Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1380/13.3T2AVR.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO MORTE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL POR FACTOS ILÍCITOS.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, p. 602, nota (1).
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª edição, p. 613.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 494.º,496.º, N.ºS2 E 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 18-9-2012, PROCESSO N.º 973/09.8TBVIS.C1.S1 - 6.ª SECÇÃO;
-DE 24-9-2013, PROCESSO N.º 294/07.0TBETZ.E2.S1 - 1.ª SECÇÃO, C.J., 3, P. 55.
Sumário :
I - No caso de morte da vítima a titularidade do direito à indemnização por danos não patrimoniais pela perda de vida é atribuída ex lege aos familiares referidos no art. 496.º, n.º 2, do CC, afastando a lei a aplicabilidade do regime sucessório que decorreria de se considerar que o direito à indemnização pelo dano morte se integrou com a morte na esfera jurídica do de cujus.

II - O facto de a indemnização pela perda do direito à vida ser fixada em valor sensivelmente igual em todos os casos porque está em causa o dano da perda de vida, valor idêntico para cada ser humano, não significa que o tribunal não possa excluir dessa indemnização o titular provando-se que não existiam laços de afeto de espécie alguma entre ele e a vítima.

III - Estamos, na verdade, no plano da indemnização por danos não patrimoniais e, assim sendo, a indemnização global a atribuir deve ser baseada numa ponderação global e equitativa das circunstâncias do caso com base nos critérios da lei que resultam da conjugação dos arts. 494.º e 496.º, n.º 3, do CC.

IV - Provando-se, como se provou no caso vertente, que o jovem de 19 anos de idade, filho da autora, “com esta viveu desde que nasceu até à data do acidente, sendo que o pai o abandonou, nunca mais tendo dado notícias nem se sabendo do seu paradeiro”, tendo sido “sempre a mãe quem exerceu as funções de pai e mãe” e tendo sido, “por sentença proferida pelo tribunal do concelho de Staryi Sambir, distrito de Lviv, Ucrânia, decretada a inibição do poder paternal relativamente ao pai do falecido”, o tribunal, ponderando tais circunstâncias, pode atribuir à progenitora a totalidade da indemnização por danos não patrimoniais nesta se incluindo a parcela respeitante à perda do direito à vida.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]



1. AA, de nacionalidade ucraniana, propôs contra a Companhia de Seguros BB, SA, ação de indemnização emergente de acidente de viação, pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de 252.000 euros acrescida de juros de mora vincendos contados à taxa legal, desde a citação, até efetivo pagamento em resultado da morte do filho, ocorrida no dia 7-4-2009 em Canela - Estarreja, quando se fazia transportar como passageiro no veículo conduzido por CC.

2. O Tribunal da Relação revogou parcialmente a decisão considerando os juros devidos à taxa legal sobre o montante de 140.000 euros apenas desde 20-3-2014 até integral pagamento e sobre o montante de 1074 euros desde a citação até integral pagamento, mantendo em tudo o mais o decidido.

3. A indemnização corresponde ao somatório dos seguintes danos parcelares:

- 80.000 euros ( perda do direito à vida)

- 60.000 euros (danos morais sofridos pela mãe com a morte do filho)

 - 1074 euros (despesas de funeral).

4. A revista excecional foi admitida. Considerou-se que importava considerar a interpretação da norma constante do artigo 496.º/2 do Código Civil, visto que, a entender-se que o direito à indemnização pelo dano morte não pertence jure proprio aos interessados ali indicados, mas apenas por via sucessória por ser dano próprio da vítima, então a indemnização a arbitrar não poderia deixar de resultar da aplicação estrita das regras de direito sucessório.

5. O acórdão recorrido, para além de considerar que a indemnização deve ser atribuída jure proprio, considerou ainda que, "tendo-se provado ter “o falecido vivido com a autora desde que nasceu até à data do acidente, sendo que o pai o abandonou, nunca mais tendo dado notícias nem se sabendo do seu paradeiro”, ter sido “sempre a mãe quem exerceu as funções de pai e mãe” e ter sido, “por sentença proferida pelo Tribunal do Concelho de Staryi Sambir, distrito de Lviv, Ucrânia, decretada a inibição do exercício do poder paternal relativamente ao pai do falecido” – faz todo o sentido considerar a aqui A/apelada como a única pessoa a integrar o grupo “pais e outros ascendentes” e, em função disto, conceder-lhe a totalidade da indemnização pelo dano da morte causado ao seu filho".

6. A recorrente conclui a minuta de recurso nos termos que se transcrevem:

A) Visa-se com o presente recurso, discutir a bondade da interpretação que, do n.º 2 do artigo 496° do Código Civil, é feita pelo Venerando Tribunal a quo, nos termos da qual o direito à indemnização pela perda do direito à vida da vítima nasce, diretamente, na esfera jurídica das pessoas mencionadas no n.º 2 do artigo 496° do C. Civil, devendo, a sua atribuição, ser norteada por critérios de afeto e proximidade, afastando, assim, critérios objetivos com os definidos no direito sucessório ou no próprio texto do n.º 2 do artigo 496° do C. Civil.

B) Considera a recorrente errada a primeira premissa de que partiu o Venerando Tribunal a quo - isto é, a de que tal direito nasce na esfera jurídica das pessoas elencadas no n.º 2 do artigo 496° do C. Civil, - e insuportável (porque insuscetível de ser suportada) a forma como articula esta premissa com a introdução de um critério subjetivo de afeto ou proximidade na atribuição da compensação aos titulares do direito à mesma, referida naquele preceito.

C) Enuncia o n.º 2 do artigo 496° um conjunto hierarquizado de pessoas que, por morte da vitima, se torna titular de um direito a compensação, sendo certo, contudo, que tal direito a compensação abrange não só os danos não patrimoniais próprios desses terceiros - nomeadamente a dor que sentem pela perda do seu ente querido - mas também a compensação pela própria perda do direito à vida da vítima que, por ficção, a Jurisprudência considera "nascer no momento da morte daquele".

D) Ora, deste preceito resulta que, na ausência das pessoas enunciadas na lª parte desse preceito, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe aos pais ou outros ascendentes, não se vislumbrando a introdução de qualquer critério de proximidade ou afeto, nesta previsão.

E) Tal critério de subjetividade ou proximidade encontrar-se-á, facilmente, nos danos não patrimoniais próprios de cada um dos terceiros, sendo, nessa sede, admissível que sejam tratados de modo diverso os sofrimentos de cada um dos progenitores, de acordo com a respetiva proximidade e relação de afeto com a vítima mortal.

F) Não é esta a situação que envolve o dano resultante da morte da vitima, que, com todo o respeito pela opinião do Venerando Tribunal a quo, só por ficção absurda se pode considerar nascer na esfera de terceiros, neste caso, dos pais da vitima, que, manifestamente, não podem ver reconhecido um direito pela perda de outro (direito) de que não eram titulares.

G) A ser aceite pelos Tribunais a "teoria do afeto e proximidade", - o que se recusa! - abre-se a porta a que se discuta se o direito a compensação pelo dano resultante da perda do direito à vida de um filho deverá ser atribuído a ambos os progenitores em partes iguais, ou diferentemente, de acordo com a "proximidade e relação afetiva" de cada um ...

H) Não obstante se admitir que a situação descrita nos autos pode ser configurada uma "situação limite" - o que terá motivado a reação, essa sim, de afeto, de ambas as instâncias - não pode deixar de se ter em conta que não há, nos autos, sequer, a prova de que a decisão de inibição do exercício do poder paternal tenha transitado em julgado, não havendo notícia de que o progenitor tenha, ou não, recorrido da mesma.

I) E que oposição deduzir ao progenitor no caso de este vir a demandar a Recorrente exigindo a compensação pela perda do direito à vida do seu filho, devidamente suportado no n.º 2 do artigo 496º do Cód. Civil?

J) Será, por último, admissível, que se exclua - como acaba por fazer o Venerando Tribunal a quo - um direito que, em princípio, pertence à esfera jurídica de uma pessoa, não sendo esta parte na ação?

K) Impõe-se, assim, a revogação da douta decisão que atribuiu a totalidade do direito à compensação pela perda do direito à vida do filho a um dos progenitores - excluindo, desse direito, o outro progenitor - considerando que tal direito cabe a ambos os progenitores, em partes iguais, uma vez que o n.º 2 do artigo 496° do Cód. Civil não autoriza a que seja introduzido, nesta sede, tratamento diversificado.

L) A interpretação do preceito, feita pelo Venerando Tribunal a quo, subverte, aliás, o texto daquela disposição legal, constituindo uma verdadeira intromissão do poder judicial na competência exclusiva do poder legislativo, desse modo sendo ferida de inconstitucionalidade, que, para todos os efeitos, expressamente se invoca.

M) Deverá, em consequência, ser revogada a douta decisão que atribui à recorrida o direito à totalidade da compensação pela perda do direito à vida do seu filho, devendo ser-lhe reconhecido o direito a metade da mesma compensação - que se transmitiu do filho para ambos os progenitores - e, nessa medida, alterada a douta decisão proferida, condenando a Recorrente no pagamento de metade da compensação fixada.

N) O douto acórdão recorrido violou, por errada interpretação o disposto no artigo 496°, n.º 2 do Cód. Civil, desrespeitando, nessa tarefa interpretativa, os enunciados do artigo 9° do mesmo Código.

7. Factos provados:

1 – No dia 7 de abril de 2009, cerca das 10:00 horas, na Estrada Nacional n.º 109, ao km 51,760, em Canelas, concelho de Estarreja, ocorreu um acidente de viação, com uma vítima mortal, em que foram intervenientes o veículo automóvel de marca Rover, modelo 400, com a matrícula ...-...OF, tripulado por CC, que circulava no sentido de marcha Estarreja-Aveiro (art. 1º da petição inicial).

2 - No mesmo veículo, seguia no lugar ao lado do condutor DD (art. 2º da petição inicial).

3 - Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, circulava em sentido oposto e na hemifaixa de rodagem da esquerda, atendo o sentido de marcha do veículo ...-...OF (segurado na ré), o veículo pesado de mercadorias com a matrícula ...-...-XT, propriedade de EE Construtores e tripulado por FF (art. 3º da petição inicial).

4 - No local, a velocidade permitida é de 90 km/hora (art. 4º da petição inicial).

5 - Desenvolve-se uma reta, com uma ligeira curva para a direita, atendendo o sentido de marcha do OF (art. 5º da petição inicial).

6 - A via destinada ao trânsito no referido local tem a largura de 7.20 metros e é composta por duas faixas de rodagem, uma para cada sentido de marcha, devidamente delimitadas por traço descontínuo, havendo de cada lado uma berma (art. 6º da petição inicial).

7 - No momento em que se deu o acidente as condições atmosféricas eram boas, no entanto momentos antes havia chovido, pelo que o piso se encontrava escorregadio (art. 7º da petição inicial).

8 - O veículo onde seguia o falecido circulava no sentido de marcha Estarreja-Aveiro, a uma velocidade não concretamente apurada, mas sempre superior a 140Km/h (art. 8º da petição inicial).

9 - O tempo estava bom, embora a estrada estivesse húmida, em virtude da chuva que havia caído algum tempo antes (art. 9º da petição inicial).

10 - O condutor do OF efetuou uma manobra de ultrapassagem de um veículo em movimento cuja matrícula não se apurou (art. 10º da petição inicial).

11 - Tendo, logo de seguida à manobra de ultrapassagem, entrado em despiste, derivando para a esquerda, atento o seu sentido de marcha, em consequência da velocidade a que circulava (arts. 11º e 12º da petição inicial).

12 - Pelo que o veículo segurado na ré, onde seguia o falecido, filho da autora, embateu com a parte lateral direita na frente do lado direito do veículo pesado suprareferido, dentro da hemi-faixa reservada aos veículos que circulavam em sentido contrário (art. 13º da petição inicial).

13 - Com o impacto da colisão, e atendendo a violência do mesmo, o veículo segurado na ré seccionou-se em duas partes, ficando a parte da viatura em que seguiam o condutor e o falecido separada da parte de trás da viatura (art. 14º da petição inicial).

14 - Embate que foi a 0,70 metros da linha limitadora direita da faixa de rodagem do sentido oposto ao da sua marcha (art. 15º da petição inicial).

15 - Com o embate, e tal terá sido a sua violência devido à velocidade em que seguia, a parte da frente do veículo segurado foi imobilizar-se a 4,70 metros de distância em relação ao local do embate, e a parte traseira do veículo foi projetada a uma distância de 5,10 metros do mesmo local de embate (art. 16º da petição inicial).

16 – O proprietário do veículo com a matrícula ...-...OF, pai do respetivo condutor, havia transferido a responsabilidade civil emergente de circulação do referido veículo para a ré BB – Companhia de Seguros, S.A., através do contrato de seguro titulado pela apólice nº ... (art. 26º da petição inicial).

17 – Como consequência direta e necessária do acidente supra descrito, sofreu o falecido, filho da autora, múltiplas lesões um pouco por todo o corpo, como sejam: lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas e torácico -abdominais, todas descritas no relatório de autópsia de fls. 45 a 54 que aqui se dá por integralmente reproduzido (art. 28º da petição inicial).

18 – Em consequência direta das lesões sofridas no acidente descrito, o passageiro, filho da aqui autora, que seguia ao lado do condutor, teve morte imediata (art. 29º da petição inicial).

19 – O filho da autora contava à data do acidente 19 anos de vida (art. 32º da petição inicial).

20 – Encontrava-se a estudar no 11º ano de escolaridade, com aproveitamento, e pretendia seguir os estudos (art. 33º da petição inicial).

21 – Era um jovem que gozava de boa saúde, robusto, alegre, com gosto pela vida, dinâmico e desportista (art. 35º da petição inicial).

22 – Era um jovem comunicativo e solidário que cultivava a amizade com os colegas, gozava de boa reputação no meio social onde estava inserido, era, de facto, querido e respeitado por todos os que com ele conviveram, tendo-lhe sido feitas várias homenagens (art. 36º da petição inicial).

23 – Era um jovem muito dedicado à família, sobretudo à sua mãe, trabalhando, por vezes, nas férias escolares para a ajudar nas despesas domésticas (art. 38º da petição inicial).

24 – Mantinha, sobretudo com a sua mãe, e também com a sua irmã, uma relação muito feliz e de união (art. 41º da petição inicial).

25 – Eram unidos por fortes laços de afeto entre si, de companheirismo e partilha, como se de um só se tratasse, constituindo uma família harmoniosa, unida e feliz (art. 42º da petição inicial).

26 – Relação com a sua mãe que sempre foi forte e de apoio mútuo, em face de todas as dificuldades que ambos passaram juntos, quer no seu país de origem, na Ucrânia, quer na sua vinda e adaptação a Portugal (art. 45º da petição inicial).

27 – Os factos supra descritos causaram à autora, e ainda causam, um desgosto profundo para o resto da sua vida, tendo a mesma perdido a alegria de viver (arts. 48º, 51º, 53º e 55º da petição inicial).

28 – A autora desloca-se diariamente ao cemitério para estar com o seu filho (art. 49º da petição inicial).

29 – O quarto do falecido continua como estava quando este o deixou e como gostava de o ter arrumado (art. 48º da petição inicial).

30 – A autora recorreu a ajuda médica, dado o seu estado depressivo (art. 52º da petição inicial).

31 – A autora regressou ao trabalho em data não concretamente apurada (art. 54º da petição inicial).

32 – O falecido viveu com a autora desde que nasceu até à data do acidente, sendo que o pai o abandonou, nunca mais tendo dado notícias nem se sabendo do seu paradeiro (arts. 68º, 69º, 70º e 71º da petição inicial).

33 – Sempre foi a mãe quem exerceu as funções de pai e mãe (art. 72º da petição inicial).

34 – Por sentença proferida pelo Tribunal do Concelho de Staryi Sambir, distrito de Lviv, Ucrânia, foi decretada a inibição do exercício do poder paternal relativamente ao pai do falecido (documento de fls. 191 a 197, cujo teor se considera integralmente reproduzido) (art. 76º da petição inicial).

35 – A autora suportou as despesas inerentes ao funeral de seu filho e que ascenderam a um montante global de 1.074,00 € (mil e setenta e quatro euros) (art. 59º da petição inicial).

Apreciando

8. A recorrente sustenta que a indemnização que o Tribunal atribuiu à autora no montante de 80.000 € pela perda do direito à vida do filho deve ser reduzida para metade porque o direito a essa indemnização cabe aos pais em conjunto, não podendo o Tribunal atribuir a totalidade da indemnização apenas a um dos progenitores com base em critérios de afetividade ou de proximidade como sucedeu no caso vertente.

9. O Tribunal considerou que faz todo o sentido considerar que a atribuição de indemnização não é devida aos pais em conjunto quando se prove que um deles está inibido do poder paternal em relação ao filho, tendo sido o outro progenitor - no caso, a mãe - quem exerceu as funções de " pai e de mãe", abandonado que foi o filho pelo seu próprio pai.

10. Suscitam-se duas questões:

- Saber se a perda do direito à vida ou perda da vida traduz direito não patrimonial que se constitui na titularidade dos familiares a que se refere o artigo 496.º/2 do Código Civil ou, pelo contrário, integrando-se na esfera jurídica da vítima, se transmite por via sucessória e com os critérios de repartição definidos pelo regime das sucessões.

- E se a fixação do montante desse dano, porque resulta da consideração exclusiva do valor vida humana, tendencialmente igual para todas pessoas, impõe, por isso, que seja repartido igualmente entre os respetivos titulares.

11. No que respeita à questão de saber se a perda da vida, a perda do direito a viver, constitui um dano autónomo de que são titulares, por direito próprio, os respetivos familiares, atente-se no artigo 496.º/2 do Código Civil que diz:

" 2- Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou a outros ascendentes e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem".

12. Sobre esta questão, Antunes Varela escreveu:

" […] O n.º2 do artigo 498.º saído da 2.ª Revisão Ministerial passou a dizer, muito expressivamente, que, por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe aos ditos familiares, sem distinguir, nessa atribuição, entre os danos morais sofridos pela própria vítima e os causados aos seus parentes ou ao seu cônjuge. No número subsequente (n.º3) é que expressamente se afirma que, no caso de morte, a indemnização tanto abrange uns como outros.

E foram estes, sem nenhuma alteração essencial, os textos que se conservaram na redação definitiva do artigo 496.º do Código. Da leitura destas disposições, quer isoladamente considerada, quer analisada à luz dos respetivos trabalhos preparatórios, resultam, por conseguinte, duas conclusões importantíssimas.

A primeira é que nenhum direito de indemnização se atribui, por via sucessória, aos herdeiros da vítima, como sucessores mortis causa, pelos danos morais correspondentes à perda de vida, quando a morte da pessoa atingida tenha sido consequência imediata da lesão. A segunda é que, no caso de a agressão ou lesão ser mortal, toda a indemnização corresponde aos danos morais (quer sofridos pela vítima, quer pelos familiares mais próximos) cabe, não aos herdeiros por via sucessória, mas aos familiares por direito próprio, nos termos e segundo a ordem do disposto no n.º2 do artigo 496.º" (Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª edição, pág. 613). Na doutrina, ver referências em Direito das Obrigações, Almeida Costa, 12.ª edição, nota (1), pág. 602.

13. Analisando a jurisprudência mais recente, o Ac. do S.T.J. de 24-9-2013 (rel. Mário Mendes) Revista n.º 294/07.0TBETZ.E2.S1 - 1.ª Secção considera que esse direito radica na esfera jurídica da vítima (C.J., 3, pág. 55), já o Ac. do S.T.J. de 18-9-2012 (rel. Azevedo Ramos) revista n.º 973/09.8TBVIS.C1.S1 - 6.ª secção considera que " o problema da reparação, em caso de morte, é tratado como um caso especial de indemnização, nos arts. 495.º e 496.º, n.º 2, do CC, respetivamente, para os danos patrimoniais e não patrimoniais, atribuindo-se a determinadas pessoas um direito próprio de serem indemnizadas e abstraindo-se de quaisquer regras sucessórias".

14. A morte da vítima determina danos não patrimoniais que têm na sua origem o facto morte, constituindo-se na esfera jurídica dos familiares referidos no artigo 496.º/2 do Código Civil. De entre esses direitos não patrimoniais, conta-se a perda de vida da vítima.

15. A lei, no artigo 496.º/2 do Código Civil, no que respeita ao dano morte ou dano de perda vida, atribuindo-o aos familiares, exclui-o do regime sucessório, pois, não fora tal atribuição ex lege, seria sempre de contar que a morte origina um dano - porventura o maior que cada um de nós pode sofrer - que é o da extinção da própria vida.

16. Resultando da essência das coisas que o ressarcimento do dano morte será necessariamente atribuído a terceiros, o que para a lei importou foi determinar quem da indemnização pode beneficiar e quem não pode. Daí o critério fixado no artigo 496.º/2 do Código Civil que, no que toca a esse dano, delimita os titulares.

17. Constitui esse dano morte um dano não patrimonial, um dos danos não patrimoniais que o decesso da vítima pode causar. Antunes Varela sustenta que " relativamente aos danos não patrimoniais, o texto do n.º 2 do artigo 496.º revela a inequívoca intenção de arbitrar uma única indemnização, baseada numa ponderação global e equitativa das circunstâncias de cada caso, e de atribuir todo o direito a essa indemnização aos familiares destacados no preceito legal".

18. Este entendimento não é contrariado, a nosso ver, com a afirmação de que, na fixação dessa indemnização, "nada impede, bem pelo contrário, que o julgador tome em linha de conta, como parcela autónoma da soma a que haja de proceder, a perda da vida da vítima, entre os danos morais sofridos pelos familiares".

19. Não é confundível o sofrimento de um progenitor que acompanha os momentos finais do seu filho, a dor e a angústia, o indescritível desespero de o ver perdido com a perda em si da vida.

20. A perda do direito à vida encontra o seu referente na perda da personalidade e, por isso, ao atribuir-se uma indemnização por tal dano, compreende-se a relutância, o desagrado, o incómodo de fixar valores diferentes em função da vida de cada um quando a vida é tudo para cada um. E assim se tem decidido no sentido de arbitrar valor igual a título de indemnização pela perda do direito à vida.

21. Determinado este valor, já na sua fixação não se deve efetivamente atender ao elemento subjetivo da dor do familiar da vítima precisamente porque esse montante tem a ver com o valor/vida; uma vez fixado, ele integra-se com os demais danos não patrimoniais por forma a viabilizar um juízo em que a indemnização global tenha em atenção as circunstâncias do caso concreto.

22. E se, na maioria dos casos, o Tribunal, ao fixar a indemnização global a atribuir a cada progenitor, reparte igualmente os danos parcelares, porque nenhuma razão existe para os diferenciar, já no caso em apreço o Tribunal considerou que a indemnização pelos danos morais devia ser atribuída na totalidade à autora porque ela - e apenas ela - tinha laços de afeto com o filho atendendo ao abandono da criança pelo pai e à inibição do poder paternal a que este foi sujeito suportada em meio de prova consentido pela lei independentemente da revisão de sentença estrangeira (artigo 978.º/2 do CPC/2014 e 1094.º/2 do CPC/61).

23. Não faria efetivamente sentido, dada a prova produzida, que o Tribunal reduzisse a indemnização a atribuir à mãe quando se chega à conclusão de que a morte do filho não se traduziu em nenhuma perda para o pai.

24. A circunstância de o Tribunal fixar pela perda do direito à vida uma verba idêntica para todos os casos em que se está a ressarcir a perda de vida não impõe que essa verba tenha de ser atribuída necessariamente a todos os membros dentro da respetiva categoria de titulares do direito à indemnização a que alude o artigo 496.º/2 do Código Civil precisamente porque essa verba constitui uma entre outras que se integram na fixação do valor global da indemnização a atribuir por danos não patrimoniais. Ora no caso de se demonstrar que o titular do direito à indemnização por tais danos não sofreu nenhum desgosto pela morte do familiar, o que significa que não teve dano, não se vê razão para lhe arbitrar um montante indemnizatório com base nesse título. Os critérios de atribuição de indemnização por danos morais são os que decorrem da lei (artigos 494.º e 496.º/3 do Código Civil).

25. Não se trata de considerar que um dos pais é o único membro do grupo "pais e outros ascendentes" mas antes de excluir a atribuição de indemnização por danos não patrimoniais ao outro progenitor por se ter provado que, dentro do referido grupo, apenas a mãe sofreu danos morais.

26. É evidente que, não constituindo a decisão proferida caso julgado em relação a terceiros, o progenitor, que abandonou o filho e que nunca dele quis saber, não fica impedido, noutra ação, de provar que esses factos não são verdadeiros, justificando o direito de ser indemnizado, também ele, por danos não patrimoniais resultantes da morte do filho.

Concluindo:

I - No caso de morte da vítima a titularidade do direito à indemnização por danos não patrimoniais pela perda de vida é atribuída ex lege aos familiares referidos no artigo 496.º/2 do Código Civil, afastando a lei a aplicabilidade do regime sucessório que decorreria de se considerar que o direito à indemnização pelo dano morte se integrou com a morte na esfera jurídica do de cujus.

II - O facto de a indemnização pela perda do direito à vida ser fixada em valor sensivelmente igual em todos os casos porque está em causa o dano da perda de vida, valor idêntico para cada ser humano, não significa que o Tribunal não possa excluir dessa indemnização o titular provando-se que não existiam laços de afeto de espécie alguma entre ele e a vítima.

III - Estamos, na verdade, no plano da indemnização por danos não patrimoniais e, assim sendo, a indemnização global a atribuir deve ser baseada numa ponderação global e equitativa das circunstâncias do caso com base nos critérios da lei que resultam da conjugação dos artigos 494.º e 496.º/3 do Código Civil.

IV - Provando-se, como se provou no caso vertente, que o jovem de 19 anos de idade, filho da autora, "com esta viveu desde que nasceu até à data do acidente, sendo que o pai o abandonou, nunca mais tendo dado notícias nem se sabendo do seu paradeiro”, tendo sido “sempre a mãe quem exerceu as funções de pai e mãe” e tendo sido, “por sentença proferida pelo Tribunal do Concelho de Staryi Sambir, distrito de Lviv, Ucrânia, decretada a inibição do exercício do poder paternal relativamente ao pai do falecido", o Tribunal, ponderando tais circunstâncias, pode atribuir à progenitora a totalidade da indemnização por danos não patrimoniais nesta se incluindo a parcela respeitante à perda do direito à vida.


Decisão: nega-se a revista


Custas pelo recorrente.

Lisboa, 30-4-2015

Salazar Casanova (Relator)

Lopes do Rego

Orlando Afonso

_______________

[1] Processo distribuído no Supremo Tribunal de Justiça no dia 17-3-2015 [P. 2015/317.1380/13].