Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1629/13.2TBAMT.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
DIREITO DE REMIÇÃO
FRAUDE À LEI
CONCEPÇÃO OBJECTIVA
ANIMUS FRAUDANDI
INTERPOSIÇÃO FICTÍCIA DE PESSOAS
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE EXECUÇÃO / REMISSÃO DE BENS.
Doutrina:
- Eurico Lopes-Cardoso, Manual da Acção Executiva, Lisboa, 1987, 660-662.
- José Alberto dos Reis, Processo de Execução, vol. 2.º, reimpressão, Coimbra, 1982, 476, 477.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 842.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 10/11/2005, PROCESSO N.º 05B2022;
-DE 10/12/2009, PROCESSO N.º 321-B/1997.S1, AMBOS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I. O direito de remição traduz-se na atribuição a determinados familiares próximos do executado – que não figurem, eles próprios, também como executados na causa – de um direito legal de preferência de formação processual , qualificado, na medida em que prevalece sobre os demais direitos de preferência, funcionalmente direccionado para a tutela do património familiar, obstando à sua transmissão a terceiros, adjudicatários ou compradores em processos de natureza executiva.

II. Pode verificar-se fraude à lei a propósito do exercício do direito de remir – desde logo, quando se verificar uma interposição fictícia de pessoas, tendente a iludir a impossibilidade de cessão do próprio direito legal de preferência em que se consubstancia, afinal, a dita remição – em função da qual os bens seriam transmitidos ab origine, não ao próprio remidor, mas a um terceiro, que seria, afinal, o verdadeiro e real adquirente dos bens remidos.

III. Não podendo inferir-se do regime legal em vigor qualquer dever legal de manutenção, na sua titularidade, dos bens remidos – por a lei não prever e instituir um dever de indisponibilidade de tais bens pelo remidor - não pode considerar-se que – consumada a sua efectiva aquisição pelo próprio remidor (por indemonstrado qualquer fenómeno de interposição fictícia de pessoas) – traduz realização ínvia de um resultado legalmente proscrito a sua alienação a terceiros, no comércio jurídico, num prazo mais ou menos dilatado a contar do exercício do direito de remição – pelo que falta obviamente um pressuposto fundamental da figura da fraude à lei, perspectivada em termos objectivos.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




1. AA propôs contra BB, CC e mulher, DD acção declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que seja:

- Declarada a nulidade da adjudicação a favor da 1ª ré, no âmbito da venda realizada nos autos de insolvência na sequência do exercício do direito de remição, por fraude à lei, com todas as consequências legais;

- Declarado ineficaz em relação ao autor o contrato de compra e venda celebrado entre a 1ª ré e o 2.º réu, celebrado pela escritura pública respectiva, com todas as consequências legais;

- Ordenado o cancelamento de todos e quaisquer registos efectuados com base no título de aquisição por via do direito de remissão e da subsequente compra e venda e ou de quaisquer outros que forem posteriormente efectuados;

- Considerada válida e eficaz a adjudicação dos referidos bens feita a favor do autor em sede de venda em processo de insolvência, e consequentemente, seja declarada transmitida para este a propriedade dos mesmos, mediante o depósito do preço oferecido.

Alegou, em síntese, ter apresentado proposta para aquisição de um lote composto por dois imóveis em sede de venda por propostas em autos de insolvência, a qual, tendo sido aceite, se viu preterida por via do exercício do direito de remição pela 1ª Ré, filha dos insolventes.

Ora, na sequência do exercício daquele direito, a 1ª Ré , apenas uns dias depois, veio a vender aqueles imóveis aos 2ºs RR, sendo que o exercício do direito de remição se deve ter por exercido em fraude à lei, na medida em que conluiada a exercitante com o adquirente subsequente.

Citados, apenas os 2ºs réus contestaram, excepcionando a sua ilegitimidade para os termos da acção, impugnando o alegado conluio e convocando a seu favor a qualidade de adquirentes de boa-fé.

Após julgamento, foi proferida sentença, na qual se decidiu Julgar a acção improcedente, por não provada, absolvendo os RR da totalidade das pretensões contra si deduzidas.


2. Inconformado, o autor apelou, impugnando, desde logo, a decisão proferida acerca da matéria de facto - tendo, porém, a Relação negado provimento ao recurso – começando por enunciar a matéria de facto apurada:

A) Pelo 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Amarante corre termos o Processo de Insolvência de Pessoa Singular n.º 1556/09.8TBAMT, em que são insolventes EE e mulher FF.

B) Do acervo de bens imóveis apreendidos para a Massa Insolvente, no âmbito do referido processo, faziam parte os seguintes prédios, de que o autor é arrendatário há cerca de 26 anos:

a) - prédio rústico denominado “Campo da …”, com a área de 6200m2, composto por cultura com ramadas e videiras de enforcado, sito em …, freguesia de …, concelho de Amarante, a confrontar de nascente com GG, de poente com HH, de norte com herdeiros de II e de sul com JJ, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o art. 5… e descrito na Conservatória do Registo Predial de Amarante na ficha 1… da freguesia de Freixo de Cima;

b) - prédio rústico, denominado “C…”, com a área de 12.700 m2, composto por Campo da …, Leira Sobre a ..., Leira da Eira, Campo do Olival, Campo …, Campo …, Leira da … e Campo …, tem água da … e todas as sextas feiras da Poça …., sito em …, freguesia de …, concelho de Amarante, a confrontar de nascente com KK, de poente com LL, de norte com terra da casa de … e de sul com caminho público, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o art. 5… e descrito na Conservatória do Registo Predial de Amarante na ficha 11… da freguesia de Freixo de Cima.

C) No apenso de liquidação do activo, aberto nos autos de insolvência supra referenciados, foi decidido, por despacho proferido pela Mma Juíza titular do processo, proceder à venda extrajudicial por negociação particular, através do envio de propostas em carta fechada a remeter para o escritório da Administradora da Insolvência, dos bens imóveis apreendidos no processo de insolvência, entre os quais se incluíam os supra descritos na alínea anterior.

D) Para o efeito foi publicitada a referida venda, tendo sido designado o dia 7 de Junho de 2013 para proceder à abertura de propostas.

E) Os prédios supra descritos em B) correspondiam ao lote 21 (verbas n.ºs 39 e 40), conforme resulta do aludido anúncio.

F) Na data agendada para a abertura de propostas, compareceram no escritório da Administradora de Insolvência, para além da própria e do mandatário da Massa Insolvente, o ora autor, enquanto proponente, acompanhado pela sua mandatária, bem como o proponente Sr. MM e o Exmo Sr. Dr. NN enquanto representante de proponente, o 2.º réu (cfr. acta de abertura de propostas de fls. 22 e ss).

G) Conforme resulta da referida ata, relativamente ao lote 21 foram apresentadas duas propostas, a saber: a proposta do ora autor, pelo valor de € 60.000,00 e a proposta do 2.º réu, pelo valor de € 57.668,00.

H) Assim, face às propostas apresentadas, foi decidido proceder à adjudicação do referido lote ao ora autor, pelo valor de €60.000,00.

I) Nos termos que daquela acta mais resultam, compareceu no escritório da Administradora de Insolvência o Sr. OO, devidamente mandatado, por procuração subscrita a seu favor, por BB, filha dos insolventes, que declarou que esta pretendia exercer o direito de remição em relação ao lote 21, que havia sido adjudicado ao ora autor.

J) Face ao exercício do direito de remição legalmente previsto, foi considerada sem efeito a adjudicação realizada a favor do autor, o que lhe foi comunicado pela Administradora de Insolvência, por intermédio da respectiva mandatária, tendo o lote em questão sido adjudicado à referida BB, ora 1º Ré.

K) Na sequência da referida adjudicação, a 1ª Ré registou a seu favor os prédios em causa, pela inscrição Ap. 1965 de 2013/06/13.

L) Volvidos 12 dias sobre o exercício de tal direito, a 1º ré vendeu os referidos bens ao 2.º réu por escritura pública de compra e venda outorgada no dia 19 de Junho de 2013, no Cartório Notarial de Amarante, perante a respectiva notária Dr. PP…

M) E com base no referido título, o 2.º réu procedeu ao registo a seu favor dos descritos prédios, pela inscrição Ap. 1206 de 2013/06/20.


3. Passando seguidamente a apreciar as questões jurídicas suscitadas, considerou a Relação no acórdão recorrido:

É sabido que o direito de remição (artº 842º e segs. do CPC) tem por finalidade a preservação do património familiar, evitando, quando exercido, a saída do bem apreendido em execução ou insolvência do âmbito da família do executado ou do insolvente.

O direito de remição consiste, essencialmente, em reconhecer-se à família do executado a faculdade de adquirir, tanto por tanto, os bens vendidos ou adjudicados no processo de execução. Na sua actuação prática o direito de remição funciona como um direito de preferência dos titulares desse direito relativamente aos compradores ou adjudicatários (José Alberto dos Reis, Processo de Execução, vol. 2.º, 1982, p. 476, e Eurico Lopes-Cardoso, Manual da Acção Executiva, 1987, pp. 660-662).

A protecção da família, através da preservação do património familiar, evitando a saída dos bens penhorados do âmbito da família do executado, é, pois, o objectivo da consagração legal do direito de remição.

No caso em apreço, a venda dos bens remidos pela ré BB, filha dos insolventes, aos réus CC e mulher, constitui uma fraude à lei, ou seja, a finalidade do instituto da remição foi usada pela demandada para fins diferentes dos assinalados?

Tem sido referido que o traço característico da fraude à lei é reportado a situações em que se verificam comportamentos formalmente lícitos mas indirecta ou obliquamente conducentes a resultados proibidos por lei, acabando, por isso, por ter o mesmo valor negativo da directa violação da lei.

Negócios em fraude à lei são “aqueles que procuram contornar ou circunvir uma proibição legal, tentando chegar ao mesmo resultado por caminhos diversos dos que a lei designadamente previu e proibiu – aqueles que por essa forma pretendem burlar a lei” ( cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, 1998, reimpressão, volume II, pág. 337 ).

Assim, existirá fraude à lei “quando o conteúdo contratual, embora não agredindo directamente o preceito legal imperativo, colide com a intencionalidade normativa que lhe subjaz e que justifica a sua imperatividade” (P. Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, pág. 347).

No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/04/2010, citado pelo apelante, ajuizou-se, além do mais, que “(…) atenta a finalidade do direito de remição, tal como está consagrado no direito positivo, poder-se-ia equacionar a verificação de fraude à lei por parte da remidora, se se provasse que aquele exercício tinha sido apenas uma manifestação aparente, porquanto, no substancial, a sua ideia não era a preservação do bem na família, mas, antes, arranjar uma qualquer forma de com isso, mais tarde ou mais cedo, poder facilmente negociá-lo.”.

Para que, com legitimidade, se possa falar de fraude à lei, necessário se torna que se prove o intuito fraudulento, o animus fraudandi, como expressamente o exige o artigo 21º, do CC (ver doutrina citada no aludido acórdão do STJ).

Ora, no caso, apenas se provou, objectivamente, que a ré BB vendeu os referidos bens imóveis ao 2.º réu, por escritura pública de compra e venda outorgada no dia 19 de Junho de 2013.

Mas não ficou provado, a nosso ver, que a demandada BB tenha, intencionalmente, utilizado aquela regra jurídica (direito de remição) como instrumento na fraude, a fim de assegurar o resultado que a norma fraudada não permite, ou seja, o intuito fraudulento.

Com efeito, o quadro factual dado como provado não permite, razoavelmente, afirmar-se que a remidora tenha usado o direito de remição, não para manter os bens, apreendidos e objecto da venda no âmbito do processo de insolvência, no património da família, mas, antes de o exercer, para qualquer outro fim não aclarado, concretamente para serem vendidos ao réu CC e mulher.

Ocorre perguntar se o remidor fica obrigado ad aeternum a conservar o bem no património familiar ou, num circunstancialismo favorável (v.g. existindo uma proposta irrecusável ou bastante favorável, como parece ser o caso dos autos), possa alienar a terceiros, num manifesto acto de gestão adequada do património, o bem remido?

Pensamos não decorrer da lei que o remidor não possa alienar o bem remido, num quadro de conveniente e oportuna boa administração do património familiar.

Em suma, no caso, não se provou que o exercício do direito de remição, pela ré BB, resultou do conluio entre os réus, constituísse um mero expediente para prejudicar o autor, impedindo-o de adquirir a propriedade dos prédios em questão, com o intuito de posteriormente os mesmos serem vendidos ao 2º réu e bem assim de que o preço declarado na escritura de 19/06/2013 não corresponde ao preço efectivamente pago.

Inexistindo comprovado intuito fraudulento, não é possível reconhecer-se a fraude à lei e a consequente invalidade do exercício do direito de remição.


4. Novamente inconformado, interpôs o A. revista excepcional, admitida por acórdão da competente formação, que encerra com as seguintes conclusões:

1. - Tendo o Tribunal da Relação confirmado a sentença proferida em 1ª instância, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diversa, o recurso de revista seria, em princípio, inadmissível, nos termos do disposto no art. 671.º, n.º 3 do C.P.C.

2. - Porém, o acórdão recorrido encontra-se em clara contradição com o acórdão-fundamento, proferido pela 1ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em 20-10-2009, no âmbito do P. 115/09.0TBPTL.S1, já transitado em julgado, disponível em www.dgsi.pt cuja cópia se junta, proferido no âmbito da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito (fraude à lei), razão pela qual pode o recorrente lançar mão do recurso de revista excecional, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 672.º, n.º 1, al. c) do C.P.C.

3. - O ora recorrente não se conforma com o douto acórdão recorrido, pois que é seu entendimento que, in casu, estão verificados todos os requisitos para que sejam julgados procedentes os pedidos por este formulados, com as legais consequências.

4. - Com efeito, dos factos provados resulta, no essencial, que a 1ª ré exerceu o direito de remição sobre os bens em causa nos presentes autos e que volvidos apenas 12 dias vendeu os ditos bens ao 2.º réu.

5. - Isto depois de o 2.º réu ter apresentado uma proposta para aquisição dos referidos bens, aquando da abertura de propostas em carta fechada, a que se procedeu no âmbito dos autos de insolvência, mas não ter logrado adquiri-los em virtude de o autor ter apresentado uma proposta superior.

6. - O direito de remição tem por finalidade a preservação do património familiar, evitando, quando exercido, a saída do bem apreendido em execução ou insolvência do âmbito da família do executado/insolvente. É esta a razão material do direito de remição, como tal reconhecida de forma líquida e unânime pela doutrina e pela jurisprudência.

7. - Face à matéria de facto apurada, conjugada com as regras da experiência comum e do normal acontecer, parece-nos legítimo concluir que in casu, a remidora não adquiriu os bens com a finalidade de os preservar no património da família, pois que, volvidos apenas doze dias sobre o exercício do direito de remição, a 1ª ré vendeu os imóveis em apreço ao 2.º réu.

8. - Porém, mesmo quando se entenda que os factos apurados são insuficientes para concluir que ao exercer o direito de remição, a ré não teve em vista preservar o património familiar, antes se norteando por outros objectivos e interesses, parece-nos que, ainda assim, ter-se-á de concluir que o direito de remição foi exercido em fraude à lei.

9. - Verificando-se que apenas 12 dias depois de ter exercido o direito de remição, a ré vendeu os bens que adquirira por aquela via, dúvidas não restam que in casu o exercício do direito em causa não permitiu concretizar o fim visado pelo legislador ao consagrar no ordenamento jurídico aquele direito: preservar o bem no património familiar.

10. - Por outro lado, independentemente da intenção das partes, o exercício do direito de remição, nas concretas circunstâncias em que foi exercido, permitiu, consciente ou inconscientemente, contornar ou defraudar as regras da venda em processo de execução ou de insolvência.

11. - Com efeito, em manifesta violação daquelas regras, os bens em causa acabaram por não ser adquiridos pelo autor, que tinha apresentado a melhor proposta aquisitiva, mas antes pelo 2.º réu que tinha apresentado uma proposta inferior.

12. - As descritas consequências do exercício do direito de remição, são dados objectivos, que não se podem escamotear, e que impõem a inevitável conclusão de que o espírito da lei foi violado e frustrada a intenção do legislador, tendo os réus, através da prática de actos aparentemente lícitos, logrado obter um resultado que o legislador manifestamente não quis.

13. - Face ao alegado, e tendo em consideração os factos provados, cremos que se impõe concluir pela nulidade do exercício do direito de remição, por fraude à lei.

14. - Sendo certo que os nossos tribunais superiores têm vindo a considerar que, independentemente da intenção das partes, importa analisar casuisticamente o resultado obtido pelas mesmas com o negócio jurídico celebrado.

15. - Aderindo à doutrina do Prof. Castro Mendes (in "Teoria Geral do Direito Civil", II, 1979, 334 ss), defende o douto acórdão-fundamento, supra referido, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, que "para haver fraude à lei é necessário um nexo entre o acto ou actos em si lícitos e o resultado proibido. E o nexo pode ser subjectivo (intenção dos agentes) ou objectivo (criação de uma situação jurídica tal que, pelo seu desenvolvimento normal, leve ao resultado proibido)".

16. - Defende ainda o citado aresto que é "De aceitar esta conceptualização mas pondo a tónica da prescindibilidade do elemento subjectivo - "animus fraudandi" - por valer um conceito ético e objectivo de boa fé como o que, quanto ao abuso de direito, enuncia o artigo 334.º do Código Civil.

17. - Como se refere no acórdão-fundamento, esta concepção objectivista da fraude à lei foi também adoptada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Janeiro de 2005, proferido no âmbito do P. 04A3915, disponível em www.dgsi.pt onde também se considerou que "decisivo para afirmar a ilicitude e consequente nulidade do negócio em fraude à lei é o resultado com ela obtido e não a intenção das partes".

18. - Face a tudo quanto se deixou alegado, entendemos estarem reunidos os requisitos para que seja declarada a nulidade da adjudicação dos bens a favor da 1ª ré, na sequência do exercício do direito de remição, por fraude à lei, com as legais consequências.

19. - Sendo certo que a procedência do pedido de declaração de nulidade por fraude à lei, impõe a procedência dos demais pedidos formulados pelo autor.

20. - Ao considerar improcedentes os referidos pedidos, o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, fazendo uma errada interpretação e aplicação dos preceitos legais vertidos nos artigos 21.º, 285.º, 286.º, 289.º e 291.º, nº 2 do Código Civil e artigo 842.º do Código de Processo Civil.

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o douto acórdão recorrido e substituído por outro que julgue procedentes os pedidos formulados pelo autor, nos termos que se deixaram expostos.


5. O direito de remição – que “consiste essencialmente em se reconhecer à família do executado a faculdade de adquirir, tanto por tanto, os bens vendidos ou adjudicados no processo de execução” (José Alberto dos Reis, Processo de Execução, vol. 2.º, reimpressão, Coimbra, 1982, p. 476) – “tem raízes profundas no nosso sistema jurídico”, que remontam às Ordenações e que, com ligeiras variações quanto ao leque dos familiares em que era encabeçado e à natureza dos bens sobre que podia ser exercitado, foi mantido desde o Decreto n.º 24, de 16 de Maio de 1832 (artigo 153.º), passando pela Reforma Judiciária de 1837 (artigo 248.º), pela Novíssima Reforma Judiciária (artigo 602.º), pela Lei de 16 de Junho de 1855 (artigo 16.º), até aos Códigos de Processo Civil de 1876 (artigo 888.º), de 1939 (artigo 912.º) e de 1967 (artigo 912.º) – cf. autor e obra citados, p. 477, e Eurico Lopes-Cardoso, Manual da Acção Executiva, Lisboa, 1987, pp. 660-662.

Como se afirmou no Ac. de 10/12/09, proferido pelo STJ no P. 321-B-1997.S1:

Embora na sua actuação prática o direito de remição funcione como um direito de preferência dos titulares desse direito relativamente aos compradores ou adjudicatários, “os dois direitos têm natureza diversa, já pela base em que assentam, já pelo fim a que visam”. Quanto à diversidade de fundamento, “ao passo que o direito de preferência tem por base uma relação de carácter patrimonial”, sendo a razão da titularidade o condomínio ou o desdobramento da propriedade, já “o direito de remição tem por base uma relação de carácter familiar, sendo a razão da titularidade o vínculo familiar criado pelo casamento ou pelo parentesco (a qualidade de cônjuge, de descendente ou de ascendente)”. Quanto à diversidade de fim, enquanto “o direito de preferência obedece ao pensamento de transformar a propriedade comum em propriedade singular, ou de reduzir a compropriedade, ou de favorecer a passagem da propriedade imperfeita para a propriedade perfeita”, já “o direito de remição inspira-se no propósito de defender o património familiar, de obstar a que os bens saiam da família do executado para as mãos de pessoas estranhas” (José Alberto dos Reis, obra citada, pp. 477-478).

A protecção da família, através da preservação do património familiar, evitando a saída dos bens penhorados do âmbito da família do executado, é, deste modo, o objectivo da consagração legal do direito de remição .

Ao direito de remição sempre (cf. artigo 914.º, n.º 1, do CPC, ) foi atribuída prevalência sobre o direito de preferência (embora, naturalmente, se houver vários preferentes e se abrir licitação entre eles, a remição tenha de ser feita pelo preço correspondente ao lanço mais elevado), o que permite qualificar o direito de remição como um “direito de preferência qualificado” (José Lebre de Freitas, A Acção Executiva, cit., p. 272) ou um “direito de preferência reforçado” (J. P. Remédio Marques).

Traduz-se, deste modo, o direito de remição na atribuição a determinados familiares próximos do executado – que não figurem, eles próprios, também como executados na causa – de um direito legal de preferência de formação processual , qualificado, na medida em que prevalece sobre os demais direitos de preferência, funcionalmente direccionado para a tutela do património familiar, obstando à sua transmissão a terceiros, adjudicatários ou compradores em processos de natureza executiva.

Note-se que, apesar de o remidor não ser parte, beneficia, quanto às condições procedimentais do exercício do direito que lhe assiste, da tutela conferida pelo art. 20º da Constituição, não podendo ser-lhe criados ónus ou obstáculos desproporcionados à efectivação da pretendida aquisição dos bens familiares: assim, no Ac. nº 277/07,o TC decidiu julgar inconstitucional, por violação do direito de acesso aos tribunais e do princípio do processo equitativo, consagrados nos n.ºs 1 e 4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a interpretação da norma do n.º 2 do artigo 912.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, segundo a qual só se considera validamente exercido o direito de remição, por um descendente do executado, no acto de abertura e aceitação das propostas em carta fechada, se for acompanhado do depósito da totalidade do preço oferecido na proposta aceite.

O direito de remição carece, por outro lado, de ser exercitado, em termos pessoais, pelo titular originário/familiar do executado a quem legalmente compete, nos termos do art. 842º do CPC- não sendo admissível a respectiva cessão ou transmissão a terceiro: como se decidiu no Ac. proferido em 10/11/05 pelo STJ no P. 05B2022, o titular do direito de remição na venda judicial não pode passar procuração irrevogável a terceiro, para exercer tal direito, conferindo-lhe também o direito de negociar consigo mesmo, prometendo-lhe do mesmo passo vender a coisa a remir, uma vez que isso consubstanciaria, não a venda dessa coisa, mas a alienação do próprio direito de remição. - Este, atentas as razões pelas quais a lei o confere, a proximidade familiar do remidor e do exequente, não pode ser cedido, sob pena de se frustrarem as referidas razões, bem como as regras da venda judicial.


Daqui decorre, como é evidente, a possibilidade de ocorrência de fraude à lei a propósito do exercício do direito – desde logo, quando se verificar um interposição fictícia de pessoas, tendente a iludir a referida impossibilidade de cessão do próprio direito legal de preferência em que se consubstancia, afinal, a dita remição – em função da qual os bens seriam transmitidos ab origine, não ao próprio remidor, mas a um terceiro, que seria, afinal, o verdadeiro e real adquirente dos bens remidos.

Como é manifesto, esta fraude à lei, na modalidade de interposição fictícia de pessoas, - surgindo o remidor como mero interveniente formal no acto, mas produzindo-se logo os seus efeitos jurídicos na esfera do terceiro, verdadeiro interessado e adquirente dos bens remidos – pressupõe uma actuação preordenada, um conluio entre o remidor meramente formal e o verdadeiro e real adquirente dos bens, implicando naturalmente essa modalidade de simulação negocial a prova de um elemento subjectivo – o conluio entre os interessados, tendente a contornar a impossibilidade legal de cessão ou transmissão do próprio direito potestativo de remição dos bens penhorados.

Saliente-se que esta era a via seguida pelo A na petição inicial, em que invocava precisamente que a remição teria resultado de conluio entre os RR., constituindo mero expediente para prejudicar o A., sendo certo que ainda antes da realização da abertura das propostas já era publicamente comentado e conhecido que o 2º R. tinha comprado os prédios em causa e que os mesmos lhe pertenciam ( cfr. arts.12, 13, 14 da p.i.).

Sucede, porém, que – perante a matéria factual fixada pelas instâncias - tal conluio, conducente a uma situação de interposição fictícia de pessoas no acto de remição – não pode obviamente ter-se por demonstrado, o que naturalmente deita por terra o preenchimento da alegada situação de fraude à lei em sentido subjectivo, envolvendo o indispensável animus fraudandi (o dito conluio ou pacto simulatório entre os referidos interessados, contornando a proibição legal de cessão ou transmissão do direito potestativo de remição).

Mas- perante tal insucesso probatório – pergunta-se: não poderá funcionar ainda aqui a concepção objectivista da fraude à lei, pressupondo a mera realização objectiva de um resultado que a lei expressamente previu e proibiu, sendo irrelevante a intenção das partes em defraudar a lei (como, em sede de Direito da Família, no campo do instituto da adopção plena, decidiu o STJ no acórdão fundamento, invocado como base da revista excepcional) ?.

Note-se que – para que esta visão ou concepção objectivista da fraude à lei fosse possível, na situação controvertida nos autos, - seria indispensável interpretar o art. 842º do CC no sentido de que o familiar/efectivo e real adquirente dos bens penhorados (por se não ter demonstrado a existência de uma situação de interposição fictícia de pessoas) ficava vinculado a um dever de indisponibilidade dos bens remidos, não os podendo alienar a terceiro durante um determinado período temporal, sob pena de incorrer, sem mais, objectivamente, em comportamento fraudulento.

Ora, afigura-se que tal dever de indisponibilidade dos bens efectivamente adquiridos não tem qualquer fundamento legal, não se vislumbrando nos traços essenciais da figura da remição a cominação de uma impossibilidade legal de, em momento ulterior à aquisição efectiva da sua titularidade pelo remidor, os mesmos poderem ser, nos termos gerais, transmitidos a terceiros: na verdade, embora a funcionalidade própria do instituto da remição seja efectivamente a tutela do património familiar, ela esgota-se com a efectiva aquisição pelo familiar/remidor da propriedade dos bens, não ficando a legitimidade substancial do acto condicionada pelo estabelecimento de um período mínimo de permanência dos bens na sua titularidade, tanto os podendo manter ou conservar no seu património ou ulteriormente alienar, no exercício legÍtimo de um poder de disposição, como o pode fazer qualquer proprietário.


Em suma: não se podendo inferir do regime legal em vigor qualquer dever legal de manutenção, na sua titularidade, dos bens remidos – por a lei não prever e instituir um dever de indisponibilidade de tais bens pelo remidor - não pode obviamente considerar-se que – consumada a sua efectiva aquisição pelo próprio remidor (por indemonstrado qualquer fenómeno de interposição fictícia de pessoas) – traduz realização ínvia de um resultado legalmente proscrito a sua alienação a terceiros, no comércio jurídico, num prazo mais ou menos dilatado a contar do exercício do direito de remição: e, assim sendo, falta obviamente um pressuposto fundamental da figura da fraude à lei, ainda que construída e perspectivada em termos objectivos.


6. Nestes termos e pelos fundamentos apontados nega-se provimento à revista, confirmando o decidido no acórdão recorrido.


Custas pelo recorrente.


Lisboa, 9 de Março de 2017


Lopes do Rego (Relator)

Távora Victor

Silva Gonçalves