Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4044/09.9TAMTS.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: SOUTO DE MOURA
Descritores: RECURSO DE DECISÃO CONTRA JURISPRUDÊNCIA FIXADA
PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
RECURSO PENAL
DETENÇÃO DE ESTUPEFACIENTES
CONSUMO MÉDIO INDIVIDUAL
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 07/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE DECISÃO CONTRA JURISPRUDÊNCIA FIXADA
Decisão: PROVIDO O RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário :

I - Juntamente com o recurso de fixação de jurisprudência propriamente dito (arts. 437.º a 445.º), o CPP integra no mesmo capítulo o recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada, e o n.º 1 do art. 446.º do Código, referente a este último tipo de recurso, dizia na sua anterior redacção que “O Ministério Público recorre obrigatoriamente de quaisquer decisões proferidas contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, sendo o recurso sempre admissível”.
II - E como no n.º 2 do preceito se prescrevia que ao recurso em questão eram aplicáveis as disposições do capítulo em que o preceito estava integrado, epigrafado “Da fixação de jurisprudência”, por isso é que se devia considerar como prazo de interposição de recurso, nos termos do art. 438.º, n.º 1, do CPP, “30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar”.
III - Por outro lado, discutiu-se então qual o alcance da expressão “quaisquer decisões”, tendo o STJ formado uma corrente jurisprudencial, nos termos da qual as decisões da 1.ª instância nunca eram passíveis de recurso extraordinário em virtude de violação de jurisprudência fixada, devendo sempre esgotarem-se os graus de recurso ordinário disponíveis.
IV - Com a actual redacção do preceito, introduzida pela Lei 48/2007, de 29-08, passou a dizer-se que “É admissível recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada, a interpor no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, sendo correspondentemente aplicáveis as disposições do presente capítulo”.
V - A introdução da expressão “recurso directo” para o STJ, conjugada com a exigência do trânsito em julgado da decisão recorrida, significa que nunca o recorrente tem a possibilidade de escolher entre o recurso ordinário (no caso para a Relação) e o recurso extraordinário, se ainda estiver em tempo de interpor aquele primeiro tipo de recurso. Pura e simplesmente porque a decisão recorrida ainda não terá, à data, transitado.
VI - Mas então, das duas uma: ou se considera inadmissível o recurso extraordinário em foco se, apesar de ter transitado a decisão recorrida, o recorrente não esgotou todos os recursos ordinários, quando a seu tempo o poderia ter feito, o que torna inútil a alusão ao “recurso directo”, ou se admite sempre o recurso extraordinário, directamente para o STJ, por omissão de interposição atempada de recurso ordinário, se a decisão recorrida já tiver transitado.
VII - Deve-se perfilhar a segunda via, pese embora poder padecer do inconveniente de se estar a sancionar a incúria do recorrente (para já não falar de uma opção deliberada), que deixou passar os 20 dias de que dispunha para interpor o recurso ordinário, e interpôs o recurso extraordinário nos 30 dias seguintes, perdendo-se a oportunidade da instância de recurso ordinário rever a decisão proferida contra a jurisprudência fixada. Responder-se-á a esta objecção que o legislador pretendeu que, apesar de tudo, não subsistisse no comércio jurídico uma decisão contra jurisprudência fixada, secundarizando o comportamento do recorrente, em face do interesse geral da uniformização da jurisprudência, e da segurança do direito, portanto.
VIII - A justificação para o recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada, ou seja, a uniformização da jurisprudência (ou ainda a actualização da jurisprudência já fixada), só cobra verdadeira razão de ser quando já não é possível corrigir, através de recurso ordinário, a jurisprudência que se desviou da que se declarou, nos termos do Código, obrigatória. Mas enquanto essa correcção puder ter lugar, não fará nenhum sentido banalizar a intervenção de um órgão com as características do Pleno das Secções Criminais do STJ.
IX - O Acórdão uniformizador de Jurisprudência (AUJ) n.º 8/2008, de 25-06-2008, publicado no DR IA Série, de 05-08-2008, fixou jurisprudência segundo a qual «Não obstante a derrogação operada pelo art. 28.º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só “quanto ao cultivo” como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias».
X - Se a lei aplicável se mantiver, a jurisprudência fixada será de considerar ultrapassada e portanto de rever, se o acórdão recorrido desenvolver argumento novo e de grande valor não ponderado no acórdão uniformizador, que desequilibre completamente os dados da discussão, for patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial retirou peso, significativamente, aos argumentos usados no acórdão de fixação, ou ainda se a alteração da composição do Pleno das Secções Criminais for tal, que se possa afirmar o desaparecimento da maioria que sustentou a jurisprudência fixada.
XI - Não podem considerar-se argumentos novos e de grande valor as questões que se mostram tratadas não só no AUJ como nos votos de vencido e declarações de voto apostas, porque é tudo isso que denuncia o que foi estranho ao debate, e aquilo que não esteve ausente da discussão que teve lugar.
XII - O acatamento da jurisprudência fixada pelo STJ não pode ser afastado, com base numa inconstitucionalidade que a decisão da 1.ª instância recorrida, invoca, se essa inconstitucionalidade por um lado foi abordada e afastada no AUJ, e por outro nunca o TC a veio declarar.
XIII - A não ser assim, todo e qualquer AUJ poderia ser desrespeitado, simplesmente porque o julgador em 1.ª instância considerava inconstitucional certa interpretação de uma norma, discordando do facto de o AUJ ter recusado essa mesma inconstitucionalidade.


Decisão Texto Integral:



AA solteira, nascida em Paranhos, Porto, a 25/5/1974 e residente na Senhora da Hora, Matosinhos, com os demais sinais dos autos, foi acusada pelo Mº Pº da prática de “um crime de consumo de substâncias estupefacientes, previsto no artigo 40º, n.º 1 e 2 do D.L. n.º 15/93 de 22 de Janeiro, aplicável em consonância com a interpretação exarada em jurisprudência obrigatória - Ac.STJ 8/2008, publicado na I série do DR de 5 de Agosto, em concurso real e efectivo com um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 39, n.º 2, al. g) e 86º, n.º 1, ai. d) da Lei n.9 5/2006, de 23.02., na sua versão original, por mais favorável à que resultou da alteração introduzida pela Lei nº 17/2009, de 6.05.”
No 2º Juízo Criminal do Tribunal de Comarca e de Família e de Menores de Matosinhos, a 4/1/2011, a arguida foi julgada e absolvida da prática de ambos os crimes.
A 22/2/2011, o Mº Pº interpôs recurso da sentença proferida contra jurisprudência fixada pelo S T J no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 8 /2008 (D R, I Série de 5/8/2008), ao abrigo do art. 446º nº 1 do C P P.

A - DECISÃO RECORRIDA

A decisão recorrida deu por provados os seguintes factos:

a) A arguida, no dia 16 de Outubro de 2007, de forma voluntária, conservou e deteve consigo, na sua residência, substância estupefaciente, mais concretamente canabis-resina (haxixe), com o peso líquido de 26,763 gramas, quantidade esta suficiente a satisfazer as necessidades de consumo, da arguida e de um consumidor médio, por mais de 10 dias.
b) A arguida conhecia as características e natureza estupefaciente do produto que detinha e que pretendia consumir, sabendo que a sua conservação não autorizada não era permitida.
c) No mesmo dia, hora e local supra mencionados, a arguida detinha um bastão extensível em ferro e com punho em material aderente, com cerca de um metro na sua extensão máxima, em tudo idêntico aos utilizados por forças de segurança.
d) A arguida obteve tal instrumento em circunstâncias não concretamente apuradas, tendo-o consigo até à data supra referida, a fim de o poder utilizar pelo menos como instrumento de defesa.
e) O objecto em causa, atento o respectivo comprimento e dureza, é susceptível de causar a morte ou lesão grave de uma pessoa que fosse atingida pelo mesmo.
f) A arguida sabia que a posse do dito bastão não tinha outra justificação que não a referida sob a ai. d).
g) A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta quanto à detenção de haxixe era proibida e punível por lei.
h) A arguida estava convencida de que a detenção do dito bastão era permitida por lei.
Outros factos provados
i) A arguida é auxiliar de acção médica, auferindo rendimento mensal de pelo menos € 513,00;
j) (...) vive com a filha menor em casa própria - paga cerca de € 350,00 da prestação do empréstimo contraído para a sua aquisição;
k) (...) fuma cerca de 4 cigarros por dia, sendo o custo do maço de tabaco de € 3,70;
1) (...) tem o 12º ano de escolaridade;
m) (...) não tem antecedentes criminais.”

Quanto ao enquadramento jurídico-penal do crime de consumo, foram tecidas considerações que pelo seu interesse se passam a reproduzir, pese embora a sua extensão:

“(…) A arguida vem acusada da prática de um crime de consumo, p. e p. nos termos do art. 40.°, n.° 2, e tabela I-C, do DL n.° 15/93, de 22.01 (de ora em diante, DL n.° 15/93), na interpretação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.° 8/2008, publicado no DR, I Série, de 05.08.2008.
Em primeiro lugar, cumpre fazer um breve excurso sobre as normas aplicáveis com relevância directa para a solução jurídica do caso dos autos.
O crime de tráfico (de estupefacientes) vem previsto no art. 21.°, n.° 1, do DL n.° 15/93, de 22.01 (…), que dispõe o seguinte:
"1. Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.°, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos " (sublinhado nosso).
Por sua vez, o art. 25.° do DL n.° 15/93, prevê o crime de tráfico de menor gravidade e dispõe que:
"Se, nos casos dos artigos 21° e 22°, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:
a) Prisão de l a 5 anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;
b) prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV."
Pelo menos anteriormente à Lei n.° 30/2000, de 29.11 (de ora em diante, Lei n.° 30/2000), o art. 40.° do DL 15/93 previa o crime de consumo (de estupefacientes), dispondo que:
"1. Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias.
2. Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena é de prisão até l ano ou de multa até 120 dias.
3. No caso do n. ° 1, se o agente for consumidor ocasional, pode ser dispensado de pena.".
A Lei n.° 30/2000 dispõe nos seus arts. 1°, 2° e 28.° o seguinte:
"ARTIGO 1.°-(Objecto)
1. A presente lei tem como objecto a definição do regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica.
2. As plantas, substâncias e preparações sujeitas ao regime previsto neste diploma são as constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n. ° 15/93, de 22 de Janeiro.
ARTIGO 2. ° - (Consumo)
1. O consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contra-ordenação.
2. Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
ARTIGO 28. ° - (Normas revogadas)
São revogados o artigo 40. °. excepto quanto ao cultivo, e o artigo 41. ° do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro, bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime. " (sublinhado nosso).
*
Quanto ao caso dos autos, as suas especificidades, face à alteração introduzida pela Lei n.° 30/2000 e, mais recentemente, face ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.° 8/2008, publicado no DR, I Série, de 05.08.2008, convocam, no essencial, a análise do tratamento jurídico do tráfico e do consumo de estupefacientes.
Começando pelo enquadramento legal anterior à Lei n.° 30/2000, importa considerar o disposto no art. 40.° do DL n.° 15/93 (agora parcialmente revogado), onde estava tipificado o crime de aquisição e detenção de estupefacientes para consumo próprio. Aí estabelecia-se, no seu n.° 1, que aquelas condutas tipificadas eram punidas com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias. Mais se estabelecia, no seu n.° 2, que, se a quantidade da substância detida ou adquirida excedesse a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena seria de prisão até um ano ou multa até 120 dias.
Nestas situações, o agente não seria, pois, punido pelo crime de tráfico previsto no art. 21.° do DL 15/93, mas pelo crime de consumo previsto no art. 40.° do mesmo diploma. Aliás, o próprio art. 21.° estabelece que só se verifica o crime de tráfico quando a situação não se enquadrar no disposto no art. 40.° (nas palavras da lei, "fora dos casos previstos no artigo 40º").
A Lei n.° 30/2000 veio introduzir algumas modificações no quadro jurídico estabelecido.
Este diploma, que teve como objectivo definir o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes, estabeleceu que o consumo, a aquisição e a detenção de estupefacientes para consumo próprio constituem contra-ordenação (art. 2.°, n.° 1), da mesma forma que revogou o referido art. 40.° do DL n.° 15/93, excepto quanto ao cultivo (art. 28.° da Lei n.° 30/2000).
Verificou-se, assim, uma descriminalização do consumo de estupefacientes, mais concretamente da aquisição e detenção para consumo próprio - a própria Lei n.° 30/2000, no seu art. 29.°, confirma que a mesma aprova uma descriminalização.
Todavia, nos termos do disposto no art. 2.°, n.° 2, da Lei n.° 30/2000, para efeitos deste diploma, as substâncias adquiridas ou detidas não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
Da não punição como crime de tráfico
Numa análise superficial, pareceria que a detenção e aquisição de estupefacientes para consumo, em que a quantidade excedesse a necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias, não constituiria contra-ordenação, mas continuaria a constituir crime, nos termos do DL n.° 15/93.
No entanto, o preceito legal em que vinham previstas e punidas estas condutas (concretamente o art. 40,°, n.° 2, do DL n.° 15/93) foi, conforme supra referido, revogado pelo art. 28.° da Lei n.° 30/2000 (excepto quanto ao cultivo).
À partida, as condutas em causa, seriam, então, punidas nos termos do art. 21.° do DL n.° 15/93, eventualmente com aplicação do art. 25.° (tráfico de menor gravidade).
Não nos parece, contudo, que esta seja a solução legal, nem que tenha sido (e seja) a intenção do legislador.
Com efeito, o crime de tráfico previsto no art. 21.° do DL n.° 15/93 é um crime de perigo abstracto, que se caracteriza como um ilícito penal que fica perfeito com o preenchimento de um único acto conducente ao "resultado" previsto no tipo.
De qualquer modo, cumpre reafirmar que, para o preenchimento do tipo, é necessário que o cultivo, a aquisição e a detenção das substâncias aí previstas não tenham como finalidade o consumo pessoal do agente, conforme decorre do seu texto: "...fora dos casos previstos no artigo 40.°..." - apesar deste artigo ter sido parcialmente revogado, esta continua a ser a interpretação correcta, uma vez que, além de não ter sido introduzida qualquer alteração no art. 21.°, também o espírito na norma assim o impõe.
Por outro lado, importa considerar que, no que ao presente caso respeita, a moldura penal aplicável ao crime de tráfico previsto no art. 21.° do DL n.° 15/93 (4 a 12 anos de prisão - no caso do art. 25.°, de 1 a 5 anos de prisão) é substancialmente mais elevada do que a que era aplicável ao crime de consumo previsto no art. 40.°, n.° 2, do mesmo diploma (prisão até 1 ano ou multa até 120 dias).
Ora, não é crível que o legislador pretendesse, com a Lei n.° 30/2000, agravar a punição do consumo de estupefacientes, tanto mais numa altura em que a estratégia nacional de luta contra a droga indicava o contrário.
Na verdade, se atentarmos no teor da "Estratégia Nacional de Luta contra a Droga", aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.°46/99, publicada pela Presidência do Conselho, concluímos claramente que o rumo adoptado foi o de descriminalizar (não despenalizar) o consumo de drogas. A propósito da solução legal adoptada, aí se diz que "A estratégia nacional de luta contra a droga opta pela descriminalização do consumo de drogas e pela sua proibição como ilícito de mera ordenação social, com a consequente alteração do artigo 40. ° do Decreto-Lei n. "15/93, de 22 de Janeiro. Essa opção respeita não apenas ao consumo propriamente dito mas também à detenção (posse) e aquisição para consumo. " (p. 74 da publicação). Aí se acrescenta ainda que "a criminalização não se justifica por não ser meio absolutamente necessário ou sequer adequado para enfrentar o problema do consumo de drogas e dos seus efeitos, sem dúvida nefastos.". Mais, "a criminalização e a consequente mobilização do aparelho judicial devem estar, sobretudo, ao serviço do combate ao tráfico ilícito de drogas e ao branqueamento de capitais. ".
Aliás, de acordo também com o "Plano Nacional de Luta contra a Droga e a Toxicodependência Horizonte 2004" (Resolução do Conselho de Ministros n.°39/2001, de 09.04, DR n.°84, I Série-B, de 09.04.2001), a Lei n.° 30/00, integrada no âmbito da descriminalização do consumo, operou "...um primeiro passo na prossecução do princípio da redução de riscos e da dissuasão do consumo".
Tudo indica, deste modo, que o caminho trilhado pelo legislador era de descriminalização total do consumo de estupefacientes, incidindo a sua preocupação no tratamento dos consumidores e não na sua punição. Claro está que o legislador não pretendeu liberalizar o consumo de drogas e, por isso, constitui-o como contra-ordenação, sempre com o fito declarado de separar o criminoso do consumidor.
Na estratégia nacional de luta contra a droga de 1999 (acima indicada) também se dizia, a páginas 76, que "a não intervenção do direito penal permitirá criar um espaço próprio para a intervenção de um sistema de controlo administrativo através do ilícito de mera ordenação social", o que, além do mais, permitirá "que o consumidor possa surgir numa posição processual distinta do arguido por tráfico e beneficiar de medidas de protecção adequadas ".
Decorre, assim, que não se vislumbra no espírito do legislador, nem da leitura global do regime jurídico da droga, que à aprovação da Lei n.° 30/2000 tenha presidido a intenção de agravar a punição dos agentes que adquiram ou detenham para consumo próprio quantidade de estupefacientes superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias - em obediência ao próprio sentido da Lei n.° 30/2000, também estes devem ser distinguidos dos criminosos e também estes necessitam de tratamento.
Isto assente, uma outra alternativa tem sido sustentada por alguma doutrina e jurisprudência, apesar de, em parte, também contrariar o supra exposto.
Da não punição como crime de consumo e da inconstitucionalidade da dimensão normativa da interpretação preconizada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.° 8/2008
No Ac. STJ, de 03.07.2003, in "www.dgsi.pt", pugnou-se, na senda do inicialmente defendido pelo Procurador-Geral Adjunto Eduardo Maia Costa ("Breve nota sobre o novo regime punitivo do consumo de estupefacientes", in Rev. Do M.P., ano 22°, n.°87, p.147 e ss.) e de Cristina Monteiro ("O consumo de Droga na Política e na Técnica Legislativas", in Rev. Port. Ciência Criminal, ano 11, Io, p.67 e ss.), pela interpretação restritiva do art. 28.° da Lei n.° 30/2000, no sentido de que deve interpretar-se restritivamente a revogação por ele operada e considerar-se em vigor o n.° 2 do art. 40.° do DL n.° 15/93, sob pena de, afirmam, "certos consumidores serem punidos como traficantes, o que seguramente não foi intenção do legislador. ". Concluem dizendo: "Detendo o arguido, já na vigência da Lei n.°30/2000, de 29 de Novembro, 142,239 gramas de haxixe (resina) para consumo próprio e, portanto, quantidade superior ao consumo médio individual durante o período de 10 dias, cometeu o crime previsto no n. °2 do art. 40° do Decreto-Lei n. ° 15/93, de 22 de Janeiro, e não o de tráfico de menor gravidade do art. 25. ° deste diploma. ".
Recentemente, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu o já supra aludido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.° 8/2008, onde fixou jurisprudência nesse sentido, e exactamente nos seguintes termos:
«Não obstante a derrogação operada pelo art. 28.º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.°, n.° 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só "quanto ao cultivo" como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias»
Ora, o texto do art. 28.° da Lei n.° 30/2000 é o seguinte: "São revogados o artigo 40.°, excepto quanto ao cultivo... ".
Extrair deste texto que o legislador não pretendeu revogar o art. 40.° quanto à detenção e aquisição de estupefacientes para consumo não enquadráveis na Lei 30/2000 não parece ser legalmente razoável.
Independentemente de serem ou não admissíveis, em direito penal, as interpretações extensivas de normas incriminadoras ou as interpretações restritivas de normas descriminalizadoras (revogatórias), o certo é que, como em qualquer interpretação da lei, não pode o intérprete considerar "...o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.", devendo presumir que o legislador "...soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. ", nos termos do art. 9.°, n.° 2 e n.° 3, do Código Civil.
Por outro lado, nem se pode argumentar que o legislador não cuidou de verificar a necessidade de introduzir excepções à revogação que operou no art. 28.° da Lei n.° 30/2000. Na verdade, o legislador teve o cuidado de excepcionar o que entendia dever manter uma sanção de tipo criminal: o cultivo. E compreende-se esta excepção, já que o cultivo é susceptível de acarretar um aumento de produtos estupefacientes no mercado, sendo facilmente aliado ao tráfico. Quanto ao consumo e à aquisição e detenção para consumo, além de não se vislumbrarem razões idênticas, tudo indica que o legislador quis, efectivamente, descriminalizá-lo. Tal é o que decorre, entre o mais, da estratégia nacional de luta contra a droga acima referida, a que aqui fazemos apelo.
Acresce que a interpretação preconizada no aludido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência e nos demais acórdãos que o acompanham, além de, no entender do presente tribunal, não seguir as regras legais de interpretação de normas (art. 9.° do CC), tal como supra exposto, também padece de inconstitucionalidade, na sua dimensão normativa ao nível da interpretação do art. 28.° da Lei n.° 30/2000 - sobre a apreciação da constitucionalidade de dimensões normativas resultantes da interpretação dos tribunais, tem-se pronunciado positivamente o Tribunal Constitucional, citando-se, a título exemplificativo, o Ac. TC n.° 412/2003, de 23.09.2003, proc. n.° 816/2002, da 2a secção.
Concretizando, dispõe o art. 29.° da Constituição da República Portuguesa (CRP), com correspondência no art. 7.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) e no art. 1.° do CP, que:
"1 - Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior. ".
(...)
3 - Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior.
(...)" (sublinhado nosso).
Este preceito constitucional "consagra o chamado princípio da legalidade penal, cuja importância é considerada indiscutida e indiscutível num Estado de Direito. A fundamentalidade político-jurídica e jurídico-penal deste princípio radica na necessidade, demonstrada pela experiência histórica, de preservar a dignidade da pessoa humana, pedra angular do Estado de Direito, frente ao exercício ilegítimo e arbitrário do poder punitivo estadual. (...) Assim, dada a necessidade de prevenir as condutas lesivas dos bens jurídico-penais e igualmente de garantir o cidadão contra a arbitrariedade judiciai, exige-se que a lei criminal descreva o mais pormenorizadamente possível a conduta que qualifica como crime. Só assim o cidadão poderá saber que acções e omissões deve evitar, sob pena de vir a ser qualificado criminoso, com a consequência de lhe vir a ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança. " (Jorge Miranda e Rui Medeiros, "Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 325 a 328).
Ora, a condenação crime e a pena respectiva estão subordinadas aos princípios da legalidade e da tipicidade consagrados no art. 29.° da CRP - na vertente de nullum crimen sine lege scripta, proevia, certa -, o qual condiciona, entre o mais, a interpretação dos preceitos incriminadores, proibindo o recurso à analogia/integração de lacunas, o que, aliás, decorre expressamente do art. l.°, n.° 3, do CP. Nas palavras proferidas no dito Ac. TC n.° 412/2003, devidamente adaptadas ao caso, está em causa "...o controlo do poder punitivo do Estado através do Direito que criou, de modo que sem a verificação de factos previstos em lei penal (objecto de reserva de lei e inerente controlo democrático) como indiciadores de uma efectiva e sustentada vontade e capacidade punitiva do próprio Estado não será possível estabelecer..." tipos criminais ou penas.
E a verdade é que, analisando a interpretação preconizada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.° 8/2008, a mesma vai mais além do que a mera interpretação restritiva da norma revogatória do art. 28.° da Lei n.° 30/2000 - o que também não afasta a controvérsia da sua conformidade com a Constituição -, apresentando-se antes como uma integração de aparente lacuna legal, na senda do que prevê o art. 10.°, n.° 3, do CC, mas apodicticamente inaplicável em sede da definição de tipos incriminadores, atentos os princípios da legalidade e da tipicidade.
Para que se pudesse qualificar a jurisprudência do dito Acórdão do STJ como interpretação restritiva da norma revogatória era fundamental que da letra da lei resultasse um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (art. 9.°, n.° 2, do CC), o que não resulta, pelas razões já expostas. É que o texto legal, ainda que considerando os seus significados possíveis, constitui exactamente a fronteira entre a interpretação permitida e a analogia/integração de lacunas absolutamente proibidas, "...oferecendo as palavras que o compõem, segundo o seu sentido comum e literal, um quadro (e portanto uma pluralidade) de significações dentro do qual o aplicador da lei se pode mover e pode optar sem ultrapassar os limites legítimos da interpretação. Fora deste quadro, sob não importa que argumento, o aplicador encontra-se inserido já no domínio da analogia proibida. Um tal quadro não constitui por isso critério ou elemento, mas limite da interpretação admissível em direito penal. (...) Fundar ou agravar a responsabilidade do agente em uma qualquer base que caia fora do quadro de significações possíveis das palavras da lei não limita o poder do Estado e não defende os direitos, liberdades e garantias das pessoas. Por isso falta a um tal procedimento legitimação democrática e tem de lhe ser assacada violação da regra do Estado de Direito. " (Figueiredo Dias, "Direito Penal - parte geral", tomo I, Coimbra Editora, 2004, p. 176 e 177) - neste sentido, entre outros, também Paulo Pinto de Albuquerque, "Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, p. 41,45 e 46.
Mas, ainda que se situasse o teor da jurisprudência fixada pelo Ac. do STJ n.° 8/2008 no âmbito da mera interpretação (restritiva) da lei, a verdade é que também essa dimensão normativa da interpretação padeceria de inconstitucionalidade.
Em primeiro lugar, a interpretação preconizada pelo Acórdão em apreço viola o princípio da prevalência da constituição, o qual "...impõe que, dentre as várias possibilidades de interpretação, só deve escolher-se uma interpretação não contrária ao texto e programa da norma ou normas constitucionais", bem como viola o dever de aplicação do direito legal em conformidade com os direitos liberdades e garantias (neste sentido, J.J.Gomes Canotilho, "Direito Constitucional", Almedina, 6a ed., 1993, p. 229), na medida em que tal interpretação afronta o princípio da legalidade previsto no art. 29.° da CRP, inserido no âmbito dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, nos termos supra expostos, quando a letra e o espírito da lei permitiam (impunham, no entender do tribunal) outra interpretação conforme à Constituição.
Em segundo lugar, mesmo sendo admissíveis, em abstracto, as interpretações extensivas de normas incriminadoras ou as interpretações restritivas de normas descriminalizadoras, a verdade é que tais interpretações não podem exceder o teor literal das significações possíveis e adequadas segundo o entendimento comum das palavras do texto legal, sob pena de se estar a criar direito, devendo considerar-se proibidas e violadoras do princípio da legalidade constitucionalmente consagrado as interpretações que o façam (neste sentido, entre outros, Maia Gonçalves, "Código Penal Português", Almedina, 15a ed., 2002, p. 52; Victor de Sa Pereira e Outro, "Código Penal - anotado e comentado", Quid Júris, 2008, p. 56; Paulo Pinto de Albuquerque, "Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, p. 47; neste sentido, também, entre outros, Ac. TC n.° 412/2003, já citado).
E, no caso, tendo sido revogado um preceito que tipificava determinada conduta como crime, ressuscitá-lo através de interpretações aparentemente restritivas, mas que, no fundo, traduzem verdadeira integração de lacuna, além de consubstanciar uma violação do princípio da legalidade (art. 29.° da CRP e art. 1.°, n.° 1, do CP), põe obviamente em causa a segurança jurídica, a justiça material e os direitos de defesa do arguido (neste sentido, Inês Bonina, in "Rev. Do M.P., n.° 89, p. 185 e ss.).
Acresce que, para além da questão atinente à interpretação literal, nem sequer existe correspondência entre aquela "interpretação restritiva" do Acórdão Uniformizador e o espírito do legislador, considerando o texto legal - confrontar nomeadamente, não só o art. 28.° da Lei n.° 30/2000, que diz expressamente e ressalvando determinada situação que o art. 40.° do DL n.° 15/93 é revogado, mas também o art. 29.° daquela Lei, onde se expressa a concretização de uma "descriminalização" - e as circunstâncias em que a lei foi elaborada - atento enquadramento prévio da Lei n.° 30/2000, nomeadamente o teor dos textos da estratégia nacional de luta contra a droga de 1999 supra reproduzidos -, tal como também acima se aludiu.
Ou seja, em suma, a lei n.° 30/2000 operou, seja do ponto de vista da literalidade do texto legal, seja do ponto de vista teleológico, a total descriminalização do consumo e da aquisição e detenção para consumo de estupefacientes e, em conformidade, revogou o preceito criminal que o previa, tudo se passando, a partir daí, como se inexistisse qualquer previsão legal que sancionasse, a título de crime, aquelas condutas.
Por conseguinte, desde a Lei n.° 30/2000, só através do recurso à integração de lacunas (se tal fosse admissível, que não é) seria cogitável a punição a título criminal da conduta traduzida em mero consumo (ou detenção e aquisição para consumo) de estupefacientes. E, no entender do presente tribunal, a jurisprudência fixada no Acórdão do STJ em apreciação reconduz-se a uma integração de lacuna legal, na medida em que o legislador não previu expressamente a punição (seja como crime, seja como contra-ordenação) da conduta do agente que consuma, adquira ou detenha para consumo próprio estupefacientes em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, atenta a limitação introduzida no art. 2.°, n.° 2, da Lei n.° 30/2000.
Acontece que, como já por demais salientado, não é admissível, sendo mesmo inconstitucional, a integração de lacunas para os efeitos em apreço.
Isto posto, quanto à vinculação fora do processo em que são proferidos os Acórdãos de Fixação de Jurisprudência, dispõe o art. 445.°, n.° 3, do CPP, que, "A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão.".
É certo que, em regra, a divergência face à jurisprudência uniformizada deve ser alicerçada em argumentos novos ou não apreciados no Acórdão, conforme vem sendo sustentado pela jurisprudência, podendo até o Supremo Tribunal de Justiça, em sede de recurso, que é obrigatório para o Ministério Público (cfr. art. 446.°, n.°s 1 e 2, do CPP), "...limitar-se a aplicar a jurisprudência fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada", conforme decorre do disposto no art. 446.°, n.° 3, do CPP, tal como, aliás, se decidiu já no Ac. STJ de 03.06.2009, proc. n.° 21/08.5GAGDL.S1, disponível em www.dgsi.pt, o qual manteve a jurisprudência fixada em apreço.
No entanto, quando a divergência se prende com o entendimento de que a dimensão normativa da interpretação da lei preconizada no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência é inconstitucional, mesmo que a divergência não assente em argumentos novos ou não apreciados, deve o tribunal decidir pela não aplicação do Acórdão Uniformizador, atento o disposto no art. 204.° da CRP - que dispõe que "nos feitos submetidos a julgamento, não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados " -, pois esta imposição constitucional sobrepõe-se à lei ordinária (ou à interpretação que dela seja feita).
O tribunal recusa, pois - ainda que a argumentação exposta não comporte uma novidade absoluta -, a aplicação da jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.° 8/2008, por entender que a dimensão normativa da interpretação do art. 28.° da Lei n.° 30/2000 ali exposta padece de inconstitucionalidade, violando o disposto no art.29.°,n.°s 1 e 3, da CRP.
Da punição como contra-ordenação
Chegados a este ponto, concluímos que a detenção e a aquisição de estupefacientes para consumo do agente não são, hoje, no actual quadro jurídico, punidas a título de crime.
Por outro lado, temos também como certo que, quando a quantidade de estupefaciente não exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, aquelas condutas constituem contra-ordenação, nos termos do art. 2.°, n.° 1 e n.° 2 da Lei n.° 30/2000.
A questão coloca-se quando a quantidade de estupefaciente for superior à necessária ao consumo médio individual durante o período de 10 dias.
Duas soluções se apresentam mais: ou a conduta não é punida a qualquer título ou constitui também contra-ordenação.
A primeira solução resulta num absurdo jurídico: o agente que detém ou adquire quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias ou menos é punido (contra-ordenação), enquanto o agente que detém ou adquire quantidade superior não sofre qualquer punição. Mais, atentos os objectivos preconizados com a aprovação da Lei n.° 30/2000, aliás bem presentes ao longo das normas que a integram, pretender tratar os consumidores que detêm ou adquirem pequenas quantidades e não tratar os que detêm ou adquirem quantidades maiores, estando apenas em causa a interacção com estupefaciente para exclusivo consumo próprio do agente, constituiria algo de enigmático.
A favor desta tese podem aventar-se os princípios da legalidade e da tipicidade, segundo o qual ninguém pode ser punido pela prática de factos que não estejam expressamente previstos, em lei anterior, como crime ou contra-ordenação (cfr. art. 29.°, n.° 1 da CRP, art. l.°, n.° 1, do CP, e art. 2.° do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27.10 - RGCO).
Contudo, interpretando a Lei n.° 30/2000, em especial o seu art. 2.°, de acordo com os ditames do art. 9.° do CC, constatamos que a detenção e aquisição de estupefacientes para consumo em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias está aí tipificada como contra-ordenação.
Numa primeira análise superficial, sempre se poderia dizer, em "linguagem rápida", que, quem tem 20, tem 10.
E, se procurarmos captar a "imagem" global de todo o regime jurídico da droga, verificamos que esta é a solução que mais se coaduna com o espírito do mesmo.
As várias teses a que acima fomos aludindo justificam-se como forma de colmatar o que designam por lapsos do legislador. Contudo, segundo nos parece, atenta a clara política de descriminalização do consumo de estupefacientes e de tratamento dos toxicodependentes, o único lapso que poderá ser atribuído ao legislador, de acordo com seu espírito, é o de, porventura, por um lado, não ter punido mais severamente a detenção e a aquisição de quantidade superior à necessária ao consumo individual durante 10 dias, mas sempre no âmbito do ilícito de mera ordenação social; e de, por outro lado, ter aparentemente confundido o direito com a apreciação da prova.
Tendo constituído como contra-ordenação a detenção e aquisição para consumo de estupefacientes em quantidade não superior à necessária para o consumo individual durante 10 dias, ao mesmo tempo que revogou o art. 40.° do DL n.° 15/93, o legislador não terá cuidado de prever uma punição (contra-ordenacional) mais grave para as situações em que a quantidade de estupefaciente excedesse aquela quantidade, mas, em especial, o que denota a limitação prevista no art. 2.°, n.° 2, da Lei n.° 30/2000 - contrariando aparentemente o espírito e objecto da lei espelhados no art. 1.°, n.° 1, e 2.°, n.° 1, do mesmo diploma -, é a intenção de estabelecer um limite de quantidade de estupefaciente a partir do qual dificilmente se concebe que a detenção seja exclusivamente para consumo do agente. Acontece que esta última questão prende-se essencialmente com a apreciação da prova, estando tal indiciada preocupação do legislador sempre salvaguardada pela intervenção do tribunal e pela regra da livre apreciação da prova.
Agora, a conduta do agente que adquira ou detenha para consumo próprio quantidade de estupefaciente superior à necessária para o consumo durante o período de 10 dias não deixa de estar abrangida pelo tipo de contra-ordenação prevista no art. 2.° da Lei n.° 30/2000, já que, pelo menos, parte da conduta do agente preenche os elementos típicos da mesma: o agente adquiriu e detém estupefacientes para seu consumo. O que não pode é o julgador substituir-se ao legislador, distinguindo em função da quantidade - admite-se, contudo, que a distinção se faça ao nível da escolha da sanção e da medida da coima (arts. 15.° a 17.° da Lei n.° 30/2000).
Conclui-se, em suma, que a detenção ou aquisição de estupefacientes para consumo próprio são, no actual quadro legal, sempre punidas a título contra-ordenacional, independentemente da quantidade do produto - neste sentido, a título exemplificativo, na doutrina, Lourenço Martins, in "Droga - Nova Política Legislativa", in Rev. Port. Ciência Criminal, ano 11°, 3o, 2001, p.413, e "Comentário ao Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.° 8/2008, Revista do Ministério Público n.° 115, ano 29, p. 171 e ss; e, na jurisprudência, Ac. STJ de 20.12.2006, proc. 06P3517, Ac. RP de 31.01.2007, proc. 0612204, e Ac. RG, de 23.09.2002, proc. 381/2002, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Esta é a interpretação melhor compaginável com o espírito e a letra da lei, bem como com os princípios basilares do direito penal, aplicados conforme à Constituição.
*
Revertendo ao caso dos autos, cumpre enquadrar juridicamente os factos provados.
Resulta dos factos provados que a arguida detinha canabis-resina (haxixe) que se destinava a consumo próprio da arguida.
Assim sendo, a conduta provada da arguida é criminalmente atípica (por referência aos crimes de tráfico, de consumo ou outro), independentemente da quantidade detida, preenchendo "apenas" os elementos típicos da contra-ordenação atinente ao consumo de estupefacientes.
Impõe-se, pois, a absolvição da arguida pela prática do crime por que vinha acusada.
Quanto à contra-ordenação, apesar de a conduta da arguida ser adequada a preencher os seus elementos típicos, a verdade é que se verifica a prescrição do procedimento contra-ordenacional. Na verdade, desde a prática dos factos já decorreram mais de 3 anos, e o prazo de prescrição é de 1 ano, conforme resulta do disposto no art. 27.°, ai. c), do RGCO, conjugado com o disposto no art. 16.°, n.° 2 da Lei n.° 30/2006, de 29.11, podendo atingir um máximo de 2 anos, em virtude das causas de suspensão e interrupção da prescrição previstas nos arts. 27.°-A, n.° 1, ai. c), e n.° 2, e 28.°, n.°s 1 e 3, do RGCO (…)”.

B - RECURSO

O Mº Pº interpôs então recurso, por ser obrigatório, nos termos do art. 446º do C P P, manifestando-se no entanto em concordância com a decisão recorrida.
Concluiu assim:

1- Através do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.° 8/2008, foi fixada jurisprudência no sentido de que «Não obstante a derrogação operada pelo art. 28° da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.°, n.° 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só "quanto ao cultivo" como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias»;
2- A douta sentença recorrida recusou a aplicação da jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.° 8/2008, apontando que a dimensão normativa da interpretação do art. 28.° da Lei n.° 30/2000, e, por inerência, do art. 40.°, n.° 2, do DL n.° 15/93, de 22.01, ali exposta, padece de inconstitucionalidade, por violação do disposto no art. 29.°, n.°s 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa;
3- Em conformidade, o Mmº Juiz a quo decidiu absolver a arguida AA da prática de um crime de consumo, previsto e punido pelo art. 40.°, n.°s 1 e 2, do DL n.° 15/93, de 22.01, porque aquela vinha acusada;
4- Para justificar a divergência relativa à jurisprudência fixada foi apresentada exaustiva, clara e arguta fundamentação, a qual aqui não se sumaria para não correr o risco de atraiçoar o brilho e singeleza de saber com que foi ali exposta pelo Mmº Juiz a quo;
5- Embora tal fundamentação expendida não se funde em argumentos que constituam uma novidade absoluta, colhe ela a nossa inteira adesão, já que - assim o dizemos com todo o respeito - se nos apresenta como a interpretação melhor compaginável com o espírito e a letra da lei, bem como com os princípios basilares do direito penal, aplicados conforme à Constituição;
6- Porque proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, da douta sentença proferida nos autos ora recorre o Ministério Publico, pois que obrigatório o presente recurso se lhe apresenta nos termos do n.° 2 do artigo 446° do Código de Processo Penal.
Pelo que,
Aplicando a jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.° 8/2008 ou procedendo ao seu reexame, contribuirão os Excelentíssimos Senhores Juízes Conselheiros, para a realização do DIREITO.(…)”

A arguida AA respondeu, revendo-se por completo na decisão recorrida e pugnando pela sua manutenção.

Já neste Supremo Tribunal, o Mº Pº manifestou-se em douto parecer pela rejeição do recurso, por entender que embora a decisão recorrida esteja transitada em julgado, não foram atempadamente esgotados todos os graus de recurso ordinário: “(…) Na verdade, para que possa ter lugar um recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça há que, previamente se esgotarem as possibilidades de interposição de recurso ordinário (…).
“Assim, a redacção do artigo 446.°, n.° 1, introduzida pela referida lei, não afecta o entendimento que, de forma claramente dominante, o Supremo Tribunal de Justiça vinha expressando na sua jurisprudência — só quando as vias de recurso ordinário tiverem sido esgotadas é que o recurso deve ser interposto, após o trânsito em julgado da decisão recorrida, para o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, seguindo de perto a tramitação do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.
Face ao entendimento que defendemos, e que vem merecendo acolhimento na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, o presente recurso deve ser apreciado pelo Tribunal da Relação do Porto, ao qual os autos devem ser remetidos”.

Colhidos os vistos foram os autos presentes à conferência.

C - APRECIAÇÃO

1) Questão prévia

Configurando uma verdadeira questão prévia a ulteriores considerações que possam vir a produzir-se, importa tomar posição, antes do mais, sobre a admissibilidade do presente recurso, aderindo ou não à tese manifestada, no parecer do Mº Pº junto do S T J.
A nossa posição é a seguinte:
Juntamente com o recurso de fixação de jurisprudência propriamente dito (art.s 437º a 445º), o C P P integra no mesmo capítulo o recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada. O nº 1 do art. 446º do C P P, referente a este último tipo de recurso, dizia na sua anterior redacção que “O Ministério Público recorre obrigatoriamente de quaisquer decisões proferidas contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, sendo o recurso sempre admissível”.
E no nº 2 do preceito prescrevia-se que ao recurso em questão eram aplicáveis as disposições do capítulo em que o preceito estava integrado, epigrafado “Da fixação de jurisprudência”. Por isso é que se devia considerar como prazo de interposição de recurso, nos termos do artº 438º nº 1 do C.P.P., “30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar”. Por outro lado, discutiu-se então qual o alcance da expressão “quaisquer decisões”, tendo o S.T.J. formado uma corrente jurisprudencial, nos termos da qual, as decisões da 1ª instância nunca eram passíveis de recurso extraordinário em virtude de violação de jurisprudência fixada, devendo sempre esgotarem-se os graus de recurso ordinário disponíveis.
Com a actual redacção do preceito, introduzida pela Lei 48/2007 de 29 de Agosto, passou a dizer-se que “É admissível recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada, a interpor no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, sendo correspondentemente aplicáveis as disposições do presente capítulo”.
Manteve-se pois o prazo de interposição de recurso de 30 dias, agora explicitamente incluído no nº 1 do art. 446º, e contado a partir do trânsito em julgado da decisão recorrida. No entanto, introduziu-se a alteração de passar a ser admissível “recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada” (realce nosso).
A introdução da expressão “recurso directo” para o S T J, conjugada com a exigência do trânsito em julgado da decisão recorrida, significa que nunca o recorrente tem a possibilidade de escolher entre o recurso ordinário (no caso para a Relação) e o recurso extraordinário, se ainda estiver em tempo de interpor aquele primeiro tipo de recurso. Pura e simplesmente porque a decisão recorrida ainda não terá, à data, transitado.
Mas então, das duas uma: ou se considera inadmissível o recurso extraordinário em foco se, apesar de ter transitado a decisão recorrida, o recorrente não esgotou todos os recursos ordinários, quando a seu tempo o poderia ter feito, e esta parece ser a tese do Mº Pº no Supremo Tribunal, ou se admite sempre o recurso extraordinário, directamente para o S T J, por omissão de interposição atempada de recurso ordinário, se a decisão recorrida já tiver transitado.
Na primeira hipótese, a expressão introduzida pela Lei 48/2007 de 29 de Agosto, “É admissível recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça” ficaria sem o mínimo conteúdo útil, pelo que tem que ser rejeitada.
A segunda via padece do inconveniente de se estar a sancionar a incúria do recorrente (para já não falar de uma opção deliberada), que deixou passar os 20 dias de que dispunha para interpor o recurso ordinário, e interpôs o recurso extraordinário nos 30 dias seguintes, perdendo-se a oportunidade da instância de recurso ordinário rever a decisão proferida contra a jurisprudência fixada. A esta objecção haverá que responder que o legislador pretendeu que, apesar de tudo, não subsistisse no comércio jurídico uma decisão contra a jurisprudência fixada, secundarizando o comportamento do recorrente, em face do interesse geral da uniformização da jurisprudência, e da segurança do direito, portanto.
Por isso é que já no acórdão de 13/11/2011 que relatámos (Pº 1304/08-5ª Secção), se disse sobre a expressão “recurso directo” que a mesma “só pode ter por conteúdo útil esclarecer que o trânsito em julgado da decisão recorrida não implica que se tenham que ter esgotado todos os graus de recurso ordinário dessa decisão. Assim sendo, a nova redacção da norma assume um carácter interpretativo do mesmo preceito, tal como ele se apresentava na anterior redacção. Ou seja, tendo em conta o disposto no nº 1 do artº 13º do C.C., e sabido que não resultava directa e inequivocamente da anterior redacção, que as decisões de 1ª instância deviam ser excluídas deste tipo de recurso, a tal se tendo chegado por via interpretativa, então, ao ter que se aplicar o nº 1 do artº 446º do C.P.P. na anterior redacção, mas depois da entrada em vigor da Lei 48/2007 de 29 de Agosto, encarar-se-á a nova redacção do preceito como interpretação autêntica da anterior”.
Na doutrina, a introdução da expressão “recurso directo” para o S T J foi encarada como a desnecessidade de se esgotarem os recursos ordinários para que se pudesse lançar mão deste tipo de recurso extraordinário (assim Manuel Simas Santos e Manuel Leal Henriques in “Recursos em Processo Penal”, pag. 196, ou, os mesmos e João Simas Santos, in “Noções de Processo Penal” pag. 544). A intervenção do Pleno das Secções Criminais do S T J, exigida para apreciar o recurso em foco, foi também reservada, por outros autores, só para as situações em que a decisão não era recorrível pelos meios ordinários por já não o admitir, ou por se terem esgotado os recursos ordinários admissíveis (assim Maia Gonçalves in “Código de Processo Penal” pag. 1048 ou Paulo P. Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal” pag. 1192).
A justificação para o recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada, ou seja, a uniformização da jurisprudência (ou ainda a actualização da jurisprudência já fixada), só cobra verdadeira razão de ser quando já não é possível corrigir, através de recurso ordinário, a jurisprudência que se desviou da que se declarou, nos termos do Código, obrigatória. Mas enquanto essa correcção puder ter lugar, não fará nenhum sentido banalizar a intervenção de um órgão com as características do Pleno das Secções Criminais do S T J.
Diz-nos Manuel Simas Santos e Leal Henriques:
“(…) a redacção dada ao nº 1 do art. 446º, pela revisão de 2007, vem prescrever, diversamente, que “é admissível recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, de qualquer decisão proferida contra jurisprudência põe ele fixada”, donde que não seja obrigatório o esgotamento prévio dos recursos ordinários.
Não significa isso, no entanto, que não possam, e a nosso ver devam, ser interpostos previamente aqueles recursos, designadamente pelo Ministério Público (…) Na verdade, quando o legislador da revisão de 2007 quis que o recurso directo fosse obrigatório, disse-o expressamente, como é o caso do nº 2 do artº 432º, o que não acontece com o artº 446º” (in “Recursos…” pag. 196).

O recurso poderá ser directo para o S T J, não tanto porque esteja na mão do recorrente optar entre o recurso ordinário da decisão, ou o recurso extraordinário para o S T J, mas porque se configuram situações em que a decisão já não é “recorrível pelos meios ordinários” (cf. P. P. Albuquerque loc. cit.).
“ Tratando-se de um recurso extraordinário, em nosso entendimento não pode ser interposto se for admissível recurso ordinário” (cf. Maia Gonçalves in “Código de Processo Penal Anotado” pag. 1048).
Ou seja, segundo estes autores, a posição correcta será sempre a de esgotar os recursos ordinários. Mas no caso de tal não ter tido lugar e se ter deixado transitar em julgado a decisão de primeira instância, então subsistirá sempre, desde que tempestivo, o recurso extraordinário, directo para o S T J e obrigatório para o Mº Pº.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem sufragado o ponto de vista apontado: “(…) o recurso deste teor cobra enquadramento ao nível dos recursos extraordinários, de adoptar, por definição, quando o jogo dos recursos normais já não funciona, ou seja, quando o lançar mão do expediente normal de impugnação enfrenta o trânsito do julgado” (cf. Ac. de 2/4/2008, Pº 408/08-3ª Secção. Em consonância, v. g. Ac.s de 16/1/2008, Pº 4270/07-3ª Secção, de 12/3/2009, Pº 478/09-3ª Secção, de 12/11/2009, Pº 1133/08.0PAVNF.S1, ainda da 3ª Secção, ou a nossa decisão sumária de 25/1/2011, Pº 224/09.5 ECLSB.L1.S1, da 5ª Secção, para além do atrás referido).

O prazo de interposição de recurso ordinário, no caso de 20 dias, conta-se a partir do depósito da sentença na secretaria (art. 411º nº 1 al. b) do C P P). Esse depósito teve lugar a 4/1/2011 nos termos do art. 372º nº 5 do C P P (cf. Acta de fls. 137). A sentença transitou em julgado a 24/1/2011, já que não foi interposto qualquer recurso ordinário da mesma. A partir dessa data começou a correr o prazo de 30 dias para interposição do presente recurso nos termos do art. 446º do C P P. O recurso foi interposto a 22/2/2011.
Do que dito fica concluímos pois que o presente recurso é admissível e foi tempestivo.

2) A oposição da decisão recorrida à jurisprudência fixada

O Acórdão uniformizador de Jurisprudência nº 8/2008 de 25/6/2008 publicado no D R Iª Série de 5/8/2008, fixou jurisprudência segundo a qual,
«Não obstante a derrogação operada pelo art. 28.º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só “quanto ao cultivo” como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias».

Segundo a decisão recorrida, e matéria de facto dada por provada, a arguida detinha “canabis-resina (haxixe), com o peso líquido de 26,763 gramas”.
À luz da Portaria 94/96 de 26 de Março, concretamente do seu art. 9º e Mapa Anexo nele referido, a quantidade máxima para cada dose média individual diária de “canabis (resina)” é de meio grama. A quantidade apreendida à arguida corresponde, pois, a pelo menos 53 doses médias individuais diárias, pelo que, segundo a jurisprudência fixada, estaria em princípio incursa no crime do art. 40.º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro.
Acontece porém que, como se viu, a decisão recorrida, assumidamente, desatendeu aquela jurisprudência e considerou que a arguida teria praticado apenas uma contra-ordenação, aliás já prescrita, e daí ter sido absolvida da sua prática.
Com base na douta argumentação dispendida, entendeu dever ser aplicada a disciplina resultante do art. 1º e do art. 2º, da Lei n.° 30/2000, de 29.11 cujo teor é o seguinte:

"ARTIGO 1.°-(Objecto)
1. A presente lei tem como objecto a definição do regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica.
2. As plantas, substâncias e preparações sujeitas ao regime previsto neste diploma são as constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n. ° 15/93, de 22 de Janeiro.
ARTIGO 2. ° - (Consumo)
1. O consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contra-ordenação.
2. Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.”

É pois inequívoco que foi proferida decisão contra jurisprudência fixada.

3) Os efeitos da oposição

3.1. O recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo S T J relaciona-se, quanto aos seus pressupostos, com os efeitos, ou seja, com a eficácia, das decisões de fixação de jurisprudência.
A chamada eficácia externa destas últimas, prevista no nº 3 do art. 445º do C P P, obedece a um desígnio de unificação jurisprudencial.
Ora, apesar desse objectivo, o acórdão de fixação de jurisprudência “não constitui jurisprudência obrigatória” (cf. artº 445º nº 3 do C P P) mas vincula tão só ao respectivo seguimento, na falta de fundamentação cabal para as divergências que se perfilhem. Isto, na esteira do acórdão com força obrigatória geral do Tribunal Constitucional 743/96, de 28 de Maio (D R, Iª Série-A, de 18/7/1996), a que se deve, quanto ao ponto em apreço, a redacção dada ao preceito apontado pela Lei 59/98 de 25 de Agosto.
No dizer de P. P. Albuquerque, “A decisão que resolve a oposição de julgados não tem força normativa geral nem mesmo vinculatividade no foro, mas apenas uma força argumentativa especial” (in “Comentário do Código de Processo Penal” pág. 1189). Daí que se não esteja perante uma vinculação “pela positiva” dos tribunais, em relação à jurisprudência fixada, e antes face a uma obediência pela negativa. No caso de não acatamento, há que apresentar uma especial argumentação para a divergência.
Complementarmente, o art. 446º nº 3 do C P P estabelece, como já se referiu, a obrigatoriedade, para o Mº Pº, de interpor recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada, para além do carácter facultativo desta espécie de recurso para outros sujeitos processuais. E, em consonância com o tipo de vinculação previsto no art. 445º nº 3 do C P P, o nº 3 do art. 446º condiciona a procedência desta última modalidade de recurso, ao facto de a jurisprudência fixada se mostrar “ultrapassada” (assim também no art. 447º nº 2 do C P P).
Portanto, se a decisão recorrida não der conta dum desfasamento que destrua a jurisprudência fixada face aos novos dados que apresentou, ou se o S T J por sua iniciativa não descobrir razões para esse desfasamento, então a jurisprudência fixada manterá a sua validade e a decisão recorrida terá que acatá-la.
Uma jurisprudência ultrapassada é uma jurisprudência que deixou de valer, em face de algo de novo que tenha surgido depois de ter sido enunciada. Jurisprudência ultrapassada não equivale a jurisprudência simplesmente rebatida, com base em argumentos já conhecidos.
Na esteira do acórdão deste S T J de 17/2/2003 (Pº 625/03 desta mesma secção), vem-se entendendo, pacificamente, que a jurisprudência se considera ultrapassada quando, mantendo-se a lei aplicável:
· O acórdão recorrido tiver desenvolvido um argumento novo e de grande valor não ponderado no acórdão uniformizador, susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada.
· For claro que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, de tal modo que, na actualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso.
· A composição do Pleno das Secções Criminais do S T J se tenha de tal modo modificado, que seja patente que a maioria dos juízes dessas Secções deixou de perfilhar, fundadamente, a posição do acórdão de fixação de jurisprudência.

Vejamos se a decisão recorrida nos mostra que a jurisprudência do Acórdão nº 8/2008 está ultrapassada.

3. 2. A argumentação aduzida revela que a discordância, em relação à jurisprudência fixada, se centra numa motivação que foi esgrimida na decisão recorrida, mas que é alheia a eventuais evoluções ulteriores da jurisprudência ou doutrina, ou ainda do Pleno das secções criminais. Evoluções que não foram mencionadas, e, adiante-se, também não descobrimos.
Portanto, tudo se jogaria no apuramento de argumentos novos e de grande valor, agora adiantados, ao lado dos quais o acórdão de fixação tenha passado.
Ora, no nosso ponto de vista, tais argumentos não existem na decisão recorrida.
Depois da pertinente transcrição das disposições legais em confronto, a decisão recorrida afirma que só uma “análise superficial” faria supor que, depois da Lei nº 30/2000 de Novembro, a detenção de mais de dez doses individuais de produto estupefaciente para consumo, poderia constituir crime. Procura depois, aliás doutamente, demonstrar a tese que perfilha.

3. 2. 1. Num primeiro momento, é rejeitada a possibilidade de punir a conduta em apreço através art. 21º (eventualmente 25º), do Dec.Lei 15/93 de 22 de Janeiro. Dentre os argumentos usados sobressai a referência à "Estratégia Nacional de Luta contra a Droga", aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.°46/99, e publicada pela Presidência do Conselho de Ministros, bem como ao “Plano Nacional de Luta contra a Droga e a Toxicodependência Horizonte 2004" (Resolução do Conselho de Ministros n.°39/2001, de 09.04, DR n.°84, I Série-B, de 09.04.2001).
Porque a punição do consumo prevista no art. 40º do Dec. Lei 15/93, antes de revogado (excepto quanto ao cultivo), previa penas muito mais leves do que as previstas para o tráfico, por certo que a alteração legislativa trazida pela Lei 30/2000 de 29 de Novembro, com tal revogação, nunca poderia ser acompanhada de uma agravação da punição do consumo, a ponto de o equiparar ao tráfico.
Termina com a afirmação de que “não se vislumbra no espírito do legislador, nem da leitura global do regime jurídico da droga, que à aprovação da Lei n.° 30/2000 tenha presidido a intenção de agravar a punição dos agentes que adquiram ou detenham para consumo próprio quantidade de estupefacientes superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias - em obediência ao próprio sentido da Lei n.° 30/2000, também estes devem ser distinguidos dos criminosos e também estes necessitam de tratamento.
Isto assente, uma outra alternativa tem sido sustentada por alguma doutrina e jurisprudência, apesar de, em parte, também contrariar o supra exposto.”

3. 2. 2. A seguir, a decisão recorrida procura mostrar como não pode continuar a punir-se a detenção para consumo de mais de dez doses, como crime, e ainda à luz do art. 40º do Dec. Lei 15/93.
Fazendo já referência ao Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 8/2008 (doravante A F J), a sentença rejeita a interpretação restritiva do art. 28º da Lei 30/2000, no sentido de se ter dito mais do que o que se impunha, ao excluir da revogação do art. 40º do Dec. Lei 15/93 apenas o cultivo, quando algo mais haveria que ser excepcionado. Exactamente porque a norma revogatória foi explícita na excepção que pretendeu fazer.
Assim, independentemente de se apurar se é lícito operar uma interpretação restritiva de normas descriminalizadoras, ou extensiva, de normas incriminadoras, teria havido violação das regras legais de interpretação da lei do art. 9.° do CC.
A isso acresceria a inconstitucionalidade da interpretação do art. 28.° da Lei n.° 30/2000 no sentido preconizado pelo A F J, tendo em conta o disposto no art. 29.° da Constituição da República Portuguesa (CRP), com correspondência no art. 7.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) e no art. 1.° do CP.
Apela-se ao princípio da legalidade penal substantiva, “na vertente de nullum crimen sine lege scripta, proevia, certa -, o qual condiciona, entre o mais, a interpretação dos preceitos incriminadores, proibindo o recurso à analogia/integração de lacunas, o que, aliás, decorre expressamente do art. l.°, n.° 3, do CP. (…)E a verdade é que, analisando a interpretação preconizada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.° 8/2008, a mesma vai mais além do que a mera interpretação restritiva da norma revogatória do art. 28.° da Lei n.° 30/2000 - o que também não afasta a controvérsia da sua conformidade com a Constituição -, apresentando-se antes como uma integração de aparente lacuna legal, na senda do que prevê o art. 10.°, n.° 3, do CC, mas apodicticamente inaplicável em sede da definição de tipos incriminadores, atentos os princípios da legalidade e da tipicidade.
Para que se pudesse qualificar a jurisprudência do dito Acórdão do STJ como interpretação restritiva da norma revogatória era fundamental que da letra da lei resultasse um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (art. 9.°, n.° 2, do CC), o que não resulta, pelas razões já expostas.”
Acresce que, mesmo que a jurisprudência fixada pelo Ac. do STJ n.° 8/2008 se situasse no âmbito da mera interpretação (restritiva) da lei, a verdade é que também essa dimensão normativa da interpretação padeceria, no dizer da sentença, de inconstitucionalidade. Violar-se-ia o princípio da prevalência da Constituição, segundo o qual, dentre as várias possibilidades de interpretação, só deveria escolher-se uma interpretação não contrária ao texto e programa da norma constitucional, e ainda o dever de aplicação do direito legal em conformidade com os direitos liberdades e garantias consagrados constitucionalmente.
“Ou seja, em suma, a lei n.° 30/2000 operou, seja do ponto de vista da literalidade do texto legal, seja do ponto de vista teleológico, a total descriminalização do consumo e da aquisição e detenção para consumo de estupefacientes e, em conformidade, revogou o preceito criminal que o previa, tudo se passando, a partir daí, como se inexistisse qualquer previsão legal que sancionasse, a título de crime, aquelas condutas”.
A única saída, em alternativa, seria a da integração de uma possível lacuna em matéria de incriminação, o que não é possível na nossa lei.
A terminar este ponto, a sentença recorrida acaba por reconhecer que os argumentos esgrimidos não serão necessariamente novos ou não apreciados no acórdão.
Porém, mesmo não constituindo “uma novidade absoluta” as razões adiantadas, entende a sentença recorrida que “quando a divergência se prende com o entendimento de que a dimensão normativa da interpretação da lei preconizada no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência é inconstitucional, mesmo que a divergência não assente em argumentos novos ou não apreciados, deve o tribunal decidir pela não aplicação do Acórdão Uniformizador, atento o disposto no art. 204.° da CRP - que dispõe que "nos feitos submetidos a julgamento, não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados " -, pois esta imposição constitucional sobrepõe-se à lei ordinária (ou à interpretação que dela seja feita)”.

3. 2. 3. No passo seguinte, a decisão procura demonstrar que, situados já, só, no domínio das contra-ordenações, e excluída a hipótese de a detenção de mais de dez doses diárias para consumo ficar impune, então a detenção desta quantidade deveria ser punida do mesmo modo que a quantidade inferior. Para a sentença recorrida, o limite das dez doses diárias não seria o limite da criminalização, mas sim, se bem entendemos o pensamento expresso, uma indicação ou uma sugestão dadas ao julgador, para que avaliasse bem se, com tal quantidade, se não estaria afinal perante uma caso de tráfico.

3. 3. O passo seguinte terá de ser o de apurar, se toda esta argumentação encerra algum argumento novo e de grande valor não ponderado no acórdão uniformizador, susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica, e prejudicando portanto a solução perfilhada no A F J.
Ora, a leitura do A F J (publicado no D R, Iª Série nº 150 de 5/8/2008, a cujos números de página nos passaremos a referir), revela-nos a abordagem de todos os temas ventilados para alicerçar a opção tomada na decisão recorrida.
Acentue-se que a afirmação dessa abordagem não se releva tanto no facto de aos argumentos ter sido dada uma dimensão equivalente à acolhida na sentença recorrida, ela mesma, interessando também retirar a completude do tratamento dos argumentos dos votos de vencido e declarações de voto apostas. No caso, sobretudo dos votos de vencido dos Conselheiros Henriques Gaspar e Maia Costa que acabaram defendendo exactamente a tese da sentença recorrida. Porque tudo isso denuncia o que foi e o que não foi estranho à discussão que teve lugar.
Comecemos pelo elemento histórico de interpretação da Lei 30/2000, e sobretudo o seu art. 2º, com relevo para “Estratégia Nacional de Luta contra a Droga" (Resolução do Conselho de Ministros n.°46/99), a que aliás se refere também a declaração de voto do presente relator (1) . Desse elemento histórico pretenderam os dois votos de vencido retirar um apoio paralelo ao usado na sentença ora recorrida, nos termos da qual não mais se poderia, depois da Lei 30/2000, defender a criminalização da detenção para consumo, fossem quais fossem as quantidades detidas parar esse efeito, e salvaguardado o caso do cultivo. Como se pode constatar, o texto do A F J não retirou desses elementos de cariz histórico o mesmo efeito, mas não deixou de a eles se reportar (pag. 5239 e 5240 do D R).
Questão também aludida no Acórdão e referidos votos de vencido, é a dos critérios de interpretação das normas, a observar à luz do artº 9º do C C. Afirmando-se logo no princípio (2) que a interpretação literal do artº 2º da Lei 30/2000 implicaria não só a não criminalização da detenção de mais de dez doses individuais para consumo, como arrastaria, nessa situação, a completa despenalização da detenção em causa (pag. 5236 in fine).
E também ficou suficientemente abordada a questão dos limites entre a interpretação restritiva e a integração de lacunas, concretamente em matéria incriminatória. Sobretudo, discorreu-se bastante (sobretudo através do que se vê do voto do Conselheiro Henriques Gaspar), sobre o problema da inconstitucionalidade invocada, à roda do princípio da legalidade penal, “lei prévia, escrita, estrita e certa” (pag. 5247), com importantes incursões aliás no direito europeu dos direitos do homem (artº 7º da Convenção). E este parece ser o elemento argumentativo principal agora usado na decisão recorrida.
Em síntese, e a finalizar este ponto, não poderemos arvorar em argumento novo e de valia decisiva aquilo que afinal foram argumentos “vencidos”.
Consciente, como se viu já, desta ocorrência, a sentença recorrida envereda, noutro registo, pela tese de que implicando o A F J uma interpretação do art. 28º da Lei 30/2000 que se reputa inconstitucional, sempre estaria o julgador legitimado a desatender a jurisprudência do A F J.
A posição que nos parece correcta é a de que, enquanto a instância vocacionada para fiscalizar a inconstitucionalidade das normas, o Tribunal Constitucional, não tiver declarado a inconstitucionalidade em causa, o acatamento da jurisprudência do A F J não poderá ser afastado, com base numa invocada inconstitucionalidade defendida pela primeira instância, questão que afinal o A F J abordou e afastou.
Diferentemente se poderiam passar as coisas se esse tema da inconstitucionalidade, centrado numa possível violação do princípio da legalidade, tivesse passado completamente ao lado do A F J.
A não ser assim, todo e qualquer A F J poderia ser desrespeitado, simplesmente porque o julgador em primeira instância considerava inconstitucional certa interpretação de uma norma, discordando do facto de o A F J ter recusado essa mesma inconstitucionalidade.

D - DECISÃO

Pelo exposto se decide no S T J e 5ª Secção, reunida em conferência, dar provimento ao recurso interposto pelo Mº Pº, pese embora o mesmo se ter revisto na posição assumida pela sentença recorrida, e assim,
1) Considerar não existir qualquer razão para alterar a jurisprudência fixada no Acórdão nº 8/2008 do S T J, publicado no D R Iª Série, nº 150, de 5/8/2008;
2) Aplicar essa mesma jurisprudência, devendo o acórdão recorrido ser modificado em consonância com a dita jurisprudência.

Sem custas.

Lisboa, 6 de Julho de 2011
Souto de Moura (Relator)
Isabel Pais Martins
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(1) Aí se chamou à atenção, entre o mais, para o facto de, na Estratégia, se ter optado pela descriminalização do consumo sem qualquer menção de quantidades. A referência às dez doses diárias foi uma introdução do próprio Parlamento, pelo que se não deveria apostar desmesuradamente na posição do Governo a tal respeito.

(2) Ponto 3. “O recurso extraordinário”, relativo à motivação do Mº Pº