Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2316/16.5T8CHV.G1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
VOTAÇÃO
ABSTENÇÕES
Data do Acordão: 06/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – DISPOSIÇÕES INTRODUTÓRIAS / PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO / CONCLUSÃO DAS NEGOCIAÇÕES COM A APROVAÇÃO DE PLANO DE RECUPERAÇÃO CONDUCENTE À REVITALIZAÇÃO DO DEVEDOR.
Doutrina:
-Alexandre Soveral Martins, O Processo Especial de Revitalização, Revista Ab Instantia, Ano I (2013), pág. 17 e segs;
-Catarina Serra, O Processo Especial de Revitalização na Jurisprudência, Almedina, 2ª ed. (2017), pág.17 e segs e 76 e segs.;
-Fátima Reis Silva, Processo Especial de Revitalização – Notas práticas e jurisprudência recente; Porto Editora (2014), pág. 15 e segs e 60;
-Luís Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de empresas Anotado, 3ª ed., Quid Iuris (2015), pág.137 e segs e 171;
-Maria do Rosário Epifânio, O Processo Especial de Revitalização, Almedina (2016), pág. 9 e segs e 64;
-Nuno Salazar Casanova/David Sequeira Dinis, PER – O Processo Especial de Revitalização – Comentários aos artigos 17º-A a 17º-I do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Coimbra Editora (2014), pág. 11 e segs e 130.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 17.º-F, N.ºS 3, ALÍNEAS A) E B) E 5.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 29-01-2014, PROCESSO N.º 1/07.0 TBVNO-P.E1;
- DE 07-02-2017, IN WWW.DGSI.PT.



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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:


- DE 10-08-2016, PROCESSO N.º 2/16.5T8VNF-A.G1.
Sumário :
I - O art.17.º-F, n.º 3 do CIRE (na redação dada pelo DL n.º 26/2015), correspondente ao vigente n.º 5, contém dois critérios normativos, parcialmente alternativos, destinados ao apuramento da maioria necessária à aprovação do plano de recuperação. Na hipótese da alínea b): para que o plano seja aprovado, devem ser emitidos em sentido favorável mais de metade dos votos correspondentes à totalidade dos créditos relacionados (devendo ainda mais de metade dos votos emitidos corresponder a créditos não subordinados). Na hipótese da alínea a): caso o número de votos emitidos não ultrapasse a metade, mas seja superior a 1/3 de todos os créditos relacionados com direito a voto, então exige-se que os votos favoráveis correspondam a uma maioria qualificada de 2/3 dos votos efetivamente expressos.

II - A expressão, contida na parte final da alínea b), “não se considerando como tal as abstenções” revela a existência de uma transposição acrítica da parte final da alínea a). Porém, enquanto a alínea a) se refere expressamente aos “votos emitidos”, tendo aquela expressão (não se considerando como tal as abstenções), nesse contexto, um sentido clarificador do universo de votos relevantes para o apuramento da maioria; na alínea b) não existe a expressão “votos emitidos”, mas sim votos respeitantes a créditos que “representem mais de metade da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto”. Deste modo, para efeitos de aprovação do plano, não se consideram, naturalmente, nem as abstenções nem os votos contra.
Decisão Texto Integral:

Processo n.2316/16.5T8CHV.G1.S1

I. RELATÓRIO

1. AA e BB requereram, em 25.12.2016, Processo Especial de Revitalização.

Concluídas as negociações, o Administrador da Insolvência juntou aos autos o Plano de Recuperação, nos termos art.17º-F, n.3, e 212º do CIRE, tendo o mesmo sido aprovado por maioria.

Da ata de abertura de votos constava a seguinte informação: os votos emitidos perfazem 93,654% do total de credores relacionados; os votos favoráveis perfazem 52,763% dos votos emitidos.

2. O tribunal da primeira instância, por despacho de 13.06.2017, não homologou o Plano Especial de Revitalização por entender que este não tinha sido aprovado pela maioria exigida nem pela alínea a) nem pela alínea b) do n.3 do art.17º-F do CIRE.

3. Os requerentes do PER interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães, pedindo a revogação da decisão e a consequente substituição por outra que homologasse o plano. Apenas a CC apresentou contra-alegações, sustentando a manutenção da decisão recorrida.

4. Por acórdão de 16.11.2017, o TRG julgou improcedente o recurso e confirmou a decisão recorrida.

5. Inconformados com tal decisão, os recorrentes interpuseram recurso de revista (admitido por despacho de fls.498 dos autos), em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:

A. «De acordo com o n. 3 do artigo 17.º-F do CIRE existem duas hipóteses passíveis de conduzir à aprovação do plano de recuperação e que funcionam em alternativa, com os seguintes pressupostos:

B. Na previsão da alínea a) do n.3 do artigo 17.º-F do CIRE:

- Existência de um quórum constitutivo de, pelo menos, um terço dos créditos relacionados com direito de voto;

- Voto favorável de mais de dois terços dos votos emitidos.

C. Na previsão da alínea b) do n. 3 do artigo 17.º-F do CIRE:

- Existência de um quórum constitutivo de, pelo menos, um terço dos créditos relacionados com direito de voto;

- Voto favorável de credores cujos créditos representem mais de metade da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto.

D. Para além da diversa percentagem exigida, existe uma outra diferença essencial: na primeira hipótese o apuramento da maioria é feito em função dos “votos emitidos”, enquanto na segunda hipótese já se labora tendo por base os “créditos relacionados”.

E. No caso em apreço votaram 93,654% da totalidade dos créditos relacionados na lista, conclui-se que se mostra assegurado o requisito referente ao quórum constitutivo.

F. Assim, cumpre apreciar se se encontra preenchido o 2.º requisito.

G. Importará apurar se a alínea b) está preenchida: haverá a considerar a “totalidade dos créditos relacionados com direito de voto” e, destes, terão de votar favoravelmente mais de metade dos credores titulares desses créditos.

H. A este propósito veja-se o que ensina o Sr. Dr. João Labareda: “Em nenhuma das alternativas – e à semelhança do que já sucedia – contam as abstenções. Temos assim que, enquanto na primeira alternativa, e por referência à totalidade dos créditos elegíveis, o quórum mínimo tem uma expressão fixa, na segunda ele assume expressão variável.”

I. Assim, atendendo a que não se contam as abstenções, temos, como vimos, que a totalidade dos créditos relacionados atingia o montante de €2.781.248,05.

J. Destes, votaram contra credores cujos créditos atingem o montante de 1.313.790,66 (equivalentes, portanto a 47.237%).

K. Os que votaram favoravelmente o Plano são titulares de créditos que somam o montante de €1.467.457,39 que representam efetivamente 52,763% de €2.781.248,05 (total dos créditos relacionados excluindo-se as abstenções).

L. Posto isto, a percentagem de 48,08% mencionada pelo Tribunal recorrido somente poderá ser encontrada se forem consideradas as abstenções, que, como vimos, deverão excluir-se!

M. Neste mesmo sentido, foi já decidido pelo aqui acórdão fundamento: De comum: (i) exige-se em ambas as hipóteses um quórum deliberativo de, pelo menos, um terço dos créditos relacionados com direito de voto; (ii) em nenhum dos casos contam as abstenções. De diverso: (i) na previsão da alínea a), atende-se aos “votos emitidos” e o voto favorável tem de ser superior a dois terços desses “votos emitidos”; (ii) na previsão da alínea b), atende-se ao voto favorável dos “créditos”, que terão de representar “mais de metade da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto”.

N. Pelo exposto, o plano de recuperação apresentado pelos Devedores deverá considerar-se aprovado nos termos da alínea b) do n.3.º do artigo 17.º-F do CIRE, ao contrário do que decidiu o Tribunal de primeira instância e foi confirmado pelo Tribunal da Relação.

O. O Tribunal a quo acabou por decidir que, ao abrigo dessa alínea, não poderia considerar aprovado o plano, por no cômputo da maioria, ainda que por referência aos créditos relacionados e não aos créditos votantes, incluir as abstenções e, incluindo essas abstenções, a maioria perfazer uma percentagem inferior a 50%.

P. Porém, a letra da lei não pode ser, sem mais ou, pelo menos, sem a menor justificação, ignorada.

Q. E a letra da alínea b) do n.º 3 do artigo 17.º-F do CIRE contém a expressão “não se considerando como tal as abstenções”.

R. Este segmento normativo tem de ser interpretado e valorado.

S. Se o entendimento do Tribunal recorrido estivesse correto – que não está – tal entendimento equivaleria, em termos práticos, à supressão daquela expressão, porque, por um lado, ao contrário do que dispõe expressamente a norma jurídica, o Tribunal está a considerar as abstenções como votos emitidos seja a favor ou contra e, portanto, não está a desconsiderá-las tal como impõe a norma, e, por outro lado, a vingar tal entendimento, estar-se-ia a fazer equivaler os créditos relacionados a créditos votantes, o que não poderá aceitar-se.

T. Considerar as abstenções nos termos em que o Tribunal a quo as considerou é o mesmo que as equiparar a votos contra, o que salvo o devido e maior respeito, é manifestamente errado e contrário à letra e até espirito da lei.

U. O propósito das abstenções não contarem é precisamente pelo facto de ser impossível aferir como votariam tais abstencionistas, motivo pelo qual, aceitar a interpretação plasmada no Acórdão objeto de recurso, é conferir às abstenções a expressão de voto desfavorável em claro desfavor dos Revitalizandos.

V. A chave está, pois, em descortinar o que quis o legislador significar com a expressão “não se considerando como tal as abstenções”.

W. Ao referir “como tal”, por aplicação de regras elementares de sintaxe, o legislador quer referir-se a “créditos relacionados com direito de voto” e não apenas a “créditos não subordinados”.

X. Assim, a boa hermenêutica manda interpretar a expressão “como tal” da seguinte forma: não se considerando como créditos relacionados as abstenções, que foi exactamente o que fez – e bem – o Senhor Administrador Judicial Provisório nestes autos e os Venerandos Desembargadores no Acórdão fundamento.

Y. Salvo o devido respeito, que é sempre muito, a interpretação do Tribunal a quo, plasmada na decisão ora em recurso, ao não desconsiderar as abstenções, como ordena a norma, faz corresponder os créditos relacionados com direito de voto a créditos votantes, o que não poderá aceitar-se.

Z. Assim, em face de tudo quanto se expos, a correta interpretação da norma contida na alínea b) do n. 3 do artigo 17.º-F do CIRE é de que, do universo de credores relacionados com direito de voto devem ser excluídos os credores abstencionistas e desse novo universo dos relevantes credores relacionados, apurar se os que votaram favoravelmente o plano são em número superior a metade.

AA. Considerando que, no caso em análise, desconsiderando do universo de credores relacionados os credores abstencionistas, sempre se apura um novo universo relevante, no qual, efetivamente, mais de metade aprovaram o plano de recuperação que, por esse motivo, deve ser homologado.

BB. Isto porque e no que diz respeito ao quórum deliberativo de um terço mencionado na alínea a) e igualmente aplicável à alínea b) está manifestamente cumprido.

CC. E não se diga que a interpretação constante no Acórdão da Relação do Porto de 13-03-2017, no qual o Acórdão ora em crise sustenta a sua decisão faz uma correta interpretação de tal normativo.

DD. Analisando o referido Acórdão, conclui-se que os Venerandos Desembargadores entenderam que deve fazer-se uma interpretação derrogante de tal segmento da norma.

EE. Ou seja, apesar de reconhecer que da leitura da norma resulta clara e inequivocamente que deve ser feito o desconto das abstenções, tal norma deve interpretar-se a este respeito ab-rogante, considerando-se, em total contradição com a letra da lei, que não deverá haver qualquer desconto das abstenções.

FF. Na prática e analisando o Acórdão é quase como se a expressão contida na norma em causa, “não se considerando como tal as abstenções” se trate de um lapso do legislador que urge corrigir na interpretação a fazer dessa mesma norma pelos Tribunais.

GG. Sucede que o Código da Insolvência e da Recuperação das Empresas foi objeto de uma profunda remodelação, designadamente no que diz respeito aos processos especiais de revitalização e com a criação dos processos especiais para acordo de pagamentos, introduzida pelo DL n.º 79/2017, de 30 de Junho, ou seja, em data posterior à do referido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-03-2017.

HH. Sendo que apesar das diversas alterações, inclusivamente no artigo 17.º-F do CIRE onde se insere o segmento aqui em causa, foi mantida na íntegra a redação que constava da alínea b) do n.3 do referido artigo.

II. Donde resulta que o legislador, apesar das apontadas deficiências, optou por manter na íntegra a redação do artigo, incluindo a expressão “não se considerando como tal as abstenções”, revelando inequivocamente ser essa a sua intenção, ou seja que obrigatoriamente terão que ser descontadas as abstenções para aferir a maioria prevista no referido normativo, precisamente no sentido defendido por João Labareda Fernandes e com o qual os aqui recorrentes concordam em absoluto.

JJ. Interpretar a norma constante na alínea b) do n.3 do art.17.º-F do CIRE nos termos constantes no Acórdão ora em recurso, enfatize-se em completa contradição com a letra da lei, é manifestamente violadora dos princípios da segurança e certeza jurídica, bem como das expetativas do cidadão que indiscutivelmente se fundam numa disposição legal.

KK. Paralelamente, considerar todas as abstenções como votos contra como resulta da apontada interpretação é igualmente violadora do princípio da igualdade, já que contrariamente ao que deveria, não trata as abstenções como tal, outrossim, como tendo um efetivo peso num determinado sentido.

LL. Motivo pelo qual a interpretação da apontada norma nestes termos é manifestamente inconstitucional por violação dos princípios supra aludidos.

MM. Inconstitucionalidade que pelo presente se alega e pretende ver reconhecida com as demais consequências legais.

          Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser declarado procedente e em consequência ser o Acórdão proferido revogado com as demais consequências legais. Assim fazendo Vossas Excelências, como sempre inteira e sã justiça»

           

6. Não foram apresentadas contra-alegações.

7. Dado que o recurso foi classificado como de Revista Excecional, foi o mesmo remetido à Formação a que alude o art.672º, n.3 do CPC, a qual concluiu (a fls.523 a 525 dos autos) que não se verificavam os requisitos para a revista excecional, sendo, sim, de aplicar o art.14º do CIRE.  

II. APRECIAÇÃO E DECISÃO

1. Objeto do recurso:

           Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, conclui-se que o problema central de direito em análise é o de saber se a decisão recorrida fez correta interpretação e aplicação da lei quando, no caso concreto, entendeu que não se encontravam preenchidos os requisitos previstos na alínea b) do n.3 do art.17º-F (na versão anterior ao DL n. 79/2017) do CIRE para que o PER fosse aprovado.

            Por outras palavras, trata-se de saber se para o apuramento da maioria necessária à aprovação do plano de recuperação, nos termos daquela alínea b), devem ser contabilizados apenas os votos emitidos, como defendem os recorrentes; ou se deve ser tomado como referente o montante total dos créditos que conferem direito de voto, como se entendeu no acórdão recorrido.

2. Admissibilidade do recurso:

Tratando-se de um litígio surgido no âmbito de um processo de insolvência, coloca-se a questão prévia de saber se o recurso de revista é admissível:

 O regime do recurso de revista aplicável ao caso concreto é o previsto no art.14º do CIRE. Dispõe esta norma:

No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme”.

2.1. Sobre o alcance que a jurisprudência do STJ tem atribuído a esta norma, veja-se, por exemplo, a seguinte decisão:

Acórdão do STJ de 07.02.2017 (relator Nuno Cameira): “A oposição de julgados que releva no contexto do n.º 1 do art. 14.º do CIRE verifica-se quando a mesma norma jurídica se mostra, no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, interpretada e/ou aplicada em termos frontalmente opostos e tal se revela decisivo para os resultados a que se chegou num e noutro aresto[1]

Na mesma linha cabe citar o Ac. do STJ, de 29.01.2014 (relator Orlando Afonso): “Para que se possa afirmar que dois acórdãos estão em oposição entre si, na solução dada a uma determinada solução jurídica, necessário se torna que as premissas e os pressupostos que estão na base dessa decisão sejam semelhantes. Só se estivermos perante situações semelhantes, do ponto de vista da questão jurídica fundamental, é que podemos concluir pela oposição entre acórdãos, caso as soluções preconizadas sejam diversas[2].

2.2. O art.14º do CIRE estabelece, assim, a regra da não admissibilidade do terceiro grau de jurisdição em litígios respeitantes ao processo de insolvência, extensível ao PER, tendo em vista, sobretudo, a celeridade deste tipo de processo.

           Tal propósito legislativo foi expressamente formulado no preambulo (ponto 16) do DL n.53/2004 (que aprovou o CIRE), onde se afirma:

           “A necessidade de rápida estabilização das decisões judiciais, que no processo de insolvência se faz sentir com particular intensidade, motivou a limitação do direito de recurso a um grau apenas, salvo nos casos de oposição de acórdãos em matéria relativamente à qual não exista ainda uniformização de jurisprudência”.

2.3. Para que se justifique a intervenção do STJ num processo de insolvência, o Recorrente tem de demonstrar a existência de similitude problemático-factual entre dois casos e a

diversidade de tratamento jurídico dada a esses dois casos por decisões de tribunais superiores.

           Nestes termos, o primeiro ónus que a lei dirige ao recorrente, para que possa aceder ao recurso de revista, é o de demonstrar que, como estabelece o art.14º do CIRE, o acórdão recorrido está em oposição com outra decisão de um tribunal superior que tenha decidido a mesma questão de direito.

2.4. Os recorrentes indicam como acórdão fundamento o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 10.08.2016, proferido na apelação n.2/16.5T8VNF-A.G1 (transitado em julgado em 31.08.2016), do qual juntaram certidão.

2.5. Confrontando o acórdão recorrido com o indicado acórdão fundamento, na questão alegada pelos recorrentes, conclui-se que as duas decisões respeitam a situações tipologicamente equiparáveis, e foram proferidas no domínio da mesma legislação, ou seja, na vigência do DL n.26/2015.

            A mesma questão fundamental de direito, ou seja, a de saber qual o alcance normativo do art. 17º-F, n.3, alínea b) [que corresponde ao atual art.17º-F n.5, al. b)] e, consequentemente, qual a percentagem de votos favorável para que um PER se considere aprovado, foi entendida de modo diverso em cada uma das decisões, conduzindo, consequentemente, a soluções divergentes.

           No acórdão fundamento foi considerado aprovado o plano, sendo emitidos votos correspondentes a 97,549% do total dos créditos relacionados com direito de voto e tendo os votos favoráveis correspondido a 50,247% dos votos emitidos. No acórdão recorrido, os votos emitidos perfazem 93,654% do total dos créditos relacionados; votaram favoravelmente 52,763% dos votos emitidos, mas o plano não foi aprovado.

            Em resumo, em situações tipologicamente equiparáveis a mesma questão essencial de direito foi decidida de modo diferente. Assim, enquanto no acórdão fundamento se adotou um critério de contagem dos votos que conduziu à aprovação do plano de recuperação do devedor, no acórdão recorrido foi adotado um critério que conduziu à não aprovação. 

           Conclui-se, deste modo, que se verificam os requisitos de admissibilidade do recurso previstos no art.14º do CIRE (aplicáveis ao PER).

3. A factualidade relevante é a que já se deixou exposta no relatório.

4. O direito aplicável:

4.1. Estabelece o art.17º-F, n.3 do CIRE (na redação dada pelo DL n.26/2015):

3. Sem prejuízo de o juiz poder computar no cálculo das maiorias os créditos que tenham sido impugnados se entender que há probabilidade séria de estes serem reconhecidos, considera-se aprovado o plano de recuperação que:

 a) Sendo votado por credores cujos créditos representem, pelo menos, um terço do total dos créditos relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem os n.os 3 e 4 do artigo 17.º-D, recolha o voto favorável de mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos corresponda a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções; ou

 b) Recolha o voto favorável de credores cujos créditos representem mais de metade da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto, calculados de harmonia com o disposto na alínea anterior, e mais de metade destes votos corresponda a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções.

4.2. A ausência de clareza literal do n.3 do art.17º-F [correspondente ao atual n.5 desse artigo] tem levado doutrina e jurisprudência a sustentarem entendimentos diversos quanto à exata delimitação dos critérios aí previstos para que o plano de recuperação se considere aprovado.

4.3. Vejamos, de forma sucinta, a evolução legislativa da norma em equação.

          O PER foi criado pela Lei n.16/2012, num contexto nacional e internacional de crise económica, com o objetivo de facilitar a recuperação de devedores que, atravessando uma situação económica difícil, tivessem potencialidade para evitar a insolvência[3].

           As regras definidoras do quórum necessário à aprovação do plano de recuperação foram, na redação original do diploma, formuladas no art.17º-F, n.3 do CIRE, nos seguintes termos:

“3 - Considera-se aprovado o plano de recuperação que reúna a maioria dos votos prevista no n.º 1 do artigo 212.º, sendo o quórum deliberativo calculado com base nos créditos relacionados contidos na lista de créditos a que se referem os n.os 3 e 4 do artigo 17.º-D, podendo o juiz computar os créditos que tenham sido impugnados se considerar que há probabilidade séria de tais créditos deverem ser reconhecidos, caso a questão ainda não se encontre decidida”[4].

           Já na vigência dessa versão original da norma se registavam divergências doutrinais quanto ao exato alcance da remissão para o art.212º do CIRE[5].

            Com a publicação do DL n.26/2015, que, entre outros, alterou o art.17º-F do CIRE, o critério de contagem até então vigente foi acolhido na alínea a) do n.3, e foi introduzida a alínea b), na qual foi consagrado um novo critério, que permitiria conduzir à aprovação do plano em circunstâncias nas quais tal não seria possível por aplicação do critério da alínea a).

            Não tendo aquela alínea b) uma formulação clara, as dificuldades interpretativas acentuaram-se[6], particularmente (e no que ao presente caso interessa) quanto a saber se para a formação da maioria deviam ser contados apenas os votos expressos ou a totalidade dos votos potenciais (correspondentes à totalidade dos créditos conferentes de direito de voto)[7].

            O Decreto-Lei nº 79/2017, que procedeu à alteração de várias normas do CIRE, não clarificou o conteúdo normativo da alínea b) do n.3 do art.17º-F. Para além de uma pequena alteração estilística[8], tal diploma operou apenas uma alteração “geográfica”, passando o n.3 para o atual n.5.

            Subsistiram, assim, as dúvidas interpretativas.

4.4. O âmbito de aplicação da alínea b) do n.3 do art.17º-F do CIRE:

           Tomada apenas no seu sentido literal, a alínea b) encerra uma incoerência normativa, pois a sua última parte estará em contradição com a sua narrativa inicial.

          Na operação de realização judicativo-decisória do direito não pode deixar de ser tomada em conta a dimensão teleológica que se extrai da específica consagração histórico-legislativa daquela alínea. Como consta do preâmbulo do DL n.26/2015, entre os propósitos legislativos desse diploma, identifica-se o de facilitar as maiorias necessárias para a aprovação de planos de recuperação das empresas. Conclui-se, assim, que foi esse o propósito da publicação da alínea b). Todavia, o novo critério não substituiu o anteriormente vigente, o qual passou a constar da alínea a). Deste modo, a vigência simultânea de dois critérios de quantificação de maiorias necessárias à aprovação de um plano de recuperação impõe ao aplicador do direito uma análise intrassistemática, que conduza a um resultado normativamente coerente.

            Assim se concluirá que, aos olhos de um legislador razoável, a al. a) não se tornou redundante e não é consumida pela alínea b). 

            Deste modo, deverá concluir-se que a maioria exigida pela alínea b) não tem por referente apenas o número de votos emitidos, mas sim a totalidade de votos potenciais. De contrário, ou seja, caso se sustente a interpretação defendida pelos recorrentes e consagrada no acórdão recorrido[9], a alínea a) perderá significativa autonomia normativa.

           A expressão, contida na parte final da alínea b), “não se considerando como tal as abstenções”, revela a existência de uma transposição acrítica da parte final da alínea a).

            Porém, enquanto a línea a) se refere expressamente aos “votos emitidos”, tendo aquela expressão [não se considerando como tal as abstenções], nesse contexto, um sentido clarificador do universo de votos relevantes para o apuramento da maioria; na alínea b) não existe a expressão “votos emitidos”, mas sim votos respeitantes a créditos que “representem mais de metade da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto”. Deste modo, para efeitos de aprovação do plano, não se consideram, naturalmente, nem as abstenções nem os votos contra. 

          4.5. A compreensão do alcance do art.17º-F, n.3 (correspondente ao atual n.5) seria mais fácil se a ordem das alíneas estivesse invertida.

           Assim, começando pela al. b), dir-se-á que para que o plano seja aprovado devem ser emitidos mais de metade dos votos correspondentes aos créditos relacionados e mais de metade devem ser favoráveis [devendo ainda mais de metade dos votos emitidos corresponder a créditos não subordinados][10]. Se apenas forem emitidos votos correspondentes a 51%, todos terão de ser favoráveis; os restantes 49% correspondem a abstenções. Se forem emitidos votos correspondentes, por exemplo, a 90% dos créditos com direito de voto, o plano será aprovado se forem favoráveis 51% da totalidade dos votos (e não 51% dos 90% que efetivamente votaram).

            Caso o universo de votos emitidos não ultrapasse a metade, mas seja superior a 1/3 de todos os créditos relacionados com direito a voto, então exige-se que os votos favoráveis correspondam a uma maioria qualificada de 2/3 dos votos efetivamente expressos – hipótese da al. a).

            5. O acórdão recorrido fez, assim, a correta aplicação do critério normativo contido na alínea b) do n.3 do art.17º-F do CIRE. Critério esse que se apura pela interpretação histórica, teleológica e intrassistemática da norma, como supra referido.

           6. Os recorrentes invocam ainda uma alegada inconstitucionalidade da interpretação que o acórdão recorrido fez da alínea b) do art.17º-F, n.3, por entenderem que tal interpretação é “violadora dos princípios da segurança e certeza jurídica, bem como das expetativas do cidadão e ainda do princípio da igualdade” e concluem que “a interpretação da apontada norma nestes termos é manifestamente inconstitucional por violação dos princípios supra aludidos”.

           Não lhes assiste qualquer razão. Trata-se de uma invocação vaga, sem a necessária fundamentação ou demonstração causal de argumentos jurídicos que sustentem a natureza inconstitucional da norma.

           Em resumo, o acórdão recorrido nenhum reparo merece, pois fez a correta aplicação do direito ao caso concreto.

DECISÃO: Pelo exposto, decide-se pela improcedência do recurso, e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente

Lisboa, 5 de junho de 2018

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Salreta Pereira

João Camilo

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[1]http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d1736603a926a549802580c1003bc506?OpenDocument
[2] Processo n.1/07.0 TBVNO-P.E1- 7ª Secção.
[3] Sobre os objetivos e a caraterização geral do Processo Especial de Revitalização, veja-se, por exemplo: Alexandre Soveral Martins, “O Processo Especial de Revitalização”, in Revista Ab Instantia, Ano I (2013), pág. 17 e segs; Fátima Reis Silva, Processo Especial de Revitalização – Notas práticas e jurisprudência recente; Porto Editora (2014), pág. 15 e segs; Nuno Salazar Casanova/David Sequeira Dinis, PER – O Processo Especial de Revitalização – Comentários aos artigos 17º-A a 17º-I do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Coimbra Editora (2014), pág. 11 e segs; Luís Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de empresas Anotado, 3ª ed., Quid Iuris (2015), pág.137 e segs; Maria do Rosário Epifânio, O Processo Especial de Revitalização, Almedina (2016), pág.9 e segs; Catarina Serra, O Processo Especial de Revitalização na Jurisprudência, Almedina, 2ª ed. (2017), pág.17 e segs.
[4] Dispõe o art.212º, n.1 do CIRE: “A proposta de plano de insolvência considera-se aprovada se, estando presentes ou representados na reunião credores cujos créditos constituam, pelo menos, um terço do total dos créditos com direito de voto, recolher mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções”.
[5] Vd. Nuno Salazar Casanova/David Sequeira Dinis, op. cit. (2014), pág. 130; Fátima Reis Silva, op. cit. (2014), pág. 60.
[6] Sustentando entendimentos diversos, vd., por exemplo, Luís Carvalho Fernandes/João Labareda, op. cit. (2015), pág.171; Maria do Rosário Epifânio, op. cit. (2016), pág.64; Catarina Serra, op. cit. (2017), pág. 76 e segs.
[7] Quanto ao poder eletivo e decisório que a cada credor cabe, é convocável a aplicação do art.73º, n.1 do CIRE, segundo o qual os créditos conferem um voto por cada euro ou fração, porquanto decorre do art.17º-A, n.3, que ao processo especial de revitalização são aplicáveis “todas as regras previstas no presente código que não sejam incompatíveis com a sua natureza”.
[8] Assim, onde na redação de 2015 se dizia: “…mais de metade dos votos emitidos corresponda a créditos…”; na redação de 2017 passou a dizer-se: “…mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos…”.
[9] Que é também a interpretação sustentada por Luís Carvalho Fernandes/João Labareda, op. cit. (2015), pág.171.
[10] Dada a delimitação do objeto do recurso supra referida, não se coloca no caso concreto qualquer questão respeitante à natureza – subordinada ou não subordinada – dos votos contabilizados.