Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
109/18.4GSSB.E1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: HOMICÍDIO
ASCENDENTE
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CULPA
PROVOCAÇÃO
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 10/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO PENAL – CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA / HOMICÍDIO QUALIFICADO.
Doutrina:
- Claus Roxin, Derecho Penal, Parte General, Tomo II, Especiales Formas de Aparición del Delito, Civitas e Thomson Reuters, 2014, na Seccion 11ª ; Fundamentos Politico-criminales del Derecho Penal (La determinación de la pena a la luz y de la teoria de los fines de la pena), Hammarabi, Buenos Aires, p. 143 a 166;
- Günther Jakobs, Derecho Penal, Parte General, Fundamentos y Teoria de la Imputación, p.8;
- José Faria Costa, Noções Fundamentais de Direito Penal (Fragmenta iuris Poenalis), Coimbra Editora, 4ª edição, 2015, p. 164;
- Winfried Hassemer, Fundamentos del Derecho Penal, Editorial Bosch, Barcelona, 1984, p. 127.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 71.º, N.º 1 E 132.º, N.º 2, ALÍNEA A).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 27-02-2013, RELATOR HENRIQUES GASPAR, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 19-02-2014, PROCESSO N.º 168/11.0GCCUB.S1;
- DE 23-03-2014, RELATOR OLIVEIRA MENDES, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 12-03-2015, PROCESSO N.º 185/13.6.GCALQ.L1.S1;
- DE 12-03-2015, PROCESSO N.º 145/14.0JAPRT;
- DE 23-04-2015, PROCESSO N.º 693/13.9JDLSB.L1;
- DE 02-12-2015, PROCESSO N.º 1730/14.5 JAPRT-S1;
- DE 17-03-2016, RELATOR ARMINDO MONTEIRO, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 09-10-2019, PROCESSO N.º 24/17.9JAPTM.E1.S1.
Sumário :
I - A qualificação do crime de homicídio qualificado, verificada a relação de parentesco inserta na al. a) do n.º 2 do art. 132.º do CP, deve ser considerada independentemente do estado de relacionamento social-familiar que exista entre o ascendente e o descendente.

II - A especial censurabilidade e perversidade, exigida para a agravação do crime de homicídio, não desfalece no caso de o agente, pai da vítima, com quem convive em comunhão de habitação, o facto de o relacionamento e a vivência intersocial e familiar se haver deteriorado, por razões que se prendem com comportamentos considerados desviantes e anti-sociais do filho.

III - Tendo o tribunal recorrido procedido à desqualificação do crime, ainda que a questão não haja sido posta em tela de juízo no recurso interposto, não está o tribunal de recuso ilaqueado de rever a qualificação jurídico-penal dos factos provados, desde que da condenação não advenha um agravamento da sanção irrogada pelo tribunal recorrido.

IV - Constitui base bastante para uma atenuação especial da culpa do agente de um crime de homicídio, o facto de, sendo pai, sofrer constantes ameaças do filho com quem comparte o mesmo espaço habitacional e que desenvolve um comportamento de dissidio e discrepância arrogante e provocatória para com o agente.

Decisão Texto Integral:
I. – RELATÓRIO.


O arguido AA, com os sinais identificativos constantes do processo, foi submetido a julgamento, pelos factos constantes da acusação a que foi feito corresponder a prática, em autoria material e em concurso efectivo, de: “Um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, previsto e punível pelo artigo 132.°, nºs 1 e 2, alíneas a), e) in fine e j) e 26.°, todos do Código Penal; e de

- Um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86.°, n." 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.”

Após julgamento. O tribunal colectivo, comprovada a factualidade descrita na acusação, proferiu veredicto em que decidiu (sic) : “(…) julgar a acusação parcialmente procedente, por provada” e, consequentemente, “1. Absolver o arguido AA da prática em autoria material de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, previsto e punível pelo artigo 132º, nºs 1 e 2, alíneas a), e) in fine e j) e 26º, todos do Código Penal.

E convolando esse crime de homicídio qualificado, para o seu tipo simples;

2. Condenar o arguido, em concurso real e efectivo, como autor material na forma consumada de um crime de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131º do Código Penal, na pena de 14 (catorze) anos de prisão.

3. Condenar o arguido em concurso real a efectivo, como autor material de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 3 (três) anos de prisão.

4. E em cúmulo jurídico das penas parcelares referidas em 2. e 3., condenar o arguido na pena única de 15 (quinze) anos de prisão.”

Em discordância com o julgado, recorre o arguido, tendo rematado a fundamentação, com o epítome conclusivo que a seguir queda extractado.  


I. a). – QUADRO CONCLUSIVO.

1. Estamos perante um arguido com 60 anos e durante toda a sua vida sempre pautou os seus comportamento pelo respeito e no cumprimento das normas de convivências em sociedade, sendo um arguido primário em qualquer tipo de crimes.

2. Um arguido que o medo e a frustração tomaram conta de si por breves segundos e cometeu um acto impensável, que o irá acompanhar para o resto da vida, uma peso que jamais irá desaparecer.

3. Ele próprio jamais se irá perdoar pelo seu acto, penitenciando-se diariamente!

4. 0 arguido confessou os factos de que vinha acusado, de tal forma que em sede audiência de discussão e julgamento foi prescindida a inquirição das testemunhas, tendo colaborado com o tribuna de forma plena.

5. Quer a entrega voluntária, a confissão, o arrependimento, o seu percurso de vida, a sua idade, debilidade física e psicológica, deveria ter sido evidenciadas, na aplicação da pena.

6. Entende a defesa do arguido que em ambos os crimes, as penas aplicadas, foram superiores ao meio da moldura penal, o que não se aceita, no presente caso, devendo ficar abaixo do meio da pena em ambos os crimes.

7. No crime de homicídio, em que o próprio tribunal afirma que " (...) entre o meio e o limite máximo da pena (mais próximo contudo daquele primeiro)" não se pode aceitar os 14 anos.

8. Entende a defesa do arguido que deveria ser aplicado ao arguido a pena de 10 anos pelo crime de homicídio.

9. Quanto ao crime de arma proibida, estamos perante um arguido que foi caçador, e que adquiriu a arma em causa para prática venatória, cumprindo todos os requisitos legais para tal, para além da formação e experiência.

10. Não se pode confundir este arguido com outros arguidos que adquirem as armas com intenção de praticar crimes, sendo que as mesmas nunca estão registas para dificultar a identificação do seu titular.

11. Entende a defesa do arguido que deveria ser aplicado ao arguido a pena de 1 ano pelo crime de detenção de arma proibida.

12. Sem quaisquer dúvidas, as penas aplicadas terão que ser reduzidas, tendo em conta o caso concreto.

(…) deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser reduzida as penas aplicadas ao arguido e feito o cúmulo nessa medida.”

Em diserta resposta ao pedido do recorrente, advoga, em conclusão, a Digna Magistrada do Ministério, junto da comarca de ..., que (sic):

1 - AA foi condenado pela prática, em autoria material e concurso real, de um crime de homicídio simples, p. e p. pelo art° 131°, do Código Penal, na pena de 14 (catorze) anos de prisão e um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art° 86º, nº 1, al.. c) da lei no 5 de 23 de Fevereiro, na pena de 3 (três) anos de prisão.

Em cúmulo jurídico, foi o mesmo condenado na pena única de 15 (quinze) anos de prisão.

2 - O arguido AA insurge-se quanto a esta medida da pena, alegando, para tanto e em síntese, que a pena devia ter sido especialmente atenuada; a pena aplicada foi exagerada, não se tomando em devida consideração, os art°s 40º e 71º do Código Penal, nomeadamente o grau de ilicitude do facto, o seu modo de execução, a gravidade das suas consequências a motivação e as condições pessoais e económicas.

3 - O arguido dirige as suas motivações ao Tribunal da Relação de Évora, invocando recorrer de facto e de direito, juntando os suportes da gravação da prova. Após elencar os factos provados e até parte da fundamentação do acórdão, apresenta conclusões apenas relativas à medida da pena.

4 - E se assim é, atenta a moldura penal em causa, estando apenas em divergência a medida da pena, o recurso deve ser remetido aos Exºs Sr.s Conselheiros, junto do STJ - art° 432°, nº1, al. c) do CPP.

5 - Concluindo-se não existir no texto da motivação, as especificações a que alude o art.º 412°, n° 3, do CPP, não pode o recorrente, sequer, ser convidado a corrigir as conclusões da motivação, pelo que o efeito será o não conhecimento da invocada impugnacão da matéria de facto e a improcedência do recurso nesse âmbito.

6 - Já no que concerne ao incumprimento do nº 2 do art° 412º do CPP, porque tal aditamento em nada altera o teor do recurso, entende-se ser de convidar o recorrente a aperfeiçoar as conclusões do mesmo, nos termos do preceituado no n° 3 do art° 417º do CPP.

7 - Pressuposto material da atenuação especial da pena é, pois, a ocorrência de acentuada diminuição da ilicitude, da culpa ou das exigências de prevenção, sendo certo que tal só se deve ter por verificado quando a imagem global do facto, resultante das circunstâncias atenuantes, se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.

8 - Ora, do contexto em que o arguido se determinou e dispôs a cometer os factos delituosos, ao contrário do alegado por aquele, não se pode considerar excepcional em matéria de ilicitude, culpa ou prevenção. Não deve nem pode, pois, considerar-se acentuadamente diminuída a culpa do arguido AA nem a ilicitude dos factos ou a necessidade da pena.

9 - Mas se assim é, também não repugna uma pena um pouco inferior, concretamente no meio da pena abstracta, uma vez que as razões de prevenção especial não se mostram elevadas, tendo em conta que o arguido, sexagenário, não tem antecedentes criminais, o que, no caso em concreto, é relevante

10 - Concordante com tal solução (meio da pena), será também o dolo necessário, menos intenso que o directo, como supra se refere.

11 - Por outro lado ainda, à Comunidade não repugna (razões de prevenção geral) tal pena, não exigindo que o mesmo cumpra pena concreta acima do meio da abstracta.

12 - Assim sendo, parece-nos que a pena única, se deverá quedar pelos 13 anos, mantendo-se no mais o decidido pelo Exmº Colectivo.”

Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público, acompanha a resposta produzida pelo Ministério Público junto da comarca.


I. b). – QUESTÕES A MERECER APRECIAÇÃO.

O recorrente traz, como tema de recurso, a solipsa questão da medida das penas, parcelares e única. [[1]]

Em recurso penal, tribunal não está, na sua função cognoscente, impedido – ao invés está-lhe cometido e é compelido, por imposição legal (artigo 402º do Código de Processo Penal) – de tomar conhecimento, oficiosamente, de outras questões que um pleno e cabal plano cognitivo (do recurso) possa ter suscitada na análise da decisão recorrida.

No caso o tribunal de recurso não pode deixar de tomar conhecimento de uma questão que, em seu juízo, obteve incorrecto e erróneo juízo apreciativo de análise jurídico-penal. Vale dizer, no caso, a questão da qualificação jurídico-penal do crime por que ao arguido havia sido imputado na acusação e aquele por que acabou por vir a ser condenado pelo tribunal recorrido, mercê da convolação operada de homicídio qualificado, previsto e punido pelo artigo 132º, nºs 1 e 2, alíneas a), e), in fine, j) do Código Penal, para homicídio simples do artigo 131º do mesmo livro de leis. 

Assim, para além das questões suscitadas pelo recorrente, o tribunal assumirá, oficiosamente, o conhecimento da qualificação jurídico-penal do crime que ao arguido deve ser adstrita e por que deve ser condenado.


II. – FUNDAMENTAÇÃO.

II. A. – MATÉRIA DE FACTO PROVADA.

1 - O arguido AA é pai da vítima BB, o qual nasceu em … de Outubro de 1990, tendo assim, à data dos factos, 27 anos de idade.

2 - Desde há cerca de quatro anos que o arguido e o filho, a vítima BB, passaram a viver juntos, na residência sita na Rua …, s/n, em … .

3 - Desde o início da vivência em comum que a relação entre os dois foi pautada por conflitos decorrentes, entre outros, do facto da vítima BB subtrair do interior da residência conjunta objectos propriedade do arguido, o que causava neste desagrado e que foi levando à deterioração da relação entre ambos.

4 - No dia 07 de Junho de 2018, cerca das 18,30 horas, o arguido chegou a casa, e constatou que o portão da garagem se encontrava aberto, tendo confrontado o filho, a vítima BB, que chegou a casa por volta das 18,45 horas, com tal facto.

5 - Na sequência do filho ter respondido que o portão da garagem estava aberto por causa do vento, já que o fecho estava avariado, o que irritou o arguido, que sabia que tal explicação não correspondia à verdade, gerou-se uma discussão entre ambos.

6 - No decorrer dessa discussão, o filho, BB, disse ao arguido "É pá vai-te embora senão ...", tendo o arguido respondido "qualquer dia ainda te meto na rua".

7 - Em resposta, BB disse ao arguido "és tu e mais quantos?", e acto contínuo, o arguido dirigiu-se ao interior do seu quarto, daí retirou uma espingarda, tipo caçadeira, de calibre 12mm, da marca "Manufrance", de modelo "Perfex", com o número de série 1…2, sua pertença, municiada com três cartuchos calibre 12 de bago fino e, em seguida regressou à cozinha, e quando se encontrava a cerca de quatro metros de distância do filho, apontou-lhe a espingarda e disparou um tiro, acertando na cabeça/pescoço de BB, o qual caiu, de imediato, no chão, sem vida.

8 - Como consequência directa e necessária do disparo efectuado pelo arguido, BB sofreu as lesões melhor descritas no relatório de autópsia, que aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais, nomeadamente:

- destruição do quarto ventrículo do encéfalo, com inundação sanguínea dos restantes ventrículos;

- tecido celular subcutâneo, músculos vasos e nervos da cabeça parcialmente destruídos, com infiltração hemorrágica formando túnel, desde o orifício de entrada de projéctil, com orientação de baixo para cima, da direita para a esquerda, até atingir a linha média base do crânio, e da frente para trás, em cujo fundo, já no interior do encéfalo, se alojou o projéctil.

9 - Estas lesões, provocadas pela actuação do arguido, foram causa directa e necessária da morte de BB.

10 - De seguida, o arguido deslocou-se para o exterior da residência.

11 - O arguido não possuía qualquer licença ou autorização que lhe permitisse deter ou utilizar a espingarda e as munições apreendidas.

12 - Ao apontar a espingarda a BB como apontou, e ao disparar à distância a que o fez, agiu o arguido com o propósito de fazer cessar a situação de vivência conflitual que decorria na casa em que ambos habitavam, bem sabendo que ao assim actuar, disparando de forma rápida e inesperada, impossibilitaria BB de se defender dessa agressão, e que lhe retiraria a vida como consequência necessária dessa sua conduta, algo que previu e não o inibiu de assim actuar.

13 - O arguido conhecia as características da arma e das munições que tinha em seu poder e que utilizou, e actuava ciente que necessitava de uma licença emanada das autoridades competentes para o uso e porte das mesmas e que não possuía qualquer autorização legal para o efeito e, apesar disso, o arguido quis e logrou ter em sua posse e utilizar tais objectos.

14 - Agiu o arguido AA de forma livre, deliberada e consciente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei.

Mais se provou:

a) - Que a casa em que o arguido e BB residiam, era pertença do primeiro.

b) - Que do interior de uma oficina existente no local, tinham desaparecido objectos em ouro, ferramenta de "..." e as baterias de 3 viaturas, sendo que todos esses objectos pertenciam ao arguido.

c) - Que o arguido deu conhecimento desse evento às autoridades policiais, tendo ficado insatisfeito com a ausência de resultados obtidos, em face dessa sua denúncia.

d) - Que o arguido guardava a mencionada espingarda, cujo cano é de alma lisa, no interior do guarda-fatos do seu quarto, municiada e travada, em razão do assalto feito à oficina existente no local.

e) - Que o mesmo tinha tido licença de caçador, que estava caducada há já "algum tempo", sabendo que nessas condições teria que a entregar à PSP, não o tendo feito contudo, em razão do referido na alínea que antecede.

f) - Que o arguido tinha experiência como caçador, actividade que tinha praticado, caçando, mormente, coelhos.

g) - Que no interior da garagem mencionada no artigo 4º dos factos provados, o arguido guardava duas …, que tinham vindo à sua posse por ser herdeiro de uma empresa que desenvolvia actividade na área da … .

h) - Que BB não trabalhava, tendo-se apenas ocupado em trabalhos pontuais na última fase da sua vida, sendo o arguido que o sustentava.

i) - Que o mesmo usava drogas, que adquiria com o dinheiro que o arguido providenciava ao seu sustento, ou com objectos que subtraía da casa deste.

j) - Que o BB organizava "raves" no interior da garagem mencionada no artigo 4º dos factos provados.

k) - Que essas "raves" se prolongavam madrugada fora até ser dia, sendo frequentadas por diversas pessoas, amigas de BB, que tiravam fotografias no interior das duas … ali existentes.

I) - Que o arguido se via constrangido a fechar-se no seu quarto e a tomar comprimidos para conseguir dormir e não ouvir o ruído provindo dessas "raves".

m) - Que quando o arguido se levantava pela manhã para ir trabalhar, ainda permaneciam pessoas nessas "raves", forçando o arguido a ir chamar as pessoas, já que estacionavam as suas viaturas atrás da viatura do arguido, impedindo-o de sair com o seu carro.

n) - Que no decurso do período mencionado no artigo 2º dos factos provados, BB actuava como se fosse o dono do local em que ambos viviam, dizendo recorrentemente ao arguido que o iria colocar fora de casa.

o) - Que o arguido se sentia "acossado" na sua própria casa, vendo-se constrangido a trancar-se no interior do seu quarto, enquanto BB fazia as "raves" e levava os amigos para casa, admitindo a possibilidade em face dessa reiterada movimentação de pessoas no interior da sua casa, que o filho obtivesse ajuda, concretizando o anúncio de que o colocaria fora de casa.

p) - Que BB tinha levado um amigo para viver na casa do arguido, sem consentimento deste, e sem lhe ter "dado satisfação".

q) - Que a situação descrita no artigo 3° dos factos provados, e nas alíneas h) a p) dos factos que mais se apuraram, foram fazendo com que o arguido acumulasse ressentimento e frustração com o seu filho BB.

r) - Que o arguido não recorreu a quaisquer meios formais para colocar cobro à situação descrita no artigo 3° dos factos provados, e das alíneas h) a p) dos factos que mais se provaram, porque em razão da sua insatisfação com a falta de resultados emergente da denúncia que havia feito sobre o assalto ocorrido à sua oficina, não sentia confiança na actuação da polícia.

s) - Que para além do que se referiu no artigo 6° dos factos provados, nesse dia BB disse ao arguido, mais uma vez (tal como o arguido lho disse também) "qualquer dia meto-te na rua".

t) - Que a resposta que BB lhe deu, referida no artigo 6º dos factos provados e na alínea que antecede, acresceu ao processo de ressentimento e de frustração mencionado na alínea q), causando-lhe grande irritação, e a sensação de que não aguentava mais aquela situação, à qual entendeu colocar cobro, indo buscar a espingarda, e disparando sobre BB, nos apurados moldes.

u) - Que o quarto em que o arguido tinha a caçadeira referida no artigo 7° dos factos provados, fica ao lado da cozinha.

v) - Que após ter disparado contra BB, o arguido deslocou-se para o exterior, e não mais se aproximou deste.

w) - Que tentou ligar para o 112, e para a polícia, mas não tendo sido atendido, acabou por ligar para o seu chefe de trabalho, pedindo-lhe para chamar alguém, a quem contou o sucedido, dizendo "já desgracei a minha vida!".

x) - Quando o arguido se deslocou para o exterior, levou consigo a caçadeira que tinha acabado de usar, tendo-a consigo quando elementos policiais se dirigiram ao local, aos quais a entregou.

Do relatório social do arguido, junto aos autos a fls. 375 e 358., consta designadamente:

"(...) AA, de 61 anos, nasceu em …, sendo o primeiro filho de um casal integrado a nível socioprofissional, com rendimentos estáveis, exercendo os progenitores funções como comerciantes por conta própria, em diferentes áreas ao longo do percurso de vida, designadamente, foram proprietários de estabelecimentos comerciais (café/sala de jogos), de empresas de transportes de passageiros, e foram ainda proprietários de uma agência … - Agência … CC.

o agregado do arguido habitava uma residência alargada/prédio de três andares (...).

Do relacionamento dos progenitores nasceram cinco (5) filhos germanos, tendo o arguido três irmãos, já autonomizadas e independentes, e um outro, portador de deficiência física resultante de um acidente de viação, beneficia de uma pensão de invalidez.

(...) o arguido cresceu num contexto familiar  alargado, com os progenitores e os irmãos, (que vieram a constituir os seus próprios agregado familiares) a residir na morada acima referida, tendo sido caracterizada a relação entre estes familiares como equilibrada e transmissora de valores normativos, onde sobretudo, era valorizado o trabalho e o desempenho profissional.

(...) apresenta um percurso escolar pautado por dificuldades escolares, fendo progredido até ao 5° ano de escolaridade, que não concluiu. Com cerca de 11 anos, permaneceu à guarda dos avós maternos em …, para os ajudar num estabelecimento comercial (café) que estes exploravam à data, tendo integrado o ensino nesta zona residencial destes, mas sem o sucesso almejado pela família.

O arguido, à data aproximadamente com 15/16 anos, reintegrou o agregado paterno, e informou os progenitores que não pretendia continuar a estudar, e com o apoio e autorização dos progenitores, veio a iniciar a actividade laboral como aprendiz de …, que iniciou numa oficina localizada na Aldeia …, em … .

A nível laboral, aos 20 anos de idade, foi contratado pela empresa DD, S.A., para o exercício de atividade profissional de oficial de ... de 1a (primeira), exercendo funções a nível da manutenção e reparação de veículos automóveis de passageiros, localizada em … .

Ainda veio a exercer as funções de funcionário público na Câmara Municipal de …, tendo sempre executado, outras funções temporárias e/ou complementares de … no seu tempo livre, como forma de auferir mais rendimentos para o seu agregado. (...) é herdeiro, com os irmãos, da Agência … CC (ex-propriedade do progenitor, já falecido).

O arguido manteve o exercício da atividade laboral ao longo da sua vida, até à data da sua atual reclusão, e caracterizou o seu nível socioeconómico como satisfatório, tendo proporcionado um estilo de vida satisfatório ao seu agregado familiar.

A nível da saúde, o arguido na juventude foi sempre saudável, sem referência a problemas de saúde relevantes e/ou dependências. Foi jogador de …, tendo sido federado na Federação Portuguesa de … .

O arguido veio a conhecer a namorada - EE, com a qual contraiu matrimónio no ano de 1977, tendo deste relacionamento nascido uma filha (FF, já falecida vítima de doença oncológica).

O casal conviveu aproximadamente cerca de cinco (5) anos, quando optou pela separação no ano 1985 (...). Este motivo (...) condicionou durante algum tempo o seu modo de vida, tendo passado a frequentar estabelecimentos de diversão noturna. Ainda aquando do divórcio, o arguido ficou com a guarda da filha menor (FF), embora durante a semana a menor permanecesse aos cuidados dos avós paternos, alegadamente por motivos profissionais do progenitor, sendo autorizadas/concedidas visitas aos fins-de-semana à progenitora.

Foi neste contexto (alegadamente, na data em que "comemorava cinco anos de divórcio", sic.) que o arguido com 30 anos, veio a conhecer GG, natural de …, (distrito de …), que foi caracterizada como uma jovem, que à data era menor de idade, carenciada, sem habilitações e negligenciada pelas figuras paternas, e progenitora de três filhos menores, que se encontravam à guarda dos respectivos progenitores e dos avós paternos. O casal recém-formado decide por comum acordo passar a residir na residência do arguido (,..).

O relacionamento entre o casal foi consolidado e registado na Conservatória do Registo Civil, tendo o casal mantido uma relação por cerca de 24 anos, até ao falecimento de GG, também vítima de doença oncológica.

Da relação entre o arguido e GG, nasceram dois descendentes (HH, de 28 anos, e BB, vítima falecida com 27 anos).

Da avaliação do percurso de vida deste agregado familiar foi possível apurar que a figura materna (GG) foi caracterizada como inactiva profissionalmente, cuidadora das tarefas domésticas, mais próxima e afetiva dos filhos, mas também como mais displicente e permissiva quanto à supervisão educativa, designadamente, a nível dos deveres e obrigações escolares dos filhos, sendo o arguido (AA) caracterizado como a principal fonte de rendimentos do agregado, e mais disciplinador. Por outro lado, foi avaliado que a vítima no presente processo (BB) era mais próximo da figura materna, sendo ainda conhecido do agregado a sua dependência de substâncias estupefacientes.

De relevar ainda que o arguido, durante alguns anos, tinha licença de uso e porte de arma, por se dedicar à caça, que caducou, tendo mantido na sua posse munições e uma arma caçadeira.

(...)

À data a que se reportam os factos, no dia 07/06/2018, AA, viúvo há 8 anos, residia com o filho BB (...). Tratando-se de habitação com um terreno anexo, onde se encontravam localizadas as garagens (dos veículos automóveis funerários) e os armazéns (das umas funerárias), propriedade da Agência … CC.

A nível socioeconómico, o arguido encontrava-se a exercer funções como funcionário na Câmara Municipal de …, na Divisão …, bem como, ainda exercia a função de … nos seus tempos livres. A nível socioeconómico, o arguido, mantinha o apoio ao enquadramento sociofamiliar acima referido, apoiando o filho, indiferenciado, e a exercer funções temporárias para uma empresa de …. Também, mais esporadicamente apoiava a filha (HH), casada, autónoma e independente (...).

(...) o arguido refere que após o falecimento da cônjuge (GG), ocorrida há cerca de 8 anos atrás, que a vítima (BB) viveu os primeiros quatro anos com os avós matemos na zona de …, por decisão do próprio, justificada pelas dificuldades de relacionamento que se mantinham entre pai e filho, e que nos últimos quatro anos, por ter esgotado as alternativas de convivência com a família materna, tinha reintegrado o agregado paterno.

Após este regresso a casa, o convívio entre pai e filho nunca foi fácil, acentuando-as as dificuldades de entendimento e os conflitos entre ambos, alegando o arguido, que manifestava preocupação e desagrado à vítima pela sua situação de ocupação laboral temporária, de dependência de substancias estupefacientes e estilo de vida irresponsável e ocioso. Ainda segundo o arguido, eram frequentes as festas (Rave) da vítima com amigos, nos armazéns da … acima referida, alegando danos nas … e nas viaturas, e a publicação e divulgação de fotografias no facebook de indivíduos no interior das … .

(...) o arguido, na última década da sua vida, aparenta ter padecido de sentimentos de impotência e desamparo com o falecimento de três elementos femininos do seu agregado familiar, designadamente, a companheira (GG), uma filha (FF), vítimas de doença oncológica, e a neta menor (II), filha de HH, que faleceu vítima de … Infantil.

A filha do arguido (HH) reporta que o relacionamento entre o pai e o irmão, no convívio familiar sempre foi caracterizado como conflituoso, e descreve o arguido como bom trabalhador, alegando que sempre apoiou a nível socioeconómico a família, embora na relação com os familiares próximos transparecesse a sua significativa dificuldade na expressão dos afetos, parecendo mais distante e assumindo preponderantemente um papel funcional como pai e marido. A vítima foi caracterizada como um irmão carinhoso ("meigo", sic.), mas muito imaturo e pouco responsável quanto ao cumprimento das obrigações/deveres civis e laborais, e que relativamente ao consumo aditivo, sempre existiu um padrão de consumo regular de haxixe, mas controlado, e aparentemente sem excessos.

(...) AA, é um individuo que cresceu inserido num sistema familiar alargado, com difusão da autoridade paterna, distribuído por outras figuras familiares, num contexto com fraca estimulação sociofamiliar e educativa, bem como, com diminuta estimulação a nível do raciocínio sócio - moral, tendo sido valorizado o trabalho e o papel funcional enquanto individuo trabalhador em detrimento de uma expressão facilitadora das emoções.

A nível das competências pessoais e sociais, AA aparenta ser um indivíduo com dificuldades a nível do pensamento reflexivo, com um percurso marcado pelas dificuldades escolares e pelo início da atividade laboral numa idade precoce. Trata-se ainda de um indivíduo que apresenta dificuldades a nível da gestão e expressão emocional, e na identificação do sentir emocional, no próprio e no outro, quando em situações de maior stress/tensão emocional.

Mais recentemente, e após os acontecimentos traumáticos de falecimento de vários familiares, o arguido aparenta sentimentos de angústia, pouco controlados ou censurados, verbalizando abertamente/partilhando com os outros acontecimentos da sua vida (...) o que pode indiciar dificuldades de controlo do pensamento e dos impulsos.

(...) preso preventivamente (...) mantém o comportamento adaptado e cumpridor com as orientações dos vários serviços que o acompanham.

A nível de saúde trata-se de um indivíduo sexagenário, com alguma debilidade física/envelhecimento precoce, faz medicação para a hipertensão e colesterol, é colaborante e cumpridor com as orientações dadas pelos serviços clínicos. É notório, alguns sinais de descompensação psicológica, na ausência de visitas (filha), fazendo nestas fases medicação psiquiátrica de compensação.

(...) o arguido inicialmente apresentou algumas dificuldades em precisar os acontecimentos decorridos ao longo do seu percurso de vida a nível temporal e espacial, bem como, apresentou-se distante e pouco emotivo quando assumiu e abordou os alegados factos ilícitos de que vem acusado no presente processo. Posteriormente, a após a estabilização do comportamento prisional no interior do EP de …, passou a partilhar com o outro, o porquê da sua atual reclusão, aparentemente sem ter em consideração o contexto em que se encontrava (tendo ocorrido, uma vez em contexto de grupo e durante a aplicação de um programa em sala, no EP onde se encontra) e sem refletir sobre o impacto e as consequências do seu discurso para os outros, parecendo apresentar uma diminuta capacidade de controlo dos impulsos e de raciocínio consequencial.

o arguido alegou que no último ano, a dinâmica familiar foi pautada por frequentes conflitos intrafamiliares relativos aos gastos familiares, situação de desocupação/desemprego, e incumprimento de horários por parte da vítima, bem como, refere que vinha a ser insinuado, que iria ser expulso da sua casa pelo filho, o que muito o desagradava e avaliava como injusto após tantos anos de trabalho.

o arguido verbaliza vontade de voltar ao meio comunitário e residencial, e de reiniciar a atividade profissional, encontrando-se na situação contratado com licença sem vencimento.

(...) recebe as visitas de familiares, designadamente, da filha (...).

(...) revela a intenção de cumprir a decisão proferida por esse Tribunal (... )".


*


Do CRC do arguido, junto aos autos a fls. 383, "nada consta",

*


Não se provou:

Que na garagem cujo portão o arguido encontrou aberto, este guardasse objectos de valor (artigo 4º da acusação) - pois que o que se apura, é que os objectos em ouro, toda a ferramenta de "…" que o arguido possuía, e as baterias de 3 viaturas, tinham sido subtraídas do interior de uma oficina, e que nessa garagem, o arguido guardava apenas duas …, como se mencionou em b) e g) dos factos que mais se provaram.

Que o arguido, quando se dirigiu ao seu quarto para ir buscar espingarda, como se referiu no artigo 7º dos factos provados, a tenha municiado com três cartuchos (artigo 7° da acusação) - pois que se demonstra, nos termos da alínea d) dos factos que mais se apuraram, que o arguido a guardava municiada, no interior do guarda-fatos.

Que após ter disparado contra BB, o arguido se tenha dirigido ao quarto, guardando a espingarda (artigo 10º da acusação).

Que ao apontar a espingarda a BB, nos apurados moldes, o arguido o tenha feito de forma fria e cruel, com o (directo) propósito lhe de tirar a vida (artigo 12° da acusação) - pois que neste conspecto se demonstra apenas o que apurado se deu no artigo 12° dos factos provados, ou seja, que o propósito directo do arguido foi o de fazer cessar a vivência conflitual entre ambos, tendo previsto que retiraria a vida a BB, como consequência necessária da sua conduta, algo que não o inibiu de assim actuar.”

MOTIVAÇÃO.

Na descrição do processo aquisitivo da convicção do tribunal, faremos uma subdivisão quanto aos factos apurados, congregando essa exposição num primeiro segmento referente à dinâmica respeitante à sua execução material, e num segundo segmento respeitante à voluntariedade, e intenção subjacente à execução dos mesmos.

1. Assim, quanto ao primeiro segmento (execução material dos factos):

O tribunal fundou a sua convicção na confissão integral (que acabou por se revelar, também, desprovida de reservas), do arguido.

Com efeito, a par da questão do parentesco havido entre o próprio e a vítima BB, e da circunstância de ambos viverem na casa do arguido, nos moldes que se tiveram como apurados, quer em sede de julgamento, quer em sede de primeiro interrogatório judicial (cujas declarações, transcritas a fls. 233 foram lidas, porque reunidos os legais pressupostos para o efeito, nos termos dos artigos 141°/4-b) e e 357°/1-b), ambos do Código do Processo Penal), o arguido assumiu que na data assinalada nos autos, e na sequência de uma discussão havida entre ambos, quando estavam na cozinha, se dirigiu ao seu quarto, do qual retirou a espingarda caçadeira (em julgamento, referiu que a guardava no guarda-fatos, já municiada com cartuchos, mas travada, ao passo que em primeiro interrogatório judicial refere tê-la municiado quando a foi buscar - sendo que "in dúbio", o tribunal deu como apurada a versão relatada em julgamento, porque mais favorável ao arguido do ponto de vista de premeditação, já que esta se revelaria com maior intensidade no caso do arguido ter municiado a arma, mais a mais, quando esta tinha a culatra estragada, e carecia para que esta fosse aberta, da introdução de um objecto na sua ranhura que consentisse fazê-lo, pois que nessa operação demoraria mais tempo, o que revelaria maior intensidade na voluntariedade da conduta, que aquele que demandaria pegar numa arma já municiada), e dirigindo-se à cozinha, apontou a arma quando estava a cerca de 4 metros da vítima, disparou na sua direcção.

Em primeiro interrogatório refere que não apontou à vítima, e como o tiro "sai de lado", pensou que passasse à frente daquela, e acertasse na parede. Isto, porque estava "de lado", e a vítima estava ao lado do fogão, tendo a parede atrás, tendo ficado com a sensação de que atirou o tiro ao meio, entre o fogão e a vítima, só que a atingiu. Depois, que pegou na arma, disparou, e nem sequer apontou.

Em julgamento referiu que quando disparou, a vítima que era mais alta que o próprio, estava em frente a si (portanto, o arguido já não estaria "de lado", em face da vítima), sendo que nestas declarações referiu que era a vítima que estava virada para o lado direito do arguido (considerando a posição em que este último se encontrava).

Reiterou, num primeiro momento (tal como havia dito em primeiro interrogatório), que pretendia atingir a parede (que estava por detrás da vítima), e que só atingiu BB, porque este (que recorde-se, estava virada para o lado direito do arguido, considerando a posição em que este se encontrava), deu um passo atrás (iá que o arguido disparou contra a parede, direccionando a arma para a parte de trás da cabeça da vítima).

Sendo que em ambos os momentos processuais revelou ser experiente no uso de armas, tendo tido licença de caçador, actualmente caducada (sabia que não podia tê-la em sua posse, em tais condições, mas decidiu mantê-la, por ter sido vítima de um assalto feito à sua residência), actividade que tinha desenvolvido, designadamente, caçando coelhos.

Por isso que, colocado perante a contradição do seu relato, havido em primeiro interrogatório judicial, e em julgamento, perante as dúvidas que muito naturalmente emergiram dessas suas declarações, mormente, como é que alguém experiente no uso daquela arma, que atira a 4 metros de distância da vítima que, sendo mais alta que o arguido, estando posicionada na sua direcção, em pé, com um disparo feito de "baixo para cima", na direcção da zona do pescoço/cabeça da vítima (como as lesões descritas no relatório da autópsia junto aos autos a fls. 235 e ss., na parte dele que se refere à porta de entrada do orifício do projéctil, que o foi na região lateral e superior do pescoço à direita (1 (...), com orientação de baixo para cima, da direita para a esquerda, até atingir a linha média base do crânio, e da frente para trás (...)", bem o demonstra), não teria intenção de a atingir, e sem embargo de ter insistido contra todas as evidências que se colhiam das perguntas que lhe eram endereçadas, em que não o tinha querido fazer, acabou por assumir ter efectivamente querido atingir BB, como o fez.

Tais declarações foram ainda analisadas de forma conjugada, com a certidão de assento de nascimento de BB, junta aos autos a fls. 97, com o relatório de autópsia, junto aos autos a fls. já referidas, com as fotografias de fls. 3 e ss., que compõem o respectivo relatório de inspecção judiciária, com o auto de apreensão da espingarda, a fls. 16, com o original do auto de notícia a fls. 81, do qual se extrai que o arguido tinha consigo a arma caçadeira, quando as entidades policiais se dirigiram à sua residência, no exterior da qual aquele se encontrava, com o auto de apreensão da espingarda caçadeira, a fls. 85, com a recolha de vestígios corporizada a fls. 46 e ss. dos autos (neles incluído um cartucho calibre 12, deflagrado, e os Kit de recolha de resíduos de disparo realizados ao arguido), nos relatórios periciais a essas recolhas, sendo que a fls. 167 se conclui pela compatibilidade entre as amostras recolhidas ao arguido, com os vestígios de disparo da arma, e com o relatório de exame pericial realizado à espingarda e ao cartucho deflagrado, junto aos autos a fls. 219 e ss., que confirma a anomalia na culatra da primeira referida pelo arguido, e concluí não ser tecnicamente possível afirmar ter sido essa arma a disparar o cartucho deflagrado.

2. Quanto ao segundo segmento (respeitante à voluntariedade, e intenção subjacente à execução dos factos).

Em 1º interrogatório judicial, o arguido nega ter tido intenção de matar BB, e que com o disparo efectuado (que nesse momento processual refere ter ocorrido quando estava "de lado", e a vítima estava ao lado do fogão, tendo a parede atrás, tendo ficado com a sensação de que atirou o tiro ao meio, entre o fogão e a vítima, só que a atingiu - mais tarde, diz mesmo que pegou na arma, disparou, e nem sequer apontou), queria assustá-lo, "meter-lhe medo", e nada mais.

Em julgamento, relatando embora uma dinâmica um pouco diferente (pois que referiu que quando disparou, a vítima que era mais alta que o próprio em frente a si, virada para o lado direito do arguido - considerando a posição em que este se encontrava -, acabou por ser colhida, por ter dado um passo atrás, já que pretendia atingir a parede), ensaiou a mesma justificação, ou seja, que actuou da forma descrita, para ver se o filho "ganhava medo", para ver "se não lhe fazia o que fazia".

Sendo que em tal contexto (ou seja, tendo em conta a dinâmica da materialidade fáctica apurada, nela se incluindo a ponderação do tipo de arma usada, da distância a que foi efectuado o disparo, da posição dos intervenientes, da experiência do arguido, no manuseamento da arma usada, e - decisivamente -, da assunção havida a final, segundo a qual quis efectivamente atingir a vítima), o grau de voluntariedade da conduta; a intenção que directamente a norteou, se colheu da análise de outras circunstâncias, e mormente, das que rodearam e antecederam o momento do disparo, ancoradas no relacionamento existente entre arguido e vítima.

Com efeito, referiu-nos o arguido (de um modo que não nos suscitou reservas quanto à fidedignidade do respectivo relato), que a vítima vivia há cerca de 4 anos na sua casa, sendo que no decurso dessa vivência, a relação entre ambos se deteriorou, pois que BB, para além de subtrair objectos que pertenciam ao arguido, não trabalhava, tendo-se apenas ocupado em trabalhos pontuais na última fase da sua vida, sendo o arguido que o sustentava.

Que o mesmo usava drogas, que adquiria com o dinheiro que o arguido providenciava ao seu sustento, ou com objectos que subtraía da casa deste, organizando "raves" no interior da garagem existente na propriedade, onde o arguido guardava duas …, vindas à sua posse em razão de processo de herança, as quais se prolongavam madrugada fora até ser dia, sendo frequentadas por diversas pessoas, amigas da vítima, que tiravam fotografias no interior das duas … ali existentes, vendo-se o arguido constrangido a fechar-se no seu quarto e a tomar comprimidos para conseguir dormir e não ouvir o ruído provindo dessas festas.

Que quando o arguido se levantava pela manhã para ir trabalhar, ainda permaneciam pessoas nessas "raves", forçando-o a ir chamar as pessoas, já que estacionavam as suas viaturas atrás da sua, impedindo-o de sair com o seu carro.

Que no decurso desses cerca de 4 anos de vivência comum, BB actuava como se fosse o dono do local em que ambos viviam, dizendo recorrentemente ao arguido que o iria colocar fora de casa, fazendo com que este se sentisse "acossado" na sua própria casa, vendo-se constrangido a trancar-se no interior do seu quarto, admitindo a possibilidade em face da reiterada movimentação de pessoas no interior da sua casa, que o filho obtivesse ajuda, concretizando o anúncio de que o colocaria fora de casa, sendo que tempos antes, a vítima tinha levado um amigo para viver na casa do arguido, sem consentimento deste, e sem lhe ter "dado satisfação", sendo que todo esse circunstancialismo (ao qual não colocou cobro, com recurso aos meios formais disponíveis, por razões de desconfiança pessoal, em face da eficácia da actuação policial) foi fazendo com que o arguido acumulasse ressentimento e frustração com a vítima.

Por isso que no dia da prática dos factos, ante a resposta que lhe foi dada pela vítima em face da interpelação que o arguido lhe dirigiu, a propósito do portão da garagem, que lhe causou grande irritação, e a sensação de que não aguentava mais aquela situação, entendeu colocar-lhe cobro, indo buscar a espingarda, e disparando sobre BB, nos apurados moldes.

E tal conclusão, a que se chega da análise dos segmentos ora referidos, foi expressamente sancionada pelo arguido que nas declarações prestadas em julgamento, onde acaba por confessá-lo de forma expressa, dizendo ter ido buscar a arma com a qual disparou e atingiu a vitima (querendo fazê-lo), com a directa intenção de colocar um fim à situação vivenciada, que não mais aguentava, sabendo que ao assim actuar, tiraria a vida a BB como consequência necessária dessa sua directa intenção (de fazer cessar a descrita situação e a penosidade dela adveniente).

Confissão que tivemos por verdadeira, por se coadunar em toda a dinâmica contemporânea e antecedente aos factos ocorridos, e acolhemos no sentido do que por apurado se teve, neste segmento.

Quanto à situação pessoal e condição económica do arguido, o tribunal fundou a sua convicção na análise do seu relatório junto aos autos, acima parcialmente transcrito, e quanto à inexistência de antecedentes criminais, na análise do seu CRC, junto a fls. 383, como já referido.

Quanto aos factos não apurados:

Não foi feita prova deles demonstrativa (quanto à circunstância de termos ajuizado que na data em causa, o arguido não municiou a arma que usou, tal conclusão se fundou nas regras do "ln dúbio", como já tivemos ocasião de referir), sendo que os autos não continham elementos que "de per se", ou em conjugação com outros, nos consentissem concluir de forma distinta.”


II. B. – DE DIREITO.

II. B.a). – QUALIFICAÇÃO JURÍDICO-PENAL PREENCHIDA PELO ACÇÃO ILICITA DO IMPUTADO.

O arguido, AA, foi acusado, com a factualidade constante da acusação, pela prática, em autoria material, e em concurso efectivo, de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nº 1 e 2, alíneas a), e) in fine e j) e 26.º, todos do Código Penal; e de - um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.

Após julgamento o tribunal de recurso, estimou que não se deveriam considerar como verificadas as circunstâncias qualificativas, com a argumentação a seguir expendida (sic): ““Na alínea a), prevê-se a qualificação da conduta, quando o homicida for "descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima".

Como se extrai dos factos descritos, demonstrado resulta que o arguido era pai da vítima.

Todavia, mais se prova e desde logo, que a relação entre ambos se tinha deteriorado significativamente, a ponto de o arguido se sentir "acossado" dentro da sua própria casa, na qual a vítima se comportava como proprietário, dizendo recorrentemente ao arguido que o iria colocar fora da mesma, vendo-se este constrangido a trancar-se no interior do seu quarto, admitindo a possibilidade em face da reiterada movimentação de pessoas no interior da sua casa, que o filho obtivesse ajuda, concretizando o anúncio de que o colocaria fora de casa, tudo isto gerando nos cerca de 4 anos em que viveram juntos, um crescendo de frustração, e de ressentimento do arguido contra a vítima.

Verdadeiramente se poderá dizer que ao invés de viverem como pai e filho (pressupondo esta relação uma proximidade afectiva, uma indubitável ligação emocional, de aceitação, pertença, reciproca protecção e respeito que, de tão íntima, surge como quase "visceral" -, sendo a este laço único, em que repousa o "cerne" da vida, da organização biológica e social, de inaceitável intransponibilidade, que se dirige a especial censurabilidade; o desvalor da conduta que qualifica o tipo), arguido e vítima viviam como se de inimigos se tratassem.

E que em tal contexto, esse idiossincrático relacionamento descaracterizou a proximidade e a ligação afectiva que são a essência do respectivo grau de parentesco, degradando-o numa mera ligação jurídico-formal.

Por essa razão temos para nós que, sem embargo da verificação da mencionada relação de parentesco, esta, à data da prática dos apurados factos, não passava de uma mera relação jurídico-formal, não se encontrando por isso, no concreto circunstancialismo da prática do facto, a especial censurabilidade em que ancora a circunstância qualificativa desenhada na alínea a), pela qual se acusou o arguido.

* Na alínea e), parte final, prevê-se a qualificação da conduta, quando a morte for determinada "por motivo torpe, ou fútil".

Como o léxico o indica, a torpeza reporta-se a desonestidade, a ignomínia, a desprezibilidade (sendo que a peça acusatória não descreve nenhum facto susceptível de moldar a torpeza na motivação da empreendida conduta, pelo que é de afastar qualquer conclusão que nela se funde).

Por seu turno, a futilidade reporta-se a superficialidade, a insignificância, a frivolidade.

Do que por apurado se teve, resulta que que o arguido actuou como descrito na sequência de uma discussão que se gerou entre o próprio e a vítima, a propósito do portão de uma garagem se encontrar aberto, e da última ter dado para esse facto uma explicação que irritou o arguido, por saber que a mesma não correspondia à verdade.

E se a motivação da conduta fosse analisada nesta singeleza, seria muito provável vir a concluir-se pela frivolidade e insignificância que caracterizam a futilidade a que alude esta alínea.

Todavia as circunstâncias contemporâneas, e as que antecedem a conduta, levam-nos a ajuizar de modo distinto.

Com efeito (e tal como já sobejamente referido), o relacionamento entre arguido e vítima encontrava-se completamente deteriorado, pelas razões que se assinalaram, sendo que estas tinham vindo a gerar ao arguido, nos cerca de 4 anos que viveu com a vítima, um crescendo de frustração e de ressentimento para com esta última.

Que no decurso da discussão havida, a resposta que lhe foi dada por BB, a expressão que este lhe dirigiu, "É pá vai-te embora senão ... " e o facto de lhe ter dito mais uma vez, "qualquer dia meto-te na rua", acresceram ao processo de ressentimento e de frustração sentidos pelo arguido, causando-lhe grande irritação, e a sensação de que não aguentava mais aquela situação, à qual entendeu colocar cobro, indo buscar a espingarda, e disparando sobre BB, nos apurados moldes.

Ou seja, a discussão sobre o portão aberto surge como uma espécie de "detonador", em face de um processo de escalada de frustração e de animosidade que o arguido vinha a acumular, tendo sido este processo (e não aquela concreta discussão) que foi causal da conduta praticada.

Por isso que sem embargo da (evidente) censurabilidade da actuação, a sua motivação não se fundou em qualquer razão fútil, como uma análise segmentada e descontextualizada daquela, alicerçada apenas numa discussão sobre um portão aberto, inculcaria.

E assim, somos a concluir pela não verificação da especial censurabilidade em que ancora a circunstância qualificativa desenhada na parte final da alínea e), peja qual se acusou o arguido.

* Na alínea j) prevê-se a qualificação da conduta, quando o agente "agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas".

Como facilmente se conclui à luz da mera leitura da peça acusatória, nos autos não está em discussão a persistência na intenção de matar por mais de 24 horas.

Quedemo-nos então pela análise das outras duas circunstâncias.

Quanto à frieza de ânimo, é algo que os factos apurados negam de forma categórica.

Na verdade, demonstra-se que a actuação do arguido decorre na sequência de uma discussão havida entre o próprio e a vítima, geradora de grande irritação, que funciona (como já se referiu), como uma espécie de "detonador" da conduta, que culmina um processo de acumulação de frustração e de animosidade do arguido.

Nesse sentido, o que os factos revelam é a eclosão de um impulso (resistível, mas não resistido), que radica nesse processo de acumulação (e também, na personalidade do arguido) sendo que a actuação impulsiva é antitética da frieza de ânimo.

Também a reflexão sobre os meios empregados (que é uma forma reflexiva da frieza de ânimo -, pois que como aquela, supõe uma acção pensada e reflectida, reveladora de tenacidade de propósito), é algo que claramente resulta afastada pelos factos que se provam.

Com efeito, demonstra-se que na sequência da aludida discussão, o arguido se dirige ao seu quarto, que fica imediatamente ao lado da cozinha em que estava com a vítima, dele retirando uma espingarda caçadeira que está municiada, logo se dirigindo para a cozinha, onde dispara sobre BB.

Ou seja, o arguido faz uso de um instrumento que sendo embora letal, "está à mão" (do que se extrai justamente, a inexistência de acção pensada, reflectida, e de tenacidade de propósito, que caracterizam a circunstância qualificativa ora em apreço).

E aqui chegados, reconhecida a não verificação da especial censurabilidade em que ancoram as circunstâncias qualificativas desenhadas na alínea D, pela qual se acusou o arguido, e desse modo, porque não enquadrada a conduta à luz do crime de homicídio qualificado pelo qual se acusou o arguido, haverá que se apreciar a mesma à luz do artigo 131º do Código Penal, que prevê o crime de homicídio na sua forma simples.

Resultando indubitável à luz dos factos descritos, ao nível dos seus elementos objectivos, a subsunção da apurada conduta do arguido naquele artigo 131º.”

A convolação operada pelo tribunal – do crime de homicídio qualificado previsto no artigo 132º, nº s 1 e 2, alíneas a), e), in fine, e j) do Código Penal – reverteu a imputação para o crime de homicídio simples (artigo 131º do Código Penal).

A entidade recorrida – Ministério Público – não coloca em crise o afastamento das razões da qualificação jurídica imputada na acusação.

Em nosso juízo a argumentação perfilhada não se encontra isenta de aporias.

Se relativamente a duas circunstâncias – as insertas nas alíneas e), in fine, (motivação fútil) e j) (“agir com frieza de ânimo”) – se nos afigura que a realidade esmaltada na factualidade provada consente o seu afastamento, já relativamente à circunstância inscrita na alínea a) (“ser descendente”) se nos afigura que o relacionamento dado como provado – ser a vítima filho da arguido – impede e/ou ilaqueia qualquer possibilidade de ablação da circunstância. ( Vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Fevereiro de 2014, proferido no processo nº 168/11.0GCCUB.S1, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral, e em cujo sumário se doutrinou: (“I - O art. 132.º do CP define o tipo de crime de homicídio qualificado, constituindo uma forma agravada de crime em relação ao tipo do art. 131.º. Objectivamente, o tipo de crime assenta nos mesmos factos dos que estão previstos no art. 131.º funcionando a qualificação na combinação de um critério de culpa com a técnica dos exemplos-padrão. II - A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação, um tipo-de-culpa que se reconduz que é conformado pela especial censurabilidade ou perversidade da conduta. III - Fútil é o motivo de importância mínima, o motivo frívolo, leviano, a «ninharia» que leva o agente à prática desse grave crime, na inteira desproporção entre o motivo e a extrema reacção homicida; o que se apresenta notoriamente inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime praticado; o que traduz uma desconformidade manifesta entre a gravidade e as consequências da acção cometida e impeliu o agente a essa comissão, que acentua o desvalor da conduta por via do desvalor daquilo que impulsionou a sua prática. IV - O vector fulcral que identifica o «motivo fútil» não é, pois, tanto o que imprime a ideia de tão pouco ou imperceptível relevo, quase que pode nem chegar a ser motivo, mas aquele que realce a inadequação e faça avultar a desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que ela se objectivou: no fundo, em essência, o que prefigure a especial censurabilidade que decorre da futilidade, sendo que esta pressupõe um motivo por ela rotulável e que dela e por ela se envolva.” [[2]/[3]]

Desde logo porque a especial censurabilidade [[4]] derivada  e consignada como factor de valoração e categorização qualificativa do crime de homicídio advêm, no caso da alínea a) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, do estabelecimento predefinido e paradigmático de uma relação pré-constituída e criada por decorrência de um relacionamento interpessoal gerador de laços que se firmam e desenvolvem com independência de um relacionamento vivencial futuro e lastrado por uma inextrincável incisão na vida pessoal dos indivíduos dessa geração, em comum, de feição biológico-natural. 

A concepção normativo-funcional da qualificativa surge, em nosso juízo, aprioristicamente e, iteramos, independente de factores de relacionamento interpessoal que se desencadeiem e se venham a desenvolver, posteriormente, no interior da relação criada. Independentemente das vicissitudes e sobressaltos, quiçá perversos e derruidores de uma relação convivencial oriunda de uma assumpção fundacional e geradora, única e típica de pai e filho, advertimos que a valoração normativa não pode ser afastada pela avaliação conjuntural e contingente do devir relacional interpessoal, antes devendo ser fixado pelo nexo relacional biológico que resulta de uma concepção única e pessoalmente indissolúvel.    

A qualificação assume, em nosso juízo, uma feição ôntico-normativa que não pode ser arredada e escamoteada pela deterioração do relacionamento que surta no decurso da vivência interpessoal e que delapide o típico relacionamento, socialmente assumido entre um ascendente e um descendente. Este pode deteriorar-se, delir-se e, inclusive, frustrar-se e assumir uma ruptura funcional-pessoal irredenta e irremeável só que o vínculo irremível, indissolúvel e inauferível permanecerá independentemente das conjunturas vivenciais e das incidências mundanas que possam vir a carcomer e desfigura o vínculo original e ontologicamente incindível, inconcusso e incessível.

Esta circunstância não pode ser afastada – sem perigo de se obliterar um lastro biológico e ético-cultural indestrutível da pessoa e do indivíduo histórico-socialmente situado – pela caracterização e configuração social de um relacionamento interpessoal dessorado e esvaído na acepção afectiva e sentimental. Estes são factores volúveis e contingentes enquanto que o laço originário se mantém na sua integridade geracional.

Entendemos, pelo que se deixou argumentado, que a qualificação do crime de homicídio não poderia ter sido desqualificada por afastamento da predita circunstância, devendo, por isso, ser o arguido pronunciado pela prática de um crime de homicídio qualificado pela alínea a) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal.              


III. B.b). – CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A PENA

A lei penal assume e realiza, pela sua configuração, uma função estabilizadora da comunidade em que rege, orientando cognitivamente e permitindo uma conformação/assimilação de dever estar do indivíduo de modo a assegurar a confiança nas instituições conformadoras da sociedade estabelecida. Para a consecução dos objectivos com que pretende manter a conformação institucional da comunidade existente e validade normativa viger, o sistema penal incute, através da responsabilização dos indivíduos e pela imposição de sanção penais – penas e medidas de segurança –, consequências jurídicas aos infractores das normas de comando em que se verte a essencialidade das valorações prevalentes num determinado momento histórico-social. A lei penal portuguesa consagra no artigo 40º, nº 1 do Código Penal as consequências jurídicas do facto, colimando a finalidades das penas e medidas de segurança em dois vectores axiais: (a) a protecção de bens jurídicos [[5]]; e (b) a reintegração do agente na sociedade. (“A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade,”) (“A pena é sempre uma reacção ante a infracção da norma. Mediante a reacção evidencia-se a necessidade de se observar a norma. E a reacção demonstrativa tem sempre lugar á custa do responsável por haver infringido a norma. (por à «custa de» se entende neste contexto a perda de qualquer bem)” – (Günther Jakobs, Derecho Penal, Parte General, Fundamentos y Teoria de la Imputación, p.8)  

De passo o nº 2 do mesmo preceito rege para a fixação do parâmetro fundante e limitador da medida da pena a impor ao responsável pela infracção da norma, radicado, numa perspectiva ôntico-objectiva de reprovação e censurabilidade da atitude contrária ao comando normativo e que o aplicador deve ressumar e captar dos factos praticados no momento da escolha e determinação da sanção penal que deva impor num caso concreto. (“Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”). [[6]]

Mais detalhadamente estabelece o art. 71 nº 1 do C.P. que "a determinação da pena dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção". Resulta de uma chã leitura deste preceito que a culpa (indiciador de um radical pessoal) e a prevenção (que insinua a vertente societária e comunitária para a reprovação do comportamento do agente e a correlata necessidade no asseguramento da confiança (da sociedade) na norma, traduzido na punibilidade de condutas contrárias ao sentido conformador-normativo) constituem os princípios regulativos em que o juiz se deve ancorar no momento em que se lhe exige que fixe um quantum concreto da pena. Mediante o estabelecimento e indicação de critérios, o legislador fornece ao juiz orientações para a formação cognitiva de juízos avaliativos e condensadores dos pressupostos e da fixação de premissas que possibilitam a conformação e determinação das escolhas a realizar perante um concreto responsável em face da realidade factual ressumada pela facticidade adquirida pelo julgamento. Assim na individualização da pena o juiz, assumindo as intencionalidades e as vinculações do sistema jurídico-penal, desempenha uma insubstituível tarefa mediadora, construtiva e constitutiva das reacções penais ajustadas ao caso e convincentes da sua justeza perante a sociedade que se destinam a influenciar.

Na determinação concreta da pena caberão todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o agente, designadamente:

– O grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente;

– A intensidade do dolo ou negligência;

– Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

– As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

– A conduta anterior ao facto e posterior a este;

– A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. [[7]]

Ponderando nos critérios a observar na individualização judicial da pena refere a propósito Winfried Hassemer [[8]] que “na decisão de determinar a pena são relevantes, entre outros, os seguintes elementos da realidade: a culpabilidade do sujeito; os efeitos da pena que são esperáveis que se produzam na sua vida futura em sociedade; seus motivos e fins, a consciência que o facto revela da vida anterior; as suas relações sociais e económicas e o se comportamento posterior ao delito”, do mesmo passo que para Jakobs o conteúdo tradicional da culpabilidade, constitui-se numa culpabilidade fundada em si mesma, sendo preenchido pela prevenção geral, Para este autor, “a transgressão da norma constitui em maior ou menor medida uma perturbação da confiança da generalidade na validade da norma. Por isso a segurança existencial necessária no tráfico social deve restabelecer-se mediante a estabilização da norma à custa do autor. A culpabilidade esvazia-se aqui de conteúdo, o qual dependerá de factores externos”. [[9]] “A um autor que actua de determinado modo e que conhece, ou pelo menos devia conhecer, os elementos do seu comportamento, exige-se-lhe (se le imputa) que considere ao seu comportamento como a conformação normativa. Esta imputação tem lugar através da responsabilidade pela própria motivação: se o autor se tivesse motivado predominantemente pelos elementos relevantes para evitar um comportamento, ter-se-ia comportado de outro modo; assim, pois, o comportamento executado patenteia (pone de manifesto) que o autor nesse momento não lhe importava de forma prevalente evitar o comportamento mantido.” [[10]]

Num seminário sobre os fins das penas, [[11]] Claus Roxin advoga, acompanhando Hans Scultz, que na determinação da pena se trata de retribuir a culpabilidade [[12]], devendo na operação de determinação aplicar a «teoria da margem de liberdade», que a jurisprudência alemã formulou da forma seguinte: “Não se pode determinar com precisão que pena corresponde à culpabilidade. Existe aqui uma margem de liberdade (Spielraum) limitada no seu grau máximo pela pena adequada (à culpabilidade). O juiz não pode ultrapassar o limite máximo. Não pode, portanto, impor uma pena que na sua magnitude ou natureza seja tão grave que já não se sinta por ela como adequada à culpabilidade, No entanto, o juiz … poderá decidir até donde pode chegar dentro dessa margem de liberdade.” [[13]

Porém, na teorização a que procede sobre os fins das penas, ensina o Professor de Munique, que numa perspectiva integradora – teoria unificadora preventiva – “o fim da pena só pode ser de tipo preventivo. Posto que as normas penais só estão justificadas quando tendem à prossecução da liberdade individual e a uma ordem social que está ao seu serviço, também a pena concreta só pode perseguir isso, quer dizer, um fim preventivo do delito. Daí resulta que a prevenção especial e a prevenção geral devem figurar conjuntamente como fins da pena. Posto que os factos delitivos podem ser evitados tanto através da influência sobre o particular como sobre a colectividade, ambos os meios se subordinam ao fim último a que se estendem e são igualmente legítimos.” [[14]]  

Depois de apontar os inconvenientes e as vantagens que uma perspectivação baseada nas duas vertentes – preventiva geral e preventiva especial – o Professor advoga que uma «ressocialização forçada» não pode ser imposta ao autor do facto ilícito, posto que, se depois de «despertado» para os efeitos do cumprimento de uma pena, mantiver a sua disposição de recusa, então esta deverá ser executada: “para a sua justificação é suficiente, sem embargo, a necessidade de prevenção geral.” 

O conflito que se pode plantear entre prevenção geral e prevenção especial “só se produz quando ambos os fins perseguidos exigem diferentes quantias de pena.” (Fornece como exemplo, o caso em que um jovem causou uma lesão com resultado de morte numa rixa. Num caso deste tipo, “pode parecer adequado um castigo de três anos de privação de liberdade sobre a base da prevenção geral e em aplicação do § 226 II, enquanto que as exigências de prevenção especial só permitem um ano com remissão condicional porque uma pena mais grave dessocializaria o autor e caberia esperar um tropeço em futura criminalidade. Qualquer e ambas as possíveis soluções obtém, pois, um benefício preventivo, por uma parte, a troco de um prejuízo preventivo por outra. Num caso como este é necessário sopesar os fins de prevenção especial e geral e pô-los em ordem de prelação. Nisso tem preferência a prevenção especial até a um grau em que de seguida haverá que determinar, de forma que no nosso exemplo, a pena que se imporia seria de um ano de prisão, com remissão condicional. Pois, em primeiro lugar, a ressocialização é um imperativo constitucional que não pode ser desobedecido desde que possa ser cumprido. E em, segundo lugar, há que ter em conta que, em caso de conflito, uma primazia da prevenção geral ameaça frustrar o fim preventivo-especial, enquanto, pelo contrário, a preferência da prevenção especial não exclui os efeitos preventivo-gerais da pena, mas sim que, acima de tudo, os debilita de forma dificilmente mensuráveis, pois também uma pena atenuada actua de forma preventivo-geral. Por outro lado, corresponde a preferência ás necessidades preventivo-especiais só até onde a necessidade mínima de preventivo-geral todavia o permita. Quer dizer, por motivos dos efeitos preventivo-especiais, a pena não pode ser reduzida até ao ponto em que a sanção já não se tome a sério na comunidade; pois isso quebrantaria a confiança no ordenamento jurídico e através disso se estimularia a imitação.” [[15]]                     

Remata para dizer que a teoria penal defendida se poderá resumir do seguinte modo: “a pena serve os fins da prevenção especial e geral. Se Limita na sua magnitude pela medida da culpabilidade, mas pode quedar-se por baixo deste limite se para tanto forem necessárias as exigências preventivo-especiais e a isso não se oponham as exigências mínimas preventivo-gerais. [[16]]  


II. B.b). – PENAS PARCELARES (CRIME DE HOMICIDIO e DETENÇÃO ILEGAL DE ARMA).

O tribunal, para a determinação da individualização judicial da pena, pelo crime de homicídio, tendo por referência a desqualificação que operou, ponderou (sic): “Considerando o princípio da culpa e todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor e contra o arguido (art° 71º do C. Penal), temos;

No que respeita ao crime de homicídio:

O grau de ilicitude do facto, traduzido na circunstância do arguido ter disparado contra BB, matando-o, é indubitavelmente intenso.

O facto da sua motivação primária ter sido a colocação de um fim numa situação que sentia insustentável, estando na sua possibilidade recorrer aos meios institucionais para fazê-la cessar, e não o tendo feito, coloca-nos numa situação de realização de "justiça" pelas próprias mãos, em que o arguido assume o papel de juiz e executor, elevando o grau de ilicitude, já por si intenso, para um patamar muito significativo.

Com efeito, sem embargo de existir a dita situação conflitual, sentida como insustentável pelo arguido, e da reprovação do estilo de vida da vítima, que esta impunha sobre o arguido, fazendo-o sentir "acossado" na sua própria casa, o preço que fez com que BB pagasse, tendo em vista fazer cessar essa situação, foi absolutamente desproporcional, e a todos os níveis, inaceitável.

A circunstância de se ter munido de uma espingarda caçadeira, que foi buscar a divisão contígua à cozinha, onde se iniciara a discussão entre arguido e vítima, e de no imediato se dirigir ao local onde estava a última, sobre a qual disparou letalmente, a cerca de 4 metros de distância, privou-a ante tal rapidez e surpresa, de qualquer movimento, ou reacção primária de defesa. Tratou-se, ao cabo e ao resto, de uma verdadeira execução, profundamente reprovável e distanciada dos valores sociais, que coloca o grau de ilicitude perto do seu patamar mais elevado, à luz do tipo simples do crime praticado.

Quanto à gravidade das suas consequências:

Em resultado da conduta perpetrada, BB sofreu as lesões oportunamente referidas, que foram causa directa e necessária da sua morte, pelo que em face do valor do bem suprimido (a vida), é quase ocioso mencionar quão graves foram as consequências da conduta.

Neste contexto, todavia, haverá que atentar em que a morte sobrevém em consequência de um tiro "limpo" (no sentido de directo, rápido, e letalmente eficaz), e por isso tudo leva a crer que a mesma sobreveio de forma quase imediata (sendo de admitir que a vítima mal se terá apercebido do momento do final da sua vida, e que as dores sentidas tê-las-ão sido num curto espaço de tempo), o que mitiga um pouco a gravidade das consequências, do ponto de vista do sofrimento sentido.

O arguido agiu com dolo necessário, constatação que emerge da compartimentação descritiva da sua vontade, de acordo com a dinâmica dos factos.

Pois que a sua voluntariedade directa dirige-se a fazer cessar a situação conflitual existente, que o arguido não aguentava mais, sabendo que ao assim actuar (disparando contra a vítima, nas descritas circunstâncias), a atingiria e necessariamente a privaria da sua vida.

Ou seja, a actuação não foi empreendida com aquele que por norma é o mais elevado grau de manifestação da intenção criminosa, que a lei reserva nos termos do nº 1 daquele artigo 14º, para o dolo directo.

Quanto às apuradas motivações do arguido:

Prendem-se com o processo de acumulação de frustração e de ressentimento contra a vítima, e com o sentimento do arguido, de insustentabilidade da situação conflitual existente entre ambos, que culmina na resposta dada pala vítima ao arguido, que lhe gera grande irritação.

Daí decorrendo que a motivação directamente causal desse disparo nos coloca perante emoção geradora de "impulso", com "actuação explosiva".

Explosão e impulso que são o que o léxico indica: - Rápidos (mesmo quando devastadores).

Por isso que temos para nós que a actuação do arguido foi determinada pela "explosão impulsiva" da frustração acumulada, assim se afastando qualquer premeditação da mesma.

Quanto às exigências de prevenção geral:

Encontramo-nos perante um ilícito criminal que "de per se" (atenta a sua natureza) é sempre gerador de significativo alarme social e que é praticado nesta localidade com alguma frequência (ainda que em contextos muito variados, desde logo do que ora se apura nos autos).

Afigura-se-nos assim pelo exposto, que as premências respeitantes às necessidades de prevenção geral são elevadas, graduando-se a sub - moldura penal neste domínio, como forma de as explicitar adequadamente, entre o meio e o limite máximo da pena (mais próximo contudo daquele primeiro).

O arguido beneficia de condição económica que podemos descrever como "remediada", aparentando também ter um baixo nível de preparação cultural (sendo que este facto é "de per si" e em abstracto, potenciador de reacções menos elaboradas e mais "imediatistas" - já que em abstracto, a preparação cultural consente outro tipo de elaboração "escapista", que ajuda na tolerância à frustração, sendo certo que da globalidade dos factos apurados resulta para nós evidente, estarmos perante alguém com uma personalidade impulsiva).

À mesma conclusão (baixa tolerância à frustração e personalidade impulsiva) se chega também, desta feita por intermédio da análise do teor do seu relatório social, acima parcialmente transcrito, e mormente do trecho dele que refere " (. . .) após a estabilização do comportamento prisional no interior do EP de …, passou a partilhar com o outro, o porquê da sua atual reclusão, aparentemente sem ter em consideração o contexto em que se encontrava (tendo ocorrido, uma vez em contexto de grupo e durante a aplicação de um programa em sala, no EP onde se encontra) e sem refletir sobre o impacto e as consequências do seu discurso para os outros, parecendo apresentar uma diminuta capacidade de controlo dos impulsos e de raciocínio consequencial".

A circunstância de não ter revelado no decurso do julgamento capacidade autocrítica em face das consequências causadas com a sua conduta e apenas, de ponderação para si próprio, dos efeitos da mesma (atente-se em que de acordo com as palavras do arguido, quando liga ao seu chefe, dando-lhe nota do sucedido, diz-¬lhe: "já desgracei a minha vida!"), sendo que no decurso do julgamento, em que o mesmo negou até ao limite a sua intenção de atingir a vítima (confessada apenas a final), e o facto de não ter tido no decurso do julgamento uma palavra de empatia para com a mesma, revelam a nosso ver, dificuldade de interiorização da ilicitude da conduta, e dificuldade de descentração.

o arguido é delinquente primário, facto que a seu favor se pondera por revelar uma vida inteira longe da prática de comportamentos ilícitos, considerando estarmos perante alguém que é sexagenário.

Até à ocorrência dos factos, era pessoa social e familiarmente integrada.

E desse modo tudo visto e ponderado, sopesando tudo o que em abono e desabono do arguido foi referido, tem-se como adequado aplicar-lhe pela prática deste crime, uma pena de 14 (catorze) anos de prisão.

O artigo 40º do Código Penal manda que com a pena o sistema jurídico-penal visa (i) a protecção dos bens jurídicos; (ii) e a reintegração dos indivíduos na sociedade.

Com a norma inscrita no artigo 131º do Código Penal pretende-se proteger e tutelar a vida da pessoa humana.

Il diritto alla vita costituisce nel nostro ordenamento personalístico, il bene-fine primario.” [[17]

Como bem-pressuposto da Constituição, ele deve ser assumido num tríplice significado: “1) que o ordenamento personalístico-solidarístico coloca, exactamente no centro, a pessoa humana, na sua unitariedade físico-psíquica e na sua dimensão individual-social reconhecendo-lhe o direito inviolável e favorecendo-lhe o pleno desenvolvimento mediante a imposição, à República, as remoções dos obstáculos, limitativos, de ordem económicos e sociais e, aos particulares, o adimplemento dos deveres inderrogáveis de solidariedade politica, económica e social; 2) que o reconhecimento e a tutela do direito à vida são pressuposto e suporte da manifestação e do desenvolvimento da personalidade humana, enquanto “senza di essi” ainda o reconhecimento, da tutela a o exercício de todos os demais direitos individuais e sociais, «di» e «da», da personalidade humana, e a imposição da remoção dos ditos obstáculos e do adimplemento dos ditos deveres restariam abstractos enunciações privada de efectividade: a começar pelo próprio direito de liberdade, porque para poder ser livre ocorre estar antes de mais («innanzitutto») sujeitos vivos; 3) que qa hierarquização entre bem-fim e bem-meio tem um sentido funcional, sobretudo, da postulada tutela da vida o bem-fim supremo.” [[18]]

O direito à incolumidade individual constitui, também ele, um bem-fim primário, ainda que de rango inferior ao da vida. A incolumidade está entendida em relação: a) à incindível unitariedade da pessoa, no seu significado global, de integridade física e psíquica funcional e estética; b) à sua variabilidade de pessoa para pessoa: no seu significado, absoluto e abstracto, de condições óptimas de funcionalidade psicofísica ou de esteticidade individual, ou pelo menos, de funcionalidade e esteticidade médio-normal.”

O elemento objectivo da conduta consiste: “em qualquer comportamento idóneo a causar a morte, pois que essa é tipificada exclusivamente em função de tal idoneidade causal, quedando indiferente, aos fins da subsistência do delito, a própria modalidade, que assumem, ainda assim, relevância tão somente para fim de agravamento da pena”, seja através da acção ou da omissão. [[19]]

O objecto material é: “1) um homem, isto é, um ser humano, não na fase de «concepito» (objecto este de tutela autónoma); “mas como já ficou dito: a) vindo à existência através da fecundação sexuada, assexuada ou extraespecifica e desenvolvido em qualquer ambiente idóneo que o conduza à maturação (corpo humano feminino ou masculino, corpo animal ou «madre mecânica»); b) capaz de vida autónoma, seja esse saído ou pelo menos no corpo materno (constitui duplo homicídio a morte, por isso, mediante veneno ou incidente estradal, da mãe e do concebido ainda não nascido, mas capaz de vida autónoma”;

2) um homem vivente, isto é, vindo à existência e não morto, ainda que não necessariamente, vital;

3) um qualquer homem, pois que o principio personalístico-igualitário não tolera qualquer discriminação de tutela ao bem supremo da vida, pro qualquer razão;

4) um homem diverso do sujeito do agente;

O evento é a morte do homem, isto é, a morte clinica que consiste na perda, total e irreversível, da capacidade do organismo manter, autonomamente, a própria unidade funcional, coincidente com a chamada ou dita morte encefálica;

O nexo causal naturalístico, no caso de acção, e normativo, em caso e omissão, deve subsistir entre a conduta e o evento da morte.

O objecto jurídico é a vida, que assume uma tutela, antes de mais, como direito individual;

A ofensa é a destruição do bem da vida, tornando-se perfeita com o momento da morte.” [[20]/[21]]   

Ai fini dell’individuazione del bene giuridico tutelato, si può dire, quindi, che la legge penale tutela la vita «individuale» anche contro la volontà del singolo, ed a prescindere da questa. Per convincersene basterà considerare non soltanto le norme che puniscono l’agevolazione dell’altrui suicídio (art. 580), oppure l´omicidio del consenziente (art. 579), ma anche che il delito di omissione de soccorso (art. 505) – ad esempio – si configura, come delito contro la vita e l’incolimità individuale, anche nell’ipotesi in cui venga rinvenuto um corpo umano che «sia o sembri inanimato» e si tratti – ad esempio – de un mancato suicida.” [[22]]     

O bem jurídico protegido é a vida humana desde o momento do nascimento até à morte. O homicídio é um delito de lesão que requer a efectiva lesão do interesse protegido para a sua consumação. “ [[23]]

A conduta típica do homicídio, constituído como delito de resultado, impõe que para a consumação do delito não se torne suficiente “com a realização da conduta por parte do sujeito activo, mas sim que seja necessário que se produza a morte do sujeito passivo. Em consequência, deve verificar-se a relação causal entre a acção do sujeito activo e o resultado da morte, isto é, a morte deve ser imputável objectivamente à conduta do autor. Para além disso, este tipo penal admite tanto a modalidade activa como a omissiva ou a comissão por omissão.” [[24]]   

Para que a previsão contida na norma se materialize no plano da intencionalidade ou voluntariedade do querer de agir de uma determinada maneira e com vista a um determinado fim “não basta a previsão do evento e a sua vontade, mas é necessário que o sujeito preveja a agressão ao bem tutelado e intencionalmente a realiza como consequência do próprio comportamento. O sujeito, «cioè», deve perspectivar o resultado lesivo da sua acção e realizá-lo intencionalmente como consequência da sua conduta.” [[25]] (Tradução nossa).  

O dolo exige o conhecimento e a vontade de realizar as circunstâncias do tipo objectivo, quer dizer, saber que se mata outra pessoa e querer fazê-lo.” [[26]]

A realização/consumação do tipo de ilícito contido no tipo-base do 131º do Código Penal, de que o artigo 132º é uma exasperação e intensificação culposa, basta-se, como já apontamos supra, com a supressão, em consequência de acção (comissiva, ou omissiva ou comissiva por omissão) da vida de uma pessoa humana, de um individuo dotado de vida. [[27]

A desvalorização do sentido positivo da vida de um pessoa, ainda que a acção (comissão) haja sido impelida por motivação emotiva, repentista e irreflectida, por decorrente de uma provocação maturada e continuada, constitui uma ofensa insuportável e irremível de um valor insuperável e invadeável da pessoa humana.

Da asserção irrefragável ressalta a necessidade de a ordem jurídica ter a obrigação de reagir acerbamente para com os autores de tão infanda acção.

A pena a impor, sopesado o valor e a substancialidade do bem jurídico a proteger, deve contemplar a voluntariedade e intencionalidade do agente e nesta assumpção subjectiva-objectiva em que a acção se repercute, a pulsão culpável revelada no agir concreto do autor.

No ordenamento jurídico-penal português a pena passou a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena, no sentido de que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, sendo que dentro desse limite máximo a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, pelo que dentro da moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais. «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade da tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas».

Daqui decorre que o juiz pode impor qualquer pena que se situe dentro do limite máximo da culpa, isto é, que não ultrapasse a medida da culpa. Em sentido coincidente pronuncia-se Anabela Rodrigues, bem como Taipa de Carvalho, ao defenderem que o limite mínimo da pena nunca pode ser inferior à medida da pena tida por indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na ordem dos valores jurídico-penais violados e a correspondente paz jurídico-social, bem como para produzir nos potenciais infractores uma dissuasão mínima, limite este que coincide com o limite mínimo da moldura penal estabelecida pelo legislador para o respectivo crime em geral, devendo eleger, em cada caso, aquela pena que se lhe afigure mais conveniente, com apelo primordial à tutela necessária dos bens jurídico-penais do caso concreto. Tutela dos bens jurídicos não, num sentido retrospectivo, face a um facto já verificado, mas com significado prospectivo, correctamente traduzido pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada. Neste sentido, constitui indicador razoável afirmar-se que a finalidade primária da pena é o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, finalidade que, deste modo, por inteiro se cobre com a ideia de prevenção geral positiva ou de prevenção de integração, dando-se assim conteúdo ao exacto princípio da necessidade da pena a que o artigo 18º, n.º 2, da CRP, consagra. [[28]]

Quanto à pena adequada à culpabilidade, isto é, consonante com a culpa revelada – máximo inultrapassável –, certo é dever corresponder à sanção que o agente do crime merece, ou seja, deve corresponder à gravidade do crime. Só assim se consegue a finalidade político-social de restabelecimento da paz jurídica perturbada pelo crime e o fortalecimento da consciência jurídica da comunidade. O “merecido”, porém, não é algo preciso, resultante de uma concepção metafísica da culpabilidade, mas sim o resultado de um processo psicológico valorativo mutável, de uma valoração da comunidade que não pode determinar-se com uma certeza absoluta, mas antes a partir da realidade empírica e dentro de uma certa margem de liberdade, tendo em vista que a pena adequada à culpa não tem sentido em si mesma, mas sim como instrumento ao serviço de um fim político-social, pelo que a pena adequada à culpa é aquela que seja aceite pela comunidade como justa, contribuindo assim para a estabilização da consciência jurídica geral. 

Nos termos do art. 71 nº 1 do C.P. "a determinação da pena dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção". Resulta de uma chã leitura deste preceito que a culpa (indiciador de um radical pessoal) e a prevenção (que insinua a vertente comunitária da punição) constituem os princípios regulativos em que o juiz se deve ancorar no momento em que se lhe exige que fixe um quantum concreto da pena. Fornecendo o critério, o legislador não fornece ao juiz conceitos fechados e aptos à subsunção que permita a matematização do iter formativo da pena concreta. Se a pena há-de ser individualizada afigura-se que o juiz, assumindo as intencionalidades e as vinculações do sistema jurídico-penal, desempenha, também aqui, urna insubstituível tarefa mediadora e constitutiva.

Para ponderação da individualização concreta da pena, caberão todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o agente, designadamente as inscritas no já citado artigo 71º do Código Penal. (“O grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente; – A intensidade do dolo ou negligência; – Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; – As condições pessoais do agente e a sua situação económica; – A conduta anterior ao facto e posterior a este; – A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”)

Na observância dos pressupostos que informam a determinação concreta da pena e na sua reversão para o caso concreto haverá que ponderar as circunstâncias em que o arguido levou a cabo a conduta censurável, notadamente (i) por existência de uma animadversão e conflitualidade persistente e continuada entre si e o seu filho (vítima); (ii) manutenção por parte da vítima de uma atitude e um comportamento de desafio ao modo de estar e de ser do arguido, nomeadamente por persistir em realizar festas, numa garagem anexa à casa onde o arguido vivia e descansava, por prolongadas horas da noite, com pessoas que não eram do agrado do arguido, ruidosas e alterosas; (iii) reiterada ameaça da vítima de que um dia o expulsaria de casa (que era sua); (iv) modo de vida da vítima que se traduzia num lazer e ócio permanente a que associava atitudes de permanente rebeldia e desacato para com uma vivência conformada a uma vida estabilizada e de trabalho; (v) por no momento imediatamente anterior à reacção (do arguido), a vítima ter repontado a uma intenção/ameaça do arguido de o fazer sair da casa que partilhavam dizendo-lhe que seria «ele mais quantos», dando a entender que não tinha medo dele, que ele não tinha idoneidade a aptidão física para realização do desiderato e que ele era tão forte que seriam precisos bastantes mais pessoas para concretizar a sua pretensão. Esta «bravata» e jactância de poder, em espaço que ele considerava seu, aliado ao desaforo pessoal traduzido num desafio a um poder para que ele se consideraria legitimado – o de o expulsar e privar da casa onde  vivia (à sua custa) – terá, certamente,  provocado um ímpeto de despeito e revolta espontânea que o levou a dirigir-se ao quarto onde sabia que tinha a espingarda (caçadeira) e tirar desforço e vingança da pessoa que ousava desafiá-lo no seu próprio espaço.   

O impulso de acção e a concreção do sentido de actuação ter-se-á desencadeado e movimentado neste feixe de valorações psico-emotivas o que, associado ao acumulado de animosidade e conflitualidade continuada e persistente, terá espoletado uma reacção, momentânea, de descontrolo intelectivo-racional da situação. 

A actuação do arguido revela-se, indubitavelmente, censurável e criticável, no plano ético-jurídico, desde logo porque era pai da vítima e essa relação o deveria preservar de atitudes de desforço e afirmação de autoridade, por via violenta, e, independentemente, da relação biológica-pessoal o facto injusto e punível levado a cabo pelo agente – dar a morte a alguém – no plano da ordem jurídica se constitui como uma violação mais extrema da valoração dos bens jurídicos protegidos pela ordem jurídico-penal. Tirar voluntariamente a vida de uma outra pessoa, com a consciência da acção que leva a cabo, constitui um desvalor final denotador de alguém que não preza o “outro”, sendo que esse “outro” se constitui como um semelhante e merecedor de manter a vida como o autor do acto lesivo e letal

No cotejo e equacionamento das acções reais-naturais e recíprocas que desencadearam, motivaram e deram lastro emotivo-psicológico ao despoletamento da acção, violenta e desatinada, do arguido, pensamos dever assumir que a conduta ilícita e antijurídica se quadra num conspecto reactivo com pendor atenuativo e mitigador. Na verdade, malgrado a acção não poder ser desculpável – nenhuma morte levada a cabo intencionalmente, com excepção da realizada, em (legitima) defesa de bens pessoais superiores, pode, ou em princípio deve, ser desculpável – ter-se-á, na mensuração do nível/grau de culpabilidade, que ter em consideração o estado de conflitualidade persistente e desafiador com que a vítima era confrontado diariamente, a posição em que o arguido se acharia de se ver questionado e posto em crise num espaço que tinha como seu e onde a sua esfera de autoridade e poder era, de forma sistemática e ostensiva, posta em crise, mediante a ameaça que o colocaria, a ele que assumia a posição de «dono», «na rua» e de no momento em que a acção se espoletou a vítima lhe ter feito sentir que ele, sozinho, já não teria força para o remover de casa e que seria necessário, para realizar esse desiderato, reunir a força de bastantes mais pessoas. Afinal, assumindo-se com força para reagir a qualquer intenção de expulsão e conferindo ao arguido uma posição de fraqueza e debilidade funcional-pessoal.         

Haverão, pois, que ser equacionados elementos e/ou vectores de ponderação na calibração de uma pena proporcionada e que deva ter em conta a gravidade do injusto culpável (“na sua importância para a ordem jurídica violada”) e o grau de culpabilidade (pessoal) do agente, [[29]] o que vale dizer que deveremos fazer intervir factores de mitigação na culpabilidade do agente.   

Na avaliação, para determinação da pena, a que se há-de proceder da conduta do agente haverá que que atender à gravidade do delito, isto é, aferir do desvalor da acção, do desvalor do resultado e à culpabilidade (em sentido estrito) do agente. (“A medida da culpabilidade em sentido estrito, [é] entendida por Hörnle apenas como imputação pessoal ao fato ou como atribuição de capacidade de atuar conforme o direito, seria graduável apenas unilateralmente para baixo, na hipótese da existência de factores redutores da culpabilidade.” [[30]/[31]]       

Se o desvalor da acção e do resultado, como já adiantamos, configuram uma violação extrema e preeminente dos bens jurídicos protegidos pela ordem jurídica, já a culpabilidade do agente se nos mostra, em face das circunstâncias envolventes à acção desvalorativa, bastante mitigada.

Como supra colocamos em realce toda a acção desvalorativa do agente teve motivações pendentes, tensões acumuladas e sentimentos emotivos recalcados e de desforço pessoal. Por ouro lado, se bem que, como procuramos deixar explicito, a acção do agente não possa ser qualificada como causa justificativa, o facto é que não se pode descartar toda a emotividade ambiental e a agressão de que a esposa e ele próprio estavam, ou tinham sido, alvo.

Preceitua o artigo 72º do Código Penal que: “o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.

Para efeitos do número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:

b) ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria ou por provocação injusta ou ofensa imerecida.” [[32]]

Da colecta de elementos factuais, aptos e vigentes à data em que a acção desvalorativa foi perpetrada, e que deixamos elencados supra, o facto é que ocorrem elementos de atenuação significativos e que não podendo assumir o plano da desculpabilidade não podem deixar de intervir no sopeso dos factores de avaliação da medida da pena concreta, notadamente da culpabilidade do agente. (“O facto de que, no caso concreto, apesar de não se reunirem todos os pressupostos de uma causa de justificação, quase todos eles estarem presentes, pode ser considerado uma razão para atenuar a pena”. [[33]]  

A determinação/moldura legal donde se deve partir para a individualização judicial da pena oscila entre o mínimo de 12 (doze ) e o máximo de 25 (vinte e cinco) anos de prisão – cfr. nº 1 do artigo 132º do Código Penal.

Tendo presente o que se deixou equilibrado na argumentação a que se procedeu, achamos dever situar a pena, pelo crime de homicídio qualificado previsto e punido pelos artigos 131º e nos nºs 1 e 2, alínea a) do Código Penal, no mínimo da sua determinação legal, ou seja 12 (doze) anos.

No concernente ao crime de detenção de arma proibida previsto e punido pelo artigo 86º, nº 1, alínea c) da Lei nº 5/2006, de 23 e Fevereiro, com a pena de 1 a 5 anos. (“1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, exportar, importar, transferir, guardar, reparar, desativar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou transferência, usar ou trouxer consigo: (…) c) Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objeto, arma de fogo fabricada sem autorização ou arma de fogo transformada ou modificada, bem como as armas previstas nas alíneas ae) a ai) do n.º 2 do artigo 3.º, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias”)

O tribunal recorrido, desfiou para individualização da pena por este tipo de ilícito a sequente argumentação (sic): “Quanto ao crime de detenção proibida de arma:

Valorando as circunstâncias já referidas, considera-se que o grau de ilicitude do facto, traduzido nessa detenção, sem embargo do facto da arma se encontrar no interior da residência do arguido, com a licença caducada, de há algum tempo (não se provando quanto) a essa parte, sempre releva, pois que tratando-se como se trata, de arma de fogo, a potencialidade do seu uso letal está sempre presente.

No caso, a intensidade da ilicitude da conduta eleva-se uma vez que o arguido usa a arma nos descritos moldes, assim produzindo os danos que a tipificação como crime de perigo comum visa acautelar, mercê da tutela antecipativa que o caracteriza.

Quanto à gravidade das suas consequências:

Como já referido, o arguido usou a arma nos moldes anunciados tirando partido da sua letalidade, tendo com isso retirado a vida a BB.

Por isso que do ponto de vista das consequências da empreendida conduta, é evidente a sua imensa gravidade.

O arguido agiu com dolo directo, que é a mais intensa forma de manifestação da voluntariedade criminosa.

O facto de guardar aquela arma, na sequência de um assalto de que terá sido vítima, demonstra a propensão do arguido, já patenteada nas circunstâncias que rodearam a prática do crime de homicídio, de se distanciar das regras institucionais de reacção, e de chamar a si a realização da "justiça".

A título de prevenção geral, realça-se a circunstância de este ser também um dos ilícitos penais que com frequência é praticado, quer nesta localidade, quer um pouco por todo o país e que se encontra de modo significativo associado à prática de outros crimes contra o património, contra a integridade física, ou contra a vida (tendo sido este último, a caso dos autos).

Desse modo, as premências reclamadas pelas necessidades de prevenção geral são muito fortes, levando-nos a graduar a sub moldura penal neste domínio, de modo a explicitá-las adequadamente, entre o limite médio e máximo da pena (mais próximo deste último, todavia).

Quanto às razões de prevenção especial, situação pessoal e condição económica do arguido, remete-se para tudo o que "supra" foi mencionado a tal propósito, aquando da determinação em concreto da pena anterior.

Sendo que, no que a este crime respeita o arguido o confessa integralmente e sem reservas, desde o início da prestação das respectivas declarações.

E tudo o descrito, ponderando que o ilícito penal pelo qual o arguido vem acusado é punível em alternativa, com pena privativa e não privativa da liberdade, não se olvida que a sua prática é contemporânea da prática do outro crime que se apura (punido com pena de prisão), o que só por si, não nos permite a opção pela condenação numa simples multa, que ainda não é sentida - nem socialmente, nem por quem a sofre - como uma verdadeira pena.

Assim, tudo visto, afigura-se-nos adequado aplicar ao arguido, pela prática deste crime, uma pena de 3 (três) anos de prisão.

Não deixando de estimar as judiciosas e ponderosas razões que ditaram a opção pela pena de prisão, que data venia subscrevemos, o facto é que a medida concreta da pena se nos afigura ir além do que se nos figura dever ser imposta no caso concreto.

O arguido possuía uma arma (espingarda caçadeira) para a qual tinha possuído até há seis (6) meses antes da prática do crime. A arma detida pelo arguido é uma arma de posse comum, para determinado tipo de pessoas – aquelas que têm como passatempo o exercício venatório – pelo que a sua detenção não pode ser censurada com o mesmo acinte do que a detenção de uma arma destinada a outras funções.

O uso da arma na prática do crime surge, assim, em nosso juízo, como meio de superar, por um lado a tibieza pessoal de que a vítima o havia acoimado e pelo qual o vinha invectivando e por outro de dar escape ao sentimento de raiva e vingança de que estaria possuído, pela provocação que lhe havia sido feito. No contexto em que foi utilizada, a arma de fogo tem de ser entendida, em nosso juízo, como meio de força e poder a ser usado pelo arguido perante uma pessoa que ele sentiria como mais forte e perante o qual teria de usar um meio que não lhe permitisse evidenciar a sua supremacia de força de modo a ilaquear qualquer reacção, sob pena de, na sua avaliação, ter de sofrer as consequências físicas e pessoais advenientes da superioridade (potencial) física ao rival.    

Sem desvaliar as ponderosas considerações produzidas na decisão recorrida, entendemos que no circunstancialismo em que a acção foi perpetrada a determinação da medida da pena se deverá situar nos 2 (dois) anos de prisão.     

Determinadas as penas parcelares, haverá que indagar pela pena única que deverá caber ao caso.   

II. B.c). – DETERMINAÇÃO DA PENA ÚNICA.

Ajaezados com as penas parcelares supra individualizadas, haverá que determinar a pena de conjunto aos dois crimes por que o arguido terá de ser condenado.

O tribunal para este fim, argumentou (sic) que ““Quando alguém pratique vários crimes, antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles - e no que ora interessa - é condenado numa pena única que tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas e como limite mínimo, a mais elevada das penas aplicadas aos vários crimes.

Na medida da pena, são considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente (respectivamente, nºs 1 e 2 do art° 77º do C. Penal).

Nos autos, o limite máximo da pena é de 17 anos de prisão, sendo de 14 anos de prisão, o seu limite mínimo.

Na determinação em concreto da pena única, pondera-se desde logo, que o princípio da proibição da dupla valoração impede que se considerem novamente como factores agravantes ou atenuantes, as circunstâncias que anteriormente alcançaram o mesmo desiderato na fixação das penas parcelares e ainda, que na fixação da pena única dentro dos limites definidos na Lei se tem vindo a entender que "na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou mesmo a uma "carreira" criminosa), ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, só no primeiro caso sendo cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante" (Figueiredo Dias, "Direito Penal- As Consequências Jurídicas do Crime”, p. 291).

Conectando tais considerações com a situação vertente:

Na correlação entre os crimes praticados, encontra-se efectivamente, uma actuação que designaríamos como "sequencial" ou "imediata".

Sendo que no descrito contexto;

A íntima interligação dos factos praticados (crime meio e crime fim) é de tal sorte notória que do ponto de vista dos actos de execução, aqueles quase se poderiam reconduzir a um só (sem embargo da prática de um - a detenção de arma proibida ¬sempre exponenciar a possibilidade da prática do outro, como aliás, se verificou "in casu").

A tal obsta apenas, a autonomia e diferenciação do objecto tutelado pelas normas incriminatórias (a pluralidade de potenciais ofendidos, que decorre da natureza do crime de perigo comum de um dos ilícitos e da existência de um ofendido de facto, no outro).

Ou seja, da imbricação destes factos, não resulta a "tendência" ou "carreira" criminosa do arguido, tão - somente eclodindo o acto ocasional que ofendeu em simultâneo, diversos bens jurídicos.

Por outro lado, considera-se que nos termos do relatório social acima parcialmente transcrito, o arguido passava por um momento de fragilidade, e uma sensação de impotência, emergente do falecimento de pessoas muito próximas de si.

Social, laboral e familiarmente inserido, dúvidas inexistem de que nos encontramos perante o comportamento isolado que já referimos, o qual foi de enorme gravidade, todavia.

E posto isto, temos por adequado e proporcional fixar a pena única a aplicar ao arguido em 15 (quinze) anos de prisão (abaixo do meio da pena abstractamente aplicável).”

Tendo ocorrido uma pluralidade de infracções, por realização plúrima violações típicas operadas pelo agente com a mesma acção ou conduta antijurídica e ilícita, torna-se cogente  a necessidade de realizar uma condenação em pena única. 

A prática de uma pluralidade de infracções pelo mesmo agente, antes que de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, importa a cumulação das penas que venham a ser impostas (parcelarmente) ao agente – cfr. artigo 77º do Código Penal.   

São dois os pressupostos que alei exige para a aplicação de uma pena única:

- prática de  uma pluralidade de crimes pelo mesmo arguido, formando um concurso efectivo de infracções, seja ele concurso real, seja concurso ideal  (homogéneo ou heterogéneo);

- que esses crimes tenham sido praticados antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, ou seja: a decisão que primeiro transitar em julgado fica a ser um marco intransponível para se considerar a anterioridade necessária à existência de um concurso de crimes.” [[34]]

A adveniência de conhecimento de uma situação de concurso, induz a exigência de realização de uma operação conducente à formação/composição de uma pena conjunta – cfr. artigo 78º, nº 1 do Código Penal. (“Se depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes.”) 

Claus Roxin, in Derecho Penal, Parte General, Tomo II, Especiales Formas de Aparición del Delito”, Civitas e Thomson Reuters, 2014, na Seccion11ª, sob a epigrafe “Concursos”, define o concurso real quando “uma pluralidade de factos puníveis é julgado no mesmo procedimento ou se submete a posterior formação de uma pena global ou conjunta (§ 53 I)” [[35]] (…) “o conceito de pluralidade de factos se interpreta por si mesmo: todas as acções submetidas a uma condenação independente, que não estejam em concurso ideal e que são susceptíveis de formação de uma pena conjunta ou global, estão em concurso real. Portanto, a delimitação de unidade de acção e pluralidade de acções aclara já aclara o que significa haver cometido vários factos puníveis.” [[36]

Depois de descrever as várias situações em que pode ocorrer a formação de uma pena conjunta e as penas particulares que a podem integrar – somente uma pluralidade de penas privativas de liberdade, somente uma pluralidade de penas de multa, uma pluralidade de penas privativas de liberdade e uma pluralidade de penas multas (em caso de distintos factos e no caso de a oena de privativa e pena corresponder ao mesmo facto punível – o Autor fixa-se na formação da pena conjunta ou global.

Na formação da pena conjunta ou global, regulada no § 54 do StGB [[37]], ensina o Emérito Mestre que ela se desenvolve em três passos: (a) a fixação ou atribuição (“asignación”) das penas particulares; (b) a determinação da pena de arranque ou base de partida; (c) a agravação conforme ao princípio da “asperación” ou agravamento (“asperación” do latim “asperare” [agravar]”. [[38]]     

No primeiro dos indicados passos – fixação ou “asignación” das penas particulares -, refere o Autor que vimos seguindo, que há que fixar uma pena independente para cada facto particular daqueles que estão em concurso real. “Para isso na medição da pena basicamente haverá que proceder com se o facto tivesse sido enjuizado (“enjuiciado”) ; pois a valoração global de todos os facto puníveis não se produz até à fixação da pena conjunta ou global.”

No segundo passo “haverá que determinar ou calcular a pena mais grave das penas particulares (a denominada pena de arranque, base ou de partida). No caso de várias penas privativas de liberdade a mais grave é aquela que condena à maior ou mais larga privação de liberdade”.

O último passo “incrementa-se com arrimo (“arreglo”) ao princípio de “asperación” [agravamento].” “Decorrente deste facto forma-se um novo marco penal cujo limite inferior consiste num momento da pena de arranque ou base de partida e cujo limite superior não pode alcançar a soma das penas particulares”. [[39]]  

Dentro do marco penal assim formado a fixação concreta da pena conjunta precisa de um acto independente de medição da pena, no qual se valorem conjuntamente a pessoa do réu e os concretos factos puníveis (§ 54 I 3). “Não basta, portanto, fundamentar as penas particulares e em consequência (“a continuación”) relativamente à pena conjunta ou global constatar na sentença unicamente: “a pena conjunta que há-de ser formada (“que hay que formar“) parece adequada em quantum de cinco anos. Pelo contrário, é necessária uma fundamentação adicional especifica, que se baseia na concepção do legislador de “que os factos particulares são emanação da personalidade única do sujeito e por isso hão-de ser “enjuiciados” não como uma mera soma, mas antes como um conjunto. Há-de efectuar-se uma “visão global de todos os factos”. “A este respeito dá que considerar diversos factores, a saber, a relação dos factos particulares entre si, em espacial a sua conexão, a sua maior ou menor autonomia, e além disso a frequência da comissão, igualdade ou diversidade dos bens jurídicos lesionados e dos modos comissivos assim como o peso total do suposto que haja que julgar.”         

Com a valoração global dos factos opera a personalidade do autor. “A este respeito haverá que tomar em conta juntamente com a sua sensibilidade à pena sobretudo a sua maior ou menor culpabilidade em relação à totalidade do sucesso. Também é importante determinar “se os vários factos puníveis procedem de uma tendência criminal ou nos factos imprudentes de uma disposição de ânimo geral de indiferença ou se pelo contrário se trata de delitos ocasionais sem vinculação interna.” [[40]]

Na teorética que coenvolve a dogmática jurídica da formação da pena conjunta ou global, refere o mesmo Autor, que se coloca uma primeira questão, qual seja “de se os factores ou critérios de medição da pena que já hajam sido considerados em cada pena particular, também podem voltar a desempenhar um papel na determinação da pena conjunta”. “Contra esta possibilidade aduz-se a “proibição da dupla utilização ou valoração. A favor desta posição, a jurisprudência e um sector da doutrina, partem da base de que não é praticável uma total separação dos pontos de vista decisivos para a pena particular e a pena conjunta. Circunstâncias como as relações pessoais e económicas do réu, a sua vida interior e a atitude interna expressada no facto, que já … devem ser tidas em conta na fixação das penas particulares, têm também uma importância essencial na formação da pena global ou conjunta. As ditas circunstâncias podem ser por uma parte consideradas isoladamente para o facto particular e por outra “sinteticamente como conjunto” na sua repercussão sobre a totalidade dos factos.”          

Por outro lado também se coloca a questão de “se os factos puníveis em serie têm importância na formação da pena conjunta com carácter agravante ou atenuante.” 

O correcto parece ser julgar estes supostos diferenciando. Assim, se diversos furtos representam só a realização sucessiva de um dolo global unitário, em que antes se admitiu um delito continuado, ou se vários factos similares se devem a que o sujeito haja caído na mesma tentação, a comissão “formaliter” pode ser julgado de modo mais benigno.”  

A pena conjunta surge no ordenamento jurídico-penal como necessidade de obter uma configuração final, genérica e de visão global de uma personalidade (tendencialmente propensa a delinquir ou pelo menos a praticar actos que se revelam contrárias à preservação e manutenção de um quadro valorativo penalmente prevalente e saliente) e de uma pluralidade de condutas e acções típicas perpetradas pelo mesmo arguido num lapso de tempo confinado por uma avaliação jurisdicional. [[41]]

No quadro das valorações consequenciais advertidas pelas condutas antijurídicas e tipicamente eleitas importa obter um quadro referencial do individuo actuante como forma de propiciar uma imposição punitiva que tenha como pressuposto a culpabilidade colocada na prática das acções típicas, mas igualmente aquilatar e aferir das necessidades de prevenção (geral e especial), bem assim de representar e sugerir para a comunidade a reposição da normalidade contrafáctica resultante da infracção de uma norma penal.   

A jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, tem doutrinado de forma proficiente o modo de obter, ponderadamente e pragmaticamente, a composição ajustada da pena conjunta. [[42]/[43]]

Com o amparo do figurado para a determinação a pena única, considerar-se-á para o caso que o arguido (i) é um indivíduo teve um percurso vivencial pautado pela regularidade e vulgaridade típica de alguém que começa a organizar cedo a sua vida pessoal-familiar, incoando a trabalhar logo após o decurso de um período escolar não muito bem sucedido; (ii) consolidou a actividade profissional como …, que lhe propinou uma vida económica desafogada e sem problemas; (iii) casou por duas vezes, sendo a vítima filho do segundo casamento; (iv) pautou a sua vida pela mediania e pela pacatez; (v) tinha um ajustado e correcto sentido de entreajuda familiar (“embora na relação com os familiares próximos transparecesse a sua significativa dificuldade na expressão dos afetos, parecendo mais distante e assumindo preponderantemente um papel funcional como pai e marido.”); (vi) reconhece a gravidade da acção perpetrada; (vii) manifesta uma atitude de acatamento pela censura em que se traduz a condenação pelo crime praticado.

O seu relacionamento com o filho ter-se-á pautado por uma desafeição e pela falta de aceitação do seu modo de vida, qual fosse a ausência de estabilidade de emprego; consumo de estupefacientes; acompanhamento com pessoas que não colhiam a simpatia, por divergirem, certamente, do padrão de vida que ele adoptara; actos de rebelião e «ultraje», traduzidos na realização de festas numa agência funerária de que o arguido era, com os irmãos proprietário, com (sic) “publicação e divulgação de fotografias no facebook de indivíduos no interior das … ”;    

Com o quadro pessoal debuxado e sopesando as penas parcelares irrogadas, figura-se-nos que a pena única ajustada ao caso se deverá quedar nos doze (12) anos e seis (6) meses de prisão.


III. – DECISÃO.

Na defluência do exposto, acordam os juízes que constituem este colectivo, n 3ª secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em:

- Conceder parcial provimento e, operando a qualificação do crime de homicídio qualificado, nos  supramencionados termos, condenar o arguido AA:

- pela prática do crime de homicídio qualificado previsto e punido nos artigos 131º e 132º, nº 1, alínea a) do Código Penal na pena de 12 (doze) anos de prisão;

- pela prática de um crime de detenção de arma proibida  na pena de 2 (dois) anos de prisão;

- em Cúmulo das penas parcelares impostas na pena única de 12 (doze) anos e 6 (seis) meses de prisão.  

- Sem custas.


Lisboa, 30 de Outubro de 2019


Gabriel Catarino (Relator)

Manuel Augusto Matos

__________

[1] Tratando-se de decisão proferida por tribunal colectivo o Supremo Tribunal de Justiça é competente para conhecer, em sede de recurso, as penas parcelares e a pena conjunta que hajam sido impugnadas.
“«A competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas.»
[2] Veja-se ainda relativamente a este conceito  - «motivo fútil» - a jurisprudência adrede esmaltada nos Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-12-2015,  proferido no Processo nº 1730/14.5 JAPRT-S1, relatado pelo Conselheiro Armindo Monteiro, em que se escreveu: «A circunstância qualificativa motivo fútil – art.º 132.º n.º 2 e), do CP – estruturada com relação à motivação do agente, é a que surge fundada num profundo desprezo do valor da vida humana, acção que não pode razoavelmente explicar e muito menos justificar a conduta; é um motivo que de tão pouco ou imperceptível relevo é, que quase não chega a ser motivo, frívolo, revelador de inadequação e que faz avultar a desproporcionalidade entre o que impulsiona a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que aquela se objectivou» (Cfr. ainda os Acórdãos do STJ de 23/4/2015, proferido no Processo nº 693/13.9JDLSB.L1, e relatado pelo Conselheiro Manuel Braz, em que se sumariou (“Nos casos do art. 132.º do CP verifica-se uma censurabilidade ou perversidade acrescida em relação à perversidade ou censurabilidade que já tem de estar presente no homicídio simples do art. 131.º. É nessa diferença de grau, nessa especial maior culpa, que encontra fundamento a qualificação do homicídio. V - A verificação de qualquer das circunstâncias exemplificadas no n.º 2 constitui só um indício da existência da especial censurabilidade ou perversidade, podendo negar-se este maior grau de culpa, apesar da presença de uma das referidas circunstâncias, e concluir-se pela especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, pela qualificação do homicídio, apesar de se negar a presença de qualquer dessas circunstâncias, se ocorrer outra valorativamente análoga. VI - Na situação em análise, a Relação, como já fizera o tribunal de 1.ª instância, decidiu que o arguido foi determinado por motivo fútil, sendo, em consequência, o homicídio qualificado nos termos do art. 132.º, n.ºs 1 e 2, al. e). VII - Motivo fútil, para o efeito previsto no art. 132.º, n.º 2, al. e), não pode ser o que, com referência à moldura penal correspondente ao homicídio normal, é irrelevante ou pouco relevante em termos de atenuar o grau de culpa do agente. Essa é matéria cuja sede de valoração é a determinação da pena concreta dentro dessa moldura, sendo ainda a esse nível ou eventualmente no plano das causas de justificação do facto ou da atenuação especial da pena que se pode colocar a questão da desproporção entre a conduta da vítima e a reacção do agente, de que fala a decisão recorrida. A pouca relevância de um motivo não pode ter consequências mais gravosas que a ausência de motivo.”; e de 12/03/2015, proferido no Processo nº  145/14.0JAPRT e de 12.3.2015, proferido no Processo nº 185/13.6.GCALQ.L1.S1, relatado pelo Conselheiro Maia Costa e onde se sumariou “O motivo do agente é fútil quando revela uma frivolidade evidente, quando é absolutamente desproporcionado em função das conceções éticas e culturais da comunidade, independentemente ponto de vista subjectivo do agente.”; acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 13-11-2013, proferido no Processo nº 938/12.JAPRT.P1.S1, relatado pelo Conselheiro Souto Moura, em que se sumariou “Para avaliar se um motivo é fútil, para efeitos da al. e) do n.º 2 do art. 132.º do CP, tem que se relacionar a gravidade do comportamento com o móbil do crime. A grande desproporção entre o que se elege como motivo da ação e aquilo em que esta se analisa, transforma a conduta, não só em algo intolerável, como também em algo absurdo, sem explicação, à luz das conceções éticas correntes da sociedade. A razão do cometimento do crime surge pois com um valor irrisório para o normal dos cidadãos, comparado com o mal que se provoca com este.”; ou inda o Ac. STJ de 7-12-2011, CJ (STJ), 2011, T.III, pág. 227: “I. Motivo torpe é aquele que se considera comumente repugnante ou baixo, sendo motivo fútil aquele que não se pode razoavelmente explicar ou justificar, sem qualquer tipo de valor ou em que este se mostre insignificante ou irrelevante.”
[3] Relativamente ao conceito de «frieza de ânimo» inserto na parte final da alínea e) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, veja-se, por todos, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14.11.2002 (Proc. nº 02P3316, relatado pelo Conselheiro Simas Santos em que se sumariou (sic): “Há frieza de ânimo quando se age a sangue frio, de forma insensível, com indiferença pela vida humana e reflecte-se sobre os meios empregados quando a escolha, o estudo ponderado dos meios de actuação que facilitam a execução do crime ou pelo menos diminuam acentuadamente as possibilidades de defesa da vítima mercê do modo frio, indiferente, calmo e imperturbadamente reflectido com foi planeada a morte. 5 - Age com frieza de ânimo o arguido que: - pressionado pela promessa da vítima de que apresentaria a pagamento um cheque por si sacado correspondente a uma burla que efectuara, combina um encontro para daí a 2 dias afirmando-lhe que lhe pagaria; - formula então o propósito de matar a vitima e assim se livrar da dívida que tinha para com esta; - no dia e hora combinados, compromete-se a pagar à tarde e deslocar-se ao banco para o efeito; - à hora aprazada, o arguido entra no carro da vitima, munido de uma pistola que ninguém lhe conhece, igualmente não lhe conhecendo o hábito de andar armado; - em local de pouco movimento, desfere 2 tiros contra a cabeça da vitima, que foi completamente apanhado de surpresa; - deixa no local elementos para despistar a investigação e saí daí num trajecto perfeitamente apto a dissimular a sua presença no local e se mantém a trabalhar durante cerca de 3 horas e meia, como se nada tivesse acontecido.” (todos os arestos podem ser encontrados in www.dgsi.pt
[4] Veja-se quanto à caracterização da qualificação do crime de homicídio e da relevância do tipo de culpa que se esmalta com a categorização de censurabilidade e perversidade, o recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Outubro de 2019, no Processo nº 24/17.9JAPTM.E1.S1, relatado pelo Conselheiro Lopes da Mota, e que pela profusão e cópia de doutrina e jurisprudência que ensancha se deixa extractado, na parte interessante.
Como tem sido repetidamente afirmado na doutrina e na jurisprudência constante deste Tribunal, o crime de homicídio qualificado p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º do Código Penal constitui um tipo qualificado por um critério generalizador de especial censurabilidade ou perversidade, determinante de um especial tipo de culpa, mediante uma cláusula geral concretizada na enumeração dos exemplos-padrão enunciados no n.º 2 deste preceito, relativos ao facto e ao agente, indiciadores daquele tipo de culpa agravado, cuja confirmação se deve obter, no caso concreto, pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias do facto e da atitude do agente [assim, nomeadamente, o acórdão de 12.07.2018, Proc. 74/16.2JDLSB.L1.S1, cit., mencionando os acórdãos de 5.7.2017, Proc. 1074/16.8JAPRT.P1 (Rosa Tching), de 19.2.2014, Proc. 168/11. 0GCCUB.S1 (Santos Cabral), e de 18.10.2007, Proc. 07P2586 (Santos Carvalho), em www.dgsi.pt, bem como a jurisprudência e doutrina neles citadas, incluindo Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, comentário ao artigo 132.º do Código Penal, Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1998, Augusto Silva Dias, Direito Penal - Parte Especial: Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, AAFDL, 2005, Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, Quid Juris, 2008]. «Exige-se, pois, que o agente tenha agido com culpa agravada, ou seja, que as concretas circunstâncias da sua conduta permitam justificar um especial juízo de censura, pela particular gravidade do facto revelada nessas circunstâncias, as quais, na ausência de motivo susceptível de, em concreto, diminuir ou neutralizar a sua valoração, a verificarem-se, se deve considerar preencherem o critério de especial censurabilidade ou perversidade para efeitos de realização do tipo qualificado do crime de homicídio», como se sublinhou no acórdão de 12.07.2018, citado.
31. A propósito dos conceitos normativos de «especial censurabilidade e perversidade» (artigo 132.º, n.º 1, do Código Penal), escreveu-se no acórdão de 18.10.2007 (Proc. 07P2586, cit.), citando Teresa Serra (loc. cit., p. 63-65), como se recordou no acórdão de 12.07.2018, Proc. 74/16.2JDLSB.L1.S1, cit.) e, mais recentemente, no acórdão de 02.10.2019, no processo n.º 3622/17.7JAPRT-P1.S1 (ainda não publicado):«Como se sabe, a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No artigo 132.º, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode reconduzir-se «à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala Binder. Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor. Especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente... Importa salientar que a qualificação de especial se refez tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete».
32.  E sobre o tipo de culpa agravado do artigo 132.º considerou-se no acórdão de 19.2.2014 (Proc. 168/11.0GCCUB.S1, cit., apud mesmo acórdão de 12.07.2018):«Refere Silva Dias (...) que a verificação do exemplo padrão do n.º 2 do art. 132.º não implica, apenas indicia, a presença de um caso de especial censurabilidade ou perversidade. Tal indício, e não mais do que isso, tem de ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias de facto e da atitude do agente nele expressas. (...)
O que determina a agravação é sempre um acentuado desvalor da atitude do agente, quer o mesmo se exprima numa maior intensidade do desvalor da acção, quer numa motivação especialmente desprezível.
Nas palavras de Margarida Silva Pereira ["Os Homicídios" pág. 40] a caracterização do art. 132.º do CP passa pela intersecção de três eixos fundamentais, a saber: a exclusão da aplicação automática; a aferição da qualificação por um critério de culpa no sentido de que se utilize os parâmetros consagrados e tipificados para aquilatar se no caso concreto existe de igual forma uma culpa especial e a permissão do recurso à analogia pois que ao juiz cabe sempre a possibilidade de construir em concreto os pressupostos da afirmação de uma especial censurabilidade, ou perversidade, os quais, embora não subsumíveis aos exemplos padrão, constituem, ainda assim, a demonstração de uma especial intensidade da culpa. Todavia, importa salientar que a valoração da culpa operada pelo art. 132.º do CP não aparece desligada de uma ilicitude qualitativamente mais intensa. (...)
A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação, sendo um tipo de culpa. Seguindo Roxin, por tipo de culpa entende-se aquele que, na descrição típica da conduta, contém elementos da culpa que integra factores relativos à actuação do agente que estão relacionados com a culpa mais grave ou mais atenuada. A culpa consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto deste ter actuado em desconformidade com a ordem jurídica quando podia, e devia, ter actuado em conformidade com esta, sendo uma desaprovação sobre a conduta do agente. O juízo de censura, ou desaprovação, é susceptível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela actuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas. (...)
O especial tipo de culpa do homicídio qualificado é conformado através da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Como refere Figueiredo Dias a lei pretende imputar à especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção ao nível da atitude do agente de formas de realização do acto especialmente desvaliosas e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas. Enumera o normativo em análise um catálogo dos exemplos padrão e o seu significado orientador como demonstrativo do especial tipo de culpa que está associado à qualificação». 
[5]O bem jurídico-penal é um pedaço da realidade olhado sempre como relação comunicacional, com densidade axiológica a que a ordem jurídico-penal atribui dignidade penal.” – José Faria Costa, Noções Fundamentais de Direito Penal (Fragmenta iuris Poenalis), Coimbra Editora, 4ª edição, 2015, pág. 164.
A questão de quais dos seus «bens» aparecem como dignos da protecção e que rango lhes corresponde na hierarquia dos seus interesses (ao do individuo) está sujeita tanto às mudanças históricas, como à possibilidade e medida do perigo a que possa expô-los a conduta humana. 
Pense-se desde logo na problemática das ingerências da tecnologia genética no genoma humano. Nessa medida em última medida se vê remetido para convicções valorativas em geral divididas e também controvertidas acerca de quais teria de confrontar-se num discurso público, e que, sem embargo, não podem ser fundamentadas de uma maneira vinculante.” – Cfr. Günther Stratenwerth, in Depreco Penal Parte General I, El Hecho Punible, Thomsn-Civitas, Editorial Aranzadi, Cizur Menor (Navarra), 2005, pág. 58.
Para uma crítica da legitimação material do Direito Penal como meio de protecção de bens jurídicos e pela adopção de uma concepção de bem jurídico como unidade funcional, veja-se Günther Jakobs, Derecho Penal, Parte General, Fundamentos y Teoria de la Imputación, 2ª edição, corrigida, Marcial Pons, 1997, págs. 47-61. “O importante é que a punibilidade se oriente não para o desvalioso per se, mas sim sempre para a danosidade social. Inclusivamente o acordo acerca da fórmula de que o Direito penal só deve proteger as condições de existência da sociedade rende escasso fruto, pois não há fronteira obrigatória alguma do social e consequentemente tão pouco há numerus cluasus das condições de existência” – op. loc. cit. pág. 58. “A contribuição que o Direito penal presta à manutenção da configuração social e estatal reside em garantir as normas. A garantia consiste em que as expectativas imprescindíveis para o funcionamento da vida social, na forma dada e na legalmente exigida, não se dêem por perdidas no caso de resultarem defraudadas. Por isso – ainda contradizendo a linguagem usual – deve-se definir como bem a proteger a firmeza das expectativas normativas essenciais frente á decepção, firmeza que tem o mesmo âmbito que a vigência da norma posta em prática: este bem se denominará a partir de agora bem jurídico-penal” – Op. loc. cit. 45.       
[6]A culpabilidade do autor será o fundamento da medida da pena. Dever-se-ão considerar os efeitos derivados da pena para a vida futura do autor na sociedade” - § 46, I do StGB (Código Penal Alemán), Marcial Pons, Madrid, 2000.
[7] Paragonado com o estabelecido no artigo 71º do nosso ordenamento jurídico-penal, pontua-se no apartado II do § 46 do StGB, que o tribunal deverá na “medición” da pena ponderar as circunstâncias favoráveis e contrárias ao autor. “com este fim se contemplarão particularmente: - os fundamentos da motivação e os fins do autor; - a intencionalidade que se deduz do facto e a vontade com a qual se realizou o facto; - a medida do incumprimento do dever; - o modo de execução e os efeitos inculpatórios do facto; - os antecedentes do autor, a sua situação pessoal e económica,
assim como
a sua conduta depois do facto, especialmente os seus esforços para reparar os danos, e os seus esforços para acordar uma compensação com o prejudicado.”    
[8] Winfried Hassemer, “Fundamentos del Derecho Penal”, Editorial Bosch, Barcelona, 1984, pág. 127.
[9] cfr. Eduardo Crespo, op. loc.cit., pag. 121.
[10] Cfr. Gunther Jakobs, in loc.cit. supra, pag. 13.
[11] Cfr. Claus Roxin, “Fundamentos Politico-criminales del Derecho Penal” (“La determinación de la pena a la luz y de la teoria de los fines de la pena), Hammarabi, Buenos Aires, págs. 143 a 166.
[12]O princípio – fundamentado segundo opinião generalizada na Constituição – nulla poena sine culpa (princípio da culpabilidade) não significa nesta situação senão que «o suposto de facto e a consequência jurídica devem estar em proporção adequada», quer dizer, a imputação ao autor deve ser necessária, por estar descartada a possibilidade de resolver o conflito sem castigar o autor. Também a medida da culpabilidade se vê limitada pelo necessário. Sobretudo, o conteúdo da culpabilidade não é algo prévio ao Direito, sem consideração às situações sociais.” – Günther Jakobs, op. loc. cit. pág. 588-589.     
[13] À teoria da margem da liberdade opõe-se a teoria da «pena exacta», segundo a qual «a la culpabilidad» só pode corresponder una pena exactamente determinada (punktuell).  – Clus Roxin, op. loc. cit. P. 146.
[14] Claus Roxin, Derecho Penal, Parte General, Tomo I. Fundamentos. La Estructura de la Teoria del Delito. Civitas. 1997, pág. 95.
[15] Claus Roxin, op. loc. cit. págs. 96-97.
[16] Claus Roxin, op. loc. cit. págs. 103.
[17] Veja-se na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de Maio de 201º, proferido no Processo nº 58/08.JAGRD.C1.L1, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral em que se sumariou: “I - O crime de homicídio constitui uma violação do bem mais precioso de qualquer pessoa que é a própria vida e, como tal, será sempre inadmissível. Porém, o processo causal que leva à consumação de tal crime, isto é, a dinâmica de emoções e sentimentos que lhe está associada assume uma policromia por tal forma plurifacetada que, necessariamente, terá de lhe corresponder uma maior ou menor compreensão da sua génese. II - O art. 132.º do CP define o tipo de crime de homicídio qualificado constituindo uma forma agravada de crime em relação ao tipo do art. 131.º do mesmo diploma. Com efeito, o tipo de crime assenta nos mesmos factos dos que estão previstos no art. 131.º, funcionando a qualificação assente na combinação de um critério de culpa com a técnica dos exemplos padrão. III - A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação, sendo um tipo de culpa. Seguindo Roxin, por tipo de culpa entende-se aquele que, na descrição típica da conduta, contém elementos da culpa que integra factores relativos à actuação do agente que estão relacionados com a culpa.” 
[18] Fernando Mantovani, “Diritto Penale. Parte Speciale. Delitti Contro la Persona”, Cedam. Milan, 2005, p. 89. Refere o autor que ao invés de outras Constituições, com o é o caso das alemã, espanhola e portuguesa, a Constituição italiana não reconhece expressamente o direito à vida e à incolumidade individual.  
[19] Fernando Mantovani, op. loc. cit. p. 93.
[20] Fernando Mantovani, op. loc. cit. p. 94 a 97.
[21] Vide ainda quanto ao tipo objectivo, sujeitos passivos e acção (comissiva ou omissiva) Francisco Muñoz Conde, “Derecho Penal, Parte Especial”, Tiranto lo Blanch, 13ª edição, Valência, 2001, p. 34-40.   
[22] Cfr. Vincenzo Patalano, “I Deliti Contro la Vita”, CEDAM, Milano, p. 16.
[23] Javier Boix Reig, “Derecho Penal. Parte Especial. La protección penal de los interes jurídicos personales”, (Adaptado a la reforma de 2015 del Código Penal); Volume I, 2ª edición, iustel, Madrid, 2016, p. 18 
[24] Javier Boix Reig, op. loc. cit. p. 20.
[25] Vincenzo Patalano, op. loc. cit. 25-26.
[26] Francisco Muñoz Conde, op. loc. cit. p. 38.
[27] Não vem aqui ao caso a querela doutrinária relativa ao início da vida. Com interesse podem ver-se os dois autores citados, Vincenzo Patalano, op. loc. cit. ps. 8 a 12; e Javier Boix Reig p. 18 (bem como os autores citados por este último autor)[28]O princípio da proporcionalidade do art. 18.º da Constituição refere-se à fixação de penalidades e à sua duração em abstracto (moldura penal), prendendo-se a sua fixação em concreto com os princípios da igualdade e da justiça.
[Deve na determinação concreta da pena atender-se ao] “grau de ilicitude do facto (o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente); – A intensidade do dolo ou negligência; – Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; – As condições pessoais do agente e a sua situação económica; – A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; – A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada (a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor – a medida da pena tem de corresponder às expectativas da comunidade) e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (é a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário. Dirige-se ao próprio condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes na comunidade) assim se desenhando uma sub-moldura.” – (Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 22.02.2007).
[29] Adriano Teixeira, ibidem, pág. 119.
[30] Adriano Teixeira, ibidem, pág. 67.
[31] “O princípio da culpabilidade responde pela dosimetria da pena e estabelece a relação entre a gravidade do delito e a culpabilidade do autor (“Principio da culpabilidade e determinação das consequências jurídicas [legalidade] situam-se numa relação de tensão que deve ser equalizada constitucionalmente de modo sustentável”) - Sentença do Tribunal Constitucional alemão, citado por Adriano Teixeira, ibidem, pág. 106.
[32] A propósito da atenuação especial da pena ponderou-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Julho de 2015 (Proc. nº 32/14.1PEAMD.S1). O artigo 72.º do Código Penal (CP), com a epígrafe «Atenuação especial da pena», estabelece no n.º 1, que o tribunal atenua especialmente a pena, nos termos indicados no artigo subsequente, quando existirem circunstâncias que diminuam acentuadamente a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena, enunciando o n.º 2, de forma exemplificativa, vários pressupostos da atenuação especial, entre os quais se incluem ter a conduta do agente sido determinada por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida [alínea a)], ter havido atos de arrependimento sincero do agente [alínea b)], e ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta [alínea c)], nos quais o recorrente funda o pedido, por os entender presentes na matéria de facto provada.
Para Figueiredo Dias a atenuação especial da pena tem subjacente a necessidade de uma «válvula de segurança» do sistema para responder a situações especiais em que «existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao “complexo” normal de casos» Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial de Notícias, 1993, p. 302.; «princípio regulativo da aplicação do regime da atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena, e, portanto, das exigências de prevenção» Idem, p. 303.. 
Sobre os «factores de atenuação especial», relativamente às circunstâncias enunciadas nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 72.º do Código Penal, que constituem exemplos ilustrativos da situação especialmente atenuada contida na cláusula geral do nº 1, em que «outras situações que não as descritas naquelas alíneas podem (e devem) ser tomadas em consideração, desde que possuam o efeito requerido de diminuir, por forma acentuada, a culpa do agente ou as exigências da prevenção » e «as próprias situações descritas naquelas alíneas não têm o efeito “automático” de atenuar especialmente a pena, só o possuindo se e na medida em que desencadeiem o efeito requerido» Idem, p. 306.. 
A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem-se pautado por idêntico entendimento, quando afirma que «[p]ressuposto material da atenuação da pena, autónomo ou integrado pela intervenção valorativa das situações exemplificativamente enunciadas no art. 72.º do CP, é a acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção», «[n]a análise a fazer há que ter uma visão integral do facto, atender ao pleno das circunstâncias que enformaram os factos; a emissão de uma declaração de arrependimento por parte do arguido tem de ser entendida com a verdadeira amplitude e o alcance que tem, pois uma coisa é declarar arrependimento no que pode ser uma declaração de circunstância determinada pelas circunstâncias, outra a corresponder a uma interiorização do mal da conduta» Acórdão de 25 de novembro de 2009, processo n.º 490/07.0TAVVD.S1. Entre outros no mesmo sentido podem consultar-se os de 17 de dezembro de 2014, processo n.º 937/12.4JAPRT.P1.S1 e de 15 de janeiro de 2015, processo n.º 92/14.5YFLSB.”
[33] Adriano Teixeira, ibidem, pág. 125. (Citando em apoio desta afirmação Mezger, Lehrbuch, p. 499 e outros) 
[34] Artur Rodrigues da Costa, “O Cúmulo Jurídico na Doutrina e na Jurisprudência do STJ”.
[35] Estipula o § 53 I do Código Penal Alemão (StGB) sob a epigrafe “Concurso real de delitos”: “Quando alguém haja perpetrado vários delitos que sejam julgados simultaneamente, e por isso se lhe devam aplicar várias penas privativas de liberdade ou várias multas, condenar-se-á numa pena conjunta”. (Tradução nossa do Código Penal Alemão, traduzido por Emilio Eiranova Encinas (Coord.), Marcial Pons, 2000, Madrid, pág. 37.     
[36] Claus Roxin, op. loc. cit. pág. 981.
[37] Tem o sequente texto o § 54, sob a epígrafe “Formação da pena conjunta”: “Quando uma das penas particulares seja uma pena para a vida (“de por vida”), condenar-se-á á pena privativa de liberdade para a vida (“de por vida”) como pena conjunta. Em todos os demais casos se formará apena conjunta pelo aumento da pena mais alta em que esteja incurso, em caso de penas de distintas classes, pelo aumento da sua classe segundo a pena mais grave” – tradução nossa. (StGB citado).
[38] Claus Roxin, op. loc. cit. págs. 987 a 992.
[39] Claus Roxin, op. loc. cit. págs. 987 a 989.
[40] Claus Roxin, op. loc. cit. pág. 991.
[41] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de Abril de 2011, relatado pelo Conselheiro Armindo Monteiro, de que ressaltamos o respectivo sumário: “IV - A formação da pena conjunta é, assim, a reposição da situação que existiria se o agente tivesse sido atempadamente condenado e punido pelos crimes à medida em que os foi praticando (Lobo Moutinho, Da Unidade à Pluralidade dos Crimes no Direito Penal Português, edição da FDUC, 2005, pág. 1324). V -Propondo-se o legislador sancionar os factos e a personalidade do agente no seu conjunto, em caso de cúmulo jurídico de infracções, é de concluir que o agente é punido pelos factos individualmente praticados, não como um mero somatório, em visão atomística, mas antes de forma mais elaborada, dando atenção àquele conjunto, numa dimensão penal nova, fornecendo o conjunto dos factos a gravidade do ilícito global praticado, levando-se em conta exigências gerais de culpa e de prevenção, tanto geral, como de análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização). (…) XI - O cúmulo retrata, assim, o atraso da jurisdição penal em condenar o arguido, tendo em vista não o prejudicar por esse desconhecimento ao fixar limites sobre a duração das penas. XII - Imprescindível na valoração global dos factos, para fins de determinação da pena de concurso, é analisar se entre eles existe conexão e qual o seu tipo; na avaliação da personalidade releva sobretudo se o conjunto global dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa, dando-se sinais de extrema dificuldade em manter conduta lícita, caso que exaspera a pena dentro da moldura de punição em nome de necessidades acrescidas de ressocialização do agente e do sentimento comunitário de reforço da eficácia da norma violada ou indagar se o facto se deve à simples tradução de comportamentos desviantes, meramente acidentes de percurso, que toleram intervenção punitiva de menor vigor, expressão de uma pluriocasionalidade, sem radicar na personalidade, tendo presente o efeito da pena sobre o seu comportamento futuro – Prof. Figueiredo Dias, op. cit . § 421. XIII - Quer dizer que se procede a uma reconstrução da sanção, descendo o julgador do aspecto parcelar penal para se centrar num olhar conjunto para a globalidade dos factos e sobre a relação que tem com a sua personalidade enquanto suporte daquele conjunto de manifestações que exprimem a sua relação com o dever de qualquer ser para com a ordem estabelecida, enquanto repositório de bens ou valores de índole jurídica, normativamente imperativos. XIV - A avaliação da personalidade é de feição unitária, conceptualmente como um todo referível a uma unidade delituosa e não mecanicamente por uma adição criminosa. XV - Quando o tribunal aplique em concurso uma única pena de multa como pena principal ou alternativa à de prisão, com uma multa substitutiva da prisão, nos termos do art. 43.º, do CP, tais penas devem acumular-se materialmente, atenta a sua diferente natureza. (…) XXI - A Lei 59/2007, de 04-09, suprimiu o requisito anterior que excluía do concurso superveniente a hipótese de a pena se achar cumprida, prescrita ou extinta, não a englobando no cúmulo jurídico e no desconto na pena única. XXII - Actualmente, o art. 78.º, n.º 1, do CP, considera que o cumprimento leva ao desconto na pena única formada, em inteira benesse para o arguido, mas já não se, por exemplo, ela se mostrar extinta por qualquer outro motivo, designadamente por amnistia, mas sem abdicar das regras do concurso, entre as quais a da mesma natureza das penas em presença. XXIII - O legislador não fornece qualquer critério de ordem matemática, em termos de a compressão aritmética a observar na formação da pena de conjunto, não dever ultrapassar “1/3 e que muitas vezes se queda por 1/6 e menos”, à luz da jurisprudência do STJ, segundo diz, mas apenas um guia na formação da pena de concurso: o da atendibilidade da avaliação global dos factos e personalidade do agente, com o significado, contornos e amplitude já indicados. XXIV - A liberdade individual, de acordo com o princípio da ponderação de interesses conflituantes, só pode ser suprimida ou limitada “quando o seu uso conduza, com alta probabilidade, a prejuízo de outras pessoas que, na sua globalidade, pesa mais do que as limitações que o causador do perigo deve sofrer”, na expressão de Roxin, citado pelo Prof. Figueiredo Dias, op. cit., pág. 430, nota 35.”
[42] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 1.07.2015, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral (sic): “Como já referimos em Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 4/05/2011 é uniforme o entendimento de que, após o estabelecimento da respectiva moldura legal a aplicar, em função das penas parcelares, a pena conjunta deverá ser encontrada em consonância com as exigências gerais de culpa e prevenção. Porém, como afirma Figueiredo Dias, nem por isso dirá que estamos em face de uma hipótese normal de determinação da medida da pena uma vez que a lei fornece ao tribunal para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no artigo 72 do Código Penal um critério especial que se consubstancia na consideração conjunta dos factos e da personalidade.

Igualmente se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 13/9/2006 que o sistema de punição do concurso de crimes consagrado no artº 77º do CPenal, aplicável ao caso, como o vertente, de “conhecimento superveniente do concurso”, adoptando o sistema da pena conjunta, «rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente». Por isso que, determinadas definitivamente as penas parcelares correspondentes a cada um dos singulares factos, cabe ao tribunal, depois de estabelecida a moldura do concurso, encontrar e justificar a pena conjunta cujos critérios legais de determinação são diferentes dos propostos para a primeira etapa. Nesta segunda fase, «quem julga há-de descer da ficção, da visão compartimentada que [esteve] na base da construção da moldura e atentar na unicidade do sujeito em julgamento. A perspectiva nova, conjunta, não apaga a pluralidade de ilícitos, antes a converte numa nova conexão de sentido.

Ainda na esteira de Figueiredo Dias dir-se-á que tal concepção da pena conjunta obriga a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação, em função de um tal critério, da medida da pena do concurso… “só assim se evitando que a medida da pena do concurso surja como fruto de um acto intuitivo – da «arte» do juiz… – ou puramente mecânico e portanto arbitrário», embora se aceite que o dever de fundamentação não assume aqui nem o rigor, nem a extensão pressupostos pelo artº 71º. O substrato da culpa não reside apenas nas qualidades do carácter do agente, ético-juridicamente relevantes, que se exprimem no facto, na sua totalidade todavia cindível (...). Reside sim na totalidade da personalidade do agente, ético-juridicamente relevante, que fundamenta o facto, e portanto também na liberdade pessoal e no uso que dela se fez, exteriorizadas naquilo a que chamamos a "atitude" da pessoa perante as exigências do dever ser. Daí que o juiz, ao emitir o juízo de culpa ou ao medir a pena, não possa furtar-se a uma compreensão da personalidade do delinquente, a fim de determinar o seu desvalor ético-jurídico e a sua desconformação em face da personalidade suposta pela ordem jurídico-penal. A medida desta desconformação constituirá a medida da censura pessoal que ao delinquente deve ser feita, e, assim, o critério essencial da medida da pena.

Fundamental na formação da pena conjunta é, assim, a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação “desse bocado de vida criminosa com a personalidade. A pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares”.

Para a determinação da dimensão da pena conjunta o decisivo é que, antes do mais, se obtenha uma visão conjunta dos factos, acentuando-se a relação dos mesmos factos entre si e no seu contexto; a maior ou menor autonomia a frequência da comissão dos delitos; a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados e a forma de comissão bem como o peso conjunto das circunstâncias de facto sujeitas a julgamento mas também o receptividade á pena pelo agente deve ser objecto de nova discussão perante o concurso ou seja a sua culpa com referência ao acontecer conjunto da mesma forma que circunstâncias pessoais, como por exemplo uma eventual possível tendência criminosa.

Também Jeschek se situa no mesmo registo referindo que a pena global se determina como acto autónomo de determinação penal com referência a princípios valorativos próprios. Deverão equacionar-se em conjunto a pessoa do autor e os delitos individuais o que requer uma especial fundamentação da pena global. Por esta forma pretende significar-se que a formação da pena global não é uma elevação esquemática ou arbitrária da pena disponível mas deve reflectir a personalidade do autor e os factos individuais num plano de conexão e frequência. Por isso na valoração da personalidade do autor deve atender-se antes de tudo a saber se os factos são expressão de uma inclinação criminosa ou só constituem delito ocasionais sem relação entre si. A autoria em série deve considerar-se como agravatória da pena. Igualmente subsiste a necessidade de examinar o efeito da pena na vida futura do autor na perspectiva de existência de uma pluralidade de acções puníveis. A apreciação dos factos individuais terá que apreciar especialmente o alcance total do conteúdo do injusto e a questão da conexão interior dos factos individuais.

Afastada a possibilidade de aplicação de um critério abstracto, que se reconduz a um mero enunciar matemático de premissas, impende sobre o juiz um especial ónus de determinar e justificar quais os factores relevantes de cada operação de formação de pena conjunta quer no que respeita á culpa em relação ao conjunto dos factos, quer no que respeita á prevenção, bem como, em sede de personalidade e factos considerados no seu significado conjunto. Só por essa forma a determinação da medida da pena conjunta se reconduz á sua natureza de acto de julgamento, obnubilando as críticas que derivam da aplicação de um critério matemático quer a imposição constitucional que resulta da proibição de penas de duração indefinida -artigo 30 da Constituição.

O Supremo Tribunal de Justiça, sublinhando o exposto, tem vindo a considerar impor-se um especial dever de fundamentação na elaboração da pena conjunta, o qual não se pode reconduzir á vacuidade de formas tabelares e desprovidas das razões do facto concreto. A ponderação abrangente da situação global das circunstâncias específicas é imposta, além do mais, pela consideração da dignidade do cidadão que é sujeito a um dos actos potencialmente mais gravosos para a sua liberdade, elencados no processo penal, o que exige uma análise global e profunda do Tribunal sobre a respectiva pena conjunta.

Aliás, tal necessidade é imposta a maior parte das vezes por uma situação de debilidade em termos de exercício de defesa resultante da anomia social e económica em que se encontram os condenados plúrimas vezes.

A explanação dos fundamentos, que á luz da culpa e prevenção conduzem o tribunal à formação da pena conjunta, deve ser exaustiva, sem qualquer ruptura, por forma a permitir uma visão global do percurso de vida subjacente ao itinerário criminoso do arguido. É uma questão de cidadania e dignidade que o arguido seja visto como portador do direito a uma ponderação da pena á luz de princípio fundamentais que norteiam a determinação da pena conjunta e não como mera operação técnica, quase de natureza matemática.

Como é evidente, na indicação dos factos relevantes para a determinação da pena conjunta não relevam os que concretamente fundamentaram as penas parcelares, mas sim os que resultam de uma visão panóptica sobre aquele “pedaço” de vida do arguido, sinalizando as circunstâncias que consubstanciam os denominadores comuns da sua actividade criminosa o que, ao fim e ao cabo, não é mais do que traçar um quadro de interconexão entre os diversos ilícitos e esboçar a sua compreensão á face da respectiva personalidade.

Estes factos devem constar da decisão de aplicação da pena conjunta a qual deve conter a fundamentação necessária e suficiente para se justificar a si própria sem carecer de qualquer recurso a um elemento externo só alcançável através de remissões.

Da aplicação do excurso produzido ao caso vertente ressalta desde logo a ideia de que no mesmo algo não converge com os princípios que devem presidir à elaboração do cúmulo jurídico.

Na verdade, falamos dum apuramento global da responsabilidade criminal do arguido o qual tem como pressuposto o conhecimento da pluralidade de penas a que a sua actuação parcelar deu motivo e tal conhecimento, que será equacionado com a aferição duma culpa e ilicitude conjunta em função de razões de prevenção geral e especial, não se compadece com visões sectoriais que apenas se focam num segmento de tal responsabilidade.

Se é aquele pedaço de vida que revela na sua força narrativa um percurso de vida e de vida no domínio do ilícito pergunta-se de qual é o interesse, ou relevância, de efectuar um cúmulo jurídico sabendo antecipadamente que o mesmo está incompleto porquanto não estão presentes as penas parcelares correspondentes a infracções que deveriam ser consideradas.

Aliás, a elaboração do cúmulo jurídico nestes termos, não tendo qualquer consequência benéfica em termos do estatuto jurídico do arguido, apenas o poderá prejudicar na medida em que cria uma referência que servirá de patamar em futuros cúmulos. Na verdade, é por demais conhecido o fenómeno que se verifica em relação a cúmulos jurídicos sucessivos em que cada uma de tais operações tende a caracterizar-se por uma progressão matemática na medida da pena aplicada.

Entendemos, assim, que, estando adquirido que as penas a considerar para efeito de cúmulo eram também outras, que não somente as tomadas em conta na decisão recorrida, esta incorre em colisão com o disposto nos artigos 77 e 78 do Código Penal.

Reforçando o exposto e, nomeadamente, à forma linear como se condena o arguido numa pena conjunta de dezassete anos de prisão, o repristinar da ideia da necessidade de explanação dos fundamentos que, á luz da culpa e prevenção, conduzem o tribunal á formação da pena conjunta deve ser exaustiva, sem qualquer ruptura, por forma a permitir uma visão global do percurso de vida subjacente ao itinerário criminoso do arguido. Como já se referiu é uma questão de cidadania e dignidade que o arguido seja visto como portador do direito a uma ponderação da pena á luz de princípio fundamentais que norteiam a determinação da pena conjunta e não como mera operação técnica, quase de natureza matemática.”
[43] Vide ainda, por interessantes, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 27.02.2013, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar; de 23 de Março de 2014, relatado pelo Conselheiro Oliveira Mendes; de 17 de Março de 2016, relatado pelo Conselheiro Armindo Monteiro, todos em www.dgsi.pt.