Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
529/15.6T8BGC.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITOS
COISA FUTURA
TRANSMISSÃO DE CRÉDITO
EFICÁCIA
INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA
ANALOGIA
PENHORA
AUTONOMIA DA VONTADE
Data do Acordão: 04/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / COISAS / COISAS FUTURAS – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTEÚDO DA OBRIGAÇÃO / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / TRANSMISSÃO DE CRÉDITOS E DE DÍVIDAS / CESSÃO DE CRÉDITOS / CONTRATOS EM ESPECIAL / COMPRA E VENDA / OUTROS CONTRATOS ONEROSOS.
Doutrina:
-Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume II, Almedina, 7.ª Edição, 1997, p. 295, 296, 312, 315 e 316 ; 12.ª Edição, 2018, p. 28 a 31, 317 a 318;
-Tiago Ramalho, A Cessão de Créditos Futuros e a Insolvência, A Posição do Cessionário na Insolvência do Cedente, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano IX9, 2012, p. 481 a 503;
-Vaz Serra, Cessão de Créditos ou de Outros Direitos, BMJ, número especial, 1995, p. 282.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 211.º, 399.º, 408.º, N.º2, 577.º, 588.º, 879.º, ALÍNEA A) E 939.º.
Sumário :
I. A cessão de créditos, prevista e regulada nos artigos 577.º a 588.º do CC, pode incidir tanto sobre créditos presentes, vencidos ou não, como sobre créditos futuros, desde que determináveis, nos mesmos termos em que é permitida a constituição de obrigações sobre coisas futuras (artigos 211.º e 399.º do CC).

II. Ao contrato de cessão de crédito é aplicável, por via extensiva ou mesmo analógica, os princípios da consensualidade e da sua eficácia erga omnes consagrados no artigo 408.º em conjugação com o disposto no artigo 879.º, alínea a), 2.ª parte, do CC, em que se inclui, como efeito típico da compra e venda, a transmissão da titularidade do direito, disposição esta também aplicável aos demais contratos onerosos por via do artigo 939.º do mesmo Código.

III. A natureza relativa do direito de crédito não obsta àquela eficácia erga omnes, na medida em que esta eficácia translativa não versa sobre o conteúdo da prestação creditícia, mas sobre a própria titularidade do direito de crédito.

IV. A autonomização da titularidade do direito de crédito, enquanto objeto específico de cessão, permite conferir-lhe, nesse particular, natureza absoluta equiparável aos direitos reais e portanto com eficácia erga omnes do respetivo efeito patrimonial translativo, nos termos do artigo 408.º do CC.

V. Tratando-se de cessão de crédito futuro, a transferência deste da esfera do cedente para a do cessionário ocorrerá logo que o direito cedido ingresse na esfera daquele, nos termos do n.º 2 do indicado artigo 408.º, transferindo-se assim automática e imediatamente para a esfera do cessionário.

VI. No caso de concorrência de afetações do crédito futuro cedido e depois penhorado a favor de terceiro, face aos princípios da consensualidade e da eficácia erga omnes consagrados no artigo 408.º do CC, a prevalência entre o efeito translativo da cessão e o efeito civil da penhora deve ser estabelecida em função da prioridade temporal ocorrida entre o contrato de cessão e o ato de penhora.

Decisão Texto Integral:
Acordam da 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


 

I – Relatório


1. A Caixa Geral de Depósitos (A.) instaurou, em 06/04/2015, ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra a sociedade AA, Lda(R.), alegando, no essencial, que:

. Em 28/10/2003, A. celebrou com a sociedade “BB, SGPS, S.A.”, um contrato de conta corrente até ao montante de € 750.000,00; 

. Em 11/01/2006, foi acordado um aditamento àquele contrato, nos termos do qual, em garantia das obrigações emergentes do mesmo para a sociedade “BB, SGPS, S.A.”, a sociedade “BB, SGPI, S.A.”, cedeu à A., sob condição suspensiva, a respetiva posição contratual num contrato de locação financeira imobiliária celebrado entre esta última sociedade e a “Caixa Leasing e Factoring”, em 06/12/2001;   

. Em 15/02/2011, foi outorgado um terceiro aditamento ao mencionado contrato de conta corrente mediante o qual, para reforço das respetivas garantias, a sociedade “BB, SGPI, S.A.”, cedeu à A. os créditos que para aquela emergiam de contratos celebrados, em 01/04/ 2010, entre a sociedade cedente e a ora R. e que incidiam sobre um prédio urbano, sito em …, …, a saber:

a) – de um contrato de sublocação comercial com preferência e contrato-promessa e de um contrato-promessa de compra e venda, com exceção das quantias, até ao montante de € 271.119,11, entregues a título de sinal;          

b) – do contrato de compra e venda prometido e referido na alínea anterior, com exceção das quantias também ali aludidas;

. Aquela cedência de créditos à A. compreende o crédito correspondente ao preço de € 578.880,89, excluído o valor do sinal já pago, relativo à prometida compra e venda do prédio urbano que esta última sociedade iria celebrar com a R.;

. A cessão desse crédito foi notificada à R. por carta registada com A/R, recebida em 28/04/2011;

. Aquando da outorga da escritura do contrato de compra e venda, em 18/04/2012, a R., em vez de entregar o valor do preço à A., entregou-o ao Fisco, no âmbito de uma execução fiscal em que era devedora a sociedade “BB SGPI, S.A.”, após notificação de que o referido crédito ficava penhorado;

. Porém, tal penhora foi posterior à notificação feita à R. da sobredita cessão de crédito, o que significa ter a R. entregue ao Fisco, para pagamento de dívida de terceiro, o valor correspondente ao crédito de que a A. já era titular ativo, no montante de € 578.880,89, vencido desde 18/04/2012:

Concluiu a A. a pedir que a R. fosse condenada a pagar-lhe a referida quantia de € 578.880,89, acrescida de juros de mora vencidos desde 18/04/2012, liquidados em € 68.704,44, à data da propositura da ação, e vincendos até ao seu integral pagamento.

2. A R. apresentou contestação, sustentando que:

. Os contratos de sublocação, de promessa de compra e venda e da cessão de créditos futuros são nulos, uma vez que a sociedade BB SGPI, S.A., já tinha cedido à A. a sua posição contratual no contrato de locação financeira imobiliária, carecendo, por isso, de legitimidade para celebrar aqueles contratos;

. O pagamento feito ao Fisco ocorreu a pedido a BB, que afirmou ter consentido em tal;

. Não obstante isso, por se tratar de crédito futuro, a cessão só se consumou com a celebração do contrato de compra e venda, momento em que o Fisco já havia penhorado aquele crédito;

. O A. litiga com manifesta má fé.

Nessa base, a R. concluiu pela improcedência da ação e pediu que a R. fosse condenada como litigante de má fé em multa e indemnização à A.

3. A R. deduziu o incidente de intervenção da sociedade “BB SGPI, S.A.”, o qual foi admitido como intervenção acessória da chamada com o estatuto de assistente, não tendo esta tido intervenção no processo.

4. Findos os articulados, foi proferido despacho saneador tabelar, relegando-se o conhecimento da exceção de nulidade para final e fixando-se o valor da causa, seguindo-se os despachos a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova (fls. 195-198).  

5. Realizada a audiência final, foi proferida a sentença de fls. 261-273, datada de 16/02/2017, a julgar a ação totalmente improcedente.

6. Inconformada, a A. recorreu para o Tribunal da Relação de … que, pelo acórdão proferido a 329-342, datado de 11/07/2017, julgou procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e, em sua substituição, condenando a R. a entregar à A. a quantia de € 578.880,89, correspondente ao valor do crédito cedido, acrescida dos juros vencidos e vincendos até à entrega efetiva.

7. Desta feita, vem agora a R. pedir revista para o que formula extensas conclusões, em grande parte de teor argumentativo e doutrinário, as quais, embora nalguma desconformidade com o ditame do artigo 639.º, n.º 1, do CPC, no essencial, identificam às seguintes questões a decidir:

a) – Saber se, no caso de cessão de crédito futuro, este crédito se transfere de imediato para a esfera jurídica do cessionário ou se, pelo contrário, só se transfere para ela depois de surgir na esfera jurídica do cedente;

b) – Saber quando é que a cessão de crédito futuro se torna eficaz ou se consuma.

      No perímetro dessas questões, a Recorrente convoca as seguintes problemáticas:

i) – A aplicação ao caso da doutrina da transmissão (cessão de crédito futuro, nascimento e transmissão do crédito), em que confronta a adoção da teoria da transmissão pela doutrina maioritária portuguesa e da sua compatibilidade com o nosso regime jurídico e a crítica e incompatibilidade da teoria da imediação e da teoria intermédia com esse regime;

ii) – A falta de previsão normativa específica aplicável à cessão de créditos futuros;

iii) – As consequências da aplicação da teoria da imediação e da teoria da transmissão relativamente aos meios de defesa do devedor face ao cessionário, bem como da eficácia ou consumação da cessão de créditos futuros de acordo com a teoria da transmissão;

iv) – No caso concreto, a questão da aplicação da teoria da transmissão, da produção de eficácia da cessão de créditos futuros e da prevalência da penhora sobre a cessão.

      E finaliza, sintetizando a impugnação da decisão recorrida em sede de erro de interpretação e aplicação das normas constantes, entre outros, dos artigos 211.º, 399.º, 408.º, n.º 1 e 2, 585.º, 820.º a 822.º, 880.º, 895.º, 1058.º do CC, do princípio nemo plus iuris in alienum transfere potest quam ipse habet, bem como da doutrina da transmissão na cessão de créditos futuros, designadamente, quanto ao momento da sua consumação ou eficácia e do princípio da prioridade temporal ou preferência na afetação.

       Nessa base, pede a Recorrente que seja revogado o acórdão recorrido e dado provimento ao recurso, subentendendo-se com prolação de decisão a julgar a ação improcedente.

 8. A Recorrida apresentou contra-alegações, em que começou por invocar a extemporaneidade do recurso, mas pugnando, subsidiariamente, pela confirmação do julgado.


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II – Quanto à questão prévia sobre a tempestividade da revista


A Recorrida arguiu, a título de questão prévia, a extemporaneidade do recurso, alegando que:

 - tendo as partes sido notificadas em 12/07/2017, o prazo de interposição, incluindo os 3 dias de dilação e os 3 dias úteis de prorrogação com multa, terminara em 03/10/2017;

 - porém, a Recorrida só foi notificada dessa interposição mediante e-mail datado de 10/10/2017 e portanto uma semana após o termo daquele prazo.

O Exm.º Juiz Desembargador, 1.º Adjunto, em substituição da Exm.ª Relatora da Relação, limitou-se a exarar o despacho tabelar de admissão do recurso de fls. 472, datado de 17/11/2017, afirmando genericamente a sua tempestividade.

De todo o modo, compulsando os autos, constata-se que as partes foram notificadas do acórdão recorrido através de carta registada expedida em 12/07/2017 (fls. 345-346), quarta-feira, tendo-se assim por notificadas em 17/07/2017 (já em férias judiciais). Por sua vez, o requerimento de interposição do recurso e as respetivas alegações foram enviadas para o tribunal a quo por correio oficial em 02/10/2017, segunda-feira, dia da expedição, conforme fls. 348.

   Ora, considerando que o prazo de 30 dias para interposição de recurso se iniciou em 01/09/2017, o mesmo terminou no dia 30 desse mês (sábado), pelo que se transferiu para a segunda-feira seguinte, ou seja, para o dia 02/ 10/2017, precisamente na data em que o requerimento de interposição e respetivas alegações foram expedidas para o tribunal recorrido.

     Assim sendo, o recurso mostra-se tempestivo, nada mais obstando ao conhecimento do seu objeto.


III – Delimitação do objeto do recurso


Em conformidade com o teor das conclusões da Recorrente que acima se deixaram resumidas, a questão a resolver consiste em saber se a cessão de crédito futuro, pela sociedade BB, SGPI, S.A., a favor da A., em 15/02/2011, e peticionado por esta contra a R., agora como crédito atual e vencido, prevalece sobre a penhora do mesmo crédito futuro efetuada a favor do Fisco, já após aquela cessão, no âmbito de uma execução fiscal movida contra a mesma sociedade “BB, SGPI, S.A.”.

Essa questão implica, no entanto, abordar as problemáticas respeitantes:

i) – em primeira linha, ao momento em que opera a cessão de crédito e ao modo como se transfere o crédito cedido para a esfera do cessionário, em particular no referente ao crédito futuro;

ii) – em seguida, à prioridade a estabelecer entre a eficácia da referida cessão do crédito futuro e a eficácia da penhora do mesmo efetuada posteriormente àquela cessão.  


IV – Fundamentação


1. Factualidade como provada nas instâncias


Vem dada como provada nas instâncias a seguinte factualidade:

1.1. A autora (A.) celebrou com a sociedade denominada BB, SGPS, S.A., em 28/10/2003, um contrato designado pelos contraentes por contrato de abertura de crédito em conta-corrente de utilização simples, com o número PT 0035…2, até ao montante de € 750.000,00.

1.2. Por aditamento ao referido contrato, e em garantia das obrigações emergentes do mesmo para a BB, SGPS, S.A., em 11/01/ 2006, a sociedade BB, Sociedade de Gestão e Promoção Imobiliária, S.A., declarou ceder, sob condição suspensiva, a favor da A., a respetiva posição contratual no contrato designado de “Locação Financeira Imobiliária” com o n.º 507437, celebrado entre ela, BB, SGPI, S.A., e a Caixa Leasing e Factoring, em 6/12/2001.

1.3. Para reforço das garantias do contrato mencionado em 1.1, foi outorgado, em 15/02/2011, o terceiro aditamento àquele contrato, nos ter-mos do qual, a BB, SGPI, S.A., declarou ceder a favor da A. os créditos que para si emergiam dos contratos celebrados entre ela, BB, SGPI, e a sociedade “AA, Ld.ª”, ora R., em 01/04/2010, e incidentes sobre o prédio urbano sito em …., …., descrito na Conservatória do Registo Predial de Macedo de Cavaleiros sob o n.º 8…2/19…9 e inscrito na matriz sob o n.º 1…1, a saber:

a) - Do contrato de sublocação comercial (com preferência) e contrato-promessa e do contrato-promessa de compra e venda, com exceção das quantias até ao montante de € 271.119,11, que forem entregues em execução dos mesmos contratos, a título de sinal;

b) - Do contrato de compra e venda prometido celebrar no âmbito dos contratos referidos na alínea anterior, com exceção das quantias, até ao montante de € 271.119,11, que tenham sido entregues a título de sinal.

1.4. A “BB, SGPI, S.A.” e a ora A. notificaram a aqui R., por carta registada com aviso de receção, datada de 27/04/2011, da cessão, a favor da A., dos créditos emergentes dos mencionados contratos, referindo-lhe, expressamente, que o pagamento dos referidos créditos, aquando do respetivo vencimento, deveria ser efetuado diretamente à Caixa Geral de Depósitos, como consta do doc. de fls. 38/39;   

1.5. A R. rececionou a carta de notificação da cessão de créditos em 28/04/2011, mediante assinatura do aviso de recepção da mesma.

1.6. Em 24/07 e em 11/09 de 2012, a A. endereçou duas novas missivas à R., que são as constantes de fls. 41 e 44, que se dão por totalmente reproduzidas, e que a R. recebeu, o mais tardar, nos dias 03/08 e 26/09 do mesmo ano, e às quais a R. respondeu pelas missivas de fls. 42/43 e 45, respetivamente, que se dão por totalmente reproduzidas, e que a A. rececionou a 07/08 e a 01/10, respetivamente, do mesmo ano.

1.7. No dia 30/03/2012, a R. foi notificada, através do ofício 2…5 de 30/03/2012 da Direção de Finanças do Porto 1, no âmbito do processo de execução fiscal n.º 31…1 em que era executada BB – Sociedade de Gestão e Promoção Imobiliária, S.A., da penhora de créditos, atuais e futuros, sobre si detidos pela executada BB - Sociedade de Gestão e Promoção Imobiliária, S.A., identificando expressamente como verba única “crédito no montante de 578.880,89 €” e contendo ainda a advertência de que “não se desonerava pagando directamente ao credor”;

1.8. No dia 18/04/2012, no cartório notarial e perante a notária, BB Sociedade de Gestão e Promoção Imobiliária, S.A., representada pelo seu administrador, declarou que:

“por esta escritura, em nome da sociedade que representa, vende à sociedade AA, Ld.ª, ora R., livre de quaisquer ónus ou encargos pelo preço de € 850.000,00, o prédio urbano sito na …, …., inscrito na matriz predial sob o art.º 1…1.º e descrito na C. R. Predial de Macedo de Cavaleiros sob o n.º 8…2, e que “do referido preço a sociedade que representa já recebeu o montante de € 271.119,11. A parte restante do preço, ou seja € 578.880,89 será depositada no prazo de 30 dias, a contar da recepção da notificação do ofício abaixo referido, pela sociedade compradora, á ordem da Autoridade Tributária e Aduaneira, no âmbito do processo de execução fiscal n.º 31…1, nos termos da notificação da penhora de créditos, objeto do ofício 2335 de 30/03/2012”

e pela ora R., representada pelo seu gerente, foi declarado que aceita a presente venda nos termos exarados.

1.9. No dia 30/04/2012, a R. depositou à ordem do Serviço de Finanças do Porto 1 a referida quantia de € 578.880,89.


2. Facto não provado


Foi dado como não provado que:

- “BB – SGPI, S.A.”, comunicou à R. ter dado conhecimento à ora A. da ocorrência da transmissão e dos seu termos e que esta nisso havia consentido.


3. Do mérito da revista


3.1. Enquadramento preliminar


O objeto da presente revista inscreve-se no quadro de uma cessão de crédito futuro, acordada pela sociedade “BB, SGPI, S.A.” a favor da A. em 15/02/2011 e comunicada à aqui R., na qualidade de devedora, por carta registada, com aviso de receção, datada de 27/04/2011.

Trata-se de um crédito no valor de € 578.880,89 correspondente a parte do preço a pagar pela R. no âmbito de um contrato compra e venda de um prédio urbano prometido celebrar entre a mesma R. e a indicada sociedade “BB, SGPI, S.A.”.

Sucede que o referido crédito futuro foi objeto de penhora, em sede de execução fiscal promovida pelo Fisco contra essa sociedade, mediante notificação da R., na qualidade de devedora da ali executada, em 30/03/ 2012.

Subsequentemente, em 18/04/2012, foi outorgada a escritura de compra e venda prometida entre a sociedade “BB, SGPI, S.A.”, e a R., na sequência da qual e conforme o ali acordado, esta R. depositou à ordem do Serviço de Finanças do Porto 1, em cumprimento da mencionada penhora, a quantia de € 578.880,89 correspondente à parte do preço devida, razão pela qual aquela R. se recusa a pagar o mesmo crédito que depois lhe foi e, nesta ação, lhe vem exigido pela A. como crédito atual e já vencido desde a referida data de 18/04/2012.


Em síntese, a 1.ª instância considerou que o crédito futuro cedido não se transferia diretamente para a esfera jurídica da cessionária, aqui A., mas que só depois de ingressar na esfera da cedente é que se transferia para a esfera da cessionária. Porém, ao ingressar na esfera jurídica da cedente, teria sido, de imediato, “capturado” ou afetado pela penhora realizada a favor do Fisco, então sobre o mesmo pendente, obstando assim a que se transferisse para a esfera da cessionária. Daí que tenha julgado a ação improcedente.


Por sua vez, a Relação, diversamente, perfilhou o entendimento de que, embora se adotasse a tese da intermediação do crédito futuro cedido pela esfera da cedente, tal não importava, sem mais, a prioridade da penhora sobre a cessão, devendo antes atender-se à anterioridade desta em relação à efetivação da penhora, como no caso se verifica.

Nessa linha, considerou a Relação que a penhora a favor do Fisco não prevalecia sobre a cessão feita a favor da A., pelo que o pagamento feito pela R. indevidamente a terceiro, para mais conhecendo como então conhecia a existência da referida cessão, não a exonerava do pagamento desse crédito à cessionária ora A.. Daí que tenha condenado aquela R. a pagar a esta o referido crédito acrescido dos juros de mora.


Porém, vem a Recorrente questionar tal entendimento, o que convoca as já acima enunciadas problemáticas de saber:   

i) – em primeira linha, qual o momento em que a cessão de crédito se torna eficaz e qual o regime de transferência do direito cedido para a esfera do cessionário, em especial no respeitante a crédito futuro;

ii) – em seguida, qual a prioridade a estabelecer entre a eficácia da referida cessão de crédito futuro e a eficácia da penhora do mesmo efetuada posteriormente àquela cessão.  


3.2. Quanto ao momento em que a cessão de crédito se torna eficaz e ao regime de transferência do direito cedido para esfera jurídica do cessionário em especial no respeitante à cessão de crédito futuro


O instituto jurídico da cessão de créditos, consistente na transmissão singular inter vivos de direitos de crédito, encontra-se regulado nos 577.º a 588.º do CC.

Segundo a noção dada no indicado artigo 577.º, nas palavras de Antunes Varela[1], “a cessão de créditos pode assim ser definida como o contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito

Neste quadro, o transmitente toma a designação de cedente; o terceiro adquirente, de cessionário; o devedor do crédito transmitido, de devedor cedido (debitor cessus).

E como adverte o mesmo Autor, o termo cessão comporta duas aceções: tanto pode designar o contrato de cessão celebrado entre o cedente e o cessionário, como o efeito típico translativo da titularidade do crédito daí emergente.[2] 

Também como é sabido, o contrato de cessão de créditos, quanto à sua causa, traduz-se num negócio policausal ou polivalente, na medida em que pode desempenhar funções de diversos tipos negociais, designadamente as inerentes à compra e venda, à doação, à dação em cumprimento ou dação pro solvendo, ou até à garantia de outro crédito, como sucede no caso presente.

Quanto à natureza do direito por essa via cedível, compreende a generalidade dos direitos de crédito na livre disponibilidade do cedente, na malha ampla da liberdade contratual proclamada no artigo 405.º, n.º 1, do CC, ressalvadas as exceções proibitivas constantes da lei (v.g. nos artigos 579.º, 581.º e 2008.º do CC) ou as convencionadas pelas partes, como decorre do disposto na 2.ª parte do n.º 1 do artigo 577.º. E a cessão pode incidir tanto sobre créditos presentes, vencidos ou não, como sobre créditos futuros, desde que determináveis, nos mesmos termos em que é permitida a constituição de obrigações sobre coisas futuras (artigos 211.º e 399.º do CC)[3].


Relativamente ao momento em que se produz a eficácia translativa do contrato de cessão de créditos, a doutrina tem divergido entre duas orientações: uma, denominada teoria da eficácia translativa diferida, segundo a qual a cessão só se torna eficaz, quer em relação às partes, quer em relação ao devedor ou a terceiros, após a sua notificação ao devedor; outra, designada por teoria da eficácia translativa imediata, no sentido de que a cessão teria efeito translativo imediato, tanto entre as partes como em relação a terceiros.

Na doutrina nacional, Antunes Varela, convocando a orientação pre-conizada por Vaz Serra, na linha da solução consagrada no direito alemão, sustenta que, diversamente do anteriormente estabelecido no artigo 789.º do Código Civil de 1867, em virtude do princípio da consensualidade dos contratos estabelecida no artigo 408.º do CC atual se deve considerar o contrato de cessão de créditos submetido à eficácia imediata do negócio, quer em relação às partes quer no respeitante a terceiros, independentemente da notificação do devedor prescrita no artigo 583.º, n.º 1, do mesmo Código (CC de 1966), ficando a eficácia diferida apenas ressalvada quanto ao devedor e ao sucessivos adquirentes do crédito, respetivamente nos ter-mos específicos daquele artigo 583.º e do artigo 584.º[4].

Por seu lado, Menezes Leitão, começando por afirmar que “em relação a terceiros, a cessão produz efeitos independentemente de qualquer notificação”, ainda assim afasta-se da solução tida por mais rígida de Antunes Varela, no caso de dupla alienação do crédito, procurando conciliar o artigo 583.º, n.º 2, com o artigo 584.º, no sentido de considerar que da redação deste último normativo decorre “a prevalência de créditos, não com base na prioridade do negócio abstracto, mas na notificação que venha a ser realizada ao devedor ou na aceitação da cessão por ele emitida.” [5]         

Seja como for, no caso dos autos, esta controvérsia doutrinária mostra-se irrelevante, porquanto a notificação da cessão de crédito em referência à R. devedora ocorreu em 2011, enquanto que a realização da penhora do crédito futuro cedido, por parte do Fisco, só teve lugar posteriormente, em 30/03/2012.


No entanto, tratando-se de cessão e subsequente penhora de crédito futuro, importa agora determinar o modo como tal crédito se transfere da esfera jurídica do cedente para o cessionário.

Posto que o contrato de cessão do crédito celebrado entre a “BB, SGPI, S.A.”, e a aqui A. se encontrava concluído em data anterior à da realização da penhora do crédito assim cedido, por parte do Fisco, resta saber se, com a emergência desse crédito por efeito da celebração do contrato de compra e venda entre aquela sociedade e a ora R., em 18/04/ 2012, aquele crédito se transferira diretamente para a esfera jurídica da cessionária ou se ingressou primeiramente na esfera da cedente onde teria sido então afetado pela penhora sobre ele impendente.

Também quanto a este ponto, se verificam divergências doutrinárias, entre os que defendem a transferência imediata do crédito cedido para a esfera do cessionário e os que sustentam a tese da sua intermediação pela esfera do cedente, como se dá conta no acórdão recorrido e nas alegações da Recorrente.  

Ora, no respeitante ao crédito futuro propriamente dito, a doutrina tradicional vai no sentido da tese da intermediação pela esfera do cedente.

Mesmo Antunes Varela, que admite a transferência direta para a esfera do cessionário dos “créditos traduzidos em obrigações simples, a constituir só no futuro, mas tendo como base relações contratuais duradouras, já constituídas à data do contrato de cessão, considera que, nos casos de créditos futuros emergentes de relações contratuais ainda não constituídas no momento em que a cessão é efetuada, tais créditos nascerão primeiramente na titularidade do cedente, só depois se transferindo para o cessionário.[6]

Todavia, como bem se observa no acórdão recorrido, dessa transferência intermediada na esfera do cedente não resulta, sem mais, que a penhora em causa deva prevalecer sobre a cessão do crédito anteriormente cedido, já que aquela intermediação tanto se verifica quanto ao efeito da cessão como em relação ao efeito civil da penhora, havendo, pois, que estabelecer a prioridade recíproca de tais efeitos.


3.3. Quanto à prioridade a estabelecer entre a eficácia da cessão de crédito futuro e a eficácia da penhora do mesmo efetuada posteriormente


Neste capítulo, importa considerar aplicável ao contrato de cessão de crédito, por via extensiva ou mesmo analógica, os princípios da consensualidade negocial e da sua eficácia erga omnes consagrados no artigo 408.º em conjugação com o disposto no artigo 879.º, alínea a), 2.ª parte, do CC, em que se inclui, como efeito típico da compra e venda, a transmissão da titularidade do direito, disposição esta também aplicável aos demais contratos onerosos por via do artigo 939.º do mesmo Código.

Nem a natureza relativa do direito de crédito se afigura que obste a tal eficácia erga omnes, na medida em que esta eficácia translativa não versa sobre o conteúdo da prestação creditícia, mas sim sobre a própria titularidade do direito de crédito.

A este propósito, Tiago Ramalho[7], ao cotejar a alienação de direito real e a alienação de direito de crédito, observa que:  

«[…] ao autonomizar-se o direito à prestação, nasce uma situação dominial, que permitirá ao credor, à partida, dispor sobre o objecto da titularidade, o direito. É aqui que se revela claro como a titularidade traduz uma posição absoluta, no sentido de desligada, mas já não um direito com essa natureza: é relação de pertença de um direito a um sujeito, o credor, que passa a integrar estaticamente seu património. É este que se torna titular do poder de exigir ou não a prestação; é este que pode, assim o pretendendo, dispor sobre o direito. E, nisto, vislumbramos o ponto que procurávamos: se estamos perante posições jurídicas autónomas, releva a via que o ordenamento jurídico coloca ao dispor das partes para a sua transmissão – porque a força da vontade das partes, só por si, não releva em termos dominiais.

Assim chegamos ao artigo 408.º, que estatui a regra fundamental do nosso direito para a produção de efeitos reais sobre coisa determinada. É dizer: é a norma que dispõe sobre aqueles que são os direitos absolutos por excelência, em que a natureza absoluta não se deve somente à titularidade, mas advém do próprio conteúdo do direito, da posição do poder que este confere. Fixando a relação entre a vontade das partes e alteração da ordem dominial, deve ter-se por princípio fundamental para a determinação do sistema de transmissão de bens que integrem um dado património.»

     Em suma, a autonomização da titularidade do direito de crédito, enquanto objeto específico de cessão, permite conferir-lhe, nesse particular, natureza absoluta equiparável aos direitos reais e portanto com eficácia erga omnes do respetivo efeito patrimonial translativo, nos termos do artigo 408.º do CC.

Tratando-se, pois, de crédito futuro, a sua transferência da esfera do cedente para a do cessionário ocorrerá logo que o direito cedido ingresse na esfera daquele, nos termos do n.º 2 do indicado artigo 408.º, ou seja, transfere-se automática e imediatamente para a esfera do cessionário.


     Resta saber se a penhora que recai sobre o mesmo crédito futuro, mas realizada posteriormente à cessão, prevalece sobre tal efeito translativo.

      Ora, nos termos do artigo 822.º, n.º 1, do CC, a penhora confere ao exequente o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior, o que permite qualificar a penhora como um direito real de garantia, beneficiando da respetiva sequela.

      Significa isto que a penhora de um crédito futuro se torna também eficaz com a emergência desse crédito na esfera do cedente, com o que se gera então um concurso entre o efeito translativo do direito cedido para a esfera do cessionário e o efeito civil da penhora a favor do exequente, um e outro ocorridos em simultâneo.   

     Todavia, o cessionário do crédito cedido, como beneficiário que é da transmissão automática da cessão, não assume aqui a posição de credor com garantia sobre o bem cedido, já que, a verificar-se a eficácia automática da cessão, o direito cedido sai da esfera do cedente, não podendo ser alcançado pela penhora, pelo que não lhe é, nessa medida, aplicável o disposto na parte final do artigo 822.º, n.º 1, do CC.

     Coloca-se então é a questão de saber qual daquelas afetações concorrentes do direito de crédito deve prevalecer: se a afetação resultante da cessão do crédito ou se a afetação derivada da respetiva penhora.

     Segundo Vaz Serra[8], os credores do cedente “não adquirem, com a penhora, senão direito sobre os bens do executado e, portanto, se o executado não era já titular do crédito penhorado, a penhora não lhes atribui direitos em relação a esse crédito.” E considera o mesmo Autor esta solução como logicamente decorrente do princípio da eficácia erga omnes da cessão.

       E de modo mais incisivo no que concerne ao concurso entre cessão e penhora de crédito futuro, Tiago Ramalho[9], também citado no acórdão recorrido, considera que:

«[…] da mesma forma que (…) um penhor de créditos futuros só é oponível ao cessionário se constituído antes da cessão de créditos, a posição do cessionário não pode ser afetada por penhora posterior do exequente. Não se justifica um tratamento mais favorável do exequente do que o credor pignoratício.

Em ambos casos, trata-se de preferências na afetação de um mesmo bem. A garantia real, ou a penhora (caso se entenda ter outra natureza), só se constituiriam quando o bem estabilizasse no património do cedente, o que não se chega a verificar por força da primeira preferência de afetação. Defender o inverso é que exigiria mais esforços argumentativos: justificar a prevalência de uma preferência na afetação posterior sobre uma anterior.»

     E, como esclarece o mesmo Autor[10], nem esta solução se mostra sequer comprometida pelo disposto nos artigos 821.º e 1058.º do CC, que respeitam claramente a situações específicas, perfeitamente distintas do presente caso. 

Nessa linha de entendimento, a solução que se afigura mais condizente e harmoniosa com os princípios da consensualidade e da eficácia erga omnes consagrados no artigo 408.º do CC, aplicáveis à cessão de créditos, é a de resolver a concorrência de afetações do direito de crédito futuro, cedido e depois penhorado, em função da prioridade temporal ocorrida entre o contrato de cessão e o ato de realização da penhora.

      Nesta conformidade, verificando-se, no caso presente, que o contrato de cessão do crédito em causa celebrado entre a sociedade “BB, SGPI, S.A.” e a ora A., com subsequente notificação à R., foi anterior à realização da penhora por parte do Fisco, o efeito translativo daquela cessão deverá prevalecer sobre o efeito civil desta penhora, tal como bem se decidiu no acórdão recorrido.

     Assim, o pagamento indevidamente efetuado pela R. a terceiro – no caso, o Fisco exequente - não a exonera perante a cessionária, ora A., como decorre do preceituado no artigo 770.º do CC.    

     Termos em que improcedem as razões da Recorrente.


V – Decisão


Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se a decisão recorrida.

As custas do recurso ficam a cargo da Recorrente.  


Lisboa, 12 de abril de 2018


Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Maria da Graça Trigo

Maria Rosa Tching

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[1] In Das Obrigações em Geral, Vol. II, Almedina, 7.ª Edição, 1997, p. 295.
[2] Ob. cit. p. 296.
[3] A este propósito, vide Antunes Varela, ob. cit. 316.
[4] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, acima citada, 1997, pp. 312-315
[5] In Direito das Obrigações, Vol. II, Almedina, 12.ª Edição, 2018, pp. 28-31.
[6] Ob. cit. pp. 317-318.
[7] Artigo doutrinário intitulado A Cessão de Créditos Futuros e a Insolvência – A Posição do Cessionário na Insolvência do Cedente, publicado na Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano 9, 2012, pp. 481-503 (485-486).  
[8] In Estudo intitulado Cessão de Créditos ou de Outros Direitos, publicado no BMJ, número especial – 1995, pp 282.
[9] Artigo doutrinário intitulado A Cessão de Créditos Futuros e a Insolvência – A Posição do Cessionário na Insolvência do Cedente, publicado na Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano 9, 2012, pp. 490.  
[10] Artigo cit. pp. 491-493.