Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02P4628
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BORGES DE PINHO
Descritores: DIREITO DE QUEIXA
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
CRIME CONTRA A LIBERDADE E AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
PROCEDIMENTO CRIMINAL
REPRESENTAÇÃO LEGAL
MENOR
PODER PATERNAL
INTERESSE PÚBLICO
REFORMATIO IN PEJUS
Nº do Documento: SJ200304090046283
Data do Acordão: 04/09/2003
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Tribunal Recurso: T J LOULÉ
Processo no Tribunal Recurso: 205/98
Data: 04/03/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
I
1. "A", devidamente identificado nos autos, por acórdão de 3.4.2002 (fls. 620 a 642) do Tribunal Colectivo do Círculo Judicial de Loulé (fls. 620 a 642 - proc. 205/98.2 - 1º Juízo Criminal) foi condenado, além do mais, pela prática de 3 crimes de abuso sexual de menor na forma continuada, p. p. pelos arts. 172, nº 1, 30 e 79 do C.P. nas penas de 3 anos de prisão, 1 ano e seis meses de prisão e 1 ano e seis meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, tendo-lhe sido declarado perdoado um ano da pena de prisão nos termos do art. 1, nº 1, da Lei 29/99, de 12 de Maio, ficando tal pena reduzida a 3 anos e 6 meses de prisão.
O arguido foi absolvido dos pedidos cíveis.
2. Inconformado, interpôs o arguido recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, tendo oferecido as motivações que se estendem de fls. 644 a 661, que concluiu:
1ª - Os crimes a que se refere o artº 178º,1 têm natureza semi-pública; no entanto, quando o interesse da vítima o impuser o M.P. poderá dar início ao procedimento criminal.

2ª - Esta faculdade concedida ao M.P. apenas terá lugar quando o direito de queixa não puder ser exercido porque a sua titularidade caberia apenas, no caso, ao agente do crime (cfr. 113º,5 C.P.).

3ª - Quando o M.P. usar desta faculdade deverá fundamentar a sua decisão especificando os respectivos motivos de facto que, em concreto, suportam a conclusão de que o interesse da vítima objectivamente impõe o procedimento criminal.

4ª - O artº 113º,3 do C.P. quando dispõe que o direito de queixa pode ser exercido pelo representante legal do menor de dezasseis anos, remete para o direito civil a determinação de quem é o representante e do modo como a representação é exercida.

5ª - Os progenitores de um menor não podem desempenhar individualmente a representação, a não ser quando a lei o permite; fora desses casos têm de agir de comum acordo e, se este faltar em questões de particular importância, como é o caso do exercício do direito de queixa, qualquer deles pode recorrer ao tribunal para resolução do desacordo dos pais (cfr. artº 1901º C.Civil).

6ª - No caso dos autos, pelas certidões de nascimento que se encontram juntas, todas as menores têm pai, não estando, em nenhuma delas o poder paternal atribuído a apenas um deles; por conseguinte, a representação das menores pertence a ambos os progenitores que tinham de agir de comum acordo, pelo que o exercício do direito de queixa relativamente aos crimes de que as menores foram vítimas tinha de ser exercido conjuntamente por ambos.

7ª - Nos presentes autos só as mães das menores exerceram o direito de queixa, sendo certo que nenhum pai se queixou (com, antes ou depois da mãe) como jamais exerceu, no decurso dos autos (nomeadamente, no prazo de 6 meses a contar da data em que teve conhecimento do facto e dos autos) o seu direito de queixa.

8ª - E sendo o direito de queixa exercido apenas por um dos progenitores, quando o devia ter sido por ambos, o M.P. não tem legitimidade para promover o respectivo procedimento criminal.

9ª - Não tendo sido exercido por cada um dos progenitores pais das menores o direito de queixa no prazo de 6 meses sobre a data do conhecimento dos factos, tal direito encontra-se prescrito o que arrasta consigo a prescrição do procedimento criminal pelos crimes de que o arguido vem acusado.

10ª - Tendo somente o arguido recorrido de decisão que o condenou e se na sequência desse recurso a audiência de prova vier a ser anulada, na nova audiência a que se proceda o arguido não poderá ser condenado em pena mais grave do que aquela que anteriormente lhe havia sido aplicada, sob pena de violação dos direitos e garantias fundamentais do arguido, consagrados no artº 32º,1 da Constituição da República e artº 61,1 h) do C.P.Penal, e ofensa do princípio da reformatio in pejus.

11ª - O princípio da reformatio in pejus constitui uma excepção ao regime dos efeitos das nulidades; isto é, em caso algum a sua declaração poderá conduzir a um agravamento da pena que haja sido aplicada ao arguido em julgamento anterior anulado.

12ª - A não se entender que não são procedentes a invocada ilegitimidade do M.P. e consequente prescrição do procedimento criminal e a invocada inconstitucionalidade por violação dos direitos e garantias do arguido e ofensa do princípio da reformatio in pejus, é entendimento do arguido que a pena que ora lhe foi aplicada é exagerada, uma vez que nesta 2ª audiência de produção de prova provaram-se menos factos e menos crimes do que naquela que foi anulada, sendo certo que nesta o arguido havia sido condenado em três anos de prisão suspensa na sua execução por igual período, pelo que a haver punição do arguido a pena deve manter-se naqueles limites.

13ª - O douto acórdão recorrido violou o disposto no artº 32º, nº 1 da Constituição da República, artº 178º nº 1 e 2, artº 113º nº 3, 5 e 6 do C. Penal e artºs 49º nº 1, 61º nº 1, al. h), 409º nº 1 do C.P.Penal.

14ª - O tribunal recorrido entendeu que o artº 178º nº 2 e artº 113º nº 6 do C.P. conferem legitimidade ao M.P. para promover o processo pelos crimes referidos no nº 1 deste mesmo preceito, quando tal factualidade só lhe é conferida quando a vítima não tenha representantes legais que devam em conjunto e por acordo exercer o direito de queixa, ou os representantes legais (ou apenas um deles) seja agente do crime (cfr. artº 113º nº 5 do C.P.).
O tribunal recorrido interpretou ainda o disposto nos artºs 32º, nº 1 da Constituição da República e artºs 61, nº 1, al. h) e 409º nº 1 do C.P.Penal no sentido de que tais disposições não serão violadas quando em novo julgamento na sequência de anterior anulado, o arguido é punido em pena mais grave do que no primeiro, quando, na verdade, a proceder-se deste modo estar-se-á a violar o disposto no artº 32º nº 1 da Constituição da República e artº 61º nº 1, h) do C.P.Penal.

15ª - O tribunal recorrido deveria aplicar o disposto no artº 113º, nº 3 do C.P. no sentido de que é necessária a queixa do representante legal do menor de 16 anos, para que o M.P. promova o procedimento criminal e, no caso de serem ambos os progenitores os representantes do menor, deveria conjugá-lo com o disposto no artº 1901º do C. Civil no sentido de que se um dos progenitores - representante legal do menor - não estiver de acordo quanto ao exercício do direito de queixa a resolução de tal acordo é deixada aos tribunais.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e consequentemente revogado o acórdão recorrido, proferindo este Venerando Supremo Tribunal de Justiça acórdão em que seja declarada a ilegitimidade do M.P. para promover o procedimento criminal, conhecendo-se sequentemente da prescrição do procedimento criminal.
Caso assim se não entenda deve conhecer-se da inconstitucionalidade resultante de terem sido violados os direitos e garantias do arguido consagrados nos artºs 32 nº 1 da Constituição e 61º, nº 1 al. h) do C.P.P. e ainda conhecer-se da violação do princípio da reformatio in pejus.
Para o caso de tais entendimentos não procederem deve a pena que foi aplicada ao arguido ser limitada à que lhe foi aplicada no anterior julgamento (anulado), como, aliás, é de Direito e Justiça.

3. O MP junto da 1ª instância respondeu nos termos constantes de fls. 675 a 680, concluindo no sentido de ser negado provimento ao recurso, e confirmado o acórdão recorrido.

4. Neste STJ. foram os autos com vista ao Ex.mo Procurador Geral Adjunto no quadro do disposto no art. 416 do CPP, que se posicionou nos termos do exarado a fls. 707, não se opondo à produção de alegações escritas. Produzidas estas, o MP defendeu a manutenção do decidido (fls. 710 e 711), enquanto que o recorrente, reiterando o posicionamento por si já assumido nas motivações de recurso, e para a hipótese de não vingar o ponto de vista que exara, pugna pela aplicação da pena que havia sido aplicada no 1.º julgamento, e suspensa na sua execução (fls. 712 a 719).
Colhidos os vistos legais, seguiu-se conferência para apreciação e decisão, pelo que importa agora apreciar e decidir.
Apreciando.
II
1. De acordo com as motivações, e respectivas conclusões, que aliás delimitam e balizam o objecto do recurso, questiona e discute o recorrente o exercício do direito de queixa no caso em apreço, afirmando a ilegitimidade do MP para promover o procedimento criminal e a sua prescrição, discutindo, questionando e equacionando ainda a violação do princípio da reformatio in pejus por parte do tribunal a quo (houve anulação do 1º julgamento em que só o recorrente recorrera e em que fora condenado na pena única de 3 anos de prisão, suspensa por igual período) por ter sido condenado em pena mais grave. A não vingarem tais entendimentos, entende que a pena deve ser limitada à que fora aplicada no julgamento anterior e anulado.

2. Foram dados como provados os seguintes factos:
A - Desde 11.12.95 que o "B" e o "C", situados na Rua ......, sem nº, r/c (Algarvesol) em Quarteira são explorados por D, que vive em união de facto com o arguido há cerca de dez anos.
B - O casal reside numa casa contígua ao edifício do "B".
C - O arguido desenvolve actividade não remunerada por conta daquelas instituições, sem contudo ter contrato de trabalho.
D - O infantário acolhe crianças com idades compreendidas entre os três meses e os três anos e o jardim de infância destina-se a crianças que tenham entre quatro e seis anos; frequentam ainda o jardim de infância, em regime de actividades de tempos livres (A.T.L.) crianças com idades compreendidas entre os seis e os nove anos.
E - Neste último regime frequentavam o A.T.L. as menores E (nascida a 24.04.88), F (nascida a 05.12.88), G G (nascida a 09.04.87) e H (nascida a 19.12.89).
F - O horário destes estabelecimentos é das 07H30 às 24H00.
G - Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos a partir de Dezembro de 1995 que o arguido conduzia uma carrinha que ia buscar as crianças a locais pré-combinados e transportava-as para o "B"; cerca das 13H00 ia às duas escolas do ensino básico de Quarteira buscar as crianças que tinham aulas de manhã e às 18H00 voltava às mesmas escolas para levar aquelas que tinham aulas de tarde.
H - O arguido circulava livremente pelas instalações do estabelecimento, entrava nas salas e tomava as suas refeições na cozinha do "B".
I - Em datas não apuradas mas situadas entre Junho de 1997 e Março de 1998, aproveitando-se, por um lado, do facto de diariamente contactar com as crianças, em razão das funções que desempenhava no estabelecimento e, por outro, da ingenuidade das menores E (nascida a 24.04.88), F (nascida a 05.12.88) e G (nascida a 09.04.87), o arguido por várias vezes praticou nas mesmas actos sexuais de relevo, para sua excitação e satisfação do instinto sexual, o que aconteceu pelo menos nos seguintes casos.
J - Para cativar a menor E e ganhar a sua confiança, o arguido deu-lhe um brinquedo "tamagochi" e um relógio de pulso.
L - Em dia não concretamente apurado do mês de Março de 1998 o arguido fez-se acompanhar da E quando foi entregar um bébé a casa e, no regresso ao estabelecimento prometeu que lhe pagava a festa de aniversário e lhe dava uma televisão e um computador; deu-lhe um relógio com o emblema do Benfica.
M - Chegados a Quarteira o arguido levou-a primeiro a sua casa dizendo que lhe ia dar um chocolate; convidou-a a entrar, fechou a porta, pegou-lhe ao colo e tentou despi-la mas a menor não deixou, deitou-a no sofá e pôs-se em cima dela começando então a fazer movimentos com o seu corpo contra o da menor, para cima e para baixo, ao mesmo tempo que lhe perguntava se estava a gostar.
N - A dada altura, como a menor dissesse que não gostava e ameaçasse gritar, deixou-a voltar ao infantário.
O - Também por várias vezes, quando encontrava a menor no berçário, o arguido acariciava-a na zona dos seios e da vagina e pedia-lhe que o beijasse na boca.
P - Desde Setembro de 1997 que a menor pedia à mãe para a ir buscar mais cedo ao A.T.L.
Q -Com a menor F, desde Setembro/Outubro de 1997 que o arguido por várias vezes pediu à menor que fosse consigo fechar as janelas do berçário e, uma vez ali chegados, acariciava-a na zona dos seios, da vagina e do rabo e pedia-lhe que o beijasse na boca; depois dizia-lhe que não contasse a ninguém.
R - No início de Março de 1998 o arguido pediu à F que o acompanhasse a sua casa pois ia buscar chocolates para oferecer aos meninos do infantário.
S - Quando lá chegaram tentou acariciar a menor na zona da vagina e do rabo, o que só não conseguiu porque a sua companheira bateu à porta.
T - Noutra ocasião, dizendo que ia buscar pastilhas elásticas, o arguido levou a F e a G para a arrecadação das ferramentas que fica ao fundo do jardim e fechou-se lá dentro com elas pedindo-lhes que lhe dessem beijos na boca, ao mesmo tempo que as beijava na cara e acariciava na zona da vagina e do rabo.
U - Antes de saírem da arrecadação deu-lhes pastilhas elásticas.
V - No período compreendido entre Janeiro e Março de 1998 a F nunca se queria levantar de manhã nem queria ir para o ATL e demonstrava mais agressividade no comportamento, nomeadamente com o primo mais novo; este comportamento deixou de se verificar desde que saiu do ATL, em meados de Março de 1998.
X - Durante o Verão de 1997 o arguido chamou as menores F e G para o "quadradinho", local onde guardavam os casacos, e acariciou-as na zona dos seios e da vagina.
Z - Num outro dia o arguido levou a menor G a sua casa e ofereceu-lhe um chocolate.
AA - Fechou a porta e acariciou a menor na zona dos seios e da vagina e procurou beijá-la na boca.
BB - Apesar de a menor o repelir, o arguido tirou-lhe os calções e as cuecas e, com a menor contra a parede, encostou o pénis com a mão na vagina da menor, fazendo diversos movimentos mas sem a penetrar.
CC - Como a menor continuasse a dar-lhe encontrões para o afastar, o arguido deixou-a vestir-se e depois advertiu-a para que não dissesse nada a ninguém.
DD - No Natal ofereceu-lhe uma bicicleta e um tamagochi.
EE - Desde o Verão de 1997 que a menor dizia à mãe que não queria ir para o ATL e que não gostava do "Sr. A".
FF - Desde que saiu daquele estabelecimento, em finais de Março de 1998 que está mais tranquila.
GG - Ao actuar da forma descrita o arguido fê-lo livre e conscientemente, bem sabendo proibida a sua conduta.
HH - Pretendeu praticar nas ofendidas, tendo pleno conhecimento das suas idades compreendidas entre os sete e nove anos de idade, actos sexuais abusivos, contra a autodeterminação daquelas e para sua excitação e satisfação do instinto sexual, o que conseguiu.

Provou-se ainda que:
II - As menores E, F e G ficaram muito perturbadas com a actuação do arguido, experimentaram sentimentos de vergonha e repulsa, e sempre que recordam os factos não conseguem deixar de emocionar-se.
JJ - Todas estas menores foram objecto de acompanhamento psico-social através do Programa de Apoio à Família e à Criança.
LL - O arguido, de 69 anos de idade, encontra-se reformado, auferindo uma pensão de 37.000$00 mensais; ocupa-se no transporte de crianças que frequentam o infantário/jardim de infância pertencente à sua companheira e em pequenas reparações e consertos nesse mesmo estabelecimento.
MM - Não lhe são conhecidos antecedentes criminais.

E como não provado que:
a) Já anteriormente, desde Fevereiro de 1993 que o arguido e sua companheira se dedicavam a esta actividade, explorando um estabelecimento no Edifício Nova Avenida na Av. de Ceuta em Quarteira, havendo casos de crianças que transitaram, em Dezembro de 1995, de um local para outro.
b) Com a menor E, em Setembro/Outubro de 1997, o arguido levou-a a sua casa dizendo-lhe que lhe ia oferecer um chocolate; uma vez ali chegados fechou a porta e ainda tirou as calças à menor, dizendo-lhe para não gritar, contudo, a menor conseguiu fugir.
c) Depois foi atrás dela e disse-lhe que não contasse nada a ninguém.
d) Na ocasião referida em R) e S) e antes de voltarem ao infantário o arguido ofereceu à menor F um relógio; como esta menor não gostasse dele, posteriormente deu-lhe outro.
e) Na ocasião referida em AA) e BB) o arguido baixou as calças que trazia vestidas e disse ainda à menor G que era homem para gastar 600 ou 700 contos com ela.
f) Com a menor H, durante o Verão de 1997, na residência do arguido, num dia em que aquela ficou até cerca da meia-noite pois a mãe trabalhava até tarde, aproveitando o facto de a sua companheira já estar a dormir, o arguido sentou a menor no seu colo, no sofá da sala, e acariciou-a na zona da vagina.
g) A H tentou fugir mas o arguido agarrou-a com muita força pelo braço, magoando-a, porque pretendia continuar com aquela actuação; todavia, como apareceu a sua companheira, que entretanto acordara, o arguido largou a menor

3. De harmonia com os elementos constantes dos autos, tendo-se na devida atenção tudo quanto flui e resulta do acórdão recorrido, designadamente da matéria fáctica dada como verificada (fls. 620 a 630), de manifesta suficiência, insindicável por este Supremo Tribunal e que se tem por assente, haverá a consignar-se não suscitar o mesmo acórdão especial reparo ou observação no que concerne à subsunção jurídico-penal dos factos, aliás não impugnada nem questionada, referindo-se que tal acórdão se apresenta lógico no seu desenvolvimento, com coerência intrínseca e conforme às regras da experiência comum, e com correcção técnico-legal quanto ao enquadramento em tipologia penal, como acima já referenciámos.
Tendo-se em atenção as conclusões das respectivas motivações, e como 1.ª questão a dilucidar, questiona e discute o recorrente o exercício do direito de queixa no caso em apreço, posicionando-se no sentido da falta de legitimidade do MP, com as consequências que daí advinham.
E tudo porque, como flui dos autos, apenas as mães das menores teriam exercido o direito de queixa, tendo-o feito desacompanhadas dos pais das mesmas crianças, sendo que dos seus assentos de nascimento não consta que o exercício do poder paternal em relação a elas coubesse em exclusivo às suas mães, sendo também inquestionável que os respectivos pais nunca se queixaram, jamais tendo formulado qualquer queixa.
Mas se é inquestionável e incontornável que nenhum dos pais dessas crianças (com, antes ou depois da mãe) manifestou pretender procedimento criminal e exercer o seu direito de queixa, é igualmente certo e inquestionável, e mesmo de extrema relevância e significado, o que de todo em todo se consigna, que nunca qualquer deles questionou, discutiu ou se manifestou contra tal exercício do direito de queixa pela mãe, mostrando assim o seu desagrado e toda uma discordância
Ora, tendo-se na devida atenção a situação em concreto e em apreço, analisando-a à luz das realidades e num quadro de funcionalidade e de vida, no conspecto espácio-temporal de um desenrolar em normalidade de um qualquer poder paternal concreto, aliás a plasmar-se e a concretizar-se em mil e um pequenos actos do dia a dia, tem-se como mais ajustado, mais correcto, mais legal e mesmo mais conforme ao pensamento do legislador, e à própria economia do preceito e às razões que subjazem ao simples accionar de uma procedibilidade criminal, que o art.º 113, n.º 3 do CP de modo nenhum exige, determina ou mesmo reclama que tal queixa seja exercida pelos 2 pais em conjunto, dado serem ambos representantes legais dos menores, tornando assim dependente a valência e a eficácia da queixa da assinatura dos dois, de uma manifestação de vontade expressa de ambos os pais ou de um acto ou declaração confirmativa daquele que não exercera individualmente e em concreto tal direito.
Com o devido respeito por opiniões e posicionamentos contrários, de algum modo avançados no acórdão de fls. 511 a 517, e muito embora não se ignore que o exercício do poder paternal compete a ambos os pais, a não haver limitações ou restrições, sendo dirimido qualquer desacordo pelo tribunal, entende-se que no quadro de uma normal inteligência legislativa não tem cabimento uma interpretação que se apresenta, como aliás se nos afigura, de todo em todo nada linear e de certo modo retorcida, porque de modo nenhum consentânea com a natureza da própria queixa em si mesma como mera condição de procedibilidade e susceptível de uma desistência, e nada ajustável nem conforme às regras da experiência comum, e de vida, que em termos de uma normal funcionalidade, de eficácia e de acção de um qualquer poder paternal dispensa, por norma, a intervenção dos dois pais, satisfazendo-se com a actuação directa e presencial de um apenas ( v.g. nas aquisições, nas idas ao médico, na escola, no ensino religioso, na educação, etc., etc. - art.º 1902º n.º 1 CC).
E se na economia do próprio preceito a expressão "representante legal" contempla indistintamente, pela sua particular singularidade, qualquer dos pais, não exigindo, não reclamando nem impondo uma expressa acção interventiva e directa de ambos por naturalmente pressupor, admitir e ter por subjacente que aquele que apresenta a queixa o faz de acordo com a vontade do outro, o certo é que não há nada na lei que clara e expressamente o imponha ou mesmo o aconselhe para a validade e eficácia de uma queixa que em si mesma e no seu fieri, de todo em todo o não reclama.
Porque mera condição de procedibilidade processual, diga-se.
A finalizar, refira-se, importará ainda consignar-se que tal entendimento encontra um inquestionável e indeclinável apoio no próprio n.º 4 do art.º 113 do CP, no natural mas necessário cotejo com os seus números 2 e 3, anotando-se que aí se exara que "qualquer das pessoas (...) pode apresentar queixa independentemente das restantes", o que naturalmente não abarcará só os casos de simples substituição, por não se vislumbrarem razões que de algum modo o justifiquem.
Aliás, e por último, sublinha-se ser de referenciar o posicionamento havido no Ac. de 2.3.2000 da Relação de Lisboa (Colec.Jur. Ano XXV, Tomo II, pg.136) onde se exarou expressamente que "sendo certo que ambos os pais são os representantes legais do menor (art. 1881 n.º1 do CC), face à redacção do n.º 4 do art. 113 do CP, tem necessariamente que se concluir que qualquer deles pode validamente apresentar queixa em nome do menor".
Pelo que, à luz do entendimento acima exposto, e consequentemente, não assiste razão ao recorrente neste ponto porquanto, face às queixas deduzidas pelas mães das menores, aliás válidas e eficazes em termos de um activar da procedibilidade criminal, ficou naturalmente o MP com legitimidade para promover o andamento dos autos respectivos, e o consequente procedimento criminal.
Mas mesmo a defender-se a tese oposta da necessidade de uma queixa formulada pelos dois pais de um menor por ambos deterem a representação legal do mesmo, que de todo não sufragamos, sempre se consigna que mesmo assim, tendo-se na devida atenção o caso concreto no seu conspecto espácio-temporal e no circunstancialismo que de todo em todo o envolveu, "sempre ao Ministério Público assistiria legitimidade para desencadear o procedimento criminal, representando as queixas apresentadas denúncias através das quais adquiriu a notícia do crime", como se escreve a fls. 623 e que se acompanha, sendo ainda de referenciar, no quadro da evidenciada e expressa manifestação de todo um interesse público a reclamar e a justificar uma acção interventiva do MP, as outras comunicações que constam dos autos, designadamente o ofício de 1.4.98 da DREA para a PJ "solicitando que fossem tomadas « com a máxima urgência as medidas consideradas adequadas à situação e alertadas as autoridades competentes »" (fls.678), bem como o ofício que a 6.4.98 o Projecto de Apoio à Família e à Criança dirigiu "ao Ministério Público, à GNR de Loulé, ao Centro Regional de Segurança Social do Algarve e à Direcção Regional de Educação do Algarve" (fls.678) dando nota da "situação em que se encontravam as menores" (id.), e concretamente solicitando ao MP que fosse tomada "uma providência cautelar de carácter urgente para salvaguarda de todos os menores eventualmente em risco na instituição".
E o certo é que no contexto espácio-temporal e concreto dos factos comunicados e levados ao conhecimento do MP, tendo-se na devida atenção e consideração a natureza e gravidade desses mesmos factos, o local onde eram praticados, a idade das crianças afectadas e em risco e todo o circunstancialismo envolvente em que não era nada despicienda a própria acessibilidade do agente, é de todo inquestionável assistir legitimidade ao MP para dar início a um inquérito e promover o consequente procedimento criminal no quadro do disposto no art.º 178, n.º 2 do CP, porquanto é indiscutível subjazer a tal intervenção um não menos indiscutível interesse público, sendo manifesta a existência das "especiais razões de interesse público" a que se reporta tal normativo, face à comunicação e ao conhecimento de situações que contendiam com a autodeterminação sexual de menores de 12 anos, e num infantário/jardim de infância.
Instituições, refira-se, frequentadas por crianças em número alargado, o que natural e consequentemente equaciona e envolve todo um também alargado, e incontornável, capital de confiança dos familiares e da própria comunidade no que contende com a educação e a formação humana e moral dessas mesmas crianças, cuja realidade e processos não podem de modo nenhum ser perturbados e abalados por situações e casos que de per se ponham em risco e em crise a credibilidade, o respeito, a aceitação e a confiança dessas mesmas instituições.
Consequentemente justificando, e de todo em todo, face a razões imperiosas de interesse público, aliás claras, manifestamente notórias e de todo indiscutíveis, a actuação interventiva do MP, cuja legitimidade para promover o processo no caso concreto e em apreço de modo nenhum pode ser questionada, ou sequer posta em crise.
Aliás importará referir-se, a finalizar, acompanhando-se o acórdão recorrido, que "a constatação de tal interesse público na promoção do procedimento criminal não carece de ser expressamente declarada no processo pelo magistrado titular do mesmo" (fls.623), sendo inquestionável e manifesto, como aliás flui dos próprios autos, que tal interesse se encontra bem sinalizado, e de uma forma claramente expressa, pela própria actuação em concreto do MP, a que não deixam de estar subjacentes razões bem notórias e mais do que evidentes para toda uma acção interventiva.
E a verdade é que "sempre que sejam notórias as razões de facto em que se apoia o Ministério Público e a própria exigência do procedimento pelo interesse (objectivo) da vítima, a sua não especificação detalhada, só por si, nunca pode implicar, necessariamente, a ilegitimidade daquele" (Ac. STJ de 31.5.2000 - proc. 272/2000 - 3.ª), como aliás ocorre no caso em análise.
Pelo que, e concluindo, sendo indiscutível e manifesto o interesse público na promoção do procedimento criminal, de que aliás é claro indicador todo o conjunto de elementos recolhidos nos autos que não só espelham esse mesmo interesse como até sinalizam a sua relevância, é de todo em todo inquestionável que assistiria legitimidade ao MP para promover o andamento do processo no quadro do art.º 178, n.º 2, do CP e 69 da CRP, mesmo a não se ter por válidas as queixas deduzidas pelas mães, não tendo consequentemente qualquer razão o recorrente.
No que diz respeito à 2.ª questão suscitada, de violação do princípio de proibição da "reformatio in pejus", importará desde já consignar-se que o recorrente, condenado por acórdão de 18.7.2000 como autor de 3 crimes continuados de abuso sexual de crianças p.p. pelos art.ºs 172.1, 30.2 e 79 do CP nas penas de 1 ano e 9 meses de prisão por cada um (of.s E, F e G) e de um crime de abuso sexual de crianças p.p. pelo art.º 172.1 do CP na pena de 1 ano e 6 meses de prisão (of. H), e em cúmulo, na pena única de 3 anos de prisão suspensa por 3 anos, interpôs recurso de tal decisão, tendo este STJ, por acórdão de 5.4.2001, anulado a sentença, o que implicou um novo julgamento.
Uma anulação que, como se alcança dos próprios autos, ocorreu na sequência do recurso interposto pelo arguido a 29.9.00 "pedindo a anulação do julgamento ("por violação dos princípios da continuidade da audiência e da defesa do arguido") e, subsidiariamente, a sua absolvição da indemnização em que foi condenado ( ou a sua redução a "500.000$00 por cada menor")", como se lê do referido acórdão (fls. 513), anotando-se ter havido um primeiro recurso das assistentes/demandantes para que também as demandadas B e C, "respondessem, solidariamente, perante as recorrentes" (id. fls. 512 v.).
Consignando-se que apenas o arguido recorreu da parte criminal, haverá a referir que este Supremo Tribunal, por seu acórdão de 5.4.2001, acima citado, exarou a seguinte decisão:
Tudo visto, o Supremo Tribunal de Justiça, reunido em conferência (...) anula a sentença recorrida (por não ter apreciado questões que devia ter conhecido: (in)capacidade judiciária civil das demandantes e (ir)regularidade das queixas criminais) e, bem assim, a audiência de produção de prova que a antecedeu (por não repetição da prova volvida ineficaz por excessiva descontinuidade da audiência)" (fls. 517 v.).
E na sequência da anulação decretada e do novo julgamento realizado, e por acórdão de 3.4.2002, que ora se impugna, foi o recorrente condenado apenas pela prática de 3 crimes de abuso sexual de menores na forma continuada p.p. pelos art.ºs 172.1, 30 e 79 do CP, nas penas de 3 anos de prisão, 1 ano e 6 meses de prisão e 1 ano e 6 meses de prisão, e em cúmulo jurídico na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, a que foi declarado perdoado 1 ano de prisão nos termos do art.º 1, n.º 1, da Lei 29/99, de 12 de Maio, dado ter sido absolvido do crime em que era ofendida a H.
E tendo-se na devida atenção que somente o arguido interpôs recurso do 1.º acórdão, como aliás ocorreu também em relação a este último, que agora se aprecia, não deixa de apresentar-se como de todo em todo significativamente relevante interrogarmo-nos sobre se, face ao disposto no art.º 409, n.º 1, do CPP, poderá ele ver a sua situação penalizada e agravada face à 1.ª decisão, não obstante a anulação do primeiro julgamento e a realização de um novo julgamento.
Ora é inquestionável, e de todo incontornável, que foi o próprio arguido quem "quis"e "provocou" a referida anulação, ao impugnar a 1.ª decisão, e sem dúvida que o fez no seu exclusivo interesse, na expectativa de poder vir a ser beneficiado com um novo julgamento.
Uma expectativa legítima, refira-se, mas que não passava disso mesmo, de uma mera expectativa, porquanto de modo nenhum podia ele ignorar, nem minimizar, os possíveis contornos e as eventuais sequelas do novo julgamento por si provocado e peticionado, natural e consequentemente não podendo deixar de equacionar e de ficcionar como possível, aceitando e admitindo, uma outra produção de prova, uma outra qualificação dos factos, um outro juízo e uma outra decisão, punitiva ou absolutória.
Como aliás ocorreu no caso em apreço, com a sua absolvição do crime atinente à menor H, e uma outra punição no que concerne às demais ofendidas.
E isto porquanto, no contexto concreto, lógico, natural e mesmo literal de toda e qualquer anulação, porque indexada a um apagamento e vinculada a um nada, face à inexistência de um qualquer referencial (condenação, absolvição, "quantum" da pena, etc.) que, subsistindo, preexistisse a esse novo julgamento e o condicionasse, não lhe era legítimo esperar que o tribunal não fosse livre na nova apreciação da prova e no emitir de um juízo, naturalmente novo e de modo nenhum predeterminado ou limitado pelo decidido no julgamento anterior, aliás anulado, sendo que a decisão então proferida efectiva e realmente desapareceu, inexistindo de todo em todo em si mesma, nos seus contornos e nos seus efeitos.
Até porque, havendo anulação, nada subsiste do anulado que se possa projectar no futuro, limitando ou condicionando.
Pelo que, o que se exara, é de todo incontornável que na situação em análise não vinga nem pode vingar o disposto no art. 409, n.º 1, do CPP, não assistindo pois qualquer razão ao recorrente, sendo ainda de se acrescentar, sublinhando-se, que o princípio da proibição da reformatio in pejus, tal como lógica e naturalmente flui do próprio preceito, economia do mesmo e sua expressão literal, e ainda de todo em todo resulta do seu próprio enquadramento sistemático (na parte dos recursos) e dos termos utilizados no todo da sua própria compreensão e extensão ( "...o tribunal superior não pode modificar ..."), não tem aplicação aquando da realização de um novo julgamento devido a anulação do anterior em recurso interposto só pelo arguido e no seu próprio interesse, mormente quando as razões que determinam tal anulação abarquem a decisão na sua globalidade, e não apenas um qualquer "quantum" de pena, ou uma parte limitada ou circunscrita da própria decisão.
Como no caso em apreço, diga-se, face ao acórdão deste STJ de 5.4.2001 acima referenciado.
Pelo que, e concluindo, não nos merece qualquer censura ou reparo o acórdão ora em análise, onde aliás não se vislumbra ter existido violação do disposto nos art.ºs 32, n.º 1 da CRP, 178, n.ºs 1 e 2, 113, n.ºs 3, 5 e 6 do CP e 49, n.º 1, 61, n.º 1, al.h) e 409, n.º 1 do CPP, considerando-se por outro lado ajustadas, correctas, legais e equilibradas as penas parcelares aplicadas ao recorrente no quadro espácio-temporal e concreto da factualidade dada como apurada e já fixada, e relativa à autoria de 3 crimes continuados p.p. pelos art.ºs 172, n.º 1, 30 e 79 do CP nos termos consignados no mesmo acórdão, bem como a pena única alcançada, que de todo em todo se mantêm.
Assim, e decidindo.

4. Acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, tendo em atenção tudo o acima exposto, em negar provimento ao recurso, mantendo nos seus precisos termos o acórdão recorrido.
Custas: 4 Ucs, com 1/3 de Procuradoria.

Lisboa, 9 de Abril de 2003.
Borges de Pinho
Pires Salpico
Henriques Gaspar (vencido conforme voto em anexo).

Votei vencido, nos termos e com os seguintes fundamentos que, em necessária síntese, enuncio:

1. Relativamente à primeira das questões
decididas (legitimidade para a queixa como pressuposto do processo), acompanho o acórdão, mas apenas quanto à fundamentação que desenvolveu a título principal, a propósito da interpretação do artigo 113º, nº 4, do Código Penal. A adesão à decisão nesta parte não supõe, assim, qualquer compromisso quanto à validade da argumentação de segunda linha, ou subsidiária, que o acórdão faz sobre o sentido da auto-legitimação do Mº Pº e sobre a interpretação do artigo 178º, nº 2, do Código Penal, na redacção da Lei nº 65/98, de 2 de Setembro.

2. Não acompanho o decidido na parte em que se pronunciou, rejeitando-a, sobre a pretensão relativa à aplicação do princípio da proibição da reformatio in pejus.
Na compreensão que faço sobre este princípio e sobre o seu âmbito de intervenção, natureza e alcance, tal como acolhido no actual sistema de processo penal, encontro uma conformação do instituto com um conteúdo material de garantia, no sentido de maior intensidade e autonomia, assim se integrando na lógica estruturante do processo penal moderno e sob a inspiração dos princípios fundamentais do processo penal hoje geralmente aceites (cfr., sobre a evolução do instituto da proibição da reformatio in pejus no século passado, sempre no sentido de maior intensidade de garantia, o Parecer da Câmara Corporativa, no "Boletim do Ministério da Justiça", nº 180, pág. 103 e segs, e FIGUEIREDO DIAS, "Direito Processual Penal" I volume, 1974, págs. 259 e segs.
O princípio da proibição da reformatio in pejus é actualmente considerado como relevante constituto do processo justo (due process; fair trial), do processo equitativo, em que se integram também os recursos, e marcadamente conformado, na compreensão e dimensão, pela estrutura acusatória do processo (estrutura acusatória que é mesmo constitucionalmente imposta como garantia fundamental do processo criminal inscrita no artigo 32º, nº 5, da Constituição.
E inteiramente ligado ao direito ao recurso, também com matriz constitucional como uma das garantias de defesa («O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso» - artigo 32º, nº 1, da Constituição, na redacção da revisão de 1997).
Na verdade, o princípio da acusação (subjacente à estrutura acusatória do processo), que comanda todo o processo, impõe que nos casos em que a acusação se conforma com uma decisão e o recurso é interposto apenas pelo arguido (ou no interesse exclusivo deste), fiquem necessariamente limitados os parâmetros da decisão, estabelecendo-se com o recurso, em tais casos, uma vinculação intraprocessual, no sentido em que o poder de decisão está doravante intraprocessualmente condicionado à não alteração em desfavor do arguido.
A decisão, quando impugnada (unicamente) pelo arguido, constitui o limite do conhecimento ou da jurisdição do tribunal ad quem, e também por isso mesmo, para obviar à reformatio indirecta, limite à acusação, conformação, rectius, à jurisdição do tribunal de reenvio, nos casos de anulação ou de reenvio.
O recurso estabelece, assim, um limite à actividade jurisdicional, constituído pelos termos e pela medida da condenação do arguido (único) recorrente (cfr., v. g., JOSÉ MANUEL DAMIÃO DA CUNHA, "O Caso Julgado Parcial, Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Estrutura Acusatória", 2002, págs. 240 e segs., 436 e 658 e segs.).
O princípio do processo equitativo (enunciado no artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do homem, e no artigo 14º do Pacto Internacional sobre os Direito Civis e Políticos, e, particularmente densificado pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem) também impõe que a proibição da reformatio in pejus seja avaliada e confrontada neste âmbito de compreensão: a lisura, o equilíbrio, a lealdade tanto da acusação como da defesa, que constituem, ao lado do contraditório, da igualdade de armas e da imparcialidade do tribunal, momentos de referência da noção de processo equitativo, impõem que o arguido, no caso de único recorrente e que usa o recurso como uma das garantias de defesa constitucionalmente reconhecidas, não possa ser, em nenhuma circunstância, surpreendido no processo com a decorrência de uma situação desiquilibrante; o recurso, inscrito como meio de defesa, não pode, quando a acusação o não requerer, produzir, sem desconformidade constitucional, um resultado de gravame (neste sentido interpreto a doutrina subjacente à decisão do Tribunal Constitucional nos acórdãos nºs. 499/97 e 498/98).
O princípio valerá, pois nenhuma razão material há para distinguir, tanto para a reformatio directa como para a indirecta, sendo, por isso, indiferente que o arguido tenha (ou também tenha) pedido no recurso a anulação do julgamento ou o reenvio para outro tribunal.
3. A inclusão sistemática na norma do artigo 409º do CPP no regime dos recursos significa apenas que é aí o seu lugar de adequada inserção, porque a questão apenas se suscita no caso de interposição de recurso. Mas não significa que o princípio apenas constitua um princípio do recurso e não um princípio do processo (cfr. DAMIÃO DA CUNHA, cit., pág. 654-658).
A interpretação que fez vencimento levou restritivamente ao pé da letra o artigo 409º, nº 1, do CPP, não atendendo aos princípios que conformam o instituto e necessariamente a interpretação sobre o âmbito da proibição, acabando por permitir, contra a equidade do processo e a estrutura acusatória (com o tribunal a substituir-se, porventura, à omissão ou à plena conformação da acusação), uma reformatio in pejus indirecta que a modelação substancial do instituto não permite.
E leva também a uma incoerência sistémica: permitir ao tribunal do reenvio (ou do novo julgamento) o que não é permitido ao tribunal de recurso.
4. Esta posição, exclusivamente centrada na interpretação dos princípios estruturantes do processo penal, e na consequente conformação do instituto da proibição da reformatio in pejus, não significa, como é manifesto, qualquer compromisso com a pena aplicada, que nesta interpretação não poderia ter sido modificada in pejus.