Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
147667/15.5YIPRT.P1.S2
Nº Convencional: 6.ª SESSÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: RECONVENÇÃO
ADMISSIBILIDADE
INJUNÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS
COMERCIANTE
OPOSIÇÃO
EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES
CELERIDADE PROCESSUAL
VALOR DA CAUSA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - INSTÂNCIA / INCIDENTES DA INSTÂNCIA - PROCEDIMENTO DE INJUNÇÃO / REMESSA DOS AUTOS PARA O TRIBUNAL COMPETENTE / FORMA DE PROCESSO COMUM.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS ARTS. 299.º E SEGUINTES.
D.L. N.º 62/2013, 10-05: - ARTIGO 10.º, N.º 2.
Sumário :
I - Inexiste motivo de justiça material que justifique o tratamento desigual que se consubstancia em admitir a reconvenção em procedimento de injunção instaurado por comerciante contra um outro comerciante e destinado à cobrança de quantia de valor superior a metade da alçada da Relação, mas em rejeitá-la em procedimento de injunção destinado à obtenção do pagamento de importâncias de valor inferior.

II - Pretendendo a ré exercer o direito à compensação de créditos (e assim deixar de suportar, pelo menos em parte, o risco de insolvência da contraparte), a rejeição da reconvenção perfila-se como um prejuízo não menosprezável para aquela, cabendo, por outro lado, que não esquecer que o legislador civil facilita a invocação daquela forma de extinção das obrigações e que a celeridade é uma condição necessária, mas não suficiente, da Justiça.

III - A partir do momento em que é deduzida oposição com reconvenção ao procedimento de injunção e este adquire cariz jurisdicional, há que aplicar as regras dos arts. 299.º e seguintes do CPC (que o disposto no n.º 2 do art. 10.º do DL n.º 62/2013 não afastam), cabendo então e caso os pedidos sejam distintos, adicionar o valor do pedido formulado pelo réu ao valor do pedido formulado pelo autor.

Decisão Texto Integral:



Processo n.º 147667/15.5YIPRT.P1.S2

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6.ª Secção)

Relatório

AA, Lda instaurou procedimento de injunção contra BB, Lda pedindo a notificação da requerida para proceder ao pagamento da quantia de € 4 265,41, montante que engloba juros de mora desde a data do vencimento das facturas.

A requerida deduziu oposição, suscitando a questão prévia da competência territorial para decidir o litígio ser do Tribunal da Comarca de … (…), impugnando a matéria alegada pela requerente, dizendo inexistir qualquer contrato de compra e venda ou de prestação de serviços entre ambas, e defendeu-se por excepção, afirmando que celebrou um contrato de locação financeira mobiliária de uma máquina com opção de compra com o BANCO CC, que na qualidade de locador comprou a dita máquina à A., pagando-lha; acontece que a máquina tinha defeitos de fabrico que foram denunciados e impediam o fim a que se destinava, e apesar das reparações feitas pela A. não ficou em condições; é a essas intervenções que se reportam as facturas sob cobrança, mas os respectivos custos são da responsabilidade da A., que estava obrigada a repará-la e nunca conseguiu pô-la em condições; sempre denunciou à A. os defeitos da máquina no prazo legal; trata-se de venda de coisa defeituosa, tendo o comprador direito a exigir a reparação dela; e se não for aplicável o regime em questão, sempre se tratará de uma prestação de serviços incumprida, visto que a máquina não foi efectivamente reparada.

Em reconvenção pediu a condenação da A. a pagar-lhe a quantia a liquidar em execução e sentença derivada dos custos em que venha a incorrer para total reparação da máquina; ou em alternativa, para o caso de tal reparação não ser possível, a quantia a liquidar em execução de sentença, correspondente ao preço de aquisição de uma máquina para substituição da primeira; indemnização a título de danos emergentes e lucros cessantes causados pela venda de bem defeituoso, no montante de € 49 992,00; e indemnização a liquidar em execução de sentença pelos prejuízos que ainda venha a sofrer até integral reparação ou substituição da máquina, tudo acrescido de juros à taxa legal, desde a notificação do pedido reconvencional até integral pagamento.

Os autos foram à distribuição, passando a acção declarativa especial.

O Sr. Juiz julgou inadmissível a reconvenção, indeferindo-a, considerando que a injunção tem o valor de € 4 214,41, tendo-se transformado em acção especial, cuja especificidade consiste na celeridade derivada da reduzida importância dos interesses em jogo, o que se não compatibiliza com a formulação de pedido reconvencional.

A Ré recorreu pedindo a revogação da decisão concernente ao pedido reconvencional, concluindo que o mesmo deve ser admitido.

O Sr. Juiz indeferiu o recurso, considerando que o valor da causa, sendo inferior à alçada do tribunal de 1.ª instância (€ 4 214,41), o não permite (art. 629.º/1 do CPC); que, tratando-se de uma decisão intercalar, não cabe em nenhuma das situações previstas nas alíneas do n.º 2 do art. 644.º daquele diploma; e que, não havendo saneador nesta forma de processo, também se não aplica a al. b) do n.º 1 do art. 644.º; nem é caso de absoluta inutilidade, pelo que não tem enquadramento na al. h) do n.º 2 desse artigo.

A Ré reclamou para a Relação, nos termos do art. 643.º do CPC, defendendo que o valor da causa é a soma do valor da injunção e do pedido reconvencional; que importa o decaimento, que é de € 50 000,00; que a conexão entre a injunção e o pedido reconvencional importam a absoluta inutilidade de uma decisão favorável que venha a ser obtida em sede de recurso, caso os autos prossigam para julgamento, por haver não só conexão entre os pedidos, mas prejudicialidade, ficando a defesa da Ré irremediavelmente comprometida; que se podem perfilar julgados contraditórios e litispendência; que o Sr. Juiz proferiu despacho saneador, não obstante a forma do processo.

O Relator decidiu a reclamação considerado admissível o recurso, e fixou-lhe o regime de subida imediata, em separado dos autos principais, com efeito meramente devolutivo.

O Tribunal da Relação julgou a acção improcedente e confirmou a sentença recorrida.

Inconformada a Recorrente interpôs recurso de revista excepcional, pedindo a revogação do Acórdão e a sua substituição por outro que atenda à soma do valor do pedido com o valor da reconvenção deduzida pela Recorrente para fixar o valor da causa e consequentemente determine a alteração da forma de processo para processo comum, admitindo o pedido reconvencional nos termos das regras gerais do processo civil (Conclusões XIX e XX, reiteradas com outros fundamentos em XXXI e XLIII e XLIV).

Fundamentação

De Facto

Os factos que relevam para a causa são os já referidos no Relatório

De Direito

O presente recurso foi admitido como revista excepcional pela Formação prevista no artigo 672.º n.º 3 do CPC em decisão que sublinha que “a lei não toma posição clara sobre a admissibilidade da reconvenção em processo originariamente de injunção” (f. 168) e “esta questão é muito premente, sabendo-se a importância que uma jurisprudência clara e firme poderá ter no devir da vida económica num capítulo tão importante como o da cobrança de dívidas ou de cumprimento imperfeito”.

No seu Recurso o Recorrente defende, desde logo, que havendo dedução de oposição e a apresentação de um pedido reconvencional, o valor desse pedido deve ser tido em conta, segundo as regras gerais fixadas no CPC para o cálculo do valor da acção, determinando a forma de processo a seguir de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 10.º do Decreto-lei n.º 62/2013. Assim, no caso dos autos, ao valor do pedido (€4265,41) somar-se-ia o valor do pedido reconvencional (€50.000,00) pelo que com a dedução da oposição haveria que aplicar-se a forma do processo comum e admitir-se o pedido reconvencional (Conclusões XV a XVII).

O Recorrente invoca, ainda, outros argumentos: a decisão de não admitir o pedido reconvencional violaria os seus direitos mormente em termos de “igualdade [com o Recorrido], justiça em tempo útil, contraditório, dispositivo, verdade material, ónus de alegação das partes (…) e direitos processuais (…) e consequentemente influir no exame ou na decisão da causa” (Conclusão XVIII). Acrescenta que se não se permitir o pedido reconvencional o caso julgado nesta acção poderá prejudicar a propositura subsequente de uma nova acção pela ora Recorrente, “devido à prejudicialidade e interconexão dos pedidos (o pedido já formulado e não admitido e o pedido a formular na nova acção autónoma)” (Conclusão XXV, bem como Conclusões XXVI a XXX).. Invoca, igualmente, os princípios da adequação formal e da economia processual, bem como o dever de gestão processual (Conclusões XXXII a XLIV).

O Acórdão agora recorrido entendeu que “nestes procedimentos convertidos em acção judicial, para efeitos de aferir a forma do processo subsequente à contestação, apenas interessa o valor mencionado na petição inicial, atento o disposto pelo art.º 7.º do DL 32/2003” (f.101). O Acórdão recorrido invoca a seu favor um outro da Relação de Lisboa, de 21/10/2010 em que se afirmou que a admissão de pedido reconvencional frustraria a “desburocratização, simplicidade, singeleza e celeridade que estão associadas a este tipo de procedimentos”. O Acórdão recorrido sustenta, ainda, que não há qualquer prejuízo para o direito de defesa da recorrente, nem tão-pouco o risco de litispendência e afirma que “não se vislumbra que prejuízo pode resultar do prosseguimento do processo sem reconvenção” (f.104). Não haveria, igualmente, qualquer violação do princípio da igualdade entre as partes. Sucederia, apenas, que a lei especial afasta a lei geral, não sendo possível invocar o princípio da adequação para justificar o cometimento de ilegalidades.

Apreciando esta argumentação cumpre dizer, em primeiro lugar, que nos parece exacto que, se a reconvenção for considerada inadmissível por só se preverem no processo especial dois articulados tal não prejudicará a Recorrente em termos de caso julgado ou de efeito de caso julgado já que a apreciação material do Tribunal não incidirá sobre o pedido reconvencional, não se produzindo, tão-pouco, qualquer efeito preclusivo.

No entanto, tal não significa que não haja efectivamente um prejuízo para a Recorrente. Muito embora a compensação seja fundamentalmente uma causa de extinção das obrigações, a verdade é que ela permite a quem a invoca com sucesso não suportar (total ou parcialmente consoante o seu âmbito) o risco de insolvência da contraparte. Se a compensação não for admitida neste caso a Recorrente terá que pagar neste momento a quantia que porventura deve (suponhamos a quantia pedida de (€4265,41) para depois exigir em outra acção o pagamento dos €50.000,00 (se a contraparte então os puder pagar); mas se a compensação for admitida não se expõe (ou não se expõe na mesma medida) a esse risco de insolvência, ficando satisfeita imediatamente na parte em que houver compensação.

Por outro lado, a solução encontrada pelo Tribunal recorrido gera, efectivamente, uma desigualdade – aliás, o Acórdão recorrido afirma expressamente que “a reconvenção é admissível quando a injunção, por força do valor do pedido, é superior à metade da alçada da Relação, não o sendo na hipótese inversa, que é aquela que aqui acontece” (f. 104). Ou seja, porque um comerciante exigiu o pagamento de €4265,41, o outro comerciante não poderia opor-lhe no processo em que a injunção se convertesse por haver oposição o seu crédito de €50.000,00, mas se fosse o credor de €50.000,00 o autor da injunção – e entre comerciantes a injunção não está sujeita a limites de valor – o credor de €4265,41 já poderia invocar a compensação. Ora não se vislumbra qualquer motivo de justiça material para tal desigualdade. Acresce que o legislador civil quis facilitar a compensação, como resulta de no nosso sistema legal a compensação ser possível mesmo com créditos ilíquidos.

A celeridade é sem dúvida importante, mas não deve olvidar-se que a celeridade é uma condição necessária, mas não suficiente, da justiça. Em suma, não é porque uma decisão judicial é célere que a mesma é justa.

Acresce que não há razão para concluir da leitura do artigo 10.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 62/2013 que o mesmo quis afastar as regras processuais gerais sobre o cálculo do valor de uma acção. É natural que primeiro se tenha em conta o valor do pedido – aliás nesse momento não há sequer uma acção – mas com a dedução de oposição, e convertendo-se então a medida em procedimento jurisdicional, haverá que aplicar as regras dos artigos 299.º e seguintes do CPC. Assim, atende-se ao momento em que o procedimento se converte em jurisdicional (porque na injunção não se começa por propor uma acção) “excepto quando haja reconvenção” (n.º 1 do artigo 299.º do CPC), sendo que, então, o valor do pedido formulado pelo Réu é somado ao valor do pedido formulado pelo Autor quando os pedidos sejam distintos (n.º 2 do artigo 299.º).

Decisão: Concede-se a Revista, determinando-se a alteração da forma de processo para processo comum e admitindo-se o pedido reconvencional.

Custas pelo Recorrido

Lisboa, 6 de Junho de 2017

Júlio Gomes – Relator

José Rainho

Salreta Pereira