Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B1628
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
SOCIEDADE IRREGULAR
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
QUESITOS
PODERES DA RELAÇÃO
EMPRÉSTIMO
ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
Nº do Documento: SJ20070531016287
Data do Acordão: 05/31/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :

1. Por integrar matéria de direito, não pode ser formulado um quesito a perguntar se entre a autora e os réus foi constituída uma sociedade irregular para identificado fim, e, se o for, não deve ser respondido, e, se obtiver resposta, deve ser considerada como se a não tivesse obtido.
2. Inscreve-se nos poderes da Relação, à margem de sindicância no recurso de revista, a substituição da resposta mencionada sob 1, com base em factos articulados e provados com base em prova testemunhal, pelas declarações adrede produzidas pelas partes.
3. É qualificável de sociedade comercial irregular o acordo das partes de exploração conjunta de um estabelecimento de restaurante e café, de suportarem em comum os encargos de funcionamento e de quinhoarem nos lucros.
4. A acção de apreciação positiva comporta a declaração judicial baseada em factos assentes de que as partes contraíram em conjunto determinado empréstimo para o pagamento do trespasse e das despesas concernentes ao acordo de exploração conjunta mencionada sob 3.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I
AA e BB intentaram, no dia 25 de Maio de 2001, contra CC e DD, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo o reconhecimento de que a dívida a EE e FF foi contraída para a aquisição e obras do estabelecimento de restauração, que os réus são os únicos responsáveis pelo seu pagamento e de que ficam sub-rogados aos mutuantes quanto às quantias que venham a pagar-lhes e a condenação dos réus a restituir-lhas com base no enriquecimento sem causa.
Fundamentaram a sua pretensão em sociedade irregular constituída com os réus para a exploração conjunta do referido estabelecimento, no empréstimo conjunto de 10 000 000$, na celebração do contrato de trespasse apenas com a ré, no acordo de deixar o negócio e de os réus pagarem as dívidas, e na posterior recusa por eles do pagamento.
Em contestação, os réus negaram a constituição de qualquer sociedade irregular e a realização de obras no estabelecimento, ser a autora mera trabalhadora para eles, que o empréstimo não foi conjunto e ter a escritura sido celebrada com a ré porque ela pagara o preço.
Foi concedido ao réu, pelos serviços de segurança social de Leria, por despacho proferido no dia 29 de Dezembro de 2004, o apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 22 de Setembro de 2005, por via da qual os réus apenas foram condenados a reconhecer que o empréstimo foi contraído para o pagamento do valor do trespasse e de outras despesas necessárias ao desenvolvimento da sociedade, e, por despacho complementar proferido no dia 21 de Novembro de 2005, foram condenados por litigância de má fé na multa correspondente a duas unidades de conta.
Apelaram os réus, impugnando também a matéria de facto, e a Relação, por acórdão proferido no dia 28 de Novembro de 2006, alterou a decisão da matéria de facto e no mais negou-lhes provimento ao recurso.

Interpuseram os apelantes recurso de revista, formulando, em síntese as seguintes conclusões de alegação:
- a matéria contida no quesito primeiro é conclusiva;
- a matéria de facto contida no quesito quinto é excessiva, porque a afirmação em parte não concretamente determinada foi encaixada em jeito de cunha na resposta, por a ela ninguém se ter referido nem se lobrigar concretamente determinada;
- a prova por ouvir dizer, que deriva da voz da autora, não pode relevar, e as instâncias valorizaram faits divers, desprezando elementos de facto, como o de a autora ter recebido, durante três meses, o seu vencimento, como qualquer trabalhador por conta de outrem;
- a existência de uma sociedade irregular depende de acordo sobre o tipo de sociedade pretendida, a firma, o objecto, a sede, o capital social, a quota de capital de cada sócio e a natureza das entradas dos sócios;
- os factos provados não revelam que a recorrida tenha sido sócia dos recorrentes, e era a recorrida que devia provar o destino do capital que mutuou e não os recorrentes;
- violaram-se os artigos 36º, nºs 1 e 2 e 41º do Código das Sociedades Comerciais, 342º, nº 1 e 393º, nº 2, do Código Civil, 511º, nº 1 e 668º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, e invoca-se o artigo 712º, nº 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil;
- deve ser anulada a decisão, por constar no quesito primeiro matéria de direito e a matéria de facto do quesito quinto não ter sustentáculo, e ser decidida a inexistência de sociedade irregular, absolvidos os recorrentes do pedido, incluindo o condenatório por litigância de má fé.

Responderam os recorridos em síntese de conclusão:
- há uma relação directa entre o mútuo e a sociedade irregular, porque aquele se destinou à constituição desta, e todos reconheceram serem devedores da quantia mutuada;
- a recorrida e os recorrentes exploraram em conjunto, durante três meses, o estabelecimento, em cumprimento do acordo de sociedade irregular.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. Entre a autora e os réus foi estabelecido um acordo que visava a exploração de um estabelecimento de restaurante e café denominado ...., a funcionar no Edifício ..., Rua..., em Leiria, nos termos do qual aquele estabelecimento seria explorado em conjunto por uma e outros, suportando em comum os encargos de funcionamento e quinhoando nos lucros.
2. Os autores e os réus, em conjunto, contraíram um empréstimo no valor de 10 000 000$ junto de EE e FF, residentes em Lot 00, ..., França.
3. O empréstimo referido sob 2 foi contraído para proceder ao pagamento do valor do trespasse mencionado sob 4 e de outras despesas necessárias à realização desse acordo negocial.
4. Por escritura pública outorgada no 2º Cartório Notarial de Leiria no dia 19 de Janeiro de 1999, ... e ..., por um lado, e ..., por outro, declararam, os primeiros dar de trespasse à última, e esta aceitar o trespasse do estabelecimento comercial instalado e a funcionar no primeiro andar do prédio sito na Rua ..., freguesia e concelho de Leiria, Edifício ..., inscrito na matriz sob o artigo 3368, pelo preço de 5 500 000$.
5. O preço do trespasse e as outras despesas necessárias ao desenvolvimento do acordo mencionado sob 1 foram suportados pela autora e réus em parte não exactamente determinada em relação a cada um deles.
6. O preço do trespasse foi pago com cheques emitidos pelos réus, e a exploração do estabelecimento iniciou-se no começo do ano de 1999, e, após cerca de três meses desse início, a autora deixou de trabalhar no estabelecimento e foi procurar emprego noutro local, cessando o referido acordo negocial.
7. EE Santos e FF intentaram uma acção de fixação judicial de prazo contra os autores e os réus, no 5º Juízo Cível de Leiria, com o nº 31/01, para eles lhe pagarem a quantia mencionada sob 2 no prazo que fosse assinalado pelo tribunal.
8. Na tentativa de conciliação realizada no âmbito do processo mencionado sob 7, os réus não assumiram pagar integralmente a quantia em dívida, mas apenas a quantia de 5 000 000$.
9. São os réus que retiram os proventos que o estabelecimento gera, com os quais fazem face às diversas despesas do seu agregado familiar, como alimentação, vestuário, calçado, água, electricidade, saúde e lazer.

III
As questões essenciais decidendas são as de saber se deve ou não ser anulada a decisão da matéria de facto, se deve ou não manter-se a condenação dos recorrentes por litigância de má fé e se deve ou não ser declarado que o contrato de mútuo visou o pagamento do preço do estabelecimento em causa.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação dos recorrentes e dos recorridos, a resposta às referidas questões pressupõe a análise da seguinte problemática:
- delimitação do objecto do recurso;
- pressupostos do conhecimento da matéria de facto pelo Supremo Tribunal de Justiça;
- tem ou não este Tribunal competência funcional para sindicar a decisão da matéria de facto proferida pela Relação;
- é ou não ilegal a decisão da matéria de facto relativa à resposta ao quesito primeiro?
- revelam ou não os factos provados a existência da sociedade irregular em causa?
- deve ou não manter-se a declaração judicial proferida pelas instâncias?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.
Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela delimitação do objecto do recurso.
Os recorrentes pretendem ser absolvidos da sua condenação por litigância de ma fé.
Na realidade, foram condenados no tribunal da primeira instância, por despacho complementar da sentença, por litigância de má fé, no pagamento da multa equivalente a duas unidades de conta.
Sucede, porém, que os recorrentes não impugnaram o referido despacho, por reclamação ou recurso, pelo que o mesmo transitou em julgado (artigo 677º do Código de Processo Civil).
Uma vez que a questão da litigância de má fé não foi objecto do recurso de apelação nem de agravo, a Relação não se pronunciou sobre ela.
Transitado em julgado o segmento decisório relativo à referida matéria, independentemente da existência de outros fundamentos, não pode este Tribunal dela conhecer no recurso de revista (artigos 676º, nº 1 e 677º do Código de Processo Civil).

2.
Atentemos agora nos pressupostos do conhecimento da matéria de facto pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Salvo casos excepcionais legalmente previstos, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito (artigo 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro -LOFTJ).
Nessa conformidade, como tribunal de revista, a regra é a de que o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (artigo 729º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Excepcionalmente, pode sindicar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa cometido pela Relação se houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigos 722º, n.º 2 e 729º, n.º 2, do Código Civil).
Assim, só pode conhecer do juízo de prova sobre a matéria de facto formado pela Relação quando esta deu como provado um facto sem produção da prova por força da lei indispensável para demonstrar a sua existência, ou quando ocorrer desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no nosso ordenamento jurídico de origem interna ou externa.
Em consequência, o erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos materiais da causa, isto é, a decisão da matéria de facto baseada nos meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador, excede o âmbito do recurso de revista.

3.
Vejamos agora a sub-questão de saber se este Tribunal tem ou não competência funcional para sindicar a decisão da matéria de facto proferida pela Relação.
Os recorrentes põem em causa no recurso de revista a decisão da Relação de alteração da matéria de facto baseada em prova testemunhal, invocando o seu erro de apreciação.
Expressam que as instâncias deram relevo a testemunhas de ouvir dizer e indícios longínquos para considerarem a existência da sociedade irregular, manobrando faits divers como tábua de salvação, razões ou motivos de circunstância, argumentos desenquadrados do local ou do tempo da exploração do estabelecimento.
Acresce que eles impugnam a decisão da matéria de facto proferida pela Relação no que concerne à que resultou da resposta ao quesito quinto da base instrutória, sob o fundamento de ser excessiva no que concerne à afirmação em parte não concretamente determinada.
No referido quesito foi perguntado se o preço do trespasse e o custo de obras no estabelecimento foram suportados em partes iguais por autores e réus, e a resposta foi no sentido de que o preço do trespasse e as outras despesas necessárias ao desenvolvimento da sociedade irregular foram suportados pela autora e pelos réus em parte não exactamente determinada em relação a cada um deles.
A Relação alterou a resposta ao referido quesito no sentido de que o preço do trespasse e as outras despesas necessárias ao desenvolvimento do acordo mencionado sob II 1 foram suportadas pela autora e pelos réus em parte não exactamente determinada em relação a cada um deles.
Salientou, a propósito, que tal resposta era o corolário de se ter provado que o preço do trespasse e as outras despesas necessárias à sociedade irregular foram suportados pela autora e pelos réus, sem ser possível referir o concreto dispêndio de uma e outros.
Justificam este segmento impugnatório na circunstância de ter sido encaixada em jeito de cunha não obstante a ela ninguém se ter referido e não se ter lobrigado qualquer parte concretamente determinada.
Importa ter em conta que, nestes pontos, a Relação sindicou a decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal da primeira instância por via de apreciação de provas de livre apreciação judicial (artigos 396º do Código Civil e 655º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Por isso, conforme resulta do que se afirmou sob 2, dada a limitação da competência funcional deste Tribunal no plano do conhecimento da matéria de facto, não pode sindicar o juízo da Relação na apreciação da decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal da primeira instância nem na fixação dos factos relevantes para a decisão da causa.

4.
Atentemos agora na legalidade ou não da decisão da matéria de facto relativa à resposta ao quesito primeiro.
Os recorrentes alegaram que a resposta ao quesito primeiro da base instrutória é conclusiva, e que, consequentemente, contém matéria de direito.
No quesito primeiro, perguntou-se se entre a autora e os réus foi constituída uma sociedade irregular que visava a exploração do estabelecimento de restaurante e café, denominado ..., a funcionar no Edifício.., Rua ... em Leiria, e a resposta do tribunal da primeira instância foi no sentido de provado.
E no quesito segundo perguntou-se se nos termos de tal acordo, o referido estabelecimento seria explorado em conjunto pelos réus e pela autora, suportando em comum os encargos de funcionamento e quinhoando nos lucros, cuja resposta foi no sentido de provado.
Mas a Relação considerou ser a referida resposta ao quesito primeiro incorrecta e, ao abrigo do disposto no artigo 646º, nº 4, do Código de Processo Civil, considerou-a não escrita, declarando salvaguardar, de harmonia com o princípio do aproveitamento dos actos, a restante factualidade isenta de considerações jurídicas.
E, com base nas referidas considerações jurídicas, alterou a referida resposta no sentido de ficar a constar que entre a autora e os réus foi estabelecido um acordo que visava a exploração de estabelecimento de restaurante e café, denominado ..., nos termos do qual aquele estabelecimento seria explorado em conjunto por uma e outros, suportando em comum os encargos de funcionamento e quinhoando nos lucros.
O quesito primeiro está conexionado com o quesito quarto, no qual se perguntou se o empréstimo foi contraído para proceder ao pagamento do valor do trespasse para realização de obras no estabelecimento, cuja resposta foi no sentido de que ele foi contraído para proceder ao pagamento do valor do trespasse e de outras despesas necessárias ao desenvolvimento da sociedade irregular.
E a Relação, por virtude da alteração da resposta ao quesito primeiro, alterou a resposta ao quesito quarto no sentido de tal empréstimo haver sido contraído para proceder ao pagamento do valor do trespasse e de outras despesas necessárias à realização do acordo negocial constante da resposta ao primeiro dos referidos quesitos.
Os direitos de que umas pessoas são titulares no confronto de outras têm a sua origem em factos jurídicos que os constituem, pelo que se elas deles se pretenderem valer em juízo têm, em regra, de os alegar e provar (artigo 342º, nº 1, do Código Civil e 264º, nº 1 e 467º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil).
Assim, os direitos da titularidade das pessoas são individualizados através dos factos jurídicos que os originaram, ou seja, por via da respectiva causa de pedir.
Os factos materiais são, grosso modo, os eventos materiais e concretos, nomeadamente os comportamentos de acção ou de omissão das pessoas em geral; e os factos jurídicos os referidos factos materiais perspectivados à luz de normas e critérios de direito.
Os factos jurídicos são, assim, os acontecimentos da vida real conformados com as previsões normativas concedentes dos direitos cujo reconhecimento é pretendido pelas partes, como que pedaços do acontecer constante artificialmente recortados de harmonia com as pertinentes previsões normativas.
Não podem ser seleccionados para integrar a base instrutória, como se trate da vertente fáctica da causa de pedir, afirmações de pendor puramente jurídico, meramente conclusiva ou envolvendo juízos de valor, porque elas constituem matéria de direito.
Por virtude de se tratar de matéria de direito, a afirmação que integrou o quesito primeiro da base instrutória não podia ser objecto de selecção para o efeito (artigos 508º-A, nº 1, alínea e) e 511º, nº 1, do Código de Processo Civil).
E como o foi, não podia o juiz que procedeu ao julgamento responder-lhe e, como lhe respondeu, a solução não podia deixar de ser no sentido de a resposta ser considerada não escrita, o mesmo é dizer como se não existisse (artigo 648º, nº 4, do Código de Processo Civil).
Mas a Relação não se limitou a considerar a referida resposta inexistente, certo que, com base nos factos alegados pelas partes e que considerou provados, operou a resposta ao mencionado quesito com a necessária concretização.
Trata-se de uma solução inspirada no princípio do aproveitamento dos actos processuais e na regra de que o juiz pode fundar a decisão, além do mais, nos factos alegados pelas partes (artigo 264º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Por isso, sanada está a ilegalidade decorrente de o tribunal da primeira instância ter respondido ao quesito primeiro da base instrutória, contendo matéria jurídico-conclusiva, nos termos em que o fez, e conforma-se com a lei do processo a correcção das respostas aos quesitos segundo e quarto operada pela Relação.
A conclusão é, por isso, no sentido de que a ilegalidade processual cometida no tribunal da primeira instância foi superada por via do julgamento da Relação sobre a matéria de facto.

5.
Vejamos agora se os factos provados revelam ou não a existência da sociedade irregular em causa.
Está assente que a recorrida e os recorrentes acordaram na exploração conjunta de um estabelecimento de restaurante e café e que suportavam em comum os encargos de funcionamento e quinhoavam nos lucros.
É a estes factos, definitivamente fixados pela Relação, que importa aplicar o adequado regime jurídico (artigo 729º, nº 1, do Código de Processo Civil).
No tribunal da primeira instância foi entendido tratar-se de uma sociedade comercial irregular sob o fundamento de o objecto da actividade desenvolvida ser comercial e o contrato não haver sido reduzido a escritura pública.
A Relação, considerando que os sócios iniciaram actividade do restaurante antes da redução do contrato a escritura pública, entendeu configurar-se a situação como sociedade irregular, regida nos mesmos termos das sociedades civis.
Ao tempo dos factos, o contrato de sociedade era necessariamente celebrado por escritura pública (artigo 7º do Código das Sociedades Comerciais).
A lei não protege a existência de sociedades irregulares, mas a elas se refere, pelo que prevê a sua existência (artigos 36º, nº 2, e 174º, nº 1, alínea e), do Código das Sociedades Comerciais).
Mas como a lei não traça o conceito de sociedade irregular, ele tem de ser delineado pelo intérprete no quadro do ordenamento jurídico envolvente, sobretudo à luz da lei das sociedades comerciais e da lei civil stricto sensu.
A lei civil caracteriza o contrato de sociedade como sendo aquele em que duas ou mais pessoas se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício em comum de certa actividade económica que não seja de mera fruição, a fim de repartirem os respectivos lucros (artigo 980º do Código Civil).
Assim, são elementos essenciais do contrato de sociedade, a obrigação de contribuição de todos os contraentes para um fundo comum, o exercício em comum de uma actividade económica que não seja de mera fruição e o objectivo de realizar e distribuir lucros.
Não exige a lei, para que se conclua no sentido da existência de um contrato de sociedade, a prova do respectivo tipo, da firma, da sede, do capital social, da quota do capital de cada sócio e da natureza da respectiva entrada.
Estamos, no caso vertente, perante um acordo de vontades no sentido da constituição de sociedade comercial, na sequência do qual a recorrida e os recorrentes tiveram início de actividade com vista à sua implementação.
Por isso, a conclusão é no sentido de que se está perante uma sociedade comercial irregular, a que é aplicável o regime relativo às sociedades civis (artigo 36º, nº 2, do Código das Sociedades Comerciais).

6.
Atentemos agora sobre se deve ou não manter-se a declaração judicial proferida pelas instâncias.
Está assente, por um lado, que os recorrentes e os recorridos em conjunto, contraíram um empréstimo no valor equivalente a € 49 879 junto de EE e de FF.
E, por outro, que ele foi contraído para proceder ao pagamento do valor do trespasse mencionado sob II 4 e de outras despesas necessárias à realização do acordo negocial mencionado sob II 1.
Os factos constantes do segundo parágrafo deste texto, não obstante a expressão utilizada, integram um contrato de mútuo, em que os recorrentes e os recorridos figuram como mutuários, e EE e FF como mutuários (artigo 1142º do Código Civil).
Na sentença proferida no tribunal da primeira instância foi declarado, embora sob a expressão de condenação dos recorrentes no respectivo reconhecimento, o que consta do terceiro parágrafo, e a Relação manteve tal declaração.
O efeito da mencionada declaração é o equivalente ao de uma acção declarativa de apreciação positiva da aludida situação de facto (artigo 4º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Civil).
A conclusão é, por isso, no sentido de que deve manter-se a referida declaração judicial.

7.
Vejamos, finalmente, a síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.
Como a decisão condenatória dos recorrentes por litigância de má fé transitou em julgado, não pode ser objecto do recurso.
Este Tribunal não pode sindicar a decisão da matéria de facto das instâncias fundada na prova testemunhal, incluindo aquela a que se reporta ao quesito quinto da base instrutória.
A ilegalidade decorrente da formulação do quesito primeiro com uma afirmação jurídico-conclusiva foi legalmente sanada pela Relação no quadro dos seus poderes em matéria de facto.
Os factos provados revelam, na espécie, a existência de um contrato de sociedade comercial irregular celebrado entre a recorrida e os recorrentes.
Inexiste fundamento legal para a alteração do segmento decisório do tribunal da primeira instância que a Relação confirmou.
A Relação não infringiu qualquer das normas indicadas pelos recorrentes na conclusão décima-quarta.

Improcede, por isso, o recurso.
Vencidos, são os recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Todavia, como o recorrente beneficia do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de custas, inexiste fundamento legal para que seja condenado no pagamento das concernentes ao processo em análise (artigos 10º, nº 1, 13º, nºs 1 a 3 e 16º, nº 1, alínea a), da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho).

IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 31 de Maio de 2007.

Salvador da Costa (relator)
Ferreira de Sousa
Armindo Luis