Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A2470
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
LETRA EM BRANCO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ200610240024706
Data do Acordão: 10/24/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I - Resultando com suficiente nitidez, da leitura conjugada dos dois negócios em presença e da sua interpretação
em harmonia com o critério estabelecido no art. 236.º do CC, que os embargantes aceitaram a letra executada para garantir o cumprimento da obrigação que assumiram perante a sociedade e não o cumprimento da obrigação desta em face do Banco; tal garantia de cumprimento, materializada, concretizada no aceite da letra em branco, surge na economia dos dois contratos como sendo a contraprestação devida pelo facto de os embargantes terem deixado de afiançar perante o Banco o cumprimento da obrigação contraída pela sociedade.
II - Não tendo ficado demonstrado que os embargantes satisfizeram à sociedade e ao exequente o débito cujo cumprimento o aceite da letra ajuizada se destinou a garantir, não pode afirmar-se que tenha havido preenchimento abusivo da letra dada à execução.
III - Quem entrega uma letra em branco fica com o encargo de fazer a prova do seu preenchimento abusivo, prova essa que, existindo uma execução instaurada, deve ter lugar nos embargos de executado, cuja petição inicial se destina à impugnação dos requisitos do título executivo e do direito substancial do exequente, em termos idênticos aos de quem se apresenta a constestar uma acção declarativa.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório
AA e sua mulher BB deduziram embargos à execução que lhes foi movida por CC.
Substancialmente, alegaram que a letra executada foi aceite em branco com base numa declaração de dívida da qual decorre que a sua legítima portador é a sociedade DD, SA, e não o exequente, concluindo, assim, pela ilegitimidade deste; e invocaram também o preenchimento abusivo do título, uma vez que, tendo ele sido aceite para garantir a responsabilidade que assumiram em relação a uma dívida daquela sociedade perante a Caixa ………., só em face do incumprimento de tal responsabilidade poderia ser preenchido pela devedora, e pelo valor em dívida, após notificação por carta registada com aviso de recepção; não houve, todavia, nem incumprimento nem comunicação.
Os embargos foram contestados, decidindo-se no despacho saneador, precedido de audiência preliminar, que o embargado é parte legítima e que improcede a excepção de nulidade do aceite por indeterminabilidade do seu objecto também invocada pelos embargantes.
Discutida a causa foi proferida sentença que julgou os embargos improcedentes, decisão esta que a Relação revogou, julgando-os inteiramente procedentes.
Agora é o embargado que pede revista, sustentando, em resumo, que deve ser reposta a decisão da 1ª instância visto que os embargantes não fizeram prova do preenchimento abusivo do título executivo nem de que cumpriram a obrigação a que se vincularam decorrente do contrato de assunção de dívida identificado no processo.
Os recorridos contra alegaram, defendendo a improcedência do recurso.

II. Fundamentação
a) Matéria de facto:
1. Os embargantes assinaram no lugar reservado ao aceite o documento a fls. …. dos autos principais, onde consta ser sacador CC, sacado AA, a data de emissão de 10.12.97, de vencimento de 28.06.02 e uma ordem de pagamento “por esta única via de letra a mim ou à minha ordem” da quantia de 8.735.404$00.
2. A 15.07.02, o B.C.P, a quem aquele título havia sido endossado (doc. 5 dos autos principais), apresentou protesto por falta de pagamento da letra (doc. de fls … dos autos principais).
3. Com data de 11.11.97 foi celebrado um acordo entre DD, SA, CC e sua mulher EE e a Caixa…………., nos termos do qual, sob a epígrafe “Contrato de Assunção de Dívida e Reestruturação de Empréstimos” se consignou que, entre as partes, “é celebrado um contrato de cessão da posição contratual e reestruturação de empréstimos, com as seguintes cláusulas:
a) - A Caixa ……, concedeu à FF Ldª, dois empréstimos nos montantes iniciais de 7.000.000$00 e 5.000.000$00, celebrados em 14/12/95 e 30/1/95, cujos saldos devedores são, respectivamente, à data de 15/9/97, de 8.531.372$50 e 4.429.696$50.
b) - Por nisso ter interesse a primeira contratante assume, desde a data de 15/9/97, as responsabilidades da FF, Ldª, pelo pagamento dos referidos dois empréstimos, respectivos juros e despesas, de que se confessa desde já devedora, ficando com toda a posi­ção jurídica de que a Sociedade FF era titular.
c) - Os segundos contratantes, na qualidade de fiadores solidários e principais pagadores, dão o seu consentimento à transmissão das dívidas atrás referidas para a primeira contratante, mantendo as fianças que prestaram no âmbito das referidas operações, ficando desonerados os demais fiadores.
d) - Solicita ainda a primeira contratante à Caixa que proceda à reestruturação e unificação dos contratos num único.
e) - A Caixa dá o seu acordo à referida unificação num único contrato, o qual é reestruturado e se passa a reger pelas cláusulas seguintes:
Cláusula 1ª - Produção de Efeitos: O presente contrato produz efeitos a partir de 15/9/97.
Cláusula 2ª - Montante: O montante em dívida à data referida na cláusula anterior é de 12.961.069$00, do qual a DD se confessa desde já devedora (..)" (doc. de fls. …-…).
4. Na sequência desse acordo, os ora embargantes e outro subscreveram um documento epigrafado “Declaração de Dívida”, nos termos do qual se declararam “devedores solidários com DD, S.A. (...) e com CC e sua esposa D. EE perante a Caixa…… (...) da quantia que exceder 5.700.000$00 (..) e respecti­vos juros, até efectivo e integral pagamento e resultante dos dois empréstimos concedidos à Sociedade FF, Ldª, nos montantes iniciais de 7.0000.000$00 e 5.000.000$00, celebrados em 14/12/95 e 30/1/95, estando, actualmente, em dívida a quantia de 12.961.069$oo.
Esta obrigação decorre do contrato de Assunção de Dívida e Reestruturação de Empréstimos celebrado entre DD, S.A., Eng° CC e esposa EE e Caixa……, de que todos têm perfeito conhecimento e através do qual a Sociedade DD assumiu o pagamento dos valores em dívida à Caixa …… e esta entidade bancária desonerou a Sociedade FF, Ldª, bem como os fiadores, AA, sua esposa, GG, sua esposa e HH.
A responsabilidade de AA e esposa representa 1/2 (metade) do excedente do supra referido valor de 5.700.000$00 e juros, sendo a responsabilidade de HH de 1/4 (uma quarta parte) dessa dívida, a qual deverá ser regularizada em data a indicar pela referida DD, SA e de acordo com as cláusulas e mapa de pagamentos acordados com a C……….
O valor em dívida será titulado por duas livranças subscritas por DD, SA, sendo uma aceite por AA e sua esposa e outra por HH, ficando a Sociedade DD,SA, autorizada a preencher tal letra pelo valor da dívida desde que verificado incumprimento e após notificação através de carta registada com aviso de recepção” (doc. de fls. …).
5. O doc. de fls … dos autos de execução foi entregue pelos ora embargantes totalmente em branco, apenas com as suas assinaturas.
6. Os valores da responsabilidade assumida nos termos do documento de fls …, perante a CGD, foram pagos a esta instituição (resposta ao quesito 2º).
7. Os ora embargantes não foram, previamente ao preenchimento da letra, notificados por carta registada com aviso de recepção (resposta ao quesito 2°).

b) Matéria de Direito
A questão fulcral que está posta no recurso é a de saber se foi correctamente interpretada e aplicada aos factos da causa a norma do artº 10º da LULL, que dispõe o seguinte:
“Se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave”.
Precisando melhor as coisas, dir-se-á que os recorrentes não suscitam nenhum dos problemas enunciados na parte final do preceito – aquisição do título por parte do exequente mediante má fé ou prática de falta grave; a dúvida consiste só na resposta a dar à pergunta sobre se a letra executada que todos reconhecem ser uma letra em branco foi completada com violação do acordo de preenchimento celebrado; e é claro que, situando-se a discussão no quadro das relações imediatas (facto nº 1), o sentido da resposta determinará o da decisão final do litígio, favorável aos embargantes se a resposta for positiva, e ao embargado no caso contrário.
No acórdão recorrido considerou-se que os embargantes, aceitando o título executivo, quiseram contrair uma obrigação perante o credor, autorizando-o a completá-lo; porém, o credor “previsto” no acordo realizado era a sociedade DD, não o exequente; com este não existe nenhum pacto de preenchimento nem nenhuma relação subjacente; e escrevem, em conclusão, os magistrados da 2ª instância (fls…..): “as assinaturas dos recorrentes, como aceitantes, foram feitas com intenção de contraírem uma obrigação dando ao credor DD autorização para a preencher. Foi ela que pagou a dívida da Caixa e só ela podia preencher a letra de harmonia com o pacto de preenchimento”. O que isto significa é que no entendimento da Relação houve um preenchimento abusivo da letra, por isso que segundo o contratado só a sociedade DD, não o exequente, estava autorizada a completá-la nos termos em que tal veio a suceder (facto nº 1).
Tudo visto e ponderado, este Tribunal entende que a norma jurídica transcrita foi incorrectamente aplicada porque a 2ª instância não qualificou juridicamente os factos coligidos do modo que se reputa acertado.
Em resumo, e no que interessa ao caso sub judice, temos dois acordos a considerar: o retratado no facto nº 3 – do qual resulta que, operada a transmissão duma determinada dívida para a esfera jurídica da sociedade DD, o embargado se manteve fiador, ficando os restantes desonerados; e o retratado no facto nº 4 – do qual resulta que, relativamente à parte da dívida que ali se especifica (aquela a que alude o facto nº 3) os embargantes se declaram devedores solidários (com a DD e com o embargado), estipulando-se que o “valor em dívida” seria titulado por uma letra que a mencionada sociedade ficou autorizada a preencher, “desde que verificado incumprimento e após notificação através de carta registada com aviso de recepção”.
Ora, da leitura conjugada dos dois negócios em presença e da sua interpretação em harmonia com o critério estabelecido no artº 236º do Código Civil (impressão do destinatário) resulta com suficiente nitidez que os embargantes aceitaram a letra executada para garantir o cumprimento da obrigação que assumiram perante a DD e não o cumprimento da obrigação desta em face da CGD. Tal garantia de cumprimento, materializada, concretizada no aceite da letra em branco, surge na economia dos dois contratos como sendo a contraprestação devida pelo facto de os embargantes terem deixado de afiançar perante a CGD o cumprimento da obrigação contraída pela DD; mas contraprestação devida, bem entendido, justamente à DD, já que o Banco, esse deu-se por satisfeito mediante a garantia pessoal - fiança - prestada tão somente pelo embargado. Deste modo, não tendo ficado demonstrado que os embargantes satisfizeram à DD e ao exequente o débito contraído por virtude do contrato a que alude o facto nº 4, - o débito cujo cumprimento o aceite da letra ajuizada se destinou a garantir - não pode afirmar-se que tenha havido preenchimento abusivo da letra dada à execução. E não há dúvida - trata-se de doutrina pacífica e de jurisprudência assente - que o ónus da prova do preenchimento abusivo cabe ao obrigado cambiário, como facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito (artº 342º, nº 2, do CC). Quer dizer: quem entrega uma letra em branco - e foi isso o que sucedeu no caso sub judice – fica com o encargo de fazer a prova do seu preenchimento abusivo, prova essa que, existindo uma execução instaurada, deve ter lugar nos embargos de executado, cuja petição inicial se destina à impugnação dos requisitos do título executivo e do direito substancial do exequente, em termos idênticos aos de quem se apresenta a contestar uma acção declarativa (neste sentido, entre outros, cfr. os acórdãos deste STJ de 28.5.96 e 1.10.98, no BMJ 457º, 403 e 480º, 482). Acresce que, contrariamente ao que se afirma no acórdão impugnado, não se provou que tenha sido a DD que pagou a dívida à CGD; provou-se unicamente que a dívida foi extinta pelo cumprimento (facto nº 6), sem que se saiba se quem cumpriu foi a DD ou o exequente, enquanto fiador. Finalmente, importa ainda referir o seguinte: no caso presente, como já se disse, estamos no âmbito das relações imediatas, ou seja, das relações existentes entre um subscritor do título e o sujeito cambiário imediato (os aceitantes, que são os recorrentes, e o sacador, que é o recorrido); e aí tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta, ficando sujeita às excepções que se fundamentem nas relações extra cartulares (artº 17º da LU). Acontece, porém, que os embargantes não provaram nenhum facto do qual possa inferir-se que a embargada, sacadora da letra, não é sua legítima portadora. Ora, como refere Abel Pereira Delgado (Lei Uniforme Sobre Cheques Anotada, 3ª edição, pág. 80) estamos aqui “perante uma legitimação formal, em consequência da qual se presume que a pessoa legitimada é o portador jurídico do título, isto é, o verdadeiro titular do direito nele incorporado. Tal legitimação tem importância enorme, pois o portador, assim legitimado, não carece de provar o seu direito, admitindo-se, porém, prova em contrário”. Logo, definindo-se o direito cartular pela sua autonomia e abstracção, e não estando posto em dúvida, por outro lado, que ao aceitar o título os embargantes tiveram consciência perfeita de estar contraindo a correspondente obrigação cambiária, nada impede a plena exequibilidade da letra exequenda, tanto mais que, como também se salientou já, não foi alegado que o exequente a adquiriu de má fé ou mediante o cometimento de falta grave, o que tudo afasta a relevância jurídica que prima facie poderia ser atribuída ao facto nº 7 e ao facto nº 4, este na parte em que refere ser a sociedade DD que fica autorizada a preencher o título pelo valor da dívida.

III. Decisão
Nos termos expostos concede-se a revista e revoga-se o acórdão da Relação, para ficar a prevalecer a sentença da 1ª instância.
Custas pelos recorridos, aqui e nas instâncias.

Lisboa, 24 de Outubro de 2006
Nuno Cameira
Sousa Leite
Salreta Pereira