Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1187/08.0TBTMR-A.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
DIREITO DE RETENÇÃO
CONSUMIDOR
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
QUESTÃO NOVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
DECLARAÇÃO TÁCITA
BOA FÉ
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / GARANTIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / FALTA DE CUMPRIMENTO E MORA IMPUTÁVEIS AO DEVEDOR / IMPOSSIBILIDADE DO CUMPRIMENTO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL ( AÇÃO, PARTES E TRIBUNAL ) / DISPOSIÇÕES E PRINCÍPIOS FUNADAMENTAIS - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11.ª Edição, Almedina, pp. 1054-1055.
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª Edição, Almedina, pags. 124-126; e “Anotação ao Ac. do STJ. De 2/11/1989”, in RLJ Ano 128º, pp. 137-138.
- Baptista Machado, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, in Boletim da Faculdade de Direito – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J.J. Teixeira Ribeiro, Vol. II – Iuridica, p. 343 e segs..
- Brandão Proença, “A Resolução do Contrato no Direito Civil – Do Enquadramento e do Regime”, Separata do Vol. XXII do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1982, p. 128.
- Castro Mendes, Direito Civil (Teoria Geral), Vol. III, AAFDL, 1973, pp. 406/407.
- Jorge Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, Vol. II , Almedina, pp.391-398.
Legislação Nacional:

CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 217.º, N.º1, 227.º, N.º4, 239.º, 289.º, 349.º, 351.º, 410.º, N.º3, 433.º, 442.º, N.º4, 607.º, N.º4, 663.º, N.º2, 755.º, N.º1, AL. F), 759.º, N.º2, 798.º, 801.º, N.º2, 808.º, N.º1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 5.º, N.º3, 674.º, N.º3, 682.º, N.º3.
LEI N.º 24/96 (LEI DA DEFESA DO CONSUMIDOR), DE 31/07, COM AS ALTERAÇÕES SUBSEQUENTES E REPUBLICADO PELA LEI N.º 47/2014, DE 28-07: - ARTIGO.º 2.º, N.º 1, 3.º, ALÍNEA C).
Jurisprudência Nacional:
DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 05/11/1997, BMJ N.º 471, P. 361.
-DE 22/06/2010, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 6134/05.8TBSTS.P1.S1, , ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT.
-DE 29/05/2014, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 1092/10.0TBLSD-G.P1.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 09/07/2014, NO PROCESSO N.º 299709/11.0YIPRT.L1.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT.
-DE 09/07/2014, PROCESSO N.º 1206/11.2TBLSD-H.P1.S1; DE 14/10/2014, NO PROCESSO N.º 986/12.2TBFAF-G.G1.S1, E DE 25/11/2014, NO PROCESSO N.º 7617/11.6TBBRG-C.G1.S1.
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ASSENTOS N.º 15/1994, PUBLICADO NO D.R. N.º 236, DE 12/10/94, E N.º 3/1995, PUBLICADO NO DR N.º 95, DE 22/04/05.
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR (AUJ) N.º 4/2014, DE 20-03-2012, PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA – 1.ª SÉRIE, N.º 95, DE 19/05/2014.
Sumário :
1. Tendo sido reclamado um crédito emergente do incumprimento definitivo de um contrato-promessa, ainda antes da prolação do AUJ do STJ n.º 4/2014, de 19/05/2014, sem que a reclamante tenha alegado a sua qualidade de consumidora, não tendo as partes nem as instâncias se debruçado sequer sobre tal questão, que só vem suscitada em sede de revista, tal questão assume a natureza de uma questão nova não estritamente jurídica de que já não cumpre conhecer.

2. A sindicância do erro na apreciação das provas em sede de presunções judiciais pelo tribunal de revista, nos termos do n.º 3 do artigo 674.º do CPC, conforme jurisprudência consolidada, está circunscrita à averiguação de ofensa de qualquer norma legal ou de alguma incoerência ou ilogicidade que afete esse raciocínio probatório.

3. A vontade inequívoca de não cumprir, para efeitos de dispensa de interpelação admonitória, pode não ser expressa, admitindo-se que possa resultar de uma declaração negocial tácita estribada “em comportamentos concludentes apreensíveis pela atuação da parte inadimplente, em função dos deveres coenvolvidos na sua prestação, sendo de atender ao grau e intensidade dos atos por si perpetrados na inexecução do contrato, desde que objetivamente revelem inquestionável censura, não sendo justo que o credor esteja adstrito à vontade lassa do devedor.”

4. No quadro circunstancial apurado e atentos os ditames da boa fé na integração da declaração negocial como se preceitua no artigo 239.º do CC, é forçoso reconhecer, à luz do disposto no artigo 217.º, n.º 1, do mesmo Código, que o comportamento da promitente-vendedora evidencia uma inequívoca vontade de não cumprir a obrigação assumida para com a promitente-compradora, que é inteiramente imputável àquela, dispensando assim qualquer interpelação prévia admonitória.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça



I – Relatório


1. A sociedade AA - Empreendimentos Industriais e Urbanísticos, Ldª, em 08/11/2011, por apenso à execução singular comum instaurada pela sociedade BB - Serralharia Civil, Lda, contra “CC - Construções, Lda, em que foram penhoradas as frações urbanas designadas por A, B, C e H do prédio descrito sob o n.º … na Conservatória do Registo Predial de Ferreira do Zêzere, veio reclamar um crédito no valor de € 170.000,00, alegando, em resumo, que:

. A reclamante, em 09/02/2006, na qualidade de promitente-compra-dora, celebrou com a executada, como promitente-vendedora, um contrato-promessa de compra e venda de três lojas, respeitantes a um prédio em construção, identificado como lote 25, localizado na Fonte …, em Ferreira do Zêzere, pelo preço global de € 170.000,00, preço este totalmente pago através de cheque, no qual ficou prevista a outorga da escritura do contrato definitivo até 28/02/2007, aquando da conclusão da obra então em curso;

. Feita a escritura de constituição de propriedade horizontal do indicado prédio, as lojas foram designadas pelas fracções A, B e C, tendo a executada, após tal construção, entregue as chaves à reclamante, que assumiu a respetiva posse;

. Depois disso, apesar das sucessivas interpelações à executada para celebração do contrato definitivo, esta não efetuou a marcação da escritura nem compareceu na data designada pela reclamante;

. Nessas circunstâncias, a não comparência da executada configura incumprimento definitivo do contrato-promessa;

. A reclamante teve conhecimento da venda judicial das frações em causa através da afixação dos anúncios devidos nas mencionadas frações, assistindo-lhe o direito de retenção pelo crédito reclamado sobre as referidas frações, a graduar com preferência, designadamente, sobre o crédito hipotecário.

2. Notificada a executada, nos termos e para os efeitos constantes do artigo 869.º, n.º 2, 3 e 4, do CPC então em vigor, e nada tendo dito, considerou-se formado o título executivo e reclamado o crédito nos termos peticionados.

3. Por sua vez, a Caixa Geral de Depósitos, S.A., que também reclamou créditos sobre a executada, garantidos por hipoteca constituída sobre as frações penhoradas, veio impugnar, em 09/07/2012, o crédito reclamado pela AA, alegando, no essencial, que:

. Desconhece se as fracções objeto do contrato-promessa respeitam às penhoradas nos autos de execução e a si adjudicadas, estando as mesmas na sua posse desde 09.11.2011;

. Impugna os demais factos articulados pela AA, refutando a existência do crédito por esta reclamado e do direito de retenção invocado.

4. Realizada a audiência final, foi proferida a sentença de fls. 223 a 234, datada de 01/07/2013, na qual foi inserida a decisão sobre a matéria de facto e respetiva motivação, julgando-se improcedente a reclamação de crédito deduzida pela AA e, por consequência, não reconhecido esse crédito.

5. Inconformada com tal decisão, aquela reclamante apelou dela para o Tribunal da Relação de Coimbra, que julgou procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e, em sua substituição, reconheceu o crédito reclamado pela recorrente e o seu direito de retenção sobre as frações A, B e C do prédio acima indicado, graduando aquele crédito com preferência sobre o crédito hipotecário, conforme acórdão de fls. 269-282, de 14/10/ 2014, e acórdão retificativo de fls. 374.

6. Desta feita, veio agora a reclamante Caixa Geral de Depósitos recorrer de revista, formulando as seguintes conclusões:

1.ª - A recorrida AA - Empreendimentos Industriais e Urbanísticos, Ld.ª, tem por objeto a construção, compra e venda de imóveis, destinando ao seu negócio as três frações do prédio descrito sob o n.º …/Ferreira do Zêzere, que alegadamente prometeu comprar por € 170.000,00 à sociedade CC - Construções, Ld.ª, em 09/02/2006, precisa data em que vendeu pelo mesmíssimo preço a esta sociedade o lote de terreno descrito sob o mencionado número …/Ferreira do Zêzere;

2.ª - As assinaturas apostas no aludido contrato-promessa não foram reconhecidas, pesem embora os valores envolvidos, ademais responsabilizando contratualmente sociedades dedicadas ao ramo imobiliário;

3.ª - A recorrida AA - Empreendimentos Industriais e Urbanísticos, Ld.ª, não alegou nem provou a sua qualidade de consumidora, quando é certo que, nos termos do disposto na norma do n.º 1 do art.º 342.º, do CC, incumbia-lhe a prova daquele requisito, de que depende o direito de retenção;

4.ª – Assim não decidindo, o tribunal “a quo” violou o disposto nos artigos 342.º, n.º 1, e 755.º, n.º 1, al. f), do CC, este conjugado com a norma do n.º 1 do art. 2.º da Lei nº 24/96 de 31/07;

5.ª - Noutro passo, conforme resulta expressamente da norma da al. f) do n.º 1 do art.º 755.º do CC, o direito de retenção do beneficiário exige a verificação do incumprimento do negócio pela outra parte;

6.ª - No contrato-promessa dos autos não foi estipulada data para a celebração do contrato definitivo, não constando, sequer, que parte era responsável pela marcação da escritura de compra e venda, nem quem estava encarregue de diligenciar pela obtenção dos documentos necessários, nem em que prazo tais documentos deviam ser apresentados;

7.ª - In casu, a recorrida AA, Ld.ª, não requereu ao tribunal a fixação de um prazo razoável para que a CC - Construções, Ld.ª, cumprisse as obrigações que para ela decorriam da promessa de compra e venda;

8.ª - Do que vem a resultar que não se mostra sequer evidenciado no processo que a CC - Construções, Ld.ª, tenha incorrido em mora; e não havendo mora não se pode falar em incumprimento definitivo;

9.ª - As normas dos números 1 e 2 do art.º 777.º do CC e os factos provados não permitem conceber uma ideia de recusa antecipada do cumprimento por parte da CC - Construções, Ld.ª, por modo a reconhecer o direito de retenção da recorrida sobre as frações em questão;

10.ª - Os factos provados inculcam uma mancomunação entre a recorrida e a CC - Construções, Ld.ª, no sentido de fazer valer um crédito inexistente, fundado num contrato-promessa forjado;

11.ª - Entendendo diversamente, o tribunal “a quo” violou o disposto nos artigos 410.º, 415.º, 755.º, n.º 1, alínea f), e 777.º, n.º 1 e 2, todos do CC.


7. Por seu lado, a recorrida apresentou contra-alegações a sustentar a confirmação do julgado, rematando com a seguinte síntese conclusiva: 

1.ª - Nenhum reparo ou censura merece o acórdão recorrido, que reconheceu e graduou o crédito da AA, com preferência sobre o crédito hipotecário da ora Recorrente CGD;

2.ª - A Recorrente não pode trazer à apreciação do STJ a apreciação de matéria de facto, nem aludir à mesma, como forma de fundamentação do seu Recurso;

3.ª - Nem pode alegar, nesta instância, matéria de direito nova que não tenha aduzido ou invocado nas duas Instâncias anteriores;

4.ª - A ora invocada omissão de formalidades do art.º 410.º, n.º 3, do CC não compete à CGD, porquanto é doutrina e jurisprudência assentes que, uma tal omissão, apenas pode ser invocada pelo promitente-vendedor e/ou pelo promitente-comprador, e nunca por terceiros, ou conhecida oficiosamente pelo Tribunal;

5.ª - Não encontra qualquer suporte legal a circunstância invocada pela Recorrente, de pretender restringir o direito de retenção “sub judice” ao caso de promitentes-compradores particulares/consumi-dores;

6.ª - Porquanto o propósito do regime consagrado no Dec.-Lei n.º 379/86, de 11-11, foi precisamente alargar o âmbito de aplicação de tal instituto jurídico e de o restringir, tornando-o extensível a qualquer contrato-promessa onde tenha existido a “tradtio rei”;  

7.ª - A citação que é feita do relatório de tal Dec.-Lei para requerer decisão diferente é perfeitamente desprovida de qualquer sentido legal ou de qualquer suporte jurídico, uma vez que tal citação constitui um exemplo de caso a considerar com o novo regime;

8.ª - Não sendo, de modo algum, a restrição de aplicação do mesmo regime, pois, se o fosse, expressamente, o legislador teria considerado tal requisito, na norma que institui a prevalência do direito de retenção sobre o crédito hipotecário, o que não fez;

9.ª - Finalmente, o citado acórdão do STJ, de 20-03-2014, reporta-se a situação absolutamente diferente, pois versa sobre o caso de insolvência do promitente-vendedor, em que se protegeu o promitente-comprador, que era um particular, como forma de obviar à preferência resultante do CIRE aos créditos hipotecários dos Bancos, sem que isso constitua a restrição de tal direito de retenção a esses casos de particulares/consumidores;

10.ª – Tal restrição não tem suporte legal de prevalência de um direito sobre o outro.


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

        

II – Delimitação do objeto do recurso


Como é sabido, no que aqui releva, o objeto do recurso é definido em função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do CPC.

        Dentro desses parâmetros, as questões a decidir são as seguintes:

(i) – A questão de saber se a garantia do direito de retenção estabelecida no art.º 755.º, n.º 1, alínea f), do CC só aproveita a quem tenha a qualidade de consumidor;

(ii) – A questão da invocabilidade por terceiro da nulidade do contrato-promessa com fundamento na falta de reconhecimento das assinaturas dos promitentes, ao abrigo do n.º 3 do art.º 410.º do CC;

(iii) – A questão relativa à não verificação de incumprimento definitivo do contrato-promessa para efeitos de acionamento do direito de retenção como garantia da indemnização devida por tal incumprimento;   

(iv) – A questão do alegado conluio dos promitentes para fazer valer um crédito inexistente.


III – Fundamentação   

 

1. Factualidade dada como provada pela na 1.ª Instância


Vem dada como provada pelas Instâncias a seguinte factualidade: 

1.1. Em 30/09/2008, a sociedade “BB - Serralharia Civil, Lda”, instaurou contra “CC - Construções, Ld.ª”, execução para pagamento de quantia certa, dando à execução, como título executivo, uma injunção – alínea A) dos factos assentes;

1.2. Em 19/01/2011, foram penhoradas nos autos de execução as frações identificadas pelas letras A, B, C e H do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial e Ferreira do Zêzere sob o n.º … – alínea B) dos factos assentes;

1.3. A “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, reclamou nos autos créditos já reconhecidos por sentença de fls. 88 a 90, por beneficiar de hipotecas registadas sobre cada uma das frações desde 22/06/2006 – alínea C) dos factos assentes;

1.4. Com respeito a cada uma das frações referidas, já foi proferida sentença de graduação de créditos que graduou o crédito exequendo e os créditos reclamados pela “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, a fls. 88 e 90, para a qual se remete e aqui se considera integralmente reproduzida – alinea D) dos factos assentes;

1.5. Em 09/02/2006, entre a reclamante “AA – Empreendimentos Industriais e Urbanísticos, Ld.ª”, e a executada foi celebrado um acordo escrito, que denominaram “CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA”, tendo figurado nesse acordo, como 2.º outorgante, aquela reclamante e, como 1.º outorgante, a executada – alínea E) dos factos assentes;

1.6. Nesse acordo, declararam os outorgantes o seguinte:

«É celebrado o presente contrato promessa de compra e venda entre as partes, onde a primeira outorgante vende à segunda outorgante 3 lojas do prédio em construção no lote ... localizado na Fonte … – Ferreira do Zêzere, inscrito na matriz predial urbana pelo artigo … com a área de 381,80 metros quadrados.

As lojas serão entregues completamente prontas, excepto o chão que se será em betonilha, para posterior acabamento por parte dos compradores e incluem 3 arrecadações na cave (conforme projecto anexo). O valor global da venda é de 170.000,00 (cento e setenta mil euros), importância já recebida pelo primeiro outorgante através do cheque passado sobre o Banco DD n.º …. As obras terão a sua conclusão até 28 de Fevereiro de 2007.

Ferreira do Zêzere, 09 de Fevereiro de 2006.»

alínea F) dos factos assentes;

1.7. Até ao presente, a executada não celebrou com a sociedade “AA, Ld.ª”, o contrato prometido – alínea G) dos factos assentes;

1.8. Em 08/05/2008, a “AA, Lda.”, enviou à executada uma carta registada com a/r, recebida em 19/05/2008, na qual interpelava aquela ao cumprimento do acordado e lhe concedia o prazo de 30 dias para a marcação do contrato definitivo – alínea H) dos factos assentes;

1.9. Através de notificação judicial avulsa, cumprida pelo Tribunal de Ferreira do Zêzere, em 17/10/2008, a “AA, Ld.ª”, notificou a executada nas pessoas dos seus legais representantes para a marcação da escritura definitiva de compra e venda, a ocorrer no dia 29/10/2008, às 09h30, no Cartório Notarial do Dr. EE, em Tomar – alinea I) dos factos assentes;

1.10. A executada não compareceu nem se fez representar – alínea J) dos factos assentes;

1.11. As três lojas mencionadas no acordo escrito referido em 1.6 (alínea F) são as lojas penhoradas nos autos, identificadas sob as frações A, B e C, descritas na CRP sob os n.ºs 2174/20000703-A, 2174/20000703-B e 2174/20000703-C, e inscritas na matriz sob os artigos 3026-A, 3026-Be 3026-C – resposta ao art.º 1.º da base instrutória;

1.12. A “AA, Ld.ª”, pagou integralmente à executada o preço acordado de € 170.000,00 (cento e setenta mil euros), através do cheque n.º …, sacado sobre a agência de Cabaços do “Banco – Banco DD, S.A.”, no dia 09/02/2006 – resposta ao art.º 2.º da base instrutória;

1.13. Após a construção das frações referidas em 1.6. (alínea F), os legais representantes da executada entregaram aos legais representantes da “AA, Ld.ª”, as chaves dessas frações.


A matéria de facto acima descrita tem-se por adquirida para os autos, nada de relevante se oferecendo suscitar no âmbito da presente revista.

2. Do mérito do recurso

2.1. Enquadramento preliminar

Estamos no âmbito de um procedimento declarativo de reclamação, verificação e graduação de créditos, deduzido em 08/11/2011, por apenso a uma execução instaurada em 2008, em que está em causa o reconhecimento e graduação de um crédito reclamado pela “AA, Ld.ª”, ora recorrida, alegadamente, emergente de um contrato-promessa com tradição da coisa, incidente sobre as frações penhoradas e garantido por direito de retenção, nos termos do artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do CC.

Reclamado o referido crédito com vista à obtenção de título executivo para efeitos de graduação, sem que a executada nada tenha dito, considerou-se formado o pretendido título, ao abrigo do art.º 869.º, n.º 1 a 4, do CPC na versão então em vigor, face ao que a também credora-reclamante Caixa Geral de Depósitos, com garantia hipotecária sobre os bens penhorados prometidos vender, impugnou aquele crédito e garantia nos termos acima relatados.   

Na sentença proferida em 1.ª instância, foi considerado que a promitente-compradora e reclamante “AA, Ld.ª”, não operara a conversão da mora em incumprimento definitivo do invocado contrato-promessa para os efeitos do disposto no art.º 755.º, n.º 1, alínea f), do CC, concluindo-se pelo não reconhecimento do direito reclamado e pela consequente improcedência dessa reclamação. 

Em sentido contrário, no acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de Coimbra, ante a factualidade provada, considerou que a absoluta inércia da promitente-vendedora, aqui executada, e o facto de as frações haverem sido penhoradas eram reveladores de uma vontade tácita de recusa de cumprir o contrato prometido por parte daquela.

Considerando verificado, nessa base, o incumprimento imputável à promitente-vendedora e comprovada a tradição das frações, concluiu o tribunal a quo pelo reconhecimento do crédito reclamado pela sociedade “AA, Ld.ª”, e do respetivo direito de retenção sobre as frações A, B e C penhoradas, graduando esse crédito com preferência sobre o crédito hipotecário da Caixa Geral de Depósitos, ora recorrente.

É, pois, neste quadro que nos cumpre agora ocupar-nos de cada umas das questões acima enunciadas. 

2.2. Da questão sobre a qualidade de consumidor para efeitos da titularidade do direito de retenção estabelecido no art.º 755.º, n.º 1, alínea f), do CC

A recorrente questiona a questão da aplicação ao caso dos autos do disposto no artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do CC, sustentando que aquele normativo deverá ser interpretado, restritivamente, no sentido de só beneficiar o promitente que detenha a qualidade de consumidor, qualidade esta não provada nem sequer alegada pela reclamante “AA, Ld.ª”. E, em apoio desse entendimento, convoca um acórdão do STJ, de 14/10/2014, no qual vem citado o acórdão de uniformização de jurisprudência, de 20/ 03/2014, publicado no Diário da República n.º 95, I – Série-A, de 19/05/ 2014.


Por seu lado, a recorrida rebate tal entendimento, considerando que:

- o propósito do regime consagrado no Dec.-Lei n.º 379/86, de 11-11, foi precisamente alargar o âmbito de aplicação de tal instituto jurídico, e não restringi-lo, tornando-o extensível a qualquer contrato-promessa onde tenha ocorrido a traditio rei;  

- a citação feita do relatório de tal diploma, para requerer decisão diferente, é perfeitamente desprovida de qualquer sentido legal ou de qualquer suporte jurídico, uma vez que tal citação constitui apenas um exemplo de caso a considerar com o novo regime;

- se a intenção do legislador fosse aquela restrição, tê-lo-ia consagrado expressamente na norma que institui a prevalência do direito de retenção sobre o crédito hipotecário, o que não fez;

- o citado acórdão do STJ, de 20-03-2014, reporta-se a uma situação absolutamente diferente, versando sobre o caso de insolvência do promitente-vendedor, em que se protegeu o promitente-comprador que era um particular, como forma de obviar à preferência resultante do CIRE aos créditos hipotecários dos Bancos, sem que isso constitua a restrição de tal direito de retenção aos casos de particulares/ consumidores.


Vejamos.

A alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º do CC, aditada pelo Dec.-Lei n.º 379/86, de 11-11, estabelece, em especial, que goza do direito de retenção: 

f) – O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º.

    De resto, esta disposição operou a trasladação de preceito semelhante que havia sido introduzido no n.º 3 do artigo 442.º do mesmo Código pelo Dec.-Lei n.º 236/80, de 18-07, este sim inovador já que não constava da redação originária desse artigo, e que passou a ter o seguinte teor:

No caso de ter havido tradição da coisa objecto do contrato-promessa, o promitente-comprador goza, nos termos gerais, do direito de retenção sobre ela, pelo crédito resultante do incumprimento pelo promitente-vendedor.

     Face à controvérsia que então se suscitava sobre a prevalência do nóvel direito de retenção em relação a hipotecas anteriormente registada, o preâmbulo do Dec.-Lei n.º 379/86 explicitou as razões que estiveram na base daquela inovação, considerando que:

«Tem de reconhecer-se que, na maioria dos casos, a entrega da coisa ao adquirente, apenas se verifica com o contrato definitivo. E, quando se produza antes, não há dúvida de que se cria legitimamente, ao beneficiário da promessa, uma confiança mais forte na estabilidade ou concretização do negócio. A boa fé sugere, portanto, que lhe corresponda um acréscimo de segurança.

O problema só levanta particulares motivos de reflexão precisamente em face da realidade que levou a conceder essa garantia: a da promessa de venda de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, maxime tomados de instituições de crédito. Ora, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada (artigo 759.º, n.º 2, do Código Civil). Logo, não faltarão situações em que a preferência dos beneficiários de promessas de venda prejudique o reembolso de tais empréstimos.

Neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam ou esqueçam a protecção devida aos legítimos direitos das instituições e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da actividade económico-financeira. Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de selectividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras.

Persiste, em suma, o direito de retenção que funciona desde 1980. No entanto, corrigem-se inadvertências terminológicas e desloca-se essa norma para lugar adequado, incluindo-se entre os restantes casos de direito de retenção [artigo 755.º, n.º 1, alínea f)].»

    Todavia, continuou a colocar-se a questão da aplicação daquele normativo em sede de critérios práticos da justa medida, razoabilidade e adequação material ínsitos no princípio de proporcionalidade.”

      E foi nessa base que foi proferido o Acórdão Uniformizador (AUJ) do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014, de 20-03-2012, publicado no Diário da República – 1.ª Série, n.º 95, de 19/05/2014, tirado com expressivos votos de vencido, a consagrar a seguinte orientação jurisprudencial:

No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído na alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º do Código Civil

    Apesar da natureza não absolutamente vinculativa dos acórdãos uniformizadores, estes devem ser acatados como jurisprudência predominante, salvo quando ocorram circunstâncias supervenientes ponderosas que imponham uma revisão ou afastamento da doutrina perfilhada.

    É certo que o indicado acórdão uniformizador se inscreve no domínio específico da graduação de créditos em processo de insolvência e que o segmento de uniformização não versa expressamente sobre a generalidade das situações a que o preceito em causa possa ser aplicado, mas não é menos certo que da fundamentação daquele acórdão e do teor dos votos de vencido que lhe foram apostos resulta, como premissa lógica, que essa doutrina será aplicável no sentido de o disposto na alínea f) do n.º 1 do art.º 755.º do CC compreender, exclusivamente, qualquer promitente-comprador que detenha, simultaneamente, a qualidade de consumidor[1].  

   O que aqui se poderia discutir seria o alcance a dar ao conceito de consumidor para efeitos de aplicação daquela orientação jurisprudencial, mais precisamente: se deverá ser considerado um conceito restrito, em conformidade com a definição dada no art.º 2.º, n.º 1, da Lei n.º 24/96 (Lei da Defesa do Consumidor), de 31/07, com as alterações subsequentes e republicado pela Lei n.º 47/2014, de 28-07, ou mesmo com a definição dada na alínea c) do artigo 3.º do Dec.-Lei n.º 24/2014, de 14/02, que estabelece o regime legal aplicável aos contratos celebrados à distância; ou se, porventura, se deverá adotar ainda um conceito de consumidor mais alargado no sentido de compreender entes coletivos que não disponham de competência específica para o negócio em causa e, portanto, nessa medida, equiparáveis a pessoas singulares, como o assumido nos artigos 10.º, n.º 1, e 11, n.º 1 e 2, do anteprojeto do Código do Consumidor.

  Note-se que, neste último sentido, o acórdão deste Supremo Tribunal, de 29/05/2014, proferido no processo n.º 1092/10.0TBLSD-G.P1.S1[2], considerou que:

«A inclusão do consumidor no texto uniformizante apoiou-se, como da fundamentação consta, no que defende Miguel Pestana de Vasconcelos, em Cadernos de Direito Privado, n.º 33, 3 e seguintes.

Este autor dedica ali a extensa nota de pé de página n.º 25 à noção de consumidor, sustentando que é ponderada e equilibrada, devendo “orientar o intérprete na concretização do consumidor para este efeito”, a definição resultante dos artigos 10.º, n.º 1, e 11, n.ºs 1 e 2, do anteprojeto do Código do Consumidor.  

É, então, “consumidor a pessoa singular que actue para a prossecução de fins alheios ao âmbito da sua actividade profissional, através do estabelecimento de relações jurídicas com quem, pessoa singular ou colectiva, se apresenta como profissional”.

Podendo estender-se o conceito às pessoas coletivas, se provarem que não dispõem nem deveriam dispor de competência específica para a transação em causa e desde que a solução se mostre de acordo com a equidade e às pessoas singulares que atuem na prossecução de fins que pertençam ao âmbito da sua atividade profissional, se provarem o que acaba de ser referido relativamente às pessoas coletivas.

O próprio texto fundamentante do Acórdão Uniformizador fornece na nota 10 elementos que permitem vislumbrar o que se quis incluir e excluir quando se inseriu o conceito na parte da uniformização”, quando ali se refere que “… não sofre dúvida que o promitente-vendedor é in casu um consumidor no sentido de ser um utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para o seu uso próprio e não com escopo de revenda”.

    E, no citado aresto, concluiu-se que:

  «Deste texto, conjugado com o que vimos referindo em abstrato, cremos poder concluir que o conceito de consumidor inserto no texto da uniformização só está excluído aquele que adquire o bem no exercício da sua atividade profissional de comerciante de imóveis.»


   Sucede que, no caso vertente, a reclamante, ora recorrida, AA, Ld.ª, não alegou a qualidade de consumidor, nem tal questão fora suscitada na impugnação contra aquela deduzida a fls. 137-139, em 09/07/2012, pela ora recorrente Caixa Geral de Depósitos, não sendo também objeto de apreciação na sentença da 1.ª instância proferida em 01/07/2013.

   Outrossim, tal questão não foi suscitada no âmbito do recurso de apelação, mormente pela ali recorrida Caixa Geral de Depósitos, não tendo sido objeto de pronúncia no acórdão recorrido, datado de 14/10/2014, já posterior ao mencionado AUJ n.º 4/2014, de 20-03-2012, publicado no DR em 19/05/2014, que se confinou à questão do incumprimento definitivo do contrato-promessa em causa e, nessa base, ao reconhecimento do crédito reclamado e do respetivo direito de retenção.    

   A falta de oportuna suscitação dessa questão, nestes autos, coloca assim a melindrosa situação preconizada no voto de vencido do Exm.º Juiz Conselheiro Lopes do Rego aposto no AUJ n.º 4/2014, quando, lucidamente, observa o seguinte:

«Saliente-se, aliás, que a orientação ora adotada pelo Plenário, ao erigir a qualidade de consumidor em verdadeiro elemento constitutivo essencial da garantia real / direito de retenção, impondo, consequentemente, ao reclamante o ónus de alegação e prova dos factos em que se consubstancia tal qualidade de consumidor, vem criar uma situação delicada nos processos pendentes, em que o reclamante não curou naturalmente de alegar, em termos processualmente adequados, tal qualidade jurídica, cuja essencialidade não era razoavelmente previsível – estando ultrapassado o momento processual próprio para completar ou corrigir a petição insuficiente.»     

     Acresce que a aqui recorrente de revista não arguiu qualquer vício de omissão de pronúncia daquele acórdão, circunscrevendo o objeto do recurso às questões de mérito, incluindo nelas a enunciada questão da falta de alegação e prova da qualidade de consumidor por parte da credora-reclamante, sendo que a nulidade do referido acórdão com fundamento em omissão de pronúncia não é de conhecimento oficioso por parte do tribunal de recurso.

     Trata-se, por conseguinte, de uma questão nova, não apreciada pelas instâncias em relação à qual não foi arguido o vício formal de a omissão de pronúncia.

     Não se ignora que compete ao tribunal de recurso conhecer das normas de direito aplicáveis às questões que constituem objeto do recurso, mesmo que não convocadas pelas partes, ao abrigo do n.º 3 do art.º 5.º do CPC, mas só o deve fazer na medida em que tais disposições interfiram com a solução a dar às questões solvendas. 

     Porém, afigura-se que a questão, só agora levantada na presente revista, sobre a falta de qualidade de consumidor da reclamante não se integra no núcleo de questões que foram suscitadas perante as instâncias e aí discutidas, além de que não se trata de uma questão estritamente jurídica, envolvendo também uma componente factual que não fora, oportunamente, trazida aos autos e cujo relevo não era então razoável supor.

     Nessas circunstâncias, não tendo sido, como não foi, suscitado o vício de omissão de pronúncia sobre essa questão nova, nem tão pouco fornecendo os autos uma base factual alegada pelas partes que permita entrosá-la nas questões suscitadas perante as instâncias e por estas decididas, está vedado a este tribunal de revista empreender, oficiosamente, a sua apreciação. Por outro lado, nada de essencial tendo sido alegado, nesse particular, pelas partes não se impõe sequer usar dos poderes de ampliação da matéria de facto previstos no n.º 3 do art.º 682.º do CPC.  

        Termos em que se conclui por não tomar conhecimento da referida questão, confinando-nos às demais questões suscitadas.           

2.3. Da invocabilidade da nulidade do contrato-promessa por falta de reconhecimento das assinaturas dos promitentes

Como ficou acima enunciado, a recorrente suscita a questão da falta de reconhecimento presencial das assinaturas apostas no invocado contrato-promessa, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 410.º do CC, em relação ao qual a mesma recorrente detém a qualidade de terceiro.

Ora, segundo os assentos do STJ n.º 15/1994, publicado no D.R. n.º 236, de 12/10/94, e n.º 3/1995, publicado no DR n.º 95, de 22/04/05, agora com valor de acórdãos uniformizadores, a omissão das mencionadas formalidades não pode ser invocada por terceiro nem é de conhecimento oficioso.

Assim, sem necessidade de mais considerações, improcedem também aqui as razões da recorrente.

2.4. Quanto ao incumprimento definitivo do contrato-promessa

A questão central do presente recurso consiste afinal em saber se é de ter por verificado o incumprimento definitivo do contrato-promessa imputável à promitente-vendedora, para efeitos de aplicação do disposto na alinea f) do n.º 1 do art.º 755.º do CC.

Como é sabido, segundo doutrina e jurisprudência claramente dominante, o direito de retenção a favor do promitente-comprador estabelecido naquele normativo, como garantia do crédito resultante do incumprimento pelo promitente-vendedor, pressupõe o não cumprimento definitivo do contrato-promessa.

Ora, no que aqui releva, segundo o n.º 1 do artigo 808.º do CC:

 Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação.

   Um destes efeitos é precisamente, no caso de contrato bilateral, o direito que assiste ao credor de resolver o contrato, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 801.º daquele Código, atenta a equiparação que, no n.º 1 deste artigo, é feita entre a impossibilidade da prestação imputável ao devedor e a falta de cumprimento culposa da obrigação. Trata-se pois de um direito de resolução legal, o qual, segundo a doutrina corrente, se funda numa espécie de cláusula resolutiva tácita[3].

      De acordo com este quadro normativo, para que surja, na esfera jurídica do credor, o direito potestativo de resolução legal do contrato não basta, salvo nos casos especialmente previsto na lei, a ocorrência da simples mora do devedor, traduzida na falta de cumprimento da obrigação dentro do prazo que tiver sido inicialmente fixado.

Em face do prescrito no indicado n.º 1 do artigo 808.º, importa que o credor, face à mora do devedor, interpele este para cumprir a obrigação, fixando-lhe um prazo suplementar razoável, com a advertência de que a inobservância deste prazo implicará para todos os efeitos o não cumprimento da obrigação, o mesmo é dizer, o incumprimento definitivo do contrato ou mais rigorosamente não cumprimento definitivo. Essa interpelação é designada por interpelação admonitória[4].

      Feita a interpelação admonitória ao devedor, se este mantiver a situação de incumprimento, o credor poderá, em alternativa, exigir-lhe uma indemnização substitutiva da prestação em falta – a chamada grande indemnização -, por violação do interesse contratual positivo, nos termos do artigo 798.º do CC, ou optar por resolver o contrato, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 801.º, e exigir, para além da restituição do que tiver prestado, nos termos do 433.º com referência ao artigo 289.º do CC, bem como a indemnização pelos prejuízos advenientes da frustração do contrato, do dano in contrahendo ou dano confiança, fundada na violação do interesse contratual negativo, a coberto do disposto no artigo 227.º do CC[5]. No âmbito do contrato-promessa, na falta de estipulação em contrário, a indemnização pelo não cumprimento confinar-se-á à perda do sinal ou ao pagamento do dobro deste, ou ao aumento do valor da coisa ou do direito à data do não cumprimento, nos termos do n.º 4 do artigo 442.º do CC.

Porém, a par disso, tem sido admitido que, para os mesmos efeitos, é dispensável a interpelação admonitória, desde que se verifique uma recusa inequívoca de cumprir por parte do devedor[6].

No caso vertente, o contrato-promessa em apreço não contém a fixação de qualquer prazo essencial para a celebração do contrato definitivo.

Também da factualidade provada não resulta que a ora credora- reclamante tenha operado a conversão da mora em incumprimento definitivo por via de interpelação admonitória da promitente-vendedora. Resta saber se os factos provados permitem concluir pela verificação de recusa inequívoca de cumprir por parte desta, como se decidiu no acórdão recorrido, de modo a tornar dispensável tal interpelação.


Ora, da factualidade provada respiga-se o seguinte:

   (i) - Até ao presente, a executada não celebrou com a sociedade “AA, Ld.ª” o contrato prometido – ponto 1.7 correspondente à alínea G) dos factos assentes;

  (ii) - Em 08/05/2008, a “AA, Lda.”, enviou à executada uma carta registada com a/r, recebida em 19/05/2008, na qual interpelava aquela ao cumprimento do acordado e lhe concedia o prazo de 30 dias para a marcação do contrato definitivo – ponto 1.8 correspondente à alínea H) dos factos assentes;

   (iii) - Através de notificação judicial avulsa, cumprida pelo Tribunal de Ferreira do Zêzere, em 17/10/2008, a “AA, Ld.ª”, notificou a executada nas pessoas dos seus legais representantes para a marcação da escritura definitiva de compra e venda, a ocorrer no dia 29/10/2008, às 09h30, no Cartório Notarial do Dr. EE, em Tomar – ponto 1.9 correspondente alínea I) dos factos assentes;

   (iv) – A executada não compareceu nem se fez representar – ponto 1.10 correspondente alínea J) dos factos assentes;

   (v) - As três lojas mencionadas no acordo escrito referido em 1.6 (alínea F) são as lojas penhoradas nos autos, identificadas sob as frações A, B e C, descritas na CRP sob os n.ºs 2174/20000703-A, 2174/20000703-B e 2174/ 20000703-C, e inscritas na matriz sob os artigos 3026-A, 3026-Be 3026-C – ponto 1.11 correspondente resposta ao art.º 1.º da base instrutória;

   (vi) - A “AA, Ld.ª”, pagou integralmente à executada o preço acordado de € 170.000,00, através do cheque n.º 8430710800, sacado sobre a agência de Cabaços do “ Banco DD, S.A.”, no dia 09/ 02/2006 – ponto 1.12 correspondente resposta ao art.º 2.º da base instrutória;

   (vii) - Após a construção das frações referidas em 1.6. (alínea F), os legais representantes da executada entregaram aos legais representantes da “AA, Ld.ª”, as chaves dessas frações – ponto 1.13.


A partir deste circunstancialismo, no acórdão recorrido, concluiu-se que:

[…] a absoluta inércia da executada [promitente-vendedora] e a circunstância de haverem sido penhoradas as fracções (prometidas), devido ao não pagamento da quantia exequenda, revelam tacitamente, neste contexto, a vontade de não cumprir, ou seja, a recusa antecipada de cumprimento.   

    Trata-se, de certo modo, de uma ilação inferida dos factos provados em sede de presunção judicial, nos termos dos artigos 349.º e 351.º do CC e a coberto do artigo 607.º, n.º 4, aplicável por via do artigo 663.º, n.º 2, do CPC.

   Sucede que a sindicância do erro na apreciação das provas em sede de presunções judiciais pelo tribunal de revista, nos termos do n.º 3 do artigo 674.º do CPC, conforme jurisprudência consolidada, está circunscrita à averiguação de ofensa de qualquer norma legal ou de alguma incoerência ou ilogicidade que afete esse raciocínio probatório[7].

   Poder-se-á, no entanto, contrapor que “é questão de direito afirmar a existência de uma declaração tácita”, posto que “ela se deduz de factos que com toda a probabilidade a revelam”, envolvendo, nessa medida, uma dedução em sede de questão jurídica[8]

    Seja como for, no caso presente, não se afigura que a conclusão a que chegou o tribunal a quo ofenda qualquer norma legal ou padeça de incoerência lógica.

    Acresce que, como se afirma no acórdão deste Supremo Tribunal, de 22/06/2010, proferido no processo n.º 6134/05.8TBSTS.P1.S1, a vontade inequívoca de não cumprir pode não ser expressa, admitindo-se que “possa resultar de uma declaração negocial tácita, de comportamentos concludentes apreensíveis pela actuação da parte inadimplente, em função dos deveres coenvolvidos na sua prestação, sendo de atender ao grau e intensidade dos actos por si perpetrados na inexecução do contrato, desde que objectivamente revelem inquestionável censura, não sendo justo que o credor – por mais tolerante que tenha sido na expectativa do cumprimento – esteja adstrito à vontade lassa do devedor”[9].       

No caso presente, do acervo fáctico colhe-se que a promitente-vendedora, tendo recebido integralmente o preço acordado para a venda das indicadas frações, manteve uma inércia persistente quanto à celebração do contrato definitivo, apesar das sucessivas insistências da promitente-compradora para a outorga da escritura. Além disso, não pode deixar de lhe ser imputável o facto de tais frações terem sido posteriormente penhoradas na execução aqui em referência para a satisfação de créditos que deixou de cumprir, o que se afigura de molde a comprometer, irremediavelmente, a celebração do contrato prometido com a reclamante ora recorrida.    

Neste quadro circunstancial e atentos os ditames da boa fé na integração da declaração negocial como se preceitua no artigo 239.º do CC, é forçoso reconhecer, à luz do disposto no artigo 217.º, n.º 1, do mesmo Código, que o comportamento da promitente-vendedora evidencia uma inequívoca vontade de não cumprir a obrigação assumida para com a promitente-compradora e que é inteiramente imputável àquela, dispensando assim qualquer interpelação prévia admonitória, tendo-se o contrato-promessa por definitivamente incumprido, tal como se decidiu no acórdão recorrido.  

Termos em que improcedem, nesta parte, as razões da recorrente.

2.5. Quanto ao alegado conluio dos promitentes

Vem ainda a recorrente, in extremis, aludir a um eventual conluio que teria havido entre os promitentes com o fito de fazer valer um crédito inexistente com base no referido contrato-promessa.

Curiosamente, a ora Recorrente nem tão pouco alegou tal situação na impugnação deduzida contra a ora recorrida nem dos factos provados se colhe qualquer matéria aproveitável nesse sentido.

Assim, improcede também tal fundamento.


IV - Decisão


Pelo exposto, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

As custas do recurso ficam a cargo da Recorrente.

Lisboa, 30 de abril de 2015

Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Carlos Alberto Andrade Bettencourt de Faria

João Luís Marques Bernardo

 _____________________
[1] Vide, neste sentido, os acórdãos do STJ proferidos: no processo n.º 1206/11.2TBLSD-H.P1.S1, de 09/ 07/2014, relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Nuno Cameira; no processo n.º 986/12.2TBFAF-G.G1.S1, de 14/ 10/2014, relatado pelo Exm.º Juiz Cons João Camilo, e no processo n.º 7617/11.6TBBRG-C.G1.S1, de 25/11/2014, relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Fernandes do Vale. 
[2] Relatado pelo aqui 2.º adjunto, Juiz Cons. João Bernardo e acessível na Internet.
[3] Vide, Castro Mendes, Direito Civil (Teoria Geral), Vol. III, AAFDL, 1973, pags. 406/407.
[4] Sobre a conversão da mora em não cumprimento definitivo por via da interpelação admonitória, vide, entre outros, Baptista Machado, Pressupostos da Resolução por Incumprimento, in Boletim da Faculdade de Direito – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J.J. Teixeira Ribeiro, Vol. II – Iuridica, pags. 343 e segs.; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª Edição, Almedina, pags. 124-126, e Ano-tação ao Ac. do STJ. De 2/11/1989, in RLJ Ano 128º, pags. 137-138; Almeida Costa, Direito das Obri-gações, 11.ª Edição, Almedina, pags. 1054-1055.
[5] Sobre este ponto vide, além dos autores e lugares citados na nota precedente, Jorge Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, Vol. II , Almedina, 391-398.
[6] Vide, Brandão Proença, A Resolução do Contrato no Direito Civil – Do Enquadramento e do Regime, Separata do Vol. XXII do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1982, pag. 128.
[7] Neste sentido, vide, por todos, o acórdão do STJ, de 09/07/2014, relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Pinto de Almeida, no processo n.º 299709/11.0YIPRT.L1.S1, acessível na Internet.
[8] Vide, neste sentido, o acórdão do STJ, de 05/11/1997, BMJ n.º 471, p. 361.
[9] Acórdão relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Fonseca Ramos, acessível na Internet.