Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
938/10.7TYVNG-EP1-A.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RAIMUNDO QUEIRÓS
Descritores: RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
OFENSA DO CASO JULGADO
DESPACHO DE MERO EXPEDIENTE
ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
Data do Acordão: 10/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :

I- Existindo dupla conforme, a admissibilidade do recurso com fundamento na ofensa do caso julgado é restrita ao conhecimento dessa questão, não podendo o recorrente envolver no recurso, a expensas da ofensa do caso julgado, outras questões sujeitas às regras gerais da admissibilidade do recurso.

II- O despacho proferido nos autos de reclamação de créditos, ao ordenar a notificação do administrador de insolvência para apresentar nova listagem dos créditos reconhecidos é despacho de mero expediente, pois não configura a existência de uma decisão, de um julgamento sobre a questão controvertida.

III- Sendo um despacho de mero expediente tendente a assegurar o andamento do processo não adquiriu força de caso julgado, pelo que terá de ser negada a revista  requerida ao abrigo do disposto no artº 629º, nº 2, al. a) do CPC.

Decisão Texto Integral:
         
Processo 938/10.7TYVNG-EP1-A.S1- 6ª Secção.

         

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

        

I- Relatório:

1) Decretada (em 17/12/2010) a insolvência de Borlidos SA e decorrido o prazo da reclamação de créditos, o Administrador da insolvência (em 23/2/2012) apresentou a lista de todos os créditos por si reconhecidos, da qual consta, além de outros: - (…) AA e mulher - «€ 108.347,53, comum».

2) A lista dos credores reconhecidos foi impugnada pelos referidos AA e mulher, tendo eles defendido que o seu crédito, assente em incumprimento do contrato promessa, ascenderia a € 248.347,53 e estaria garantido por direito de retenção sobre a fracção constituída por loja (com garagem) prometida vender/comprar.

3) Foi realizada uma tentativa de conciliação em 7/11/2012, com a presença, entre outros, do representante dos credores AA e mulher e sem a presença do Administrador da insolvência (AI) em cuja acta ficou consignado que com os credores presentes «se encontram acordadas as impugnações por eles apresentadas» e que foi proferido o seguinte despacho:

«Atenta a posição assumida pelos impugnantes, defiro o requerido prazo de 10 dias para apresentação da lista definitiva de créditos. Notifique o Sr. Administrador da Insolvência para apresentação da listagem do art. 129º do CIRE dado que não faz oposição às impugnações apresentadas, na qual se considerem como admitidas os créditos impugnados, como reconhecidos, com subsequente “cls” dos presentes autos tendo em vista a prolação da pertinente decisão “de jure».

4) Foi realizada uma audiência de partes em 24/4/2014, com a presença do Administrador da insolvência e, entre outros, do representante dos referidos credores AA e mulher, em cuja acta está consignado que:

- «os credores atestam o seguinte de forma consensual: (…) b) credor AA e esposa, reconhecido crédito de € 248.247,53 e direito de retenção sobre a loja n.º 0 correspondente ao R/C e garagem do prédio (…); A este propósito foi atestado pelo representante do Barclays que relativamente a estas situações tomará posição mais tarde»;

- e consta o seguinte despacho: «Pelo Exmº Senhor Administrador da Insolvência  foi atestado que se compromete em 10 dias a remeter lista definitiva com as aqui referidas alterações, por forma a que seja prolatada a sentença no presente apenso …».

5) Em 29/7/2014 (fls. 514 e ss), o Barclays Bank PLC e a massa insolvente defenderam que resulta da relação de créditos (art. 129º do CIRE) que o Administrador da insolvência nunca quis reconhecer a AA e mulher o crédito impugnado nem o direito de retenção.

6) A fls. 646 e ss, o Administrador da insolvência disse manter a relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos e considerar não existir o pretendido direito de retenção.

7) Em 22/2/2018 (fls. 702 e ss), «com vista à elaboração do despacho saneador», foi proferido o seguinte despacho: « (…) Pela tramitação dos autos, (…) é, contudo, manifesta a oposição do Sr. Administrador da Insolvência ao reconhecimento dos créditos e qualificação destes nos termos das impugnações apresentadas por AA e mulher».

8) Em 11/6/2018 foi elaborado despacho saneador, fixando como objecto do litígio, entre outras, a questão de os impugnantes AA e mulher serem titulares de um crédito sobre a insolvência no montante global de € 242.520,43, acrescido de € 5.827,10 (de juros de mora), e de esse crédito ser garantido, por beneficiar do direito de retenção sobre a loja.

9) Após o julgamento, foi proferida sentença julgando improcedente a impugnação apresentada por AA e mulher, reconhecendo o seu crédito no valor global de € 108.347,53, de natureza comum, e graduando-o em conformidade.

10) Os aludidos credores interpuseram apelação, em cujo âmbito a Relação identificou como questões a resolver as de saber se a sentença violara:

(i) o caso julgado e a autoridade do caso julgado constituídos pelas decisões proferidas nas referidas tentativa de conciliação e audiência de partes;

(ii) nulidade da sentença por violação do art. 131º/3 do CIRE;

(iii) o direito de retenção dos mesmos, para efeitos de garantia e graduação do seu crédito, sobre a loja objecto do contrato promessa.

11) A Relação, unanimemente, confirmou a sentença.

12) Inconformados, os referidos AA e mulher interpuseram revista, pedindo a sua admissão nos termos gerais, por não haver “dupla conforme” quanto às questões jurídicas que suscitam e por o recurso ter também como fundamento a ofensa do caso julgado.

13) E para o caso de assim se não entender, os recorrentes requereram, subsidiariamente, a admissibilidade excepcional do recurso, ao abrigo do art. 672º nº 1 als. a) e b) do CPC.

14) Na Relação, o recurso foi admitido apenas relativamente à questão da eventual ofensa de caso julgado e rejeitado quanto às demais questões.

15) Ao abrigo do art. 643º do CPC, os recorrentes apresentaram reclamação, indeferida por decisão confirmada por acórdão da conferência, com fundamento na verificação da “dupla conforme” relativamente às questões suscitadas, ressalvada a do caso julgado.

16) Na sequência, o ora Relator, afirmando que a admissibilidade do recurso (nos termos gerais) se restringe à questão da eventual ofensa de caso julgado, determinou que, sem prejuízo da apreciação dessa questão, os autos fossem, previamente, remetidos à Formação para aferição dos fundamentos invocados para a admissibilidade excepcional da revista, nos termos peticionados.

17) Por acórdão da Formação não foi admitida a revista excepcional.

18) Concretamente, sobre a ofensa do caso julgado os recorrentes alegam nas conclusões:

«(…)

7ª Entendem os Recorrentes que há ofensa do caso julgado, formado pelos doutos despachos proferidos pelo Mmo Juiz de 1ª Instância na diligência e tentativa de conciliação realizada em 07/11/2012 e na audiência de partes realizada em 24/04/2014, bem como nulidade do douto Acórdão recorrido, por falta de conhecimento e/ou omissão de declaração do efeito cominatório pleno, estabelecido no nº 3 do artigo 131º e no nº 2 do artigo 136º, ambos do CIRE.

8ª Com efeito, os Recorrentes impugnaram a lista de credores reconhecidos e não reconhecidos com fundamento na incorrecção do montante do crédito que lhes foi reconhecido pelo Sr. Administrador de Insolvência [108.347,53 € (100.000,00 € + 2.520,43 € + 5.827,10 €)] e ainda na incorrecção da qualificação do mesmo (comum), no sentido de verem reconhecido que o seu crédito sobre a Insolvente ascende à quantia global de 248.347,53 € e que gozam do direito de retenção sobre a loja prometida transmitir – cfr. impugnação judicial de fls. 79 e ss dos autos, apresentada por correio registado em 02/03/2012 e via Citius em 05/03/2012;

9ª Por  cartas  registadas       de        07/05/2012,     o Tribunal notificou o Sr. Administrador de Insolvência, Dr. BB (fls. 395), e a Devedora/Insolvente, esta na pessoa do seu mandatário judicial, Dr. CC (fl. 394), da impugnação apresentada pelos Credores AA e Esposa, constante de fls. 79 dos autos, para, querendo, no prazo de 10 dias, responderem à mesma, com a cominação expressa de, não o fazendo, a impugnação ser julgada procedente.

10ª Não foi deduzida qualquer resposta ou oposição à impugnação apresentada pelos Credores AA e Esposa pelo Sr. Administrador de Insolvência, nem por qualquer outro interessado;

11ª Na tentativa de conciliação realizada no dia 07/11/2012, todos os presentes acordaram na aprovação das impugnações apresentadas, concretamente da impugnação apresentada pelos Credores AA e Esposa a fls. 79 e ss dos autos.

12ª       Na tentativa de conciliação do dia 07/11/2012, o Mmo Juiz a quo ordenou a notificação do Sr. Administrador de Insolvência para apresentar a lista definitiva dos créditos, considerando como admitidos os créditos impugnados, como reconhecidos, despacho que transitou em julgado – cfr. acta da tentativa de conciliação realizada no dia 07/11/2012, constante de fls… dos autos.

13ª Na audiência de partes realizada em 24/04/2014, todos os presentes acordaram novamente na aprovação, de forma consensual, das impugnações apresentadas, concretamente da impugnação apresentada pelos Credores AA e Esposa a fls. 79 e ss dos autos, nomeadamente foi aprovado e reconhecido aos Credores Impugnantes AA e Esposa, ora Recorrentes, o direito de retenção sobre a loja prometida transmitir e respectiva garagem.

14ª Na audiência de partes do dia 24/04/2014, o Mmo Juiz a quo ordenou a notificação do Sr. Administrador de Insolvência, que aí estava presente, para, no prazo de 10 dias, apresentar a lista definitiva dos créditos com as alterações resultantes da aprovação dos créditos impugnados, nomeadamente do crédito dos Credores Impugnantes AA e esposa, ora Recorrentes, e do direito de retenção destes sobre a loja prometida transmitir e respectiva garagem, por forma a que seja prolatada sentença, despacho que também transitou em julgado –cfr. acta da audiência de partes realizada em 24/04/2014, constante de fls… dos autos.

15ª No prazo de 10 dias de que dispunha para o efeito, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 149º do Código de Processo Civil, o Credor Barclays limitou-se a juntar aos autos, através do requerimento apresentado em 30/04/2014, com e Refª. 16683100, procuração forense e substabelecimento a favor dos seus mandatários, mas não tomou qualquer posição sobre a aprovação das impugnações apresentadas efectuada pelos credores na audiência de partes realizada na audiência de partes realizada em 24/04/2014, concretamente não tomou qualquer oposição quanto à aprovação feita, de forma consensual, pelos demais credores presentes na audiência prévia do direito de retenção dos Credores AA e Esposa a fls. 79 e ss dos autos, ora Recorrentes, sobre a loja prometida transmitir e respectiva garagem, aceitando, por isso, tal aprovação.

16ª Por douto despacho proferido em 17/06/2014, ou seja, cerca de 2 meses após a audiência de partes realizada em 24/04/2014, o Mmo Juiz a quo ordenou que se insistisse pela notificação do Sr. Administrador de Insolvência para juntar as autos a listagem definitiva dos créditos nomeadamente dos créditos impugnados mas aprovados na audiência de partes de 24/04/2014, concretamente do crédito e do direito de retenção dos Recorrentes AA e Esposa, aprovado na referida audiência de partes de 24/04/2014 – cfr. douto despacho proferido em 17/06/2014, constante de fls… dos autos.

17ª O requerimento apresentado pelo Credor Barclays, pelo Administrador de Insolvência e pela Insolvente apenas em 29/07/2014, isto é, passados mais de 3 meses após a audiência de partes de 24/04/2014, é extemporâneo, anómalo, ilegal e destituído de fundamento, não podendo valer como resposta ou oposição por parte do Credor Barclays, do Administrador de Insolvência e da Insolvente à aprovação feita pelos credores presentes na audiência de partes realizada em 24/04/2014, o qual não deve, nem pode ser considerado, devendo o seu conteúdo ter-se como não escrito.

18ª Entendem, assim os Recorrentes que o pagamento à Insolvente da totalidade do preço ajustado no contrato promessa, bem como a natureza privilegiada do seu crédito sobre a loja prometida transmitir encontram-se provados por confissão e ainda por acordo.

19ª Os doutos despachos proferidos em 07/11/2012 em 24/04/20124 têm subjacente um juízo de valor formulado pelo Mmo Juiz quanto ao efeito jurídico decorrente da aprovação por todos os credores presentes nas diligências dos créditos impugnados, constituindo autênticas    e verdadeiras decisões de mérito e não despachos de mero expediente;

20ª Ao não reconhecer o crédito reclamado pelos Credores Impugnantes, ora Recorrentes, e como privilegiado, por gozar de direito de retenção sobre a loja prometida transmitir, o Tribunal violou, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 131º, nº 3, e 136, nº 2, do CIRE, bem como ofendeu o caso julgado e a autoridade da força do caso julgado constituídos pelas decisões (despachos) proferidos na tentativa de conciliação realizada em 07/11/2012 e na audiência de partes realizada em 24/04/2014, ocorrendo a nulidade da decisão recorrida da alínea d), do nº 1, do artigo 615º do Código de Processo Civil.

(…)»

19) A massa insolvente Borlidos, SA, respondeu, pugnando pela inexistência da alegada ofensa do caso julgado.

 

II- Objecto do Recurso

Admitido o recurso apenas quanto à alegada ofensa do caso julgado, o seu objecto delimita-se à seguinte questão:

«As decisões proferidas na tentativa de conciliação e na audiência de partes constituem caso julgado relativamente ao valor e natureza do crédito reclamado pelos ora recorrentes».

III- Fundamentação

Para apreciação desta questão, para além do relatório, importa colher a seguinte factualidade que resulta do processo:

-Proferido o despacho de fls. 393, a determinar o cumprimento do disposto no art. 131º do CIRE, foram a devedora (na pessoa do Sr. Dr. CC) e o Sr. Administrador da Insolvência notificados (em 7.5.2012) para se pronunciarem sobre as impugnações, onde se incluem as Impugnações dos ora recorrentes:

-Decorrido o prazo legal, não foi junta qualquer pronúncia, da devedora ou do Sr. Administrador da Insolvência;

-Designada tentativa de conciliação, foi a mesma realizada com a presença do credor CGD, SA, representado pela Dra. DD, dos credores EE e mulher, representados pelo Dr. FF (procuração com poderes especiais para transigir e os representar na tentativa de conciliação a fls. 437), do credor Barreiros & Barreiros, representado por GG, dos credores AA e esposa, representados pelo Dr. HH, não estando presente o Sr. Administrador da insolvência, que havia comunicado estar doente e impossibilitado de comparecer.

-Da acta que consta a fls. 438/439, ficou consignado que os credores presentes “se encontram acordadas as impugnações por eles apresentadas”, na sequência do que foi proferido o seguinte despacho: “Atenta a posição assumida pelos impugnantes, defiro o requerido prazo de 10 dias para apresentação da lista definitiva de créditos. Notifique o Sr. Administrador da Insolvência para apresentação da listagem do art. 129º do CIRE dado que não faz posição às impugnações apresentadas, na qual se considerem como admitidas os créditos impugnados, como reconhecidos, com subsequente “cls” dos presentes autos tendo em vista a prolação da pertinente decisão “de jure”.

 -Veio a ser designada uma “audiência de partes”, que teve lugar em 24.4.2014, com a presença do Sr. Administrador da Insolvência, dos credores AA e esposa, representados pelo Dr. HH, do credor CGD, SA, representado pela Dra. DD, do mandatário II, do presidente da Comissão de Credores, JJ (fls. 501/502);

-Da correspondente acta, consta que “os credores atestam o seguinte de forma consensual: a) credor: EE, crédito com o valor de €103.495,00 e direito de retenção sob a fracção de loja sita no R/C identificada com o n.º 0, com garagem do prédio denominado por … sito na ..., ..., com os demais sinais dos autos (verba n.º 3); b) credor: AA esposa, reconhecido crédito de €248.247,53 e direito de retenção sobre a loja n.º 0 correspondente ao R/C e garagem do prédio denominado por … sito na ..., ..., com os demais sinais dos autos (verba n.º 3); A este propósito foi atestado pelo representante do Barclays que relativamente a estas situações tomará posição mais tarde. C) Mais foi por todos atestado que estão de acordo com o crédito da Caixa Geral de Depósitos, garantido por hipoteca impendente sobre a verba n.º 1, fracção “N”, melhor identificada no auto de apreensão.”

-Desta mesma acta consta de imediato o seguinte despacho: “Pelo Exmº Senhor Administrador da Insolvência foi atestado que se compromete em 10 dias a remeter lista definitiva com as aqui referidas alterações, por forma a que seja prolatada a sentença no presente apenso”.

- A fls. 514 e seguintes, o Barclays Bank, PLC, a Massa Insolvente e o Sr. Administrador da Insolvência (29.07.2014) defendem que resulta da relação de créditos do art. 129º que o Sr. Administrador da Insolvência nunca quis reconhecer a EE e mulher e a AA e mulher os créditos impugnados nem os direitos de retenção.

-Veio a ser designada “nova” audiência prévia, que teve lugar em 20.12.2016 (fls. 644/645), altura em que foi concedido um prazo de cinco dias “relativamente à impugnação do Banco Barclays Bank, PLC e a baixa do recurso do apenso K”.

-A fls. 646 e ss, o Sr. Administrador da Insolvência diz que mantém a relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos, e explica a razão pela qual não considera existir direito de retenção (apelando ao acórdão n.º 4/2014, de 19.5.);

- A fls. 650 e seguintes e a fls. 654 e seguintes, os credores EE e mulher e AA e mulher insistem na falta de razão do Sr. Administrador da Insolvência e na procedência das respetivas impugnações;

-Foi proferido despacho datado de 22.2.2018 (fls. 702 e ss) visando analisar “os autos com vista á elaboração do despacho saneador”, onde se decidiu o seguinte:

Dispõe o art. 131º, n.º 3 do CIRE que a resposta às impugnações deve ser apresentada no prazo de dez dias, sob pena de a impugnação ser julgada procedente.

Não obstante o exposto, entende-se que ao Sr. Administrador da Insolvência, pelas funções que desempenha e pelo lugar que ocupa num processo de insolvência, nomeadamente no âmbito da reclamação de créditos (onde recebe as reclamações de créditos, as aprecia e, em conjunto com todos os elementos que possua, a que acede por força daquele cargo, decide reconhecer ou não reconhecer os créditos reclamados e/ou não reclamados – art. 129º do CIRE), não é permitido optar por não responder; seria o mesmo que permitir ao juiz do processo não decidir.

Pela tramitação dos autos, que supra se sumariou, é contudo manifesta a oposição do Sr. Administrador da Insolvência ao reconhecimento dos créditos e qualificação destes nos termos das impugnações apresentadas por AA e mulher (ponto IV) e EE e mulher (ponto V).

Em face do exposto, determina-se a notificação do Sr. Administrador da Insolvência para, em dez dias e expressamente, responder às impugnações supra referidas nos pontos II (CONSTRUSPORT – Construção Civil e Obras Públicas, Lda.), III (Barreiros & Barreiros, Lda.), VII (SMSBVC) e VII (ZON TV CABO, S.A.), esclarecendo se está em condições de reconhecer os créditos nos termos impugnados ou não e razão da sua opção.”

Deste despacho não houve recurso, tendo os autos seguido com a prolação do despacho saneador proferido em 11.6.2018, tendo sido fixado o seguinte objecto do litígio:

“a) Se os credores / impugnantes AA e mulher KK são titulares de um crédito sobre a insolvência no montante global de €242.520,43,acrescido de juros de mora, que ascendem até 17.12.2010 ao montante de €5.827,10, e se este crédito é garantido, por beneficiar do direito de retenção sobre a loja identificada como loja n.º 2 na planta anexa à “promessa recíproca de compra e venda” junta por cópia com a reclamação de créditos, com garagem fechada, localizadas no prédio urbano denominado “Edifício ...”, sito na ..., na cidade de ..., omisso na matriz mas descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 2203/... – ..., a que corresponde o processo de Obras n.º 741/06 e a Licença de Construção n.º 484/080, da Câmara Municipal de ....

Seguiu-se o julgamento e a prolação da sentença, julgando improcedente a impugnação apresentada por AA e mulher, reconhecendo o seu crédito no valor global de € 108.347,53, de natureza comum, e graduando-o em conformidade.

IV- Cumpre decidir.

Decorre do artº 629, nº 2 al. a) que independentemente do valor do processo ou do valor da sucumbência, é sempre admissível recurso nos diversos graus de jurisdição quando este vise a impugnação de decisões relativamente às quais seja invocada pelo recorrente a ofensa do caso julgado.

A ampliação da recorribilidade da decisão justifica-se, aqui, pela necessidade de preservar os efeitos que decorrem de decisões já transitadas em julgado ou cobertas pela eficácia ou autoridade do caso julgado, evitando a sua contradição ou a sua inútil confirmação (art. 580º, nº 2 do CPC).

Sublinhe-se, porém, que a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça fica limitada à apreciação da alegada ofensa de caso julgado, excluindo-se outras questões cuja impugnação fica submetida às regras gerais.

Com efeito, refere Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., p. 51, que “a norma que amplia a recorribilidade apenas pode servir para confrontar o Tribunal Superior com a discussão da alegada ofensa de caso julgado, excluindo-se outras questões cuja impugnação fica submetida regras gerais”.[1]

Na verdade, existindo dupla conforme, a admissibilidade do recurso com fundamento na ofensa do caso julgado é restrita ao conhecimento dessa questão, não podendo o recorrente envolver no recurso, a expensas da ofensa do caso julgado, outras questões sujeitas às regras gerais da admissibilidade do recurso.

Alegam os recorrentes que “ao não reconhecer o crédito reclamado pelos Credores Impugnantes, ora Recorrentes, e como privilegiado, por gozar de direito de retenção sobre a loja prometida transmitir, o Tribunal violou, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 131º, nº 3, e 136, nº 2, do CIRE, bem como ofendeu o caso julgado e a autoridade da força do caso julgado constituídos pelas decisões (despachos) proferidos na tentativa de conciliação realizada em 07/11/2012 e na audiência de partes realizada em 24/04/2014, ocorrendo a nulidade da decisão recorrida da alínea d), do nº 1, do artigo 615º do Código de Processo Civil”.

No entanto, não assiste razão aos recorrentes.

Com efeito, o acórdão em crise fez uma adequada aplicação do direito, sobre a inexistência do caso julgado, do qual salientamos os seguintes passos:

“Os artigos 619.º e 620.º do Código de Processo Civil distinguem entre as decisões que formam caso julgado material e as que apenas formam caso julgado formal.

As primeiras são a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa (artigo 619.º) as quais, uma vez transitadas, ficam a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º.

As segundas são as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual (artigo 620.º), cujas decisões têm força obrigatória apenas dentro do processo.

Porém, o n.º 2 deste último preceito é expresso ao excluir das decisões que formam caso julgado formal «os despachos previstos no artigo 630.º». Entre estes despachos contam-se «os despachos de mero expediente» e «os proferidos no uso legal de um poder discricionário».

Nos termos do artigo 152.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, «os despachos de mero expediente destinam-se a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes; consideram-se proferidos no uso legal de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador».

Temos assim que os despachos em que o juiz se limita a ordenar a prática de actos processuais previstos na normal tramitação do processo, a fazer prosseguir o processo de acordo com a sua configuração legal, são despachos de mero expediente e não formam sequer caso julgado formal.

Ora, no caso em apreço, o despacho tem o seguinte teor:

“Atenta a posição assumida pelos impugnantes, defiro o prazo de 10 dias para apresentação da lista definitiva dos créditos.

Notifique o Sr. Administrador da Insolvência para apresentação da listagem do 129º do CIRE dado que não faz oposição às impugnações apresentadas, na qual se consideram como admitidas os créditos impugnados, como reconhecidos, com subsequente “cls” dos presentes autos tendo em vista a prolação da pertinente decisão “de iure”.

Notifique”

No despacho o senhor juiz limita-se a mandar notificar o SR. Administrador para a prática de um ato- “apresentação da listagem do art. 129º do CIRE”, e manda abrir conclusão no processo “tendo em vista a prolação da pertinente decisão “de iure”.

Estamos assim perante um despacho de mero expediente, uma ato a ordenar a prática de atos processuais previstos na normal tramitação do processo, a fazer prosseguir o processo de acordo com a sua configuração legal, pelo que não forma sequer caso julgado formal.

É certo que o despacho foi proferido, tendo por pressuposto do sr. Juiz que o proferiu que, o AI “que não fez oposição às impugnações apresentadas, na qual se consideram como admitidos os créditos impugnados”, mas a verdade é que não houve aqui um julgamento, uma decisão sobre essa matéria dirigida às partes.

Ora, para formar caso julgado é pressuposto que haja uma decisão, um julgamento, porque o que fica abrangido pelos efeitos do caso julgado não é o despacho é o dispositivo que o mesmo contém.

Por isso entendemos que, ao invés do defendido pelos Recorrentes, o despacho em questão não podia formar caso julgado porque o mesmo não contém qualquer dispositivo sobre a relação material controvertida ou sequer sobre a relação processual.

E tanto é assim, que mais tarde o mesmo Sr. Juiz designa uma audiência de partes, que veio a ter lugar em 24.4.2014 (ata de fls. 501), submetendo á discussão das partes as mesmas questões.

Compulsados os autos, constata-se que o Sr. Juiz foi “adiando” a tomada de posição sobre as várias e concretas questões, (sendo certo que os aqui Apelantes foram insistindo através de requerimentos vários no sentido da aplicação do efeito cominatório pleno decorrente da falta de resposta do AI, por força do disposto no art. 131º nº 3 do CIRE), e à tentativa de conciliação seguiram-se outras marcações de diligências, não chegando o Sr. Juiz a tomar concreta posição sobre a matéria, o que apenas vem a ocorrer com a prolação do despacho que veio a ser proferido em 22.2.2018 de fls. 702 e ss, onde foi tomada uma posição expressa e clara do tribunal sobre a aplicação do no nº 3 do artigo 131º do CIRE, o qual não foi objeto de recurso, seguindo os autos com a prolação do despacho saneador onde no objeto do litígio consta o teor das impugnações dos créditos dos ora Apelantes, matéria que se considerou impugnada e posterior julgamento e sentença. Em conclusão, em nosso entendimento, não foi proferido nos autos qualquer despacho que tenha formado caso julgado prévio á posição tomada expressa e claramente pelo tribunal em 22.2.2018, que não acolheu o entendimento de se considerarem verificados os créditos impugnados, por força do disposto no art. 131º nº 3 do CIRE, posição renovada posteriormente no despacho saneador.

Quanto á questão da existência de eventual acordo dos créditos, relativamente aos créditos impugnados pelos ora apelantes, na mesma ata da diligência de 7.11.2012, ficou a constar o seguinte:

“Aberta a audiência, pelas 11:05 horas, pelos Ilustre Mandatários aqui presentes, foi pedida a palavra, a qual lhe foi concedida e no uso da mesma, disseram que se encontram acordadas as impugnações por eles apresentadas.”.

Os recorrentes concluem daqui que, existiu aprovação de créditos por força do disposto no nº 2 do artigo 136º do CIRE que preceitua que «Na tentativa de conciliação são considerados como reconhecidos os créditos que mereçam a aprovação de todos os presentes e nos precisos termos em que o forem.»

Salvo porém o devido respeito o que ficou a constar na ata, não se mostra suficiente a tal conclusão e é ademais “contrariado” pelo processado subsequente.

Como vimos, o tribunal convocou por despacho de fls. 484 a audiência de partes, que vem a ter lugar em 24.4.2014 (ata de fl.s 501), onde submetida de novo a questão da aprovação dos créditos, os créditos dos ora Recorrentes não foram aprovados pelo credor Barclays (fs. 501 e 515 e ss ).

Da correspondente ata, consta que “os credores atestam o seguinte de forma consensual: a) credor: EE, crédito com o valor de €103.495,00 e direito de retenção sob a fração de loja sita no R/C identificada com o n.º 0, com garagem do prédio denominado por … sito na ..., ..., com os demais sinais dos autos (verba n.º 3); b) credor: AA e esposa, reconhecido crédito de €248.247,53 e direito de retenção sobre a loja n.º 0 correspondente ao R/C e garagem do prédio denominado por … sito na ..., ..., com os demais sinais dos autos (verba n.º 3); A este propósito foi atestado pelo representante do Barclays que relativamente a estas situações tomará posição mais tarde. C) mais foi por todos atestado que estão de acordo com o crédito da Caixa Geral de Depósitos, garantido por hipoteca impendente sobre a verba n.º 1, fração “N”, melhor identificada no auto de apreensão.”

Daqui resulta que aquela questão não ficara definitivamente assente na primitiva tentativa de conciliação e o acordo não se mostra obtido na audiência de partes.

Daqui decorre que não assiste razão aos Recorrentes, nesta matéria, porquanto, não ocorre violação do caso julgado, nem ocorreu aprovação dos créditos, na tentativa de conciliação de 7.11.2012”.

Concordamos com o acórdão recorrido quando considera que o despacho proferido na tentativa de conciliação de 07-11-2012 (cfr. fls. 434 a 435) não produziu qualquer efeito de caso julgado no que se refere ao reconhecimento e aprovação dos créditos.

Com efeito, esse despacho, ao ordenar a notificação do administrador de insolvência para apresentar nova listagem dos créditos reconhecidos, limitou-se a ordenar a prática de um acto processual previsto na normal tramitação do processo, sendo tal despacho de mero expediente. Situação que, aliás, acaba por ser confirmada pela ulterior tramitação do processado, quando, posteriormente é designada uma audiência de partes, que veio a ter lugar em 24.4.2014 (ata de fls. 501), submetendo-se à discussão das partes as mesmas questões, designadamente o montante e a natureza do crédito dos aqui recorrentes.

Assim, o despacho proferido na tentativa de conciliação é um despacho de mero expediente, não adquirindo força de caso julgado, nem sequer vinculando o juiz que o proferiu.

Para haver caso julgado é indispensável a existência de uma decisão, de um julgamento sobre a questão controvertida. Com efeito, o caso julgado visa essencialmente salvaguardar a paz social e garantir a definitividade da resolução de um litígio [o caso julgado, nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 568) é a expressão dos valores de segurança e certeza que são imanentes à ordem jurídica]. Assim, não faz sentido falar-se em caso julgado relativamente a um despacho de mero expediente. O caso julgado torna indiscutível o resultado da aplicação do direito ao caso concreto (dirimindo assim uma determinada questão substantiva ou processual), e não é disto que se trata quando o despacho se limitou a ordenar a notificação do administrador de insolvência para apresentar nova listagem dos créditos reconhecidos, precisamente porque nele não se está a aplicar qualquer direito ao caso concreto, não se está a dirimir qualquer questão.[2]

Por outro lado, não existe qualquer decisão proferida na audiência de partes que tenha produzido efeito de caso julgado.

Como resulta dos autos, o tribunal convocou por despacho de fls. 484 a audiência de partes, que veio a ter lugar em 24.4.2014 (acta de fl.s 501), onde foi submetida novamente a questão da aprovação dos créditos. Os créditos dos ora recorrentes não foram aprovados pelo credor Barclays, que reservou a tomada da sua posição para mais tarde e que, posteriormente veio opor-se à sua aprovação (cfr.fls. 501 e 515 e ss).

Donde resulta mais uma vez que a questão não ficara definitivamente assente na primitiva tentativa de conciliação e o acordo não se mostra obtido na audiência de partes.

Assim, o Juiz limitou-se a exarar os despachos necessários para a tramitação processual, não proferindo qualquer decisão sobre a concreta matéria em litigio, o que apenas vem a ocorrer com a prolação do despacho que proferido em 22.2.2018 de fls. 702.

Assim, não assiste razão aos recorrentes, porquanto não ocorreu violação do caso julgado.

 

III- Decisão:

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista.

Custas pelos recorrentes

 

Lisboa, 13 de Outubro de 2020.

Raimundo Queirós (Relator)

Ricardo Costa

Ana Paula Boularot

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] No mesmo sentido, os acórdãos do STJ de 14-05-2019, p. 2075/17, de  15-02-2017, p. 2623/11, de 17-11-15, p. 34/12 e de 19-11-15, p. 271/14, todos em www.dgsi.pt. E ainda Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, CPC Anotado, Vol. III, 2ª ed., p. 15 e Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, 3ª ed. vol. III, p. 215.

[2] Sobre a não formação de caso julgado relativamente aos despachos de mero expediente, veja-se, entre outros, o acórdão de 14-05-2019, revista 2075/17, relator José Rainho, in wwdgsi.pt e o acordao de 30-03-2017, Revista 119/14, Relator Fernando Bento.