Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1050/06.9TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: SOCIEDADE OFFSHORE
SOCIEDADE FICTÍCIA
CONTA BANCÁRIA
TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA
REVOGAÇÃO
RESPONSABILIDADE BANCÁRIA
BOA FÉ
Data do Acordão: 04/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL / DISPOSIÇÕES E PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / ABUSO DO DIREITO – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / CULPA.
DIREITO MOBILIÁRIO – INTERMEDIAÇÃO / EXERCÍCIO / CONTRATOS DE INTERMEDIAÇÃO / GESTÃO DE CARTEIRA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 7.º, N.º 1.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º E 487.º, N.º 2.
CÓDIGO DOS VALORES MOBILIÁRIOS (CVM): - ARTIGOS 304.º, N.OS 1 E 2, 314.º, N.OS 1 E 2 E 332.º.
Sumário :
I. Uma sociedade, criada especialmente para colocação de créditos, num território tido como “paraíso fiscal”, não relevando juridicamente para o nosso ordenamento, designadamente por falta de objeto, não pode ser tida como titular de direitos.

II. Podendo alguém movimentar livremente a conta bancária, a ordem de transferência por si dada afigura-se legítima.

III. Sendo a ordem de transferência legítima, não podia a instituição financeira deixar de a cumprir.

IV. Sendo a ordem de transferência prioritária, a ordem contrária, de revogação, não podia paralisar o cumprimento daquela.

V. A ordem de transferência não consubstancia a violação ostensiva e manifesta dos deveres de boa fé quanto aos poderes de movimentação da conta bancária.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I – RELATÓRIO


AA instaurou, em 27 de abril de 2006, na então 7.ª Vara Cível da Comarca do … (Juízos Centrais Cíveis do Porto, Comarca do Porto), contra Banco BB, S.A., e CC, ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que os Réus fossem solidariamente condenados a:

1.º - ver operada a resolução do contrato de intermediação financeiro concluído com o Réu:

2.º - repor no ativo patrimonial da sociedade DD ou, em alternativa, na Caixa EE, mediante consignação em depósito, a importância de € 2 693 496,71;

3.º - pagar à DD ou a consignar em depósito, nos termos do n.º anterior, o montante dos juros indemnizatórios, contados, à taxa legal, desde 20 de novembro de 2003 até integral liquidação consequente à resolução contratual;

4.º - ressarcir o Autor dos prejuízos que vier a sofrer pela perda do recurso atempado à aplicação do regime de regularização tributária criado pelo art. 5.º da Lei n.º 39-A/2005, de 29 de julho, a liquidar em execução de sentença.

Para tanto, alegou, em síntese, que, sendo cliente do R., contratou com este a sua intermediação financeira, tendo sido constituída uma sociedade fiduciária num “paraíso fiscal”; para isso, subscreveu, juntamente com a sua mulher, a ora R., um formulário apresentado pela FF - Trust Management and Services, S.A.., tendo a sociedade vindo a ser constituída em 24 de julho de 1998, nas Ilhas Virgens Britânicas, com a denominação DD Management Inc. e o capital social constituído por ações ao portador repartido pelo A. e a R., na proporção de 51 % e 49 %, respetivamente; foi nomeado como único diretor da sociedade GG Limited, sediada nas Ilhas Virgens Britânicas, a qual nomeou o A. e a R. como mandatários e representantes da DD, conferindo-lhes poderes especiais para abrir ou movimentar e encerrar contas bancárias no BANCO HH Overseas Bank LTD ou em qualquer outra sucursal ou subsidiária do BANCO HH, em Portugal ou qualquer outro país; enquanto constituinte do trust, o A. passou a transferir parte das suas economias para a conta de depósito da DD; na manhã de 20 de novembro de 2003, a R. deu instruções para efetuar a transferência dos ativos da DD para a II Investements, subsidiária do R., o que foi feito contra a sua vontade, apropriando-se desta forma a R. daqueles fundos, com a conivência do gestor do Banco, comissário do R.

Contestou a R., por exceção e impugnação, concluindo pela improcedência da ação ação.

Contestou também o R., por exceção e impugnação, concluindo pela improcedência da ação.

Replicou o A., respondendo, designadamente, à matéria de exceção.

Foi proferido despacho saneador, tendo os RR. sido absolvidos da instância, por ilegitimidade ativa, decisão que foi revogada por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19 de novembro de 2009.

Prosseguindo o processo e na sequência deste acórdão, foi apresentada nova petição inicial, que cada um dos RR. contestou, e foi organizada a base instrutória, com reclamação do R. e do A., sendo esta atendida parcialmente.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 9 de dezembro de 2016, a sentença, que, julgando a ação improcedente, absolveu os Réus dos pedidos.

Inconformado, o A. apelou para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão de 28 de novembro de 2017, julgando o recurso improcedente, confirmou a sentença.


Ainda inconformado, o A. recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou essencialmente as conclusões:

a) Há incumprimento culposo das obrigações do Recorrido no contrato de intermediação financeira celebrado com o Recorrente, justificativo da sua resolução e danos emergentes para a DD e o Recorrente.

b) É inaplicável o regime da solidariedade às relações entre Recorrente e Recorrida na movimentação de conta de que era única titular a DD, sendo a atuação dos seus representantes configurável apenas como pluralidade de mandatos, nos termos do art. 1160.º do Código Civil.

c) É ilícita a recusa em cumprir a ordem de suspensão da transferência por parte do trabalhador do Recorrido, gestor da conta.

d) É ilícita a ordem de transferência da Recorrida, por configurar negócio consigo próprio e abuso dos poderes de representação, para além de verdadeira liberalidade, contrária ao princípio legal da especialidade do fim das sociedades comerciais e, por isso, nula.

e) É ilícita a atuação do funcionário do Recorrido, que incumpriu as obrigações contratuais, à luz dos arts. 500.º, 800.º e 795.º, todos do Código Civil.

f) Subsidiariamente, a Recorrida atuou com abuso do direito, por exercício contra os princípios da boa fé.

g) O acórdão recorrido fez má interpretação da matéria de facto, com a consequente indevida subsunção e disposições legais não aplicáveis, fazendo errada aplicação dos artigos 160.º, 241.º, n.º 1, 268.º, 269.º, 294.º, 334.º, 500.º, 512.º, 513.º, 798.º, 799.º, 800.º e 1160.º, todos do Código Civil, 290.º, 304.º, 332.º a 336.º, do Código de Valores Mobiliários.


Com a revista, o Recorrente pretende a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por decisão, que julgue a ação totalmente procedente e, em consequência, condene os Réus nos pedidos formulados.


Contra-alegou cada um dos RR., nomeadamente no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


Neste recurso, está essencialmente em discussão o incumprimento do contrato da intermediação financeira e a emergente responsabilidade civil.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:


1. O A. e a R. contraíram casamento, em 17 de fevereiro de 1996, sob o regime de separação de bens, o qual foi dissolvido, por sentença do Tribunal Judicial de … de 30 de março de 2006, transitada em julgado.

2. A R. instaurou, em 1 de setembro de 2004, ação ordinária, no Tribunal Judicial de …, onde pediu que fosse judicialmente conhecida e declarada a falsidade da convenção antenupcial celebrada através da escritura pública de 10 de maio de 1995, tendo esse pedido sido julgado improcedente por sentença transitada em julgado (alterado pela Relação).

3. O A. dedica-se profissionalmente ao negócio de vinhos e outras bebidas, possuindo uma organização empresarial, com stocks selecionados e um serviço vasto de distribuição.

4. No exercício do seu comércio, realizou proveitos e atingiu disponibilidades monetárias que passaram a ser alvo do marketing bancário de captação de clientes, especialmente em vista da subscrição de planos de investimento em valores mobiliários.

5. O A. era um antigo cliente do BANCO HH, S.A., quando este Banco foi comprado pelo Banco BB, S.A., em 1995.

6. Ainda antes dessa incorporação, em 1998, o A., sendo titular duma conta de depósito na Agência de … do BANCO HH, foi abordado pelos serviços do Banco BB, através do colaborador e gestor de conta Dr. JJ.

7. Foi sugerida a criação de uma sociedade num paraíso fiscal.

8. Com vista à contratualização da projetada relação negocial de intermediação financeira, o A. subscreveu, juntamente com a sua mulher, a R., no primeiro semestre de 1998, um formulário apresentado pela FF - Trust Management and Services, S.A., com sede no …, “empresa subsidiária” do Banco BB, que nela tem participação e domínio total (100 %).

9. Foi criada uma sociedade nos termos referidos em 7.

10. Tal sociedade veio a ser constituída, em 24 de julho de 1998, nas Ilhas Virgens Britânicas, mediante a intervenção de sócios fiduciários, designados pela FF e completamente estranhos ao A., que com eles nunca teve qualquer contacto.

11. À sociedade-trust foi dada a denominação DD Management Inc, escolhida de um catálogo de nomes, atribuído o capital social standard de US$ 50,000 e determinando um objeto-tipo, assim descrito: “O principal objeto da sociedade é a importação e exportação e comercialização de alimentos, materiais e bens de consumo, aquisição, administração e realização de investimentos em bens imobiliários, aquisição e administração de títulos e participações em sociedades e corporações em qualquer parte do mundo; investimentos e administração de ativos sociais, bem como serviços e negócios relacionados com estas atividades; consultores e conselheiros para projetos e investimentos”.

12. E o seu diretor é GG Limited, sediada nas Ilhas Virgens Britânicas.

13. E é este diretor único (sole director) quem, em 11 de setembro de 1998, decide nomear o A. e a R. mandatários e representantes da DD, conferindo-lhes poderes especiais para “abrir e/ou movimentar e encerrar contas bancárias no BANCO HH Overseas Bank Ltd. ou em qualquer outra sucursal ou subsidiária do Banco HH, S.A., em Portugal ou em qualquer outro país”.

14. A atribuição destes poderes estava prevista no questionário preliminar do negócio de intermediação.

15. O A. passou grande parte das suas economias para a conta da DD.

16. Uma vez criada a DD, foram emitidas pelo diretor dois certificados de ações ao portador, um de 25 500 e outro de 24 500 USD 1.00 cada ação.

17. A repartição do capital acionista foi feita na proporção de 51 % para o A. e 49 % para a R.

18. Em fins de outubro de 2003, o A. recebeu uma visita extraordinária do gestor JJ, com o objetivo de lhe anunciar que, tendo sido deslocado para novas funções dentro do Banco BB, a gestão da conta passava a ser exercida pelo Dr. KK, que no ato o acompanhava e do qual fez ali a apresentação.

19. Na manhã do dia 20 de novembro de 2003, o A. recebeu, em ..., um telefonema do novo gestor, a dar-lhe conhecimento de que “a sua mulher acaba de sair do banco acompanhada de uma advogada” e que ela lhe tinha dado instruções para efetuar uma transferência dos ativos da DD para outra conta.

20. De imediato, debaixo do choque dessa notícia, o A., na companhia do seu conselheiro jurídico, Dr. LL, dirigiu-se à agência do Banco BB, na Rua …, no Porto, onde estavam domiciliados os serviços de apoio aos chamados “clientes de C…”.

21. Aí, o A. fez o protesto de que revogava essa ordem de transferência e, em consequência, reclamou ao gestor o regresso dos ativos à conta da DD.

22. Como primeira reação, o gestor negou-se a atender as pretensões do A., mas, após aturada conversa com o Dr. LL, foi comunicado ao A. que, se o Dr. JJ o ordenasse, o gestor procederia à anulação da operação.

23. O A. teve que aguardar que o Dr. JJ comparecesse e o pudesse atender, pois exercia as novas funções de direção noutro edifício.

24. Uma vez ciente da situação, declarou que, além de ter deixado de ser da sua responsabilidade a carteira de investimento do cliente, nada já era possível fazer, pois na zona do serviço de C… o informaram de que a execução da transferência estava em curso e não podia voltar atrás.

25. O gestor executou a ordem de transferência sem ter colhido nenhuma informação sobre os objetivos prosseguidos pela R.

26. O valor da transferência foi de € 2 693 496,71 e a R. movimentou a conta quando estava acompanhada de advogado.

27. A ordem de transferência foi documentada num impresso fornecido na referida sucursal … do Banco BB e vertida num texto manuscrito que a ordenadora se limitou a assinar, sendo a redação da autoria e do punho do gestor.

28. A ordem de transferência, que tem a data de 20 de novembro de 2003, é dada sobre a conta da carteira de títulos n.º 45…4 e contém instruções para que seja transferida para a conta n.º 45…7 a totalidade dos títulos em carteira, com exceção de 1576 ações preferenciais Banco BB (emissão 99…5), no valor nominal de € 157 600,00.

29. A conta destinatária da transferência dos títulos foi identificada apenas com o número, sem indicação do respetivo titular nem do nome e domicílio do banco onde se achava aberta.

30. O A. veio a saber, por carta de 10 de maio de 2004, do Banco BB Bank & Trust Company (C…) Limited, que o titular da conta nº 45…7 é II Investments, aberta nesse mesmo Banco, empresa subsidiária do Banco BB, onde está domiciliada a conta da DD.

31. A sociedade com tal denominação é uma entidade estranha ao universo negocial da DD, pelo que a transferência patrimonial executada não tem subjacente nenhuma transação.

32. As quantias transferidas para a conta da DD pertenciam ao A. e à R.

33. Durante a vida em comum, A. e R. contribuíram ambos para a obtenção dos proveitos económicos do casal.

34. A R. também tomava decisões sobre a carteira existente no Banco BB Bank and Trust Company das Ilhas Virgens.

35. A R. trabalhava e estava sempre presente na firma onde foram visitados pelo gerente da conta do Private.

36. Em dia não determinado de novembro de 2003, mas próximo do dia 5 daquele mês, a R., acompanhada por um dos seus filhos e por uma advogada, contactou o funcionário do R., com o objetivo de constituir uma nova sociedade não residente.

37. Constituía a razão próxima daquele propósito o facto de “poder estar em causa um eventual processo de divórcio com o seu marido”.

38. No dia 7 de novembro de 2003, a R. e os seus filhos assinaram, a pedido do funcionário do R., KK, que rubricou o documento, uma autorização, em branco, em que concedem “por débito da minha conta número --------- sediada na sucursal/filial-----desse banco e titulada por ------- queiram proceder ao pagamento/débito de todas as faturas dirigidas a esta mesma sociedade emitidas ou apresentadas pela FF – Trust and Management Services, S.A., relativas aos serviços prestados por esta entidade”.

39. Nesse mesmo dia, MM, funcionária da FF Porto, enviou uma lista ao gestor bancário e funcionário do R., KK, para que procedesse à escolha da sociedade.

40. Depois da escolha da firma e da estrutura da sociedade pelos “clientes”, foi enviado fax à FF que, de imediato, pediu a reserva da firma II Investments Corp (B…) à funcionária NN da GG Management Limited, secretários das duas sociedades em off-shore DD e II.

41. No dia 5 de novembro de 2003, foi constituída uma nova sociedade em off-shore, II Investments Corp, tendo como Diretor – GG Limited, com sede em …, suite 6, …, Road Town, …, British Virgin Islands, e como secretários - GG Management Limited, com sede em 3, …, Gibraltar.

42. No primeiro dia útil seguinte, 10 de novembro de 2003, às 10:18 horas, NN envia a MM, da FF, a confirmação da reserva da sociedade e envia o “certificate of incorporation”.

43. Esta funcionária da FF disponibilizou esta informação ao gestor bancário KK, sendo em simultâneo enviado orçamento de custos do Banco BB Bank & Trust Company (C…) Limited, ao cuidado de KK.

44. Nesse mesmo dia, KK e outro funcionário bancário não identificado, escrevem carta de referência (specimen reference letter) a favor da R. e dos seus três filhos, afirmando conhecê-los pessoalmente há mais de um ano e confirmando a sua boa reputação financeira.

45. Nessa carta de referência é indicada, ainda, como morada a Rua …, n.º …, 6.º andar, …, que, à época, era a residência comum do casal, sendo essa morada confirmada, por conhecimento pessoal desses dois funcionários bancários.

46. Dois dias depois e sem qualquer alteração real de residência da R., é redigida nova carta pelos mesmos funcionários do R., e com os mesmos termos, atestando que a residência da R. e dos três filhos era na Praceta …, n.º …, 7.º H, ….

47. A situação profissional e domiciliária da R. e dos três filhos é, ainda, confirmada pelos funcionários OO e MM, ambos da FF, por exibição de documentos.

48. A 11 de novembro de 2003, fora já apresentado à R. e aos filhos um formulário pelo funcionário do R., KK, e que constava do prospeto dum acordo normativo adotado pela FF - Trust Management and Services, S.A.., para constituir uma sociedade no estrangeiro, muito próximo do que foi necessário para constituir a DD.

49. Este documento foi assinado pela R. e pelos três filhos do dissolvido casal e ainda por dois funcionários do Banco BB, em sua representação, PP e QQ.

50. No dia 12 de novembro de 2003, foi feito o primeiro pagamento à FF em numerário € 1 500,00.

51. A conta de depósito à ordem da II foi aberta no período que medeia entre o dia 14 e 20 de novembro de 2003.

52. Essa ordem de transferência foi, com exceção da assinatura, totalmente preenchida pelo punho do funcionário do R., KK.

53. Às 11:06 horas do dia 20/11/2003, os títulos ainda estavam na conta da DD.

54. Quando o A. pediu para interromper a ordem de transferência, esta ainda não tinha sido efetuada.

55. Foram designados beneficiários da II Investments Corp, a R. e os três filhos do casal.

56. Antes de ser encerrada a II, o funcionário do R., KK, reservou, em 18 de dezembro de 2003, junto de MM, RR Investments, S.A., tendo como única beneficiária SS, irmã da R., e, como procuradoras, esta irmã e a R.

57. E pediu a TT que tratasse, junto da FF – Trust and Management Services, S.A., do cancelamento da II.

58. A 30/12/2003, TT enviou os documentos necessários para o cancelamento da II, a KK, nomeadamente a carta de cancelamento dirigida ao Banco BB C…, o cancelamento dirigido à GG e a nota de encargos do strike off.



***



2.2. Delimitada a matéria de facto, expurgada de redundâncias, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, e que, na sua essência, respeita ao incumprimento do contrato de intermediação financeira.

Desde logo, impõe-se esclarecer que, não obstante a coincidência de julgados entre a 1.ª instância e a Relação, a presente revista é admissível, designadamente ao abrigo do disposto na parte final do 1 do art. 7.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, visto a ação ter sido instaurada em 27 de abril de 2006.


Na presente revista, o Recorrente insiste na ilicitude do comportamento dos Recorridos, para fundamentar, designadamente, a resolução do contrato de intermediação financeira e a efetivação da responsabilidade civil.

O acórdão recorrido, porém, confirmando a sentença, concluiu pela licitude da conduta dos Recorridos, afastando qualquer incumprimento contratual, assim como excluiu a responsabilidade civil.


A responsabilidade civil do intermediário financeiro, por violação de deveres respeitantes ao exercício da sua atividade, impostos por lei ou regulamento emanado de autoridade pública, está, especificamente, prevista no art. 314.º, n.º 1, do Código dos Valores Mobiliários (CVM), sendo aplicável, atendendo à data dos factos, a versão anterior à introduzida pelo DL n.º 357-A/2007, de 31 de outubro.

A culpa do intermediário financeiro presume-se quando o dano seja causado no âmbito de relações contratuais ou pré-contratuais (art. 314.º, n.º 2, do CVM). Consagra-se, deste modo, a presunção de culpa do intermediário financeiro, pois, atendendo à natureza do seu estatuto, está em melhores condições para poder demonstrar a ausência de culpa no exercício da sua atividade de intermediação financeira, sendo certo que, nas relações com todos os intervenientes no mercado, o intermediário financeiro deve observar os ditames da boa fé, de acordo com elevados padrões de diligência, lealdade e transparência (art. 304.º, n.º 2, do CVM), para além de dever ainda orientar a sua atividade no sentido da proteção dos legítimos interesses dos clientes e da eficiência do mercado (art. 304.º, n.º 1, do CVM). Trata-se, neste caso, da adaptação específica do critério da culpa abstrata, consagrada, em termos gerais, no art. 487.º, n.º 2, do Código Civil (CC), à atividade da intermediação financeira, para efeitos de efetivação da responsabilidade civil do intermediário financeiro.


Entre o Recorrente e a Recorrida, por um lado, e o Recorrido, por outro, foi firmado um contrato de intermediação financeira, para a prestação de serviços de investimento por parte do Recorrido, nomeadamente de gestão de carteira, cujo conteúdo está tipificado no art. 332.º do CVM.

Neste âmbito, o Recorrente e a Recorrida aceitaram colocar os seus créditos numa sociedade (DD), criada especialmente para esse efeito, nas Ilhas Virgens Britânicas, território tido como “paraíso fiscal”, como resulta da matéria de facto.

Todavia, tal sociedade, não relevando juridicamente para o nosso ordenamento, designadamente por falta de objeto, que é manifesto, não pode ser tida como titular de direitos, o que prejudica também a questão conexa da constituição do denominado trust.

Por isso, a titularidade dos créditos, ainda que formalmente estando em nome de tal sociedade, continua a pertencer em comum, ao Recorrente e à Recorrida, devendo entender-se a regulação específica estabelecida como os termos acordados do exercício do direito pelo Recorrente e Recorrida.

De acordo com esses termos específicos, o Recorrente e a Recorrida podiam “abrir e/ou movimentar e encerrar contas bancárias” (13.), podendo fazê-lo em “conjunto ou separadamente”, nos termos expressos no documento de fls. 50.

Nestas condições, qualquer um dos titulares dispunha de amplos poderes, podendo abrir, movimentar e encerrar as contas bancárias.

Neste contexto, a ordem de transferência dada pela Recorrida, nomeadamente em 20 de novembro de 2003, que constitui o cerne de toda a discussão no processo, afigura-se legítima, face aos poderes específicos de que dispunha. Independentemente da propriedade do crédito da conta bancária, que não se discute, a Recorrida podia movimentar livremente a conta bancária.

Sendo essa ordem de transferência legítima, visto ter sido dada por quem dispunha de poderes para tanto, não podia o Recorrido, como instituição financeira, deixar de cumprir a ordem de transferência. Tratando-se de conta bancária com dois titulares e face ao regime específico aplicável, ao Recorrido não restava senão cumprir a ordem de transferência, pois tudo o mais, que se pretendesse que fizesse, ia manifestamente para além dos seus deveres, não podendo esquecer-se também que os titulares da conta bancária constituíam um casal.

Por outro lado, tendo a ordem de transferência sido proferida primeiro no tempo e, por isso, prioritária, a ordem contrária, de revogação, dada pelo Recorrente, não podia, sem mais, paralisar ou impedir o cumprimento da ordem de transferência, nomeadamente quando a Recorrida, como se antes se referiu, gozava de legitimidade para determinar a ordem de transferência.


Além disso, e ao contrário do alegado pelo Recorrente, a atuação da Recorrida não configura, de modo algum, um “negócio consigo mesmo”, visto que, como titular do crédito transferido, como era o caso da Recorrida, não era possível a celebração de qualquer negócio jurídico.

O pressuposto de que o Recorrente parte, nomeadamente da conta bancária pertencer a uma sociedade sediada nas Ilhas Virgens Britânicas, de que a Recorrida era mera representante, já se viu que não pode ser considerado.


O Recorrente alude ainda, por fim, que a ordem de transferência dada pela Recorrida sempre teria de se considerar como exercício manifestamente excessivo dos limites impostos pela boa fé e pelo fim social ou económico do direito, traduzindo-se numa situação de abuso do direito, nos termos art. 334.º do CC.

Esta alegação, apenas enunciada e sem fundamentação, é totalmente improcedente.

Com efeito, da matéria de facto apenas resulta que na origem da transferência pode ter estado um eventual processo de divórcio entre o Recorrente e a Recorrida (37.). Esse facto, por si só, não é de molde a consubstanciar uma violação ostensiva e manifesta dos deveres de boa fé quanto aos poderes de movimentação da conta bancária. Por outro lado, podendo antever-se a dissolução do casamento, com a possibilidade de ocultação ou dissipação de bens comuns, qualquer um dos cônjuges podia pretender prevenir eficazmente a divisão futura dos bens.

O Recorrido, por sua vez, tendo cumprido uma ordem legítima, dada por um dos titulares da conta bancária, e tendo observado, nessa medida, os seus deveres como agente financeiro, não teve um comportamento ilícito.

Como também não teve comportamento ilícito, quando não cumpriu a ordem posteriormente dada pelo Recorrente, de revogação da transferência, visto que o Recorrido estava adstrito a cumprir a ordem prioritária emitida pela Recorrida.

E também não se mostram violados quaisquer outros deveres.

Nestas circunstâncias, não demonstrada a ilicitude, imputada aos Recorridos, improcedem todos os pedidos formulados na ação, tal como se decidiu na sentença e reiterou no acórdão recorrido, o qual violou qualquer disposição legal, designadamente as especificadas pelo Recorrente.


Assim, não relevando as conclusões do recurso, nega-se totalmente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.


2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

 

I. Uma sociedade, criada especialmente para colocação de créditos, num território tido como “paraíso fiscal”, não relevando juridicamente para o nosso ordenamento, designadamente por falta de objeto, não pode ser tida como titular de direitos.

II. Podendo alguém movimentar livremente a conta bancária, a ordem de transferência por si dada afigura-se legítima.

III. Sendo a ordem de transferência legítima, não podia a instituição financeira deixar de a cumprir.

IV. Sendo a ordem de transferência prioritária, a ordem contrária, de revogação, não podia paralisar o cumprimento daquela.

V. A ordem de transferência não consubstancia a violação ostensiva e manifesta dos deveres de boa fé quanto aos poderes de movimentação da conta bancária.


2.4. O Recorrente, ao ficar vencido por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decide-se:


1) Negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.


2) Condenar o Recorrente (Autor) no pagamento das custas.


Lisboa, 12 de abril de 2018


Olindo Geraldes (Relator)

Maria do Rosário Morgado

José Sousa Lameira