art. 126.º, exactamente pela mesma razão, pois a nulidade afectaria apenas a parte referida.
Por conseguinte, desatende-se também esta pretensão do recurso.

8.2.2. Em relação ao mesmo depoimento da testemunha BB, diz o recorrente que deve também ser anulado por outra razão: por a testemunha pressupostamente ter lido as declarações prestadas em inquérito, sem o ter solicitado e “para dar uma revisão” na data da audiência de julgamento, em momento imediatamente anterior à prestação do seu depoimento. Seguir-se-ia daí que o depoimento seria nulo, nos termos do art. 126.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) do CPP, «porque obtido após condicionamento insustentável da espontaneidade e necessária liberdade que devem presidir à produção de tal meio de prova» (cf. o ponto 9. das conclusões de recurso).
Em primeiro lugar, «a perturbação da memória ou da capacidade de avaliação», a que se refere a alínea b) do n.º 2 do referido art. 126.º não se aplica no caso presente. Isto porque tal perturbação tem de consistir no emprego de um meio, por parte da autoridade judiciária ou policial que procede à recolha da prova, que altere artificialmente o funcionamento normal da memória ou a capacidade de avaliação do sujeito que constitui fonte de prova. Ora, no caso, o recorrente refere o acesso prévio, que a testemunha terá confessado, a declarações por si prestadas em sede de inquérito, antes de ser inquirida em julgamento. A ser assim, como diz, a testemunha não foi sujeita por qualquer autoridade judiciária ou policial, contra sua vontade ou independentemente da sua vontade, a qualquer meio artificial para condicionar essas suas faculdades naturais.
O acesso que a testemunha terá tido a declarações suas anteriores (facto que começa logo por não estar devidamente comprovado) pode ter ocorrido das mais variadas formas, incluindo por meio de apontamentos que tenha guardado, referindo o acórdão recorrido que tais declarações eram as que foram prestadas nos Estados Unidos da América e exarando que não se terá tido o cuidado de saber «quem e quando “lhe deram os papéis ⌠a ela, testemunha⌡para … fazer uma revisão». Ou seja, o facto começa por ser impreciso no seu quando, no seu como, na sua origem, na sua extensão e na sua natureza.
Em segundo lugar, o alegado “acesso” da testemunha a declarações suas anteriores, fosse por meio de apontamentos de que dispusesse, fosse por meio de cópia ou fotocópia (esta, uma mera hipótese formulada na decisão recorrida), fora do controle do tribunal e fora do próprio processo, não enquadra nenhuma forma de pressão ou condicionamento ilegítimos que pudesse sequer arremedar um método proibido de prova.
Por isso é completamente despropositado referenciar o art. 126.º como sendo aplicável ao caso, como também o art. 32.º, n.º 1 da Constituição da República, e mesmo os arts. 355.º, 356.º, n.º 2, alínea b) e n.º 5 e 138.º, n.º 4, todos do CPP, já que a situação retratada não se enquadra em nenhuma dessas disposições.
Mas também não se vê que irregularidade é que tenha sido cometida, a qual, a existir, deveria ter sido arguida nos termos e pela forma indicados no art. 123.º do CPP, considerando-se sanada por não ter sido arguida.
Provavelmente, a situação reconduzir-se-á aos termos normais de valoração do depoimento, considerando todas as circunstâncias em que foi prestado, e aí a questão ultrapassa os poderes deste Tribunal.
Improcede, pois, mais esta alegação do recorrente.

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8.3. Na conclusão 10.ª da sua motivação, aponta um erro notório na apreciação da prova: não se ter dado como provado que, em 25 de Agosto de 1998, ele se apresentou voluntariamente às autoridades portuguesas – facto que resulta “cristalino” do auto de interrogatório judicial de arguido, a fls. 20 a 25 dos autos.
Porém, tal facto, resultando dos autos e podendo ter influência na determinação concreta da pena, será considerado em tal sede, mesmo não constando da matéria de facto provada.

8.4. O recorrente invoca, finalmente, antes de entrar propriamente no mérito da decisão, a violação do princípio in dubio pro reo.
Alega que o tribunal ficou numa dúvida insanável e confessada relativamente ao local do atropelamento, tendo-se a vítima deslocado, e que, sendo assim, «pode a mesma não ter sido colhida dentro da trajectória traçada pelo recorrente, mas noutro ponto no qual confluíram».
Indo ao texto da motivação propriamente dita no intuito de melhor se percepcionar a questão colocada, diz o recorrente:
«Efectivamente, a afirmação de que o recorrente representou como possível a morte da vítima quando para ela dirigiu o seu veículo automóvel – factos provados em 2, 3, 4, 5 e 12, conjugados com a decisão, explicitada pelos factos não provados de fls. 6 (“provou-se que quando o arguido o avistou (a vítima) o mesmo estava já junto da pontiac”) e com a dúvida sobre o local onde colheu a vítima (na admissão de que esta pode ter saído de junto da pontiac) – incorreu o Tribunal na violação do princípio in dubio pro reo plasmado no art. 32.º, n.º 1 e 2 da CRP.
«Essa dúvida em que o tribunal permaneceu sobre o local onde ocorreu o atropelamento – que deriva da admissão da possibilidade de a vítima se ter movimentado depois de o arguido ter definido a trajectória da sua viatura – imporia que não se julgasse provado que o recorrente, ao dirigir a sua trajectória para junto da pontiac, não tivesse admitido (e muito menos se tivesse conformado) com o resultado morte».
(…)
«Diga-se desde já que o recorrente nunca negou ter dirigido a sua trajectória para junto do local onde avistou a vítima (junto à pontiac onde estava a sua mulher) tendo afirmado, como consta da fundamentação do Acórdão da 1.ª instância que “ (…) não obstante ter referido que não tinha intenção de atingir o EE, que ficou “passado”, arrancou e atingiu-o com o mesmo”.
«Ora, a Relação também não explica se a vítima se deslocou (para local mais ou menos longínquo) e muito menos explica se a mesma nessa deslocação facilitou o contacto com o veículo do arguido, confluindo na direcção de quem lhe pretendia passar uma “tangente”».

Como se vê o recorrente anda obsessivamente à volta do mesmo problema e não sai dele. Todas as questões colocadas vão confluir ao mesmo ponto. Se quiséssemos encontrar um referente literário desta questionação circular, falaríamos (sem ofensa, obviamente) n’ Os Passos em Volta de Herberto Hélder.
O que o recorrente põe sempre em causa é a valoração que as instâncias fizeram da prova produzida, sobretudo no tocante ao essencial elemento subjectivo do crime, voltando a reenviar para este Tribunal uma questão que é de pura matéria de facto, embora rebuçada em rebuscadas formas para lhe dar a aparência de uma violação do princípio in dubio pro reo.. Aliás, a intenção do recorrente é traída ao falar, a propósito da questão, dos vícios do art. 410.º, n.º 2, de contradição insanável na fundamentação, etc.
Ora, este Tribunal não está aqui para rediscutir a matéria de facto, indo à cata do local onde se deu milimetricamente o atropelamento e indo investigar se a vítima se afastou ou não do local onde foi atropelado e se se afastou para muito longe ou para perto. O que é certo é que da matéria da facto provada consta que o recorrente, ao avistar a vítima na faixa de rodagem da Doremus Avenue, junto do automóvel, de marca “Pontiac”, que estava estacionado nessa artéria, no qual se encontrava a mulher do arguido, acelerou rapidamente o veículo que conduzia, sem respeitar o sinal que entretanto ficara vermelho e dirigiu a trajectória do mesmo de modo a conseguir embater no corpo de EE, o que veio a acontecer, e que, ao actuar da forma descrita, representou a morte do mencionado EE como consequência possível da sua conduta, resultado esse com que se conformou.
Simultaneamente, nos factos não provados, deu-se como não assente quequando o arguido avistou na faixa de rodagem o EE este estava a dirigir-se para junto do veículo de marca Pontiac (provou-se que, quando o arguido o avistou, o mesmo já estava junto da Pontiac)”.
Ora, para já, não resulta daqui qualquer contradição insanável ou outro vício dos apontados no art. 410.º, n.º 2 do CPP.
A questão posta pelo recorrente é puramente especulativa e anda à volta do facto de a vítima se ter deslocado ou não antes de ser embatido, daí derivando para a conclusão (possível) e não menos especulativa de a vítima ter vindo ao encontro da (ou confluído com a ) trajectória do veículo do arguido, que pretendia passar-lhe uma “tangente”. Ora, esta visão das coisas, chocando com a versão acolhida pelas instâncias, já leva uma determinada valoração “interessada”, traduzida numa perspectiva dos factos que o recorrente pretende a todo o custo construir e impor ao tribunal.
O certo é que a versão acolhida e explanada na motivação da decisão da 1.ª instância, e retomada pela Relação, é outra completamente diferente e não deixa dúvidas, na sua trama argumentativa, quanto aos factos dados como provados, incluindo, evidentemente, o facto de o arguido ter representado a morte da vítima como possível e ter-se conformado com esse resultado. Essas dúvidas não ressaltam do referido texto da motivação, pois, a quem o lê, a explicação que é dada é coerente, lógica e perfeitamente adequada quer às provas que nela se mencionam, quer às regras gerais da experiência comum. E também não resulta qualquer espécie de dúvida que o tribunal tenha encarado relativamente a dar como provado ou não provado determinado facto, nomeadamente o da localização da vítima, valorando-a em desfavor do arguido.
O resto é especulação com que este Tribunal não deve perder tempo.
Ao dar-se como facto não provado que a vítima estivesse a dirigir-se para junto do veículo de marca Pontiac, mas que quando o arguido a avistou, ela já estava junto da referida Pontiac, não se expressa aí nenhuma dúvida relevante em que o tribunal tivesse ficado e que pudesse conduzir a resultado diferente na apreciação e valoração da prova.
Ora, tem este Tribunal entendido que o STJ só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo, se da decisão resultar que o tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido (entre outros, os Acórdãos de 5/6/03, Proc. n.º 976/03 – 5.ª , de 12/7/05, Proc. n.º 2315/05 – 5.ª e de 7/12/05, Proc. n.º 2963/05. 3ª, ). Em síntese e numa formulação que parece bem acomodada à natureza do princípio e aos poderes de cognição do STJ, escreveu-se no Acórdão de 20/10/05, Proc. n.º 2431/05):
«A sindicância do princípio in dubio pro reo está limitada aos aspectos externos da formação da convicção das instâncias: há-de ficar-se pela exigência de que tal convicção seja objectivada e motivada na análise crítica das provas, dela sendo a expressão de um processo racional convincente que suporte a conclusão final do tribunal recorrido pela valoração feita deste ou daquele meio de prova».
Ora, por tudo quanto se expôs, a motivação da decisão da 1.ª instância, corroborada pela Relação, cabe perfeitamente dentro da assinalada exigência, sendo manifestamente improcedente o recurso nesta parte.

8.5. Quanto à qualificação dos factos:
O recorrente questiona a respectiva condenação como autor de um crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal, sustentando que a matéria de facto considerada provada se subsume à previsão do homicídio privilegiado, p. e p. pelo artigo 133.º do mesmo diploma.
Alega o recorrente que tal enquadramento jurídico dos factos resulta da avaliação da emoção que o invadiu e que o dominou, revelada pelos elementos que indica nas várias alíneas da conclusão 15.ª da motivação do recurso apresentado:
«a) o que levou o recorrente à prática dos factos foi o envolvimento da sua mulher com a vítima;
b) o recorrente era amigo da vítima, o que conduziu a que esta encetasse tal relacionamento com a mulher deste;
c) os factos ocorreram no seio de um clima de suspeita do recorrente acerca da existência desse envolvimento extra-conjugal;
d) o recorrente, quando se deparou com o encontro entre a sua mulher e a vítima, ficou passado, ficou perdido, abstraindo-se, por completo, das circunstâncias que o rodeavam,
e) tendo iniciado a marcha do seu veículo em direcção ao local do encontro sem se certificar se o semáforo que regulava a circulação do sentido que tomou, estava vermelho».
Nos termos do artigo 133.º do Código Penal, o privilegiamento do homicídio deriva de o agente ter actuado sob o domínio de uma compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, quando seja de concluir por uma sensível diminuição da sua culpa.
Estas são circunstâncias que actuam ao nível da culpa, traduzindo-se numa menor exigibilidade, ou numa diminuição sensível da exigibilidade de outro comportamento. Para tanto o agente tem de ter actuado sob o império de um desses designados estados de afecto, de forma a poder afirmar-se uma culpa sensivelmente diminuída, como decorrência de uma menor exigibilidade de outro comportamento em face daquelas circunstâncias.
Essa menor exigibilidade tem de ser vista à luz do comportamento de um homem normal, respeitador das normas jurídicas, e não do particular ponto de vista do agente. Nessa perspectiva, vistas as circunstâncias do caso, tem de poder afirmar-se que um homem desse tipo teria também sofrido a sua influência, se colocado numa situação semelhante, e teria, por via disso, sido afectado no seu comportamento ou no processo normal de reagir (FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo I, pág. 48).
De entre as circunstâncias enumeradas, aquela que o recorrente elege é a que se identifica com a compreensível emoção violenta.
Analisando os elementos privilegiadores, esclarece o citado autor (ob. cit.., pág. 50) que «compreensível emoção violenta é um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente “fiel ao direito” não deixaria de ser sensível. Não se trata aqui de qualquer valoração social ou (muito menos) moral do estado de afecto, mas apenas a sua verificação nos termos preditos (…)».
A matéria de facto considerada provada não integra o apontado elemento privilegiador.
Com efeito, segundo tal matéria, o recorrente agiu de forma deliberada e livre ao dirigir o veículo contra a vítima, embora o fizesse e tivesse inclusive acelerado o veículo por ter avistado a vítima junto da carro onde se encontrava a mulher e suspeitando já que entre ambos existia um envolvimento amoroso (ou emocional, como consta dos factos provados), sendo certo que entre o arguido e a vítima havia também uma relação de amizade.
Ora, não poderá equiparar-se a situação descrita a uma emoção violenta. Da matéria de facto considerada provada, poderá resultar que o arguido agiu movido pelo ciúme, mas com intuito de vingança, visto que suspeitava já dessa ligação, não o tendo tal facto impedido de agir deliberada e livremente quando lançou o veículo sobre a vítima. Estas circunstâncias não inculcam que o recorrente tenha agido sob o impulso de uma emoção violenta que tivesse diminuído sensivelmente a sua culpa.
Acresce que a acção do arguido não será compreensível, à luz de um “homem fiel ao direito”.
O homem normal, sobretudo nos dias de hoje, de império dos mass media, de entranhamento na consciência da colectividade de que a situação conjugal, para se manter, tem de ter o acordo sempre actualizado de duas autónomas vontades, de duas pessoas livres para seguirem o seu caminho, poderia ficar perturbado ao tomar conhecimento da existência de uma relação extra-conjugal mantida pela sua mulher com um indivíduo que considerava seu amigo, mas não reagiria da mesma forma que o recorrente. Provavelmente, nesta sociedade de frequentes e mútuas infidelidades conjugais, “tiraria as coisas a limpo com o seu cônjuge”, isto é, tentaria avaliar o estado em que se encontrava a relação e ver se ela se poderia manter ou se teria de fracassar. Pelos vistos, a relação que a mulher do arguido manteve com a vítima não foi impeditiva da continuação da relação conjugal. Ora, esse mesmo resultado não teria sido conseguido com o tal “tirar as coisas a limpo”, sem o excessivo preço de uma morte?
É preciso ver que o arguido vivia em Newark, no Estado de New Jersey, num meio em que a vida social evoluiu no sentido de estas situações serem encaradas de um modo mais «civilizado», sem recurso à violência para qualquer das partes envolvidas. De um modo geral, essa evolução é também a marca da cultura ocidental actual, em grande parte alimentada por um imaginário que procede da grande arte de massas contemporânea – o cinema -, que encontra a sua principal matriz precisamente no cinema de produção americana. Em suma, cada vez menos se toleram hoje reacções deste tipo com semelhante fundamento e, por isso, também ele não pode ser um fundamento acolhido pelo direito.
O elemento da compreensibilidade tem de ser, além disso, apreendido nas suas «conexões objectivas de sentido», como salienta, na esteira da doutrina e da jurisprudência estrangeiras com soluções semelhantes às do nosso direito, o Autor acima referido (ob. e loc. cit.). Ora, o arguido, agindo deliberadamente, continuando, segundo as aparências, a viver com a mulher como até aí, quis sobretudo eliminar o seu concorrente Não resulta, pois, da matéria de facto provada qualquer elemento que permita considerar o seu crime como privilegiado.

8.6. A determinação da medida de pena.
8.6.1. Argumenta o recorrente que deverá proceder-se a uma atenuação especial da pena, sustentando que se encontram preenchidos os pressupostos previstos no art. 72.º do CP.
Dispõe o n.º 1 do citado artigo 72.º: «O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena».
E acrescenta o n.º 2: «Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes: a) ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência; b) ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida; c) ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados; d) ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta».
A ideia-directriz deste instituto é a de que a atenuação especial da pena funciona como válvula de segurança (FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas Do Crime, pág. 302). Significa ela que a atenuação especial da pena deve abranger apenas aqueles casos em que se verifique a ocorrência de circunstâncias que se traduzam numa diminuição acentuada da culpa ou da necessidade da pena – casos verdadeiramente excepcionais em relação ao comum dos casos previstos pelo legislador ao estabelecer a moldura penal correspondente ao respectivo tipo legal de crime. Em tais hipóteses, porém, a atenuação especial é obrigatória – o tribunal atenua, diz a lei, após a revisão de 1995 – segundo um critério de discricionaridade vinculada e não dependente do livre arbítrio do tribunal.
Certo é que, nessa perspectiva, o facto tem de revestir uma tal fisionomia que se possa dizer, face à imagem especialmente atenuada que dele se colha, que encaixá-lo na moldura penal prevista para a realização do tipo seria uma violência.
Por outras palavras, sendo as molduras penais correspondentes aos diversos tipos de crime pensadas para, dentro de uma latitude suficientemente ampla, nelas caber a vasta gama de situações que a vida real nos oferece, desde as mais simples às mais complexas, por vezes sucede que uma dada situação, por excepcional, não se amolda a nenhuma das gradações comportáveis pela moldura penal, nomeadamente quando o caso reveste uma fisionomia particularmente pouco acentuada em termos de gravidade da infracção, seja por via da culpa/ilicitude, seja por via da necessidade da pena. Para esses casos é que foi concebida uma moldura penal especialmente atenuada, que actua sobre a moldura penal abstracta cabível aos diversos tipos de crime.
Da análise da matéria de facto considerada provada não se extraem elementos que preencham qualquer das circunstâncias atenuantes previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do citado preceito, ou outras de natureza equivalente, não se mostrando relevante, para o efeito da diminuição por forma acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena, a matéria de facto indicada pelo recorrente na conclusão 15.ª (supra transcrita), sendo certo que nem toda essa matéria foi dada como provada, nomeadamente que o recorrente tivesse ficado “passado” ou “perdido” e “abstraindo-se por completo das circunstâncias que o rodeavam”.
Atenta a gravidade dos factos praticados pelo arguido e a sua conduta posterior – não prestando qualquer auxílio ao ofendido, que abandonou caído no meio da estrada, e não demonstrando qualquer arrependimento –, não se vislumbra que, apesar do contexto do âmbito do qual agiu e da ausência de antecedentes criminais, se mostre consideravelmente diminuída a culpa, a ilicitude ou a necessidade de pena.
É certo que decorreu já muito tempo após a data do crime, não constando que, neste lapso de tempo, tivesse voltado a delinquir e mostrando-se que vem residindo com a esposa e dois filhos, estando socialmente integrado no meio onde reside. Todavia, essas circunstâncias não são suficientemente fortes, face ao desvalor da conduta e ao desvalor do resultado, para acarretarem uma diminuição acentuada da ilicitude e da culpa ou da necessidade da pena. As mesmas serão ponderadas na medida concreta da sanção, assim como o facto de o arguido se ter apresentado voluntariamente às autoridades portuguesas – circunstância esta que, se tem relevância, não a tem ao ponto de fazer desencadear, por si só ou em conjunto com as referidas, a atenuação especial. É que, em boa verdade, o arguido fugiu às suas responsabilidades no país onde praticou o crime, com o inerente acréscimo de dificuldades na recolha e produção da prova e imediata perseguição do crime.
Assim, esta pretensão do arguido carece de fundamento.

8.6.2. A determinação da medida concreta da pena, inscrevendo-se na moldura penal abstracta prevista no respectivo tipo legal, obedece a parâmetros que têm como vectores fundamentais a culpa e a prevenção, consistindo as finalidades da pena na tutela dos bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade (art. 40.º, n.º 1, do Código Penal). Estas finalidades convergem para um mesmo resultado: a prevenção de comportamentos danosos, com vista à protecção de bens jurídicos comunitariamente relevantes, cuja violação constitui crime.
À finalidade de prevenção, na sua vertente de prevenção geral positiva ou de integração, cabe fornecer a medida de tutela dos bens jurídicos entre um ponto considerado óptimo para a satisfação das expectativas comunitárias na manutenção ou reforço da norma jurídica violada e um ponto considerado mínimo, correspondente ao conteúdo mínimo de prevenção, sem a salvaguarda do qual periclita a defesa da ordem jurídica.
À culpa compete, nos termos do art. 41.º, n.º 2, do Código Penal, a função de limitar as exigências de prevenção geral, impondo um limite para além do qual a pena deixaria de ter um fundamento ético para passar a instrumentalizar o condenado em função de puros objectivos de prevenção.
Entre o limite máximo e o limite mínimo traçado pela designada submoldura de prevenção, actuam as exigências de prevenção especial ou de socialização, as quais, devendo subordinar-se ao objectivo primordial de tutela dos bens jurídicos, constituem um elemento determinante na fixação da pena.
Os parâmetros a que deve obedecer a fixação concreta da pena, segundo a sua relevância em termos de culpa e de prevenção, são os indicados de forma não taxativa no n.º 2 do art. 71.º do Código Penal, designadamente, o grau de ilicitude, o modo de execução, a gravidade das consequências, a intensidade do dolo, os fins ou motivos, as condições pessoais do agente e a conduta anterior e posterior.
A decisão proferida na 1.ª instância, confirmada pelo acórdão recorrido, procedeu à determinação concreta da pena nos termos seguintes:
«O crime cometido pelo arguido é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.
As circunstâncias a que se deve atender para a determinação da medida concreta da pena, estão previstas no art. 71.º do Código Penal.
Sendo assim, na determinação da medida concreta da pena valorar-se-ão o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste, a gravidade das suas consequências, a intensidade dolosa do agente, as suas condições pessoais, a sua conduta anterior e posterior ao facto, as exigências de prevenção e todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, tendo em conta as exigências de futuros crimes.
A pena deve, assim, partir dos factos, analisar a liberdade de acção, o grau de culpa e ter em conta a personalidade do arguido. Por um lado, depende de uma visão global da personalidade do arguido, como pessoa humana. Por outro lado, deve estimular a auto-responsabilização do arguido e satisfazer as exigências da prevenção geral.
(…)
Na situação dos autos, atenta a natureza do crime em causa, as necessidades de prevenção geral são prementes.
O arguido não confessou integralmente os factos dados como provados, sendo certo que apenas admitiu aquilo que não podia negar, atenta a abundância da prova testemunhal, ou seja que viu a sua mulher com a vítima e que colheu este último com o carro.
Como agravante geral temos, ainda, o instrumento utilizado pelo arguido para praticar o facto - uma viatura pick-up, tendo o crime sido cometido de forma violentíssima e o arguido agido de modo traiçoeiro e inesperado, com a vítima impossibilitada de resistir.
No entanto, o dolo é eventual, o arguido é primário, já passaram alguns anos desde a prática dos factos e não podemos esquecer que o que levou o arguido a praticar o crime foi o envolvimento da sua mulher com a vítima.
Por tudo isto considera o Tribunal adequado condenar o arguido na pena de 9 anos de prisão».
Por sua vez, o acórdão recorrido considerou serem prementes as necessidades de prevenção, tanto a nível geral, como especial, ser elevada a ilicitude e pesarem a favor do arguido as «suas circunstâncias pessoais e sociais e a ausência de antecedentes criminais», acabando por confirmar a pena aplicada.
Ora, a verdade é que as exigências de prevenção especial mostram-se esbatidas, face à reconhecida inserção social, familiar e profissional do arguido; o tempo decorrido, sendo já considerável, também atenua as exigências de prevenção geral, não as atenuando contudo o facto de o crime ter sido cometido noutro país, pois, se assim fosse, valeria a pena praticar um crime de tal gravidade no estrangeiro e fugir depois para o país de origem, argumentando-se com a circunstância de o crime não ter provocado alarme social neste último. Além de que tal argumento se revela falacioso, já que o sentimento da comunidade face ao conhecimento de tal crime não envolve menos repulsa, nem menos reprovação. O direito à vida humana é um direito, se não absoluto (porque não há direitos absolutos), tendencialmente absoluto e universal.
Acresce que, apesar de tudo, as circunstâncias em que o arguido agiu atenuam, sob certo prisma que, sendo cada vez menos ético-socialmente relevante, a sua culpa, e o arguido interiorizou de alguma forma o desvalor da conduta, apresentando-se às autoridades portuguesas.
Não tem antecedentes criminais.
Neste contexto, será de atenuar-se-lhe a pena, embora de feição muito ligeira, visto que a pena aplicada pouco ultrapassa o mínimo correspondente à moldura penal. Assim, esse abaixamento não pode ir além 6 meses, pelo que a pena que agora se fixa, como mais adequada, é a de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Nesta parte, procede parcialmente o recurso.

8.7. Suspensão da execução da pena.
O art. 50.º do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei 59/2007, de 04-09, contempla a substituição da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos por uma pena não detentiva, consistente em suspender a execução dessa pena por um período igual ao da duração da pena de prisão aplicada, mas nunca inferior a um ano.
Ora, sendo o primeiro pressuposto da suspensão o de a pena aplicada não ser superior a 5 anos de prisão, está automaticamente arredada a possibilidade de substituição da pena.

8.8. O recorrente coloca, ainda, a questão do agravamento da condenação em custas.
No que respeita a custas, sustenta o recorrente que, tendo o Tribunal a quo fixado em 8 UC o montante da taxa de justiça na primeira decisão proferida, mostra-se ilegal e infundada a fixação de tal taxa em 15 UC constante da decisão ora recorrida.
No entanto, o motivo apresentado - punição, «sem fundamento, por actividade judicial que decorreu por imperativo de decisão deste Tribunal, que anulou as anteriores decisões» não é aceitável. O facto de o tribunal “a quo” ter condenado mais em custas, desta vez, não significa que fosse devido a uma ideia de «punir» o recorrente. A taxa de justiça é variável, podendo o tribunal fixá-la de acordo com o que achar conveniente no momento da decisão. O tribunal não ficou vinculado à taxa fixada anteriormente. Por outro lado, a alegada ilegalidade não tem fundamento nenhum.
Deste modo, desatende-se a pretensão do recorrente.

III. DECISÃO
9. Nestes termos, acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça (5.ª Secção) em conceder parcial provimento ao recurso apenas no tocante à medida da pena, revogando-se nessa parte a decisão recorrida e condenando-se o arguido AA pela pratica de um crime de homicídio, previsto e punido pelo art. 131.º, n.º 1 do Código Penal na pena de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão.
No mais confirmam a decisão recorrida.

Custas pelo arguido com 10 (dez) UC de taxa de justiça.

Supremo Tribunal de Justiça, 23 de Outubro de 2008


Rodrigues da Costa (Relator)
Arménio Sottomayor