Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9950/11.8TBVNG.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: POSSE
PRESUNÇÃO
ANIMUS POSSIDENDI
POSSE ORIGINÁRIA
ÓNUS DA PROVA
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
DUPLA CONFORME
MATÉRIA DE FACTO
ALTERAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
IMPUGNAÇÃO
Data do Acordão: 05/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITOS REAIS / POSSE.
DIREITO DOS REGISTOS E NOTARIADO - ACTOS NOTARIAIS ( ATOS NOTARIAIS ) / JUSTIFICAÇÕES NOTARIAIS - REGISTO PREDIAL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ) / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA / ALTERAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO.
Doutrina:
- Borges Araújo, Prática Notarial, 4.ª Edição, 399.
- Henrique Mesquita, Direitos Reais, Lições 1966-1967, Coimbra, 66-67.
- Orlando de Carvalho, “Introdução à Posse”, in RLJ, Ano 122.º, 104-106.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, Vol. III, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1987, 8.
- Santos Justo, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2007, 150-156.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 5.º, N.º3, 607.º, N.º 4, 2.ª PARTE, 615.º, N.º1, AL. C), 663.º, N.º 2, 666.º, N.º1, 671.º, N.º3, 674.º, N.º1, AL. A), 679.º, 682.º, N.º3.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 280.º, N.º 1, ALS. A) E B).
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (CRPRED): - ARTIGOS 7.º, 116.º.
CÓDIGO DO NOTARIADO (CN): - ARTIGOS 70.º, 71.º, 89.º, N.º1, 96.º, 101.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 343.º, N.º1, 1251.º, 1252.º, N.º2, 1257.º, N.º2, 1263.º, ALS. A) E C), 1287.º E SEGUINTES E 1317.º, ALÍNEA C).
LEI N.º 41/2013, DE 26-06: - ARTIGO 5.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 11 DE MAIO DE 1993, PUBLICADO NA COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA, ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, ANO I, TOMO II, 1993, 95 E 96.
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ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (AUJ) DO STJ, DE 14/05/1996, PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, II SÉRIE, N.º 144, DE 24/06/1996.
ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (AUJ) DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA N.º 1/2008, DE 04/12/2007, PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA N.º 63, SÉRIE I, DE 31/03/ 2008.
Sumário :
I - A presunção estabelecida no n.º 2 do art. 1252.º do CC é estabelecida em favor do pretenso possuidor, pelo que, não logrando ele provar o animus, recairá então sobre a parte contrária a prova da falta deste, sob pena de funcionar a respetiva presunção, a partir da factualidade demonstrada quanto ao corpus, na linha do doutrinado no AUJ do STJ, de 14/05/1996.

II - Todavia, para que aquela presunção opere com a ressalva da presunção da mesma natureza estabelecida no n.º 2 do art. 1257.º do CC, importa que o pretenso possuidor se apresente como iniciador da posse, desligado, portanto, de qualquer possuidor antecedente.

III - Assim, não se configurando no caso dos autos tal condicionante, não lhe pode ser aplicável a presunção do n.º 2 do art. 1252.º do CC.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório


1. AA (A.) intentou ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, em 17/11/2011, junto do Tribunal Judicial da então Comarca de Vila Nova de Gaia contra: 

1.º - a herança aberta por óbito de BB, representada pela cabeça de casal CC;

2.º - CC, viúva,

3.º - DD e cônjuge EE,

4.º - FF e cônjuge GG,

5.º - HH e cônjuge II,

6.º - JJ, solteiro,  

7.º - KK e cônjuge LL,

8.º - MM e cônjuge NN,

todos por si e na qualidade de herdeiros de BB, alegando, no essencial, que:

. A A. adquiriu, por via de sucessão hereditária de seus pais, OO e PP, que também usava o nome de QQ, a propriedade do prédio rústico denominado “Quinta da …”, terreno a pinhal, mato e cultura, com a área de 20.000 m2, a confrontar do norte com herdeiros de RR, do sul com SS, do nascente com regato e do poente com TT, inscrito na matriz rústica da freguesia de Serzedo, sob o artigo 699.º;

. Os pais da A., por sua vez, haviam adquirido esse prédio mediante escritura pública de partilhas, celebrada a 02/02/1923, no Cartório Notarial de Vila Nova de Gaia;

. O referido prédio encontra-se descrito sob o n.º 604 da 1.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia com a aquisição ali inscrita a favor dos pais da A.;

. A A., por si e ante-possuidores, têm vindo desde há mais de 50 anos a colher todas as utilidades e interesses do referido prédio, bem como a pagar os encargos, despesas e contribuições ao mesmo referentes, abatendo e plantando árvores nele e limpando e arranjando todo o espaço físico do prédio, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, com a consciência de estarem a exercer o seu direito de propriedade;

. Todavia, por escritura pública notarial de habilitação de herdeiros e justificação outorgada em 10/09/2010, a R. CC, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito do seu marido BB, declarou que o identificado prédio, não descrito na Conservatória do Registo Predial, mas inscrito na matriz sob o art.º 699.º, em nome de QQ, fazia parte integrante daquela herança, por ter sido adquirido, mediante doação verbal, à então titular inscrita pelo autor da herança e sua mulher, ora 2.ª R., por volta de 1970;

. Nessa base ali foi declarado que a 2.ª R. e demais herdeiros do falecido são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, sem determinação de parte ou direito, pretendendo registar tal aquisição a favor da referida herança, embora não detenham qualquer título que legitime o seu domínio sobre tal prédio;

. Declarou também a mesma R que, desde a data dessa aquisição, sem qualquer interrupção, o sobredito prédio têm usado e fruído, à vista de todos, sem oposição de quem quer que seja e na convicção que não lesavam direitos de outrem, de forma pacífica, contínua, pública e de boa fé, desde há mais de vinte anos, o que conduziu à aquisição do mesmo por usucapião;

. Por documento notarial denominado “Partilha e Reparcelamento” formalizado em 26/01/2011, os R.R., ali outorgantes declararam serem os únicos interessados na indicada herança indivisa;

. Com violação do princípio do trato sucessivo, bem como do Plano Director Municipal aplicável, o referido prédio mostra-se reparcelado em sete parcelas as quais foram levadas ao registo predial através de várias descrições prediais; 

. É, portanto, falso, que os R.R. sejam donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, sem determinação ou de direito do prédio rústico, do prédio em referência e que a mãe da A., QQ, o tenha doado verbalmente à 2.ª R. e a seu marido BB.


Concluiu a A., pedindo que:

a) – se considere impugnado e, por consequência, nulo ou ineficaz para todos os efeitos legais e facto justificado na escritura de justificação de 10/09/2010, em virtude da 1.ª R., a herança aberta por óbito de BB, não ter adquirido por usucapião, o prédio em referência, considerando-se igualmente nula a escritura de partilha e reparcelamento de 26/01/2011, ordenando-se, por via disso, o cancelamento de quaisquer registos operados com base dessa escritura de justificação;

b) – seja declarada a nulidade dos atos notariais mencionados e, consequentemente, ordenado o cancelamento dos respetivos registos;

c) – seja declarado que a A. é dona do mesmo prédio e sejam os R.R. condenados a restitui-lo à A., no seu estado físico originário, integrado pela sua área de 20.000 m2, bem como a pagar-lhe, solidariamente, a título de sanção pecuniária compulsória, quantia nunca inferior a € 100,00, por cada dia de atraso na restituição do prédio em questão, a qual se deverá considerar constituída desde a citação até à efetiva restituição.


2. Os R.R. contestaram, reiterando, além do mais, tudo quanto declararam nas escrituras de justificação impugnadas pela A. e deduzindo, com base em tais factos, reconvenção a pedir que:

a) - seja declarada a existência e titularidade dos direitos de nua propriedade dos R.R. e dos direitos de usufruto da 2.ª R. sobre os prédios constantes das descrições prediais em referência;

b) – subsidiariamente, seja declarada a existência e titularidade do direito de propriedade da 1.ª R., herança aberta por óbito de BB, do prédio rústico de pinhal, mato e cultura, sito na Quinta da …, freguesia de …, Vila Nova de Gaia, com a área de 17.153 m2, descrito na respetiva 1.ª Conservatória do Registo Predial sob o n.º …34 e inscrito na matriz sob o art.º 669.º;

c) – também subsidiariamente, seja declarada a existência e titularidade do direito de propriedade da mesma 1.ª ré dobre o mesmo prédio rústico.


3. A A. replicou, pugnando pela inadmissibilidade da reconvenção, impugnando o alegado pelos R.R., nessa sede, acrescentando que os pais da A. emprestaram o prédio em causa à 2.ª R. e seu marido, e requerendo a ampliação da causa de pedir.


4. Por sua vez, os R.R. treplicaram a invocar a inadmissibilidade da pretendida alteração e ampliação da causa de pedir, a impugnar a generalidade dos factos assim alegados e a pedir a condenação da A. como litigante de má fé.


5. Fixado o valor da causa em € 250.000,00 e registada a ação, foi dispensada a audiência preliminar e proferido despacho saneador tabelar, procedendo-se à selação dos factos tidos por relevantes com organização da base instrutória, após o que ambas as partes reclamaram, tendo ainda a A. arguido a nulidade daquele despacho, com fundamento em omissão de pronúncia sobre a admissibilidade do pedido reconvencional. Tal arguição foi deferida, admitindo-se a reconvenção, mas as reclamações foram desatendidas.


6. Realizada a audiência final, foi proferida a sentença de fls. 407-438, datada de 19/02/2015, na qual foi integrada a decisão de facto e a respetiva motivação, a julgar, totalmente, procedente a ação e improcedente a reconvenção, com o seguinte teor dispositivo:  

a) - Declaro nulos e por isso inválidos os actos notariais referidos nos artigos 17.º a 23.º da petição inicial e consequentemente se declare o cancelamento de todos os registos referidos no artigo 24.º da petição inicial;

b) - Declaro e por isso inválidos os registos referidos no artigo 24.º da petição inicial e consequentemente se declare o cancelamento desses mesmos registos;

c) - Considero impugnado e, consequentemente, nulo ou ineficaz para todos os efeitos legais o facto justificado na escritura de justificação de 10 de Setembro de 2010 por a 1.ª Ré, a herança aberta por óbito de BB, não ter adquirido o prédio constante do artigo 1.º da petição inicial por usucapião considerando-se igualmente nula a escritura de partilha e reparcelamento de 26 de Janeiro de 2011 e se ordene, por via disso, o cancelamento de quaisquer registos operados com base nessa escritura de justificação aqui impugnada, nomeadamente, todos os registos referidos no artigo 24º da petição inicial;

d) - Declaro que a Autora é dona e legitima proprietária do prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial e, em consequência, os RR. obrigados a restituir-lhe esse mesmo prédio que se encontra entre si reparcelado ou fraccionado do modo referido no artigo 24.º da petição inicial, no seu estado físico originário integrado pela sua área de 20.000 m2, devendo, para o efeito, os mesmos RR vão condenados a pagar solidariamente à Autora, a título de sanção pecuniária compulsória, quantia de 100,00 (cem euros) por cada dia de atraso da obrigação de restituição do prédio em questão, a contar da presente data até à efectiva restituição do prédio à Autora. (…).

e) - Julgo totalmente improcedente o pedido reconvencional, e em consequência, vai a A. absolvida dos pedidos.”


7. Inconformados os R.R. com tal decisão apelaram dela para o Tribunal da Relação do Porto, que, através do acórdão de fls. 485-503, datado de 07/09/2015, muito embora alterando a decisão sobre a matéria de facto, ainda assim julgou improcedente, no mais, o recurso, mantendo a decisão recorrida.


8. Mais uma vez, irresignados com essa decisão, vieram os R.R. recorrer de revista, formulando as seguintes conclusões:

1.ª - O acórdão impugnado é recorrível e passível de revista porquanto não há, quanto a ele, uma confirmação da decisão da 1.ª Instância; pelo contrário, confirmou, é certo, a decisão proferida na 1.ª instância, todavia com base numa fundamentação essencialmente diferente (n.º 3 do art.º 671.º do CPC);

2.ª - Daí que, ainda que se entenda que a decisão do Tribunal da Relação é sobreponível à da 1.ª instância, ainda assim verifica-se o pressuposto de admissibilidade da revista nos termos do disposto nos artigos 629.º, n.ºs 1 e 3, “a contrario”, do CPC;

3.ª - Além disso, o acórdão recorrido está em contradição com os acórdãos deste Tribunal, todos transitados em julgado, de 25/06/ 2015, proferido no processo n.º 17933/12.4T2SNT.1.1.S2, de 09/02/ 2008, proferido no processo n.º 08A3580 e de 14.05.1996, proferido no recurso de fixação de jurisprudência n.º 085204 publicado no DR II S, de 24.06.1996, todos disponíveis em www.dgsi.pt,

4.ª - Sendo também, por isso, recorrível nos termos do previsto nos artigos 629.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), e 672.º, n.º 1, alínea c), e n.º 5, do CPC;

5.ª - Segundo o acórdão recorrido que fixou a matéria de facto provaram-se os factos constantes dos respetivos pontos 3.2.1.1 a 3.2.1.13, entre eles, o facto 3.2.1.13: “desde altura não precisamente determinada do ano de 1970, BB, mulher e filhos usaram e fruíram o referido prédio, limpando-o e colhendo frutos dele, à vista de todos, sem oposição de quem quer que seja e na convicção que não lesavam direitos de terceiros”;

6.ª - Não obstante, o acórdão recorrido decidiu pela inaplicabilidade ao caso da presunção legal do n.º 2 do art.º 1252.º do CC;

7.ª - Ao decidir assim, sustentando-se em fundamento que não foi previamente considerado, o acórdão recorrido é nulo por omissão do convite aos Apelantes/Recorrentes a pronunciarem-se sobre a alegada falta de “animus” - artigos 3.º, n.º 3, e 195.º, n.º 1, ambos do CPC, e inconstitucional por violar os artigos 13.º, 18.º, n.º 1, e 20.º, nº 4, todos da Constituição da República Portuguesa;

8.ª - Além disso, a fundamentação do acórdão recorrido não tem suporte nos factos que vêm dados como provados, dos quais resulta, aliás, o inverso, conforme pontos 3.2.1.1. a 3.2.1.13 em que se mostram vertidos;

9.ª - A resposta ao facto 3.2.1.13 está em desconformidade com a fundamentação inserta no acórdão recorrido, onde se escreve que a prova produzida em audiência foi convergente no sentido de o falecido BB, sua mulher e filhos terem habitado a casa existente no prédio em disputa, de a parte rústica do prédio ter sido agricultada e de aí terem criado animais;

10.ª - A inclusão de mais estes factos no ponto acima referido dos factos provados do acórdão recorrido, teria por certo permitido que dele constasse: “provado apenas que desde altura não precisamente determinada do ano de 1970, BB, mulher e filhos usaram e fruíram o referido prédio, dele retirando todas as utilidades proporcionadas, habitando a casa, limpando-o e colhendo frutos dele”;

11.ª - A sua não inclusão constituiu por isso omissão que, face ao exposto, fere de nulidade o acórdão recorrido tal como o previsto nos artigos 615.º, n.º 1, alínea c), e 666.º do CPC;

12.ª - Acresce que o acórdão recorrido erra quando conclui que a factualidade provada, ou seja, a vertida no ponto 3.2.1.13 dos factos provados não é suficiente para integrar o “corpus”, elemento material da posse que releva para a verificação da usucapião;

13.ª - Ao contrário, a predita factualidade é suficiente para integrar o “corpus” da posse a que os RR. se arrogam;

14.ª - Perante a matéria de facto vertida no ponto 3.2.13 da epígrafe “Factos provados” do acórdão impugnado, não podia aquele Tribunal decidir pela inaplicabilidade ao caso da presunção legal do n.º 2 do art.º 1252.º do CC;

15.ª - A matéria de facto apurada, diferentemente do que vem dito no acórdão recorrido, é absolutamente suficiente para caracterizar e integrar o “corpus”;

16.ª - Já a aptidão distintiva dos actos materiais praticados sobre a coisa que o Tribunal da Relação diz que os factos provados não revelam, não interessa para a caracterização, integração e verificação do “corpus”, outrossim interessa para a verificação do elemento subjetivo da posse, o “animus”;

17.ª - Os factos ditos ajustam-se aos poderes de facto que competem ao proprietário;

18.ª - Incumbindo à A. a demonstração de factos que reconduzissem a atuação apurada dos RR. à figura da mera detenção ou de posse em nome de outro, cabendo aos RR. apenas demonstrar o que consta do facto provado 3.2.1.13, o que evidentemente lograram;

19.ª - A verificação da usucapião nos termos do art.º 1287.º do CC depende da posse e do decurso de certo período de tempo, variável conforme a natureza móvel ou imóvel da coisa;

20.ª - Para conduzir à usucapião a posse tem de revestir sempre duas características: ser pública e pacífica,

21.ª - Os restantes caracteres (boa fé, titulada ou não titulada) influem apenas no prazo;

22.ª - A posse é o poder de facto que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao direito de propriedade ou outro direito real - art.º 1.251.º do CC;

23.ª - São elementos definidores do conceito de posse o material, o “corpus”, que se identifica com os atos materiais praticados sobre a coisa e o subjetivo, o “animus” que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos atos praticados;

24.ª - Os R.R. provaram o que consta do supra indicado ponto 3.2.1.13, aliás, mais que isso, o que revela que se demonstrou o corpus da posse;

25.ª - Os R.R. não fizeram prova positiva do “animus”, mas a verdade é que, estabelecida em consequência a dúvida sobre se os R.R. e antes deles a R. CC e marido agiram como titulares do direito de propriedade do prédio em causa ou com essa convicção, ou, diversamente como seus meros detentores ou possuidores em nome de outrem, designadamente comodatários ou arrendatários, dúvida que acomete o acórdão recorrido quando discorre sobre a falta de aptidão distintiva da factualidade provada nos termos já explicitados em J tem de se presumir a posse na pessoa dos RR. por serem quem exerce o poder de facto sobre o prédio por imposição do art.º 1252.º, n.º 2, do CC;

26.ª - Posto que a A., a quem incumbia o ónus de provar que os RR. agiram como meros detentores e não como possuidores, não logrou fazê-lo e logo ilidir a presunção do citado normativo - nenhum facto provado aponta no sentido dessa a ilusão;

27.ª - Aliás, a passividade da A., arrogada proprietária do prédio, e de sua mãe, durante pelo menos quarenta e um anos, em que pura e simplesmente nunca praticaram atos quaisquer que fossem no prédio, conduziriam inexoravelmente à perda do “corpus” e do “ani-mus” de qualquer posse que pudessem ter tido, se é que tiveram, do referido prédio, e logo da posse do mesmo, por abandono;

28.ª - Nenhuma das ditas senhoras beneficia da presunção da existência e titularidade do direito de propriedade do prédio - não existe registo;

29.ª - Aquela passividade, por contraposição à situação persistente dos RR., que, assumindo-se como verdadeiros titulares do direito de propriedade do prédio, sem quaisquer limitações, extravasaram outros poderes, menores, que pudessem ter tido, evidencia a inversão do título de posse imposta pela falta de prova do facto não provado 3.2.2.1 que, mesmo que não se tivesse verificado, não retiraria apoio à conclusão de que os RR. e antepossuidor adquiriram a posse relativa à propriedade do prédio através de uma prática reiterada, pública e duradoura nos termos do art.º 1263.º, alínea b), do CC;

30.ª - Logo os factos não provados 3.2.2.1 e 3.2.2.2 não põem em causa esta conclusão.

31.ª - Em consequência, a manifesta suficiência dos factos provados para integrar o “corpus” da posse dos RR., operando a presunção invocada sempre que esteja demonstrado o “corpus” da posse, não recaindo sobre os RR., nesse caso, o ónus de prova do “animus”, e não tendo a A. ilidido a presunção, forçoso se mostra concluir que os RR. adquiriram o direito de propriedade do prédio em causa por usucapião e consequentemente pela improcedência da ação e procedência da reconvenção;

32.ª - Ao decidir em desconformidade com o alegado, como decidiu o Tribunal recorrido, violou a lei substantiva – artigos 350.º e 1.251.º e seguintes do CC - que interpretou e aplicou erradamente;

33.ª - Existe contradição manifesta entre o acórdão recorrido e os acórdãos supra identificados, uma vez que as decisões tomadas num e noutros foram proferidas no âmbito da mesma legislação artigos 350.º e 1251.º e seguintes do CC - e sobre a mesma questão fundamental de direito - a posse como caminho para a dominialidade, o “corpus” e o “animus”, a presunção de posse em nome próprio por parte de quem exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa -, existindo oposição das soluções proferidas , contra jurisprudência uniformizada deste Tribunal;

34.ª - No acórdão recorrido entende-se que a prática dos atos constantes do facto provado 3.2.1.13 do mesmo não integram o “corpus” da posse, ao contrário, naqueloutros decidiu-se que a prova da detenção da coisa, ou seja, a prova da prática dos atos provados de forma continua e ininterrupta, à frente de todos e sem oposição de ninguém, constitui a demonstração do “corpus”.

35.ª - Do mesmo modo o acórdão recorrido decidiu pela inaplicabilidade ao caso da presunção do art.º 1252.°, n.º 2, do CC, por entender que esta só pode operar quando está provada materialidade fáctica que corresponda ao exercício de um direito certo real o que julga não ocorrer no caso, ao contrário, nos acórdãos-funda-mento decidiu-se que pode adquirir por usucapião, se a referida pré-sunção não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre a coisa , ou seja, os que a detêm, quando não se demonstra qualquer relação contratual que conduza à figura de possuidor em nome alheio ou quaisquer factos que reconduzam à figura de mera detenção do art.º 1253.º do CC;

36.ª - Fazem assim os acórdãos recorrido e fundamento uma distinta e contraditória apreciação da mesma em um e outros dos arestos, sendo que os acórdãos-fundamento apreciaram e decidiram adequadamente, aplicando corretamente a lei aos factos, ao contrário do acórdão recorrido

37.ª - O acórdão recorrido, ao contrário dos acórdãos-fundamento, violou as normas dos artigos 350.º e 1.251.º e seguintes do CC.


9. A Recorrida apresentou contra-alegações, em que, além de arguir a inadmissibilidade da revista, pugna pela sua improcedência.


10. Subsequentemente, o tribunal a quo proferiu, em conferência, o acórdão de fls. 635-638, datado de 16/12/2015, em que, apreciando as invocadas nulidades do acórdão recorrido, concluiu pelo seu indeferimento.

        

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II – Quanto à admissibilidade do recurso


A Recorrida arguiu a inadmissibilidade da revista, sustentando, em primeira linha, a aplicação ao caso do preceituado no n.º 3 do artigo 721.º do CPC, na redação dada pelo Dec.-Lei n.º 303/2007, de 24/08, segundo o qual a dupla conforme relevaria como impeditiva mesmo que a confirmação da sentença da 1.ª instância pela Relação repousasse em fundamento diferente. Em segundo lugar, argumenta que, relativamente ao fundamento específico de revista excecional por contradição jurisprudencial, os Recorrentes não apresentaram, como é exigível, cópias certificadas dos acórdãos-fundamento com a respetiva nota de trânsito.


Ora, estamos no âmbito de uma ação intentada em 17/11/2011, em que a decisão impugnada foi proferida em 07/09/2015, pelo que não se verifica a hipótese contemplada no n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 41/2013, de 26-06, havendo antes que aplicar a norma transitória contida no n.º 1 do artigo 5.º da mesma Lei.

Significa isto que é imediatamente aplicável à presente revista o regime recursório constante do CPC, na redação que lhe foi dada pela mencionada Lei, designadamente o disposto no n.º 3 do respetivo artigo 671.º, segundo o qual:

  Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos nos artigos seguintes.

Para tais efeitos, a fundamentação essencialmente diferente ocorrerá quando o acórdão da Relação, conquanto confirmativo, sem voto de vencido, da decisão da 1.ª instância, o faça num quadro normativo ou argumentação jurídica substancial diversos desta decisão, seja com base na mesma factualidade ou em factualidade entretanto alterada, em termos de se justificar uma reapreciação em sede de duplo grau de jurisdição.

No caso vertente, a 1.ª instância, com base na factualidade ali dada por provada e não provada, considerou que:

“Incumbia à A. e aos R.R. (artigo 342.º, n.º 2) a alegação e prova da legalidade/licitude (titularidade de um direito real ou obrigacional que legitime a recusa da restituição do prédio e sirva de obstáculo à pretensão dos demandantes) da sua posse ou detenção que exerce sobre bem imóvel (…)

O certo, porém, é que a A., por um lado, logra provar o seu direito de propriedade sobre o prédio em causa e os R.R., por outro lado, não logram provar tal direito.»

Por seu turno, o acórdão recorrido, ao re-apreciar os factos dados como não provados sob as alíneas a) a g), concluiu por:

i) – abster-se de responder à matéria das alíneas a), b), c), d) e g), considerando tal matéria conclusiva e de direito ou não passível de instrução;

ii) – responder restritivamente à matéria da alínea e), no sentido de julgar provado apenas que: “desde altura não precisamente determinada do ano de 1970, BB, mulher e filhos usaram e fruíram o referido prédio, limpando-o e colhendo frutos dele”.

Em face disso, o tribunal a quo considerou que:

“Nesse circunstancialismo, na falta de quaisquer outros fundamentos aduzidos para revogação da decisão sob censura e não se divisando quaisquer motivos para isso de conhecimento oficioso (…), dada a vinculação deste tribunal na sua esfera de cognição à delimitação objetiva resultante das conclusões do recurso, deveria concluir-se, sem mais, pela total improcedência do recurso.»   

Porém, tomando em linha de conta que a impugnação da decisão de facto merecera parcial procedência, considerou aquele tribunal que se justificava a apreciação de uma questão que os Recorrentes suscitaram em sede de matéria de facto e que se reconduzia à aplicação da presunção juris tantum prevista no n.º 2 do artigo 1252.º, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1257.º, ambos do CC, empreendendo então essa análise para concluir que tal presunção não se aplicava ao caso dos autos, julgando assim improcedente a apelação, não obstante a parcial procedência da impugnação da matéria de facto.

Assim, ante a alteração introduzida na decisão de facto, mostrando-se tal questão decisiva para o insucesso da apelação, o que, de resto, não fora equacionado pela 1.ª instância, torna-se forçoso considerar que estamos perante fundamentação essencialmente diferente desta decisão e, nessa medida, impeditiva da dupla conforme nos termos e para os efeitos do n.º 3 do citado artigo 671.º do CPC.      

Tanto basta para considerar admissível a revista, sem necessidade de convocar o alegado fundamento específico de contradição jurisprudencial, sem prejuízo da ponderação, em termos gerais, da jurisprudência porventura dissonante.      

                          

III – Delimitação do objeto do recurso      


Como é sabido, a delimitação do objeto do recurso é traçada em função do teor das conclusões do recorrente, pelo que, dentro de tais parâmetros, as questões a resolver são as seguintes:

i) – A arguida nulidade do acórdão recorrido com fundamento em violação do disposto nos artigos 3.º, n.º 3, e 195.º, n.º 1, do CPC, bem como dos artigos 13.º, 18.º, n.º 1, e 20.º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa, por não ter sido dada oportunidade aos R.R./ apelantes para se pronunciarem previamente sobre a considerada falta de animus possessório;

ii) - A invocada nulidade do mesmo acórdão, quanto à matéria dada por provada sob o ponto 3.2.1.13, ao abrigo dos artigos 615.º, n.º 1, alínea c), e 666.º do CPC;

iii) – Por fim, a questão de mérito consistente no invocado erro de interpretação e não aplicação ao caso do disposto no n.º 2 do artigo 1252.º do CC.   

Importa, pois, salientar que, estando o âmbito da revista confinado, como está, à questão de fundo sobre a aplicação ao caso da presunção prevista no n.º 2 do artigo 1252.º do CC e, por consequência, à pretensão do reconhecimento dos alegados direitos dos R.R., por via da usucapião, sobre o prédio em referência, em sintonia com a escritura de justificação notarial impugnada pela A., a respetiva apreciação não alcançará os demais segmentos decisórios das instâncias que não interfiram com essa questão.



IV – Fundamentação   


1. Factualidade dada como provada pelas Instâncias


Vem dada como provada pelas instâncias a seguinte factualidade:

1.1. O prédio rústico, de terreno a pinhal, mato e cultura, com a área de vinte mil metros quadrados, a confrontar do norte com herdeiros de RR, do sul com SS, do nascente com regato e do poente com TT, sito no lugar de Quinta da …, na freguesia de …, concelho de Vila Nova de Gaia, não está descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial do referido município, mas está inscrito na matriz, em nome de QQ - pontos 11.º e 12.º dos factos dados por provados na sentença da 1.ª instância e nos pontos 3.2.11 e 3.2.1.12 do acórdão recorrido, correspondentes aos artigos 12.º e 13.ª da base instrutória;

1.2. - Por escritura pública de habilitação de herdeiros e justificação lavrada em 10 de Setembro de 2010, no Cartório Notarial de Vila Nova de Gaia da Notária UU a aqui 2.ª R. CC, na qualidade de cabeça de casal da 1.ª R. herança aberta por óbito de BB, declarou além do mais (conforme ponto 1.º dos factos dados por provados na sentença e no ponto 3.2.1.1 do acórdão recorrido, correspondente ao art.º 1.º da base instrutória):  

«Que da referida herança faz parte um prédio rústico, de terreno a pinhal, mato e cultura, com a área de vinte mil metros quadrados, a confrontar do norte com herdeiros de RR, do sul com SS, do nascente com regato e do poente com TT, sito no lugar de Quinta da …, na freguesia de …, concelho de Vila Nova de Gaia, não descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial deste concelho, inscrito na matriz, em nome de QQ, de quem o adquiriram, sob o artigo 699, com o valor patrimonial de 188,17 €, ao qual atribuem igual valor»

1.3. E mais declarou (conforme ponto 2.º dos factos dados por provados na sentença e no ponto 3.2.1.2 do acórdão recorrido, correspondente ao art.º 2.º da base instrutória):   

«Que, assim, sendo, ela e os demais herdeiros, donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, sem determinação de parte ou direito, pretende registar o registo de aquisição a favor da referida herança, mas que não detém qualquer título que legitime o seu domínio sobre o prédio, pois que o mesmo foi adquirido por ela, primeira outorgante, e pelo autor da herança por volta do ano de mil novecentos e setenta, em dia e mês que não conseguem precisar, por doação verbal feita por QQ, solteira, maior e residente que foi em …, Vila Nova de Gaia»

1.4. Declarou ainda (conforme pontos 3.º e 4.º dos factos dados por provados na sentença e nos pontos 3.2.1.3 e 3.2.1.4 do acórdão recorrido, correspondentes aos artigos 3.º, 4.º e 5.º da base instrutória):  

«Que, desde essa data, e sem qualquer interrupção, têm usado e fruído o referido prédio, dele retirando todas as utilidades proporcionadas, nomeadamente, demarcando-o, limpando-o, colhendo os seus frutos e pagando os respectivos impostos. Tudo isto à vista de todos, sem oposição de quem quer que seja e na convicção que não lesavam direitos de outrem. Que esta posse exercida desde há mais de vinte anos»

1.5. Por documento denominado “Partilha e Reparcelamento” formalizado em 26 de Janeiro de 2011, no Cartório Notarial do Notário ..., em Santa Maria da Feira, os RR ali outorgantes declararam (conforme ponto 5.º dos factos dados por provados na sentença e no ponto 3.2.1.5 do acórdão recorrido, correspondente ao art.º 6.º da base instrutória):  

São os únicos interessados na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de BB, da qual faz parte, o prédio rústico a seguir identificado: Terreno de cultura pinhal e mato, atravessado por uma rua, com a área de dezassete mil cento e cinquenta e três metros quadrados, sito no lugar da Quinta da …, freguesia de …, do concelho de Vila Nova de Gaia, a confrontar do norte com VV e outros, do Nascente com Regato, do Sul XX, e do Poente com ZZ e TT, inscrito ma matriz predial rústica sob o artigo 699.º, com o valor patrimonial de 188,17, descrito na competente conservatória do registo predial sob o número três mil e trinta e quatro, da Freguesia de …, inscrito a favor dos herdeiros em comum e sem determinação de parte ao direito, conforme apresentação três mil cento e oitenta e dois, de vinte e dois de Novembro de dois mil e dez, a que atribuem o valor de setecentos euros.»

1.5. Declararam ainda (conforme ponto 6.º dos factos dados por provados na sentença e no ponto 3.2.1.6 do acórdão recorrido, correspondente ao art.º 7.º da base instrutória):  

«Que nos termos do número 3, do artigo 4.º, do Decreto-Lei 555/99 de 16 de Dezembro, com a alteração introduzida pela Lei 60/2007, de 4 de Setembro procedem ao reparcelamento deste identificado prédio, em sete parcelas que a seguir se descrevem não destinadas imediatamente a urbanização ou edificação:

a) - Parcela de terreno com a área de mil e noventa e oito metros quadrados. A confinar do norte com VV e outros, do Sul com a parcela B, do nascente com rua e do poente com TT, - a que atribuem o valor de cem euros;

b) - Parcela de terreno com a área de mil e quarenta a oito metros quadrados, a confinar do norte com parcela A, do Sul com a parcela C, do nascente com rua e do poente com TT - a que atribuem o valor de cem euros;

c) - Parcela de terreno com a área de mil cento e oitenta e cinco metros quadrados a confinar do norte com a parcela B, do Sul com XX, do nascente com a rua do poente com ZZ: - a que atribuem o valor de cem euros;

d) - Parcela de terreno com a área de mil cento e oitenta e cinco metros quadrados, a confinar do norte VV e outros, do Sul com parcela E, do nascente com regato e do poente com rua:- a que atribuem o valor de cem euros;

e) - Parcela de terreno com a área de três mil seiscentos e dezoito metros quadrados a confinar do norte com a parcela D, do sul com a parcela F, do nascente com regato e do poente com a rua, - a que atribuem o valor de cem euros;

f) - Parcela de terreno com a área de dois mil oitocentos e sessenta e metros quadrados, a confinar do norte com a parcela E, do sul com a parcela G, do nascente com regato e do poente com a rua, - a que atribuem o valor de cem euros;

g) - Parcela de terreno com a área de dois mil oitocentos e sessenta e um metros quadrados, a confinar do norte com a parcela F, do Sul com XX, do nascente com regato e do poente com a rua,- a que atribuem o valor de cem euros.»

1.6. Mais declararam (conforme pontos 7.º e 8.º dos factos dados por provados na sentença e nos pontos 3.2.1.7 e 3.2.1.8 do acórdão recorrido, correspondentes aos art.º 8.º e 9.º da base instrutória):  

«A viúva do Autor da herança, CC, fica paga com o bem identificado na verba G, no valor de cem euros e o usufruto vitalício dos bens identificados nas verbas A, B, C, D, E e F, no valor de cento e cinquenta euros (atenta a sua idade de setenta e quatro anos) o que perfaz o valor total de duzentos e cinquenta euros, pelo que, para integral pagamento do seu quinhão e meação, recebeu de tornas a quantia de cento e oitenta e sete euros e cinquenta cêntimos.

A filha DD, fica paga com a nua propriedade do bem identificado na verba B, no valor de setenta e cinco euros, que excede o que lhe competia em trinta e um euros e vinte e cinco cêntimos que repôs aos interessados credores das mesmas.»

1.7. Em consequência o prédio propriedade da A. e referido mostra-se reparcelado em oito parcelas as quais foram levadas ao registo predial através das descrições (conforme ponto 9.º dos factos dados por provados na sentença e no ponto 3.2.1.9 do acórdão recorrido, correspondente ao art.º 10.º da base instrutória):  

a) - Descrição n.º 3034/20101122 da 1.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, correspondente ao prédio inscrito na matriz rústica da Freguesia de … sob o n.º …89-P e inscrita na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira a favor da Ré CC, conforme doc. n.º 11 a fls. 73-79;

b) - Descrição n.º …/20110131 da 1.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, correspondente ao prédio inscrito na matriz rústica da Freguesia de … sob o n.º …83-P e inscrita na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira a favor dos RR MM e mulher NN (conforme doc. n.º 12, a fls. 80-82;

c) - Descrição n.º …/20110131 da 1.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, correspondente ao prédio inscrito na matriz rústica da Freguesia de … sob o n.º …84-P e inscrita na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira a favor dos RR DD e marido EE (Conf. doc. n.º 13 a fls. 83-84);

d) - Descrição n.º …/20110131 da 1.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, correspondente ao prédio inscrito na matriz rústica da Freguesia de … sob o n.º …85-P e inscrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da feira a favor dos RR FF e mulher GG (Cfr. doc. n.º 14, a fls. 85-86);

e) - Descrição n.º …/20110131 da 1.ª Conservatória do registo Predial de Vila Nova de Gaia, correspondente ao prédio inscrito na matriz rústica da Freguesia de … sob o n.º …86-P e inscrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira a favor do Réu JJ (Cfr. doc. n.º 15, a fls. 87-88);

f) - Descrição n.º …/20110131 da 1.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, correspondente ao prédio inscrito na matriz rústica da Freguesia de … sob o n.º …87-P e inscrito na 1.ª Conservatória do registo Predial de Santa Maria da Feira a favor dos RR KK e mulher LL. (Cfr. doc. n.º 16, a fls. 89-90);

g) - Descrição n.º …/20110131 da 1.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, correspondente ao prédio inscrito na matriz rústica da Freguesia de … sob o n.º …88-P e inscrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da feira a favor dos RR II e mulher HH (Cfr. doc. n.º 17, a fls. 91-92).

1.8. Parcelas essas que somam a área total de 20.000 m2 e que correspondem à área total do prédio da A. referido em 1.1 - ponto 10.º dos factos dados por provados na sentença e no ponto 3.2.1.10 do acórdão recorrido, correspondente ao art.º 11.º da base instrutória;   

1.9. Desde altura não precisamente determinada do ano de 1970, BB, mulher e filhos usaram e fruíram o referido prédio, limpando-o e colhendo frutos dele, tudo isto à vista de todos, sem oposição de quem quer que seja e na convicção de que não lesavam direitos de outrem – facto dado por provado pela Relação sob o ponto 3.2.1.13 do acórdão recorrido, correspondente aos artigos 18.º a 20.º da base instrutória.


2. Factos dados como não provados:


Vêm dados como não provados pelo Tribunal da Relação os seguintes factos:

2.1. Por volta do ano de 1970, em dia e mês não precisamente determinados, QQ, solteira, maior e residente que foi em …, Vila Nova de Gaia, declarou verbalmente doar o prédio referido no ponto 1.1 a BB – ponto 3.2.2.1 do acórdão recorrido;

2.2. BB, mulher e filhos têm retirado do prédio todas as utilidades do mesmo, que o têm demarcado e pago os respetivos impostos – ponto 3.2.2.2 do acórdão recorrido.


3. Do mérito do recurso


3.1. Quanto à nulidade do acórdão recorrido por falta de audição prévia dos apelados relativamente à falta de animus possessório


Alegaram os Recorrentes que o acórdão recorrido, ao ter julgado improcedente a apelação com base em fundamento diverso do considerado pela 1.ª instância, em face da alteração da decisão de facto, como foi o da não aplicação ao caso da presunção prevista no n.º 2 do artigo 1252.º do CC, devia ter ouvido previamente aqueles sobre tal questão, incorrendo, desse modo, em nulidade, nos termos dos artigos 3.º, n.º 3, e 195.º, n.º 1, do CPC e em inconstitucionalidade por violação dos artigos 13.º, 18.º, n.º 1, e 20.º, n.º 4, da Lei Fundamental.

Desde logo, o vício de inconstitucionalidade não diz respeito às próprias decisões, mas sim à recusa de aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou à aplicação de norma tida por inconstitucional, nos termos previstos, respetivamente, nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição, pelo que não faz qualquer sentido afirmar que a decisão recorrida é inconstitucional, sem especificar a norma cuja aplicação tenha sido recusada ou que tenha sido aplicada com violação de preceitos constitucionais.

Relativamente à pretendida audição prévia dos Recorrentes, a mesma não se afigurava necessária, porquanto quer a alteração da decisão de facto quer a questão da aplicabilidade ao caso da presunção prevista no n.º 2 do artigo 1252.º do CC tinham já sido suscitadas em sede das alegações do recurso de apelação interposto pelos próprios Recorrentes, como bem apreciou o tribunal a quo no acórdão de fls. 635-638, de 16/12/2015.

Termos em que improcede à arguição aqui em foco.  

 

3.2. Quanto à invocada nulidade do acórdão recorrido com fundamento em omissão de factos a dar como provados


Vieram ainda os Recorrentes invocar a nulidade do acórdão recorrido, ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, alegando que o factualismo dado como provado sob o ponto 3.2.1.13 se encontra em desconformidade com a respetiva fundamentação, ao não incluir que o falecido BB, sua mulher e filhos habitaram a casa existente no prédio em disputa e que agricultavam e criavam animais na parte rústica do mesmo prédio.

Ora o citado normativo dispõe que:

   É nula a sentença quando:

  c) – Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.   

Tal disposição é aplicável ao acórdão da Relação por força do n.º 1 do artigo 666.º do CPC.

Trata-se, portanto, de um vício formal, fundada em erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) que implica uma contradição, traduzida em recíproca exclusão lógica, ou uma ininteligibilidade, uma e outra, insuperáveis entre a fundamentação e a decisão, em termos de nem sequer ser viável uma apreciação de mérito. 

Nessa linha, o não atendimento, no plano decisório, de factos tidos ou que devam ser tidos por provados não se reconduz àquela espécie de vício, mas, quando muito, a erro de julgamento (error in judicando). E mesmo quando constem dos autos provados factos relevantes porventura não incorporados na decisão de facto, tais factos deverão ainda assim ser considerados, oficiosamente, mesmo em sede de revista, nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, ex vi dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC.

Consequentemente, não se verifica aqui o invocado vício de nulidade do acórdão recorrido, sem prejuízo poder ser equacionada, em sede de mérito, a eventual ampliação da base de facto necessária para a decisão de direito nos termos do n.º 3 do artigo 682.º do CPC.

Termos em que improcedem, também nesta parte, as razões dos Recorrentes.

 

3.3. Quanto à questão de fundo


3.3.1. Enquadramento preliminar


Estamos no âmbito de uma ação declarativa cujo objeto compreende, no que respeita à autora, a cumulação real de duas pretensões:

a) – em primeira linha, uma pretensão de impugnação de escritura de justificação notarial, na qual a 2.ª R., como cabeça de casal, arrogou o direito de propriedade, por via de usucapião, do prédio rústico acima identificado, a favor da herança aberta por óbito de BB, e em cuja base os R.R. herdeiros procederam à respetiva partilha;

b) – em segundo lugar, uma pretensão de reconhecimento do direito de propriedade daquele prédio a favor da A. e condenação dos R.R. a restitui-lo àquela sob a cominação de uma sanção pecuniária compulsória.

Assim, a impugnação de escritura de justificação notarial traduz-se numa pretensão de simples apreciação negativa, nos termos do artigo 10.º, n.º 3, alínea a), do CPC, enquanto que a pretensão de reconhecimento do direito de propriedade sobre determinado bem e de consequente condenação na sua restituição consiste numa pretensão de condenação reivindicatória, nos termos da alínea b) do n.º 3 do mesmo artigo e do artigo 1311.º do CC.

Por sua vez, os R.R. contestaram a ação a sustentar os fundamentos dos direitos arrogados, deduzindo ainda pretensão reconvencional no sentido de lhes ser reconhecidos tais direitos com base em todo o factualismo para tanto alegado, o que se reconduz a uma pretensão de simples apreciação positiva, dita confessória.


Em primeira instância, foram julgadas totalmente procedentes as pretensões deduzidas pela A. e improcedente a reconvenção formulada pelos réus, decisão que foi confirmada pela Relação ainda que com alteração parcial da decisão de facto e fundamento jurídico essencialmente diferente, centrada na questão da aplicabilidade da presunção estabelecida no n.º 2 do artigo 1252.º do CC, no respeitante à pretensão de impugnação da justificação notarial.

O que está, pois, em causa no presente recurso é, como já foi referido, mormente a questão daquela aplicabilidade aos factos dados por provados, a partir do sentido e alcance a dar à sobredita disposição legal, o que constitui, obviamente, fundamento nos termos do n.º 1, alínea a) do artigo 674.º do CPC.

 

3.3.2. Apreciação


Antes de mais, importa ter presente que uma escritura de justificação notarial constitui um meio de suprimento, nomeadamente, para o estabelecimento do trato sucessivo no registo predial, quando o adquirente não disponha de documento bastante para prova do seu direito com vista a obter a primeira inscrição do mesmo, nos termos do artigo 116.º do Código do Registo Predial.   

Para tais efeitos, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 89.º do Código do Notariado (CN), a referida justificação consiste “na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais.”

E, segundo o n.º 2 do mesmo artigo:

   Quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião.

Tais declarações prestadas pelo justificante devem ser confirmadas por três declarantes, como exige o artigo 96.º do CN.

Por sua vez, o artigo 101.º do mesmo Código, sob a epígrafe Impugnação, no que aqui releva, estabelece que:

1 – Se algum interessado impugnar em juízo o facto jurídico deve requerer simultaneamente ao tribunal a imediata comunicação ao notário da pendência da ação.

2 – Só podem ser passadas certidões de escritura de justificação decorridos 30 dias sobre a data em que o extracto for publicado, se dentro deste prazo não for recebida comunicação da pendência da impugnação.

3 – O disposto no número anterior não prejudica a passagem de certidão para efeito de impugnação, menção que da mesma deve constar expressamente.

4 – Em caso de impugnação, as certidões só podem ser passadas depois de averbada a decisão definitiva da ação.

Assim, nas palavras de Borges Araújo[1], “na génese do sistema em que assenta a justificação notarial está o princípio do trato sucessivo”, sendo, portanto, um meio simplificado e expedito de se obter um novo título para responder à necessidade do registo predial obrigatório.

No entanto, não oferece sólidas garantias de segurança e de correspondência com a realidade que lhe serve de objeto, prestando-se até a utilizações fraudulentas, tanto mais que se baseia em declarações dos próprios interessados ainda que confirmadas por mais três declarantes, como se observa no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2008, de 04/12/2007, publicado no Diário da República n.º 63, Série I, de 31/03/ 2008.        

Por outro lado, como no mesmo aresto se salienta, “a justificação notarial não constitui acto translativo, pressupondo sempre, no caso de invocação de usucapião, uma sequência de actos a ela conducentes, que podem ser impugnados, antes ou depois de ser efectuado o registo, com base naquela escritura”. 

É assim que tal impugnação, por via judicial, se configura com uma ação de simples apreciação negativa, incluída no elenco do contencioso petitório, tendente a derrubar os factos e direito arrogados, a qual não prescreve pelo decurso do tempo, sem prejuízo dos direitos entretanto adquiridos por usucapião, nos termos do artigo 1313.º do CC.

Revestindo essa ação impugnatória tal natureza, incumbe ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga, como se prescreve no n.º 1 do artigo 343.º do CC, recaindo sobre o autor apenas o ónus de alegação e prova do ato arrogado na escritura impugnada.

Não provando o réu tais factos, a ação procederá tendo por efeito a ineficácia do ato de justificação notarial e a consequente impossibilidade do registo da aquisição visada ou o cancelamento do registo entretanto efetuado nessa base. Provando o réu tais factos, forma-se, entre as partes, caso julgado material sobre a existência direito arrogado e procede-se ao respetivo registo que, em relação a terceiros, opera como presunção iuris tantum de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define, conforme o estatuído no artigo 7.º do Código do Registo Predial.  

Ainda no que respeita ao ónus de prova, no âmbito da ação de impugnação de escritura de justificação notarial, antes de 2008, a jurisprudência dividia-se quanto a saber se, não sendo a ação de impugnação intentada no prazo de 30 dias previsto no n.º 2 do artigo 101.º do CN, o justificante beneficiaria ou não da presunção do registo entretanto efectuado.

Porém, essa questão ficou resolvida pelo AUJ do STJ n.º 1/2008, de 04/12/2007, publicado no Diário da República n.º 63, Série I, de 31/03/ 2008, no sentido de que:

Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º 1, do Código de Registo Predial e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhe a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do Código de Registo Predial.

Em face desta doutrina, que se mantém atual, cai por terra o argumento dos Recorrentes no sentido de que

A passividade da A., arrogada proprietária do prédio, e de sua mãe, durante pelo menos quarenta e um anos, em que pura e simplesmente nunca praticaram atos quaisquer que fossem no prédio, conduziriam inexoravelmente à perda do “corpus” e do “animus” de qualquer posse que pudessem ter tido, se é que tiveram, do referido prédio, e logo da posse do mesmo, por abandono.

        

Com efeito, estando aqui em causa a aquisição, por parte da herança aberta por óbito de BB, do direito de propriedade sobre prédio rústico em referência com fundamento em usucapião, nos termos em que fora arrogado na escritura de justificação notarial impugnada, é sobre os R.R. que recai o ónus de provar os factos constitutivos desse direito ali afirmados.    

Como é sabido, a usucapião é uma forma de aquisição originária do direito de propriedade que se estriba na posse do direito de propriedade sobre determinado bem pelo decurso de certo tempo, nos termos dos artigos 1287.º e seguintes e 1317.º, alínea c), do CC.

Por sua vez, a posse vem definida no artigo 1251.º do CC do seguinte modo:

Posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.

Segundo a generalidade da doutrina e da jurisprudência, a posse estrutura-se na base de dois elementos[2]:

a) – o corpus, consistente numa materialidade empírica consubstanciada no exercício efetivo de poderes materiais sobre a coisa ou na possibilidade física desse exercício;  

b) – o animus, traduzido na intenção de exercer sobre ela, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto.

Assim, a doutrina e a jurisprudência, salvo raras exceções, têm vindo a adotar uma conceção subjetiva de posse, na tradição de Savigny, segundo a qual o fenómeno possessório não prescinde do elemento psicológico, designado por animus, consistente na intencionalidade de quem atua no exercício dos poderes de facto sobre a coisa[3].

Sucede que, por vezes, o corpus possessório assume tal nitidez significante – como na generalidade da prática reiterada prevista na aliena a) do artigo 1263.º do CC – que dele se poderá presumir com relativa facilidade o animus correspondente ao conteúdo de determinado direito real; noutros, porém, essa materialidade apresentar-se-á tão equívoca de sentido ou tão esbatida que chega a confundir-se com situações de mera detenção, casos em que o animus assumirá papel de relevo na caracterização da posse.

Foi, pois, ante tal dificuldade que o n.º 2 do artigo 1252.º do CC passou a estatuir que:

Em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1257.º

Sobre a interpretação e aplicação deste este normativo, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) do STJ, de 14/05/1996, publicado no Diário da República, II Série, n.º 144, de 24/06/1996, firmou doutrina no sentido de que:

Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa.

Por seu lado, o n.º 2 do artigo 1257.º prescreve o seguinte:

Presume-se que a posse continua em nome de quem a começou.

Encontramo-nos assim perante duas presunções legais iuris tantum confinantes, importando determinar o âmbito de aplicação de uma e de outra.

A esse propósito, Pires de Lima e Antunes Varela[4] referem que:

   «O n.º 2 estabelece uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus), salvo se não foi o iniciador da posse (referência ao n.º 2 do art. 1257.º).»  

Significará isto que, para funcionar a presunção estabelecida no n.º 2 do artigo 1252.º do CC importa que o pretenso possuidor se apresente como iniciador da posse, desligado portanto de qualquer possuidor antecedente, como nos casos de aquisição originária da posse por prática reiterada ou por inversão do título de posse, previstos, respetivamente, nas alíneas a) e c) do artigo 1263.º do CC. Já nos casos de aquisição derivada da posse, como sucede com a tradição material ou simbólica, efetuada pelo anterior possuidor, prevista na alínea b) do mesmo artigo, prevalecerá a presunção ilídivel estabelecida no n.º 2 do art.º 1257.º, segundo a qual se presume que a posse continua no anterior possuidor, competindo assim ao adquirente provar não só a mera materialidade da traditio mas também a intencionalidade subjacente, mormente o negócio em se fundou aquela traditio.   

Tem-se ainda discutido os termos em que opera o ónus de prova em sede da presunção estabelecida no n.º 2 do artigo 1252.º do CC, havendo orientações jurisprudenciais dissonantes, como bem se dá conta no acórdão no acórdão recorrido, ao mencionar que:

«Entendem alguns que só opera em caso de dúvida e que a prova do animus onera aquele que invoca a situação possessória[5], enquanto outros sustentam que essa presunção legal opera sempre que esteja demonstrado o corpus da posse, não recaindo nesse caso o ónus da prova do animus sobre aquele que invoca a situação possessória e beneficiando este daquela presunção legal, ainda que tenha sido elaborado quesito relativo a tal animus e o mesmo tenha obtido res-posta negativa.

Finalmente, outros entendem ainda que não recaindo o ónus da prova do animus sobre aquele que invoca a situação possessória sempre que esteja demonstrado o corpus da posse, ainda assim a presunção prevista no nº 2, do artigo 1252º do Código Civil não operará sempre que, ainda que indevidamente, tenha sido elaborado quesito a inquirir da verificação positiva do animus da posse e tal quesito tenha obtido resposta negativa.»

Ora, parece não haver dúvida que a sobredita presunção foi estabelecida em favor do pretenso possuidor, pelo que, não logrando ele provar o animus, recairá então sobre a parte contrária a prova da falta deste, sob pena de funcionar a respetiva presunção, a partir da factualidade demonstrada quanto ao corpus, na linha do AUJ do STJ, de 14/05/1996.

De resto, estes critérios probatórios mostram-se, no essencial, em sintonia com os acórdãos-fundamento aqui convocados.

 

Posto isto, vejamos agora o caso vertente.

O direito de propriedade em causa foi afirmado na escritura de justificação notarial impugnada nos seguintes termos:

«Que da referida herança faz parte um prédio rústico, de terreno a pinhal, mato e cultura, com a área de vinte mil metros quadrados, a confrontar do norte com herdeiros de RR, do sul com SS, do nascente com regato e do poente com TT, sito no lugar de Quinta da …, na freguesia de …, concelho de Vila Nova de Gaia, não descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial deste concelho, inscrito na matriz, em nome de QQ, de quem o adquiriram, sob o artigo 699, com o valor patrimonial de 188,17 €, ao qual atribuem igual valor.

Que, assim, sendo, ela e os demais herdeiros, donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, sem determinação de parte ou direito, pretende registar o registo de aquisição a favor da referida herança, mas que não detém qualquer título que legitime o seu domínio sobre o prédio, pois que o mesmo foi adquirido por ela, primeira outorgante, e pelo autor da herança por volta do ano de mil novecentos e setenta, em dia e mês que não conseguem precisar, por doação verbal feita por QQ, solteira, maior e residente que foi em …, Vila Nova de Gaia.

Que, desde essa data, e sem qualquer interrupção, têm usado e fruído o referido prédio, dele retirando todas as utilidades proporcionadas, nomeadamente, demarcando-o, limpando-o, colhendo os seus frutos e pagando os respectivos impostos. Tudo isto à vista de todos, sem oposição de quem quer que seja e na convicção que não lesavam direitos de outrem. Que esta posse exercida desde há mais de vinte anos»

Desse modo, a justificante alicerçou o direito arrogado na aquisição derivada da posse, ainda que por doação inválida do anterior possuidor, na sequência do que teria ocorrido uma prática reiterada, com publicidade, de uso e fruição do referido prédio, dele retirando todas as utilidades, durante vinte anos, nomeadamente demarcando-o, limpando-o, colhendo os seus frutos e pagando os respetivos impostos, sem oposição de ninguém e na convicção de que não lesava direitos de outrem.

Daí se colhe uma afirmação do animus possessório referenciado ao ato de aquisição derivada da posse, como é a dita doação verbal, a qual, mesmo inválida, a qual potencia o sentido de transferir para o adquirente uma posse exclusiva, em nome próprio.       

Sucede que os R.R. não lograram provar a invocada doação, provando apenas que:

«Desde altura não precisamente determinada do ano de 1970, BB, mulher e filhos usaram e fruíram o referido prédio, limpando-o e colhendo frutos dele, tudo isto à vista de todos, sem oposição de quem quer que seja e na convicção de que não lesavam direitos de outrem»

Em contraponto não se provou que

«BB, mulher e filhos têm retirado do prédio todas as utilidades do mesmo, que o têm demarcado e pago os respetivos impostos»


Assim sendo, embora não tendo ficado provada a aquisição derivada da posse, tal como fora alegado pelos Recorrentes, também não ficou demonstrado, nem tão pouco fora alegado, que a justificante tivesse praticado aqueles atos como iniciador da posse, em nome próprio, desligado do anterior possuidor.

Acresce que a factualidade dada como provada nem sequer reflete, objetivamente, atos típicos de um proprietário. Nem também os factos que os Recorrentes pretendem ampliar, no sentido de que o falecido BB, sua mulher e filhos têm habitado a casa existente no prédio em disputa, bem como agricultado e criado animais na parte rústica do mesmo, viria trazer algo de relevante.

Nestas circunstâncias, o que se verifica é, desde logo, uma clara insuficiência do corpus possessório em termos de caracterizar o justificante como iniciador de uma posse desligada do anterior possuidor, para que tenha aplicação a presunção estabelecida no n.º 2 do artigo 1252.º do CC.

Esta solução não colide com os critérios adotados nos acórdãos-fundamento, em relação aos quais a especificidade do presente caso se mostra de recorte factual bem diferente. Nomeadamente, no caso do acórdão proferido no processo n.º 17933/12.4T2SNT.L1.S1, que o aqui relator subscreveu como adjunto, o corpus possessório ali provado é de alcance substancialmente mais significativo, conforme o largamente ali explanado.

Termos em que improcede a revista.


Havendo que confirmar o acórdão recorrido e, por consequência, a sentença da 1.ª instância, verifica-se, no entanto, que nos segmentos decisórios em foco, foram declarados inválidos os atos notariais em causa e nulo ou ineficaz o facto impugnado na escritura de justificação.

Todavia, tal como, em situação similar, se refere no AUJ do STJ n.º 1/2008, de 04/12/2007, não estamos aqui perante qualquer das causas típicas de nulidade dos atos notariais previstas nos artigos 70.º e 71.º do CN, mas tão só ante a ineficácia daqueles atos, o que constitui erro de mera qualificação jurídica do efeito pretendido, que cumpre corrigir oficiosamente, ao abrigo do n.º 3 do artigo 5.º do CPC, eliminando a referência a invalidade ou nulidade, substituindo-a por ineficácia.


V - Decisão


Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido e, por consequência, a decisão da 1.ª instância, na parte impugnada, que se mantém nos seguintes termos:   

a) - Declaro ineficazes os atos notariais referidos nos artigos 17.º a 23.º da petição inicial e, consequentemente, se ordena o cancelamento de todos os registos referidos no artigo 24.º da petição inicial;

b) – Declaro, por isso, ineficazes os registos referidos no artigo 24.º da petição inicial e consequentemente se ordena o cancelamento desses mesmos registos;

c) - Considero impugnado e, consequentemente, ineficaz para todos os efeitos legais o facto justificado na escritura de justificação de 10 de setembro de 2010 por a 1.ª Ré, a herança aberta por óbito de BB, não ter adquirido o prédio constante do artigo 1.º da petição inicial por usucapião, considerando-se igualmente ineficaz a escritura de partilha e reparcelamento de 26 de janeiro de 2011 e se ordene, por via disso, o cancelamento de quaisquer registos operados com base nessa escritura de justificação aqui impugnada, nomeadamente, todos os registos referidos no artigo 24.º da petição inicial;

As custas ficam a cargo dos recorrentes.

Lisboa, 12 de maio de 2016

Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Maria da Graça Trigo

          

Carlos Alberto Andrade Bettencourt de Faria


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[1] In Prática Notarial, 4.ª Edição, p. 399.
[2] Vide, por todos Orlando de Carvalho, Introdução à Posse, in RLJ Ano 122.º, pp 104-106, e Henrique Mesquita, Direitos Reais, Lições 1966-1967, Coimbra, p.p. 66-67.
[3] A este propósito, para um síntese das posições da doutrina portuguesa, vide Santos Justo. Direitos Reais, Coimbra Editora, 2007. pp. 150-156.
[4] In Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1987, p. 8.
[5] Neste sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Maio de 1993, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano I, tomo II, 1993, páginas 95 e 96.