Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
354/14.1TBALM.L1.S2
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
REQUISITOS
IMEDIAÇÃO
PRESCRIÇÃO
TERCEIRO
INTERMEDIÁRIO
NEGÓCIO GRATUITO
DOAÇÃO
BURLA
PRINCÍPIO DA JUSTIÇA
BOA -FÉ
INÍCIO DA PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 11/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA / PRESCRIÇÃO.
Doutrina:
- Diogo Leite de Campos, A subsidiariedade da obrigação de restituir o enriquecimento, Livraria Almedina, Coimbra, 1974, p. 327;
- Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela (com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita), Código Civil anotado, Vol. I, Artigos 1.º a 761.º, p. 457;
- Francisco Manuel Pereira Coelho, Um problema de enriquecimento sem causa, RDES, Ano 27.º (1970), p. 351-356;
- João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, Vol. I, p. 493-496;
- Jorge Ribeiro de Faria, Direito das obrigações, Vol. I, p. 381-385;
- Júlio Gomes, O conceito de enriquecimento, o enriquecimento forçado e os vários paradigmas do enriquecimento sem causa, Universidade Católica, Porto, 1998, p. 433 ss. e 675 ss.;
- Luís Menezes Leitão, O enriquecimento sem causa no direito civil. Estudo dogmático sobre a viabilidade da configuração unitária do instituto, face à contraposição entre as diferentes categorias de enriquecimento sem causa, Centro de Estudos Fiscais, Lisboa, 1996, p. 627 ss. ; Direito das obrigações, Vol. I, Introdução. Da constituição das obrigações, 13.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2017, p. 425-426.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 482.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 03-05-2018, PROCESSO N.º 175/05.2TBALR.E1.S1;
- DE 31-01-2019, PROCESSO N.º 89/16.0T8VGS.P1.S2;
- DE 06-06-2019, PROCESSO N.º 593/14.5TBTNV.E2.S2;
- DE 24-10-2019, PROCESSO N.º 8319/09TBMAI.P1.S1.
Sumário :
I. — O requisito da imediação, ou da unidade do procedimento de enriquecimento,significa que, entre empobrecimentoe enriquecimento, não deve encontrar-se um facto intermédio ou, em todo o caso, não deve encontrar-se um património intermédio, de terceiro.

II.— O requisito da imediação não se aplica aos casos de alienação ou de disposição gratuita do objecto da obrigação de restituição.

III.— Excluídos os casos de alienação ou de disposição gratuita, o requisito da imediação, ou da unidade do procedimento de enriquecimento, exige uma ponderação global ou uma valoração global, orientada, p. ex., pelo comum sentimento de justiça.  

IV.Entre os elementos relevantes para averiguar se a atribução patrimonial indirecta choca, ou não, com o comum sentimento de justiça poderão estar, p. ex., regras relativas ao risco da prestação e do concurso de credores, através dos […] pontos de vista valorativos [da] manutenção das excepções […], [da] protecção contra as excepções de terceiro […] [e da] justa repartição do risco de insolvência” .

V.— O prazo de prescrição do art. 482.º do Código Civil não se inicia enquanto o empobrecido estiver, de boa fé, a utilizar outro meio ou fundamento que justifique a restituição — ainda que, a final, o utilize sem êxito.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. — RELATÓRIO


  1. AA, casado, …, residente na Rua …, Lote …-A, …, …, propôs acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra BB e mulher CC, residentes na Quinta …, Rua dos …, Lote …, … — …, e DD e mulher EE, residentes na Avenida …, n.° … - 2.º Esq. …, …, pedindo:

   I. — a condenação do 1.º e do 2.ª Réus a pagarem-lhe as quantias referidas nos arts. 27.º e 30.º da petição inicial no valor de 157.000,00 euros, acrescido de juros vencidos e vincendos;

  II. — a condenação do 3.º e do 4.º Réus a pagarem-lhe a quantia de 15.000,00 euros, referida no art. 27.° da petição inicial, acrescida de juros vencidos e vincendos;

  III. — a fixação de uma sanção compulsória a pagar pelos Réus por incumprimento da sentença, não inferior a € 1.000,00 por cada dia de atraso, tudo acrescido de juros de mora à taxa legal até integral pagamento.


 2. Os Réus contestaram a acção pugnando:

   I. — pela sua absolvição da instância por procedência da excepção do caso julgado;

    II. — pela sua absolvição do pedido, por improcedência da acção, por ausência de provas, ou por procedência da excepção de prescrição.


 3. O Autor respondeu às excepções, pugnando pela sua improcedência.


4. Foi realizada audiência prévia, em que se saneou o processo, julgando-se improcedente a excepção dilatória de caso julgado e relegando-se o conhecimento da excepção peremptória de prescrição para final, e em que se identificou o objecto do litigio, se enunciaram os temas de prova e se admitiram os meios de prova.


 5. A co-Ré EE faleceu entretanto, tendo sido habilitados seus herdeiros DD (3.º Réu) e FF.


 6. Foi realizada audiência final e, em seguida, foi proferida sentença que

     I. — condenou os 1.º e 2.º Réus BB e CC a pagarem ao Autor a quantia de 154.362,72 euros (cento e cinquenta e quatro mil, trezentos e sessenta e dois Euros e setenta e dois cêntimos, acrescida de juros moratórios, à taxa legal de juros civis desde 28 de Janeiro de 2018 até integral pagamento);

    II. — condenou os 3.º e 4.º Réus, DD e FF (enquanto herdeira de EE) a pagarem ao Autor a quantia

“que em posterior incidente de liquidação se apure como sendo o que FF entregou a DD e a EE e que estes utilizaram na compra do veículo automóvel de marca ...-...-SS até ao limite dos € 15.000,00 peticionados”,

acrescida de juros de mora calculados à taxa legal de juros civis, desde a data da sentença de liquidação até integral pagamento,

   III. — absolveu todos os Réus da parte restante do pedido formulado.


 7. O 1.º Réu BB interpôs recurso de apelação.


8. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:


1. A matéria de facto dada provada no número 15, da matéria dada como provada da douta decisão recorrida deverá ser alterada, atendendo à prova produzida e, designadamente ao teor dos depoimentos e documentos que a mesma decisão invoca como sua fundamentação, no sentido de nela se passar a ler:

No dia 4 de Fevereiro de 2006, não foi na presença do réu BB, que FF disse ao autor que tinha dado o dinheiro que este lhe havia entregado aos seus filhos BB e GG para os ajudar a pagar as casas

2. À "MATÉRIA DE FACTO PROVADA ", justamente pelas mesmas razões às acima indicadas, deverá ser aditada a seguinte factualidade, nela omissão, uma vez que ao teor dos depoimentos e documentos juntos aos autos, apontam inequivocamente nesse sentido:

— Os Réus não tinham conhecimento relativamente ao património de FF,

nem quanto à origem dos valores monetários que FF lhes abonava.

— FF dispôs dos valores monetários que recebeu de AA de forma gratuita a favor dos Réus.

— Sobre o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o registo n.° 4472 e inscrito na matriz predial n.° 5427, freguesia de …, Concelho de …, distrito de …, que pertence a BB recai um crédito à habitação, com hipoteca voluntária constituída a favor da Caixa HH, que é custeado pelos 1.° e 2.° Réus (cfr. extratos bancários de fls. dos autos).

— Os 1.° e 2.° Réus não efetuaram quaisquer amortizações extraordinárias de capital em nenhuma das operações de crédito à habitação de que são titulares (cfr. e-mail da gestora de conta e Declaração emitida pela Caixa HH de fls. dos autos)

3. Deverá a douta Sentença ser revogada, e substituído o arresto decisório confirmando que o A. Apelado tomou conhecimento dos fundamentos para exercer o seu direito no dia 04 de Fevereiro de 2006, pelo que o prazo de prescrição do exercício do aludido direito completou-se em 05 de Fevereiro de 2009, nos termos do artigo 482° do CC, na esteira dos Ac. do STJ, 18-4-02 (www.dgsi.pt): Ac. do STJ de 3-11-05 (www.dgsi.pt); Ac. do STJ, de 22-9-09, na CJSTJ, tomo III, pág. 71.

4. Deverá a douta Sentença ser revogada, e substituído o arresto decisório confirmando que o A. Apelado tinha outros meios de exercício do direito que se arroga e não os utilizou, pelo que “O princípio do enriquecimento sem causa é subsidiário, não funcionado quando a lei faculta ao empobrecido outros meios de se indemnizar ou ser restituído", entre outros, Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 22 de janeiro de 1998, CJ, ano XXIII, I, pág.262, concretamente:

— ação de anulação da doação de FF ao Réu Apelante (e outros co-Réus) dado ser manifesta a liberalidade, estando preenchido o animus donandi;

— ação declarativa de condenação do A. e ver reconhecido o seu direito a ser pago pelo crédito objeto da assunção de divida por parte do Réu Apelante, atento que o Réu Apelante 'No dia 4 de Fevereiro de 2006, na presença do réu BB, FF disse ao autor que tinha dado o dinheiro que este lhe havia entregado aos seus filhos BB e GG para os ajudar a pagar as casas, tendo o referido réu, quando confrontado pelo autor nesse momento, declarado que prometia que ele e o irmão iam vender as moradias que tinham para pagar ao demandante.

5. Deverá a douta Sentença ser revogada, e substituído o arresto decisório confirmando que não estão verificados os pressupostos do instituto do enriquecimento sem causa, dado que inexiste o carácter imediato da deslocação patrimonial, que postula que "(...) haja uma unidade do processo de enriquecimento, ou seja, uma deslocação patrimonial directa — no sentido de que entre o acto gerador do prejuízo do empobrecido e a vantagem conseguida pela outra parte não deve existir qualquer outro acto jurídico'''', na esteira dos Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18 de Outubro de 2005.

Sem conceder,

6. Deverá a douta Sentença ser revogada, e substituído o arresto decisório confirmando que não estão verificados os pressupostos do instituto do enriquecimento sem causa, pois que há doação de coisa móvel, se alguém, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente do dinheiro, em benefício de outrem. Manifestando-se a liberalidade, está preenchido o animus donandi, o que legitima a aquisição do dinheiro objeto das transferências relacionadas na fundamentação da matéria provada por parte do Réu Apelante, porque não podem deixar de ser entendidas como sendo realizadas à custa de bens que ingressaram no património de FF e como tal nestas circunstâncias, por efeito da doação, o levantamento do dinheiro tem uma causa justificativa, pelo que afasta, desde logo, por ausência de um dos requisitos, o alegado enriquecimento sem causa (Supremo Tribunal de Justiça, de 04-05-2017, proferido no processo 1695/12.8TBMTJ.L1.S1 ).

 9. O Autor não contra-alegou.


 10. O Tribunal da Relação de Lisboa julgou totalmente improcedente o recurso e confirmou a sentença recorrida.


11. O Réu BB interpôs recurso de revista.


12. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:


1. Está, in casu, verificado o requisito ou pressuposto de admissibilidade da revista excecional para o STJ, nos termos do n.º 3, do artigo 671.º, in fine e tal como configurado na alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º, do CPC, dado que no caso que é objeto dos presentes autos discute-se uma questão essencial com carácter decisivo para o julgamento do caso concreto: a de firmar entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal sobre os pressupostos do instituto do enriquecimento sem causa, concretamente:

— A obrigação de restituir/indemnizar fundada no instituto do enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa dos quatro seguintes requisitos:

a) a existência de um enriquecimento;

b) que ele careça de causa justificativa;

c) que o mesmo tenha sido obtido à custa do empobrecimento daquele que pede a restituição; e,

d) que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser restituído/indemnizado

— E, no que tange ao requisito previsto na al. c) – que o enriquecimento tenha sido obtido à custa do empobrecimento daquele que pede a restituição –, que a obrigação de restituir pressupõe ainda que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa daquele que se arroga ao direito à restituição, por forma a não dever haver de permeio, entre o ato gerador do prejuízo dele e a vantagem alcançada pelo enriquecido, um outro qualquer ato jurídico –, o que quer dizer que se exige o carácter imediato da deslocação patrimonial relevante

A relevância jurídica e notória complexidade na apreciação dos requisitos do instituto do enriquecimento sem causa, impõe-se e é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, porquanto sobre o tema concreto enunciado, nem a doutrina nem a jurisprudência nacionais assumem posições uniformes e consentâneas.

Estão igualmente verificados, como entende estarem, os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso, designadamente os relacionados com a natureza e conteúdo da decisão (artigo 671.º, do CPC), valor do processo ou da sucumbência (artigo 629.º, n.º 1 do CPC), legitimidade (artigo 631.º) e tempestividade (artigo 638.º).

2. Deverá ser concedida a revista, e substituído o arresto decisório ora recorrido, confirmando que não estão verificados os pressupostos do instituto do enriquecimento sem causa, dado que inexiste o carácter imediato da deslocação patrimonial, que postula que “(…) haja uma unidade do processo de enriquecimento, ou seja, uma deslocação patrimonial directa – no sentido de que entre o acto gerador do prejuízo do empobrecido e a vantagem conseguida pela outra parte não deve existir qualquer outro acto jurídico”, na esteira dos Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18 de Outubro de 2005.

Sem conceder,

3. Deverá ser concedida a revista, e substituído o arresto decisório ora recorrido confirmando que não estão verificados os pressupostos do instituto do enriquecimento sem causa, pois que há doação de coisa móvel, se alguém, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente do dinheiro, em benefício de outrem. Manifestando-se a liberalidade, está preenchido o animus donandi, o que legitima a aquisição por parte do Recorrente do dinheiro objeto das transferências relacionadas na fundamentação da matéria provada, porque não podem deixar de ser entendidas como sendo realizadas à custa de bens que ingressaram no património de FF e como tal “Nestas circunstâncias, por efeito da doação, o levantamento do dinheiro tem uma causa justificativa, pelo que afasta, desde logo, por ausência de um dos requisitos, o alegado enriquecimento sem causa” (Supremo Tribunal de Justiça, de 04-05-2017, proferido no processo 1695/12.8TBMTJ.L1.S1.S1)

4. Deverá ser concedida a revista, e substituído o arresto decisório ora recorrido confirmando que o A. tomou conhecimento dos fundamentos para exercer o seu direito no dia 04 de Fevereiro de 2006, pelo que o prazo de prescrição do exercício do aludido direito completou-se em 05 de Fevereiro de 2009, nos termos do artigo 482º do CC, na esteira dos Ac. do STJ, 18-4-02 (www.dgsi.pt); Ac. do STJ de 3-11-05 (www.dgsi.pt); Ac. do STJ, de 22-9-09, na CJSTJ, tomo III, pág. 71.

NOS TERMOS EXPOSTOS, E NOS MAIS DE DIREITO QUE V. EXªS DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ O PRESENTE RECURSO EXCECIONAL SER JULGADO PROVADO E PROCEDENTE E, CONSEQUENTEMENTE, SER CONCEDIDA A REVISTA AO ACÓRDAO SOB RECURSO, COM TODAS AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS.

Assim se fará JUSTIÇA!


 13. O Autor não contra-alegou.


 14. A Formação prevista no n.º 3 do art. 672.º do Código de Processo Civil admitiu a revista, ao abrigo da alínea a) do n.º 1.


 15. Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


 16. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos Recorrentes (cf. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), as questões a decidir, in casu, são as seguintes:


I. — se o requisito de que o enriquecimento tenha sido conseguido à custa de outrem do art. 473.º, n.º 1, do Código Civil deve ser interpretado no sentido de que o enriquecimento deve ter sido directa ou imediatamente obtido à custa de outrem;

II. — se está preenchido o requisito de que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de outrem (conclusão 2.ª das alegações de recurso);

III. — se está preenchido o requisito de que o enriquecimento tenha sido obtido sem causa justificativa (conclusão 3.ª das alegações de recurso);

IV. — se a obrigação de restituição dos Réus se extinguiu ou se modificou, por prescrição, por  ter decorrido o prazo de três anos do art. 482.º do Código Civil (conclusão 4.ª das alegações de recurso).


II. — FUNDAMENTAÇÃO


      OS FACTOS


 17. Os factos dados como provados no acórdão recorrido foram os seguintes:


1. Correu termos no … Juízo Criminal de …, sob o n° 137/06.2T…, um processo criminal com intervenção do Tribunal Colectivo no qual foi arguida e demandada civil FF e assistente o autor desta acção.

2. Por acórdão datado de 11 de Setembro de 2012, proferido nesses autos, a referida FF foi condenada como autora material de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelos art°s 217°, n° 1 e 218°, n°s 1 e 2, alíneas a) e c) do Código Penal, na pena de quatro anos e seis meses de prisão sob regime de prova e no pagamento ao autor, ali demandante civil, da quantia indemnizatória de Euros 417.675,00 acrescida juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, sobre o montante de Euros 412.675,00 desde a notificação do pedido civil e, desde a data do acórdão quanto à quantia de Euros 5.000,00.

3. Em recurso interposto pelo aqui autor foi proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 6 de Março de 2013, acórdão que revogou parcialmente aquele outro quanto à imposição à arguida de uma regra de conduta e, em sua substituição, decidiu suspender a execução da pena de prisão pelo período de quatro anos e seis meses, sujeita à condição de pagamento ao assistente da quantia de Euros 412.675,00 no prazo de um ano a contar da data do trânsito em julgado dessa decisão.

4. Nesses acórdãos foram considerados provados os seguintes factos:


“1. — A arguida conheceu o ofendido AA, …, quando iniciou tratamento no consultório deste, situado na Rua …. N°. …, R/C Dt°., …, no decurso do ano de 2002.

2. — A arguida passou a deslocar-se assiduamente ao consultório do ofendido AA, tendo-se iniciado uma estreita relação de confiança entre ambos, que permitiu à arguida tomar conhecimento aprofundado da personalidade do ofendido, nomeadamente, sobre o seu carácter e princípios éticos.

3. — Apercebendo-se que o ofendido AA era pessoa bem formada, humana e sensível às dificuldades e problemas alheios, a arguida decidiu actuar reiterada e planeada, com o objectivo de obter proventos económicos à sua custa, proventos esses a que sabia não ter direito.

4. — Tal plano passava por teatralizar que era herdeira de uma grande fortuna, por ter vivido com II que lhe havia deixado em testamento todos os seus bens, mas que não os tinha ainda recebido, receando ficar ainda mais doente caso interpusesse um processo em tribunal.

5. — Durante as consultas, e como a arguida se mostrava emocionada, referindo sempre ser herdeira de uma grande fortuna, AA perguntava-lhe por que razão não interpunha uma acção judicial para receber os bens a que aquela afirmava ter direito.

6. — Numa das consultas, a arguida disse a AA que havia instaurado uma acção judicial e que os advogados lhe disseram que a acção prosseguiria com o pagamento de despesas.

7. — Para concretizar o seu plano que previamente havia delineado, a arguida decidiu fazer crer ao ofendido AA que iria beneficiar da referida herança, da qual faziam parte o Hotel …, palacetes em …, três quintas em …, … e …, além de milhares de contos em dinheiro e acções, e se aquele lhe emprestasse dinheiro para efectuar o pagamento das referidas despesas judiciais, lhe pagaria o mesmo, acrescido de outros bens, logo que fosse proferida a respectiva sentença.

8. — Em execução do planeado, a arguida começou por fazer crer ao ofendido que era pessoa séria e de boas contas, queixando-se de problemas financeiros e referindo-lhe que vivia de uma escassa pensão, ficando-lhe a dever o valor das consultas, as quais, contudo, sempre fez questão de pagar.

9. — Dessa forma gerou a convicção no ofendido AA que era pessoa honesta e séria.

10. — A arguida fez crer ao ofendido, durante o período em que com este estava, que apenas poderia beneficiar da aludida herança caso fosse resolvido o processo judicial que se encontrava parado, por não dispor de meios económicos para suportar os preparos e taxas de justiças necessários ao seu andamento, alegando que estes eram de montante muito elevado devido ao valor avultado da herança.

11. — Numa das consultas, simulando inquietação e a título de confidência, a arguida desabafou com o ofendido AA que, caso conseguisse dinheiro para pagar os preparos e taxas de justiça do processo judicial em curso, o mesmo prosseguiria os seus trâmites e brevemente seria proferida sentença, considerando-a herdeira de todos os bens de II, que incluíam várias quintas, Hotel … e acções.

12. — Noutra consulta, em Novembro de 2003, a arguida começou a chorar e, aparentando encontrar-se perturbada, justificando que o prazo de pagamento estava quase a expirar, apelou ao sentimento do ofendido AA, pedindo que lhe emprestasse a quantia de €2 500,00, a qual lhe devolveria logo que fosse proferida a sentença.

13. — A arguida acabou por convencer o ofendido AA da verosimilhança da sua «história» e este, sensibilizado pela aparente aflição da arguida, no dia 22 de Novembro de 2003, entregou-lhe a quantia de €2.500,00, através de cheque sacado sobre o BANCO JJ, mediante a promessa de que a sentença estaria para breve e logo iria receber aquele valor.

14. — Depois, por idênticos motivos, a arguida pediu ao ofendido AA vários reforços monetários, alegando que o processo se arrastava por falta de comparência da parte contrária.

15. — O ofendido foi-lhe entregando novas quantias monetárias, infra descritas, mediante solicitação da arguida, que lhe justificava que já tinha sido proferida sentença que lhe era favorável, mas que o processo se encontrava em recurso, primeiro na Relação, depois no Supremo.

16. — Durante aquele período, a arguida prometeu ao ofendido AA, para além dos valores que este lhe adiantou, compensá-lo com uma quinta em … e a gestão do hotel … .

17. — Quando o ofendido lhe solicitava informações e documentação referente ao andamento do processo, a arguida alegava que tinha tudo entregue aos advogados, fazendo crer ao ofendido que estaria para breve o desfecho do processo.

18. — Acreditando nas palavras da arguida, o ofendido entregou-lhe os seguintes valores, que aquela fez seus:

— No dia 8 de Janeiro de 2004, através do cheque n°. 2829288, sacado sobre sua conta do BANCO JJ, a quantia de € 2.000,00;

— No dia 20 de Fevereiro de 2004, através do cheque n.º 2…2, sacado sobre sua conta do BANCO JJ, a quantia de € 3.500,00;

— No dia 2 de Abril de 2004, através do cheque n.º 9…8, sacado sobre sua conta do BANCO JJ, a quantia de €4.000,00;

— No dia 5 de Maio de 2004, através do cheque n.º 2…9, sacado sobre sua conta do BANCO JJ, a quantia de € 1.750,00 e, através do cheque n.º 2…5, sacado sobre consta do BANCO JJ, a quantia de € 425,00;

— No dia 28 de Maio de 2004, através de transferência bancária para conta da arguida, a quantia de € 1.500,00;

No dia 5 de Julho de 2004, através do cheque n.º 9…7, sacado sobre sua conta do BANCO JJ, a quantia de €5.000,00;

— No dia 7 de Julho de 2004, através de depósito bancário na conta da arguida, a quantia de € 3.000,00;

— No dia 17 de Agosto de 2004, através de depósito bancário na conta da arguida, a quantia de € 4.000,00;

— No dia 17 de Setembro de 2004, através de depósito bancário na conta da arguida, a quantia de € 4,000,00;

— No dia 24 de Setembro de 2004, através de depósito bancário na conta da arguida, a quantia de € 5.000,00;

— No dia 11 de Outubro de 2004, através de depósito bancário na conta da arguida, a quantia de € 2.500,00;

— No dia 25 de Outubro de 2004, através de transferência bancária para conta da arguida, a quantia de€ 1.000,00;

— No dia 11 de Novembro de 2004, através de depósito bancário na conta da arguida, a quantia de € 4.000,00;

— No dia 16 de Novembro de 2004, através de transferência bancária para conta da arguida, a quantia de €5.000,00;

— No dia 2 de Dezembro de 2004, através de depósito bancário na conta da arguida, a quantia de € 5.000,00;

— No dia 16 de Dezembro de 2004, através de depósito bancário na conta da arguida, a quantia de € 4.000,00;

— No dia 5 de Janeiro de 2005, através de depósito bancário na conta da arguida, a quantia de € 5.000,00;

— No dia 25 de Janeiro de 2005, através de depósito bancário na conta da arguida, a quantia de € 5.000,00;

— No dia 7 de Fevereiro de 2005, através de transferência bancária para a conta da arguida, quantia de € 5.000,00;

— No dia 24/02/2005, através de transferência bancária para a conta da arguida, a quantia de € 5.000,00;

— No dia 10 de Março de 2005, através de depósito bancário na conta da arguida, a quantia de € 5.000,00;

— No dia 23 de Março de 2005, através de transferência bancária para a conta da arguida, a quantia de €3.300,00, e através de depósito bancário para a mesma conta da arguida, a quantia de € 1.700,00, no total de € 5.000,00;

— No dia 28 de Março de 2005, através de transferências bancárias de € 1.000,00 ede€ 3.000,00 para a conta da arguida, da quantia total de € 4.000,00;

— No dia 12 de Abril de 2005, através de depósito bancário na conta da arguida, a quantia de € 15.000,00;

— No dia 3 de Maio de 2005, através de transferências bancárias para conta da arguida, a quantia de € 8.000,00;

— No dia 12 de Maio de 2005, a quantia de€ 10,000,00;

— No dia 7 de Junho de 2005, a quantia de € 12.000,00;

— No dia 21 de Junho de 2005, a quantia de € 5.000,00;

— No dia 6 de Julho de 2005, a quantia de € 5.000,00;

— No dia 25 de Julho de 2005, a quantia de € 15.000,00;

— No dia 8 de Agosto de 2005, a quantia de € 20,000,00;

— No dia 18 de Agosto de 2005, a quantia de €20.500,00;

— No dia 28 de Agosto de 2005, a quantia de €10.000,00;

— No dia 4 de Setembro de 2005, a quantia de € 5.000,00;

— No dia 16 de Setembro de 2005, a quantia de €37.500,00;

— No dia 23 de Setembro de 2005, a quantia de €37.500,00;

— No dia 12 de Outubro de 2005, a quantia de € 15.000,00;

— No dia 25 de Outubro de 2005, a quantia de € 15.000,00;

— No dia 11 de Novembro de 2005, a quantia de € 45,000,00;

— No dia 25 de Novembro de 2005, a quantia de € 8.000,00;

— Em Dezembro de 2005, a quantia de € 17.000,00;

— No dia 3 de Janeiro de 2006, por transferência bancária, a quantia de €20.000,00

19. — A arguida recebeu aquelas quantias, que fez suas, no montante total de € 412.675,00.

20. — O ofendido entregou-lhe todas aquelas quantias monetárias convencido que se destinavam a custear as despesas referentes à acção judicial que a arguida inicialmente lhe disse que corria termos em Almada e, posteriormente, no Tribunal da Relação e Supremo Tribunal, acreditando que lhe seriam pagas após o desfecho do processo.

21. — Determinado pela conduta da arguida e crendo na veracidade dos factos por esta relatados, o ofendido pediu vários empréstimos a amigos e familiares, no montante global de, pelo menos, €205 200,00, com vista a satisfazer as solicitações da arguida, tendo esta obtido conhecimento destes empréstimos solicitados pelo ofendido.

22. — Perante novas insistências da arguida para lhe entregar mais dinheiro, o ofendido veio a descobrir que tudo não passava de uma mentira e tinha sido vítima do "conto do vigário “.

23. — O ofendido sofreu, assim, prejuízo patrimonial no montante de €412.675,00, não tendo a arguida, até ao momento, restituído ao ofendido, nem total, nem parcelarmente, qualquer quantia.

24. — Como consequência da actuação da arguida, o ofendido encontra-se em situação económica difícil, vivendo do produto do seu trabalho e da ajuda dos seus familiares que lhe dão produtos alimentares para o seu sustento, da sua esposa e de uma filha maior com ele residente e que é doente, procurando pagar as dívidas que contraiu, no valor de, pelo menos, €205.200,00, que ainda não conseguiu liquidar na totalidade, referentes aos vários empréstimos que teve de contrair junto de amigos e familiares para satisfazer as solicitações da arguida, o que esta não ignorava.

25. — A arguida agiu com o propósito alcançado de induzir em erro, como induziu, o ofendido AA, levando-o a entregar-lhe sucessivamente as aludidas quantias monetárias, convencendo-o que se destinavam a custear as despesas da acção judicial na qual iria beneficiar de avultada herança e que não conseguia satisfazer de outro modo, simulando encontrar-se em grande aflição e narrando factos que sabia não corresponderem à verdade, levando-o ainda a acreditar que lhe iria pagar as mesmas logo que fosse proferida a sentença final, o que era mentira.

26. — A arguida quis e conseguiu enganar o ofendido, fazendo-o acreditar na veracidade daqueles factos, determinando-o a entregar-lhe as aludidas quantias monetárias, provocando-lhe um prejuízo patrimonial no montante de €412.675,00.

27. — A arguida estava igualmente ciente que o ofendido não dispunha de capacidade económico-financeira para satisfazer os seus pedidos e, ainda assim, sabendo que o mesmo se endividava junto de amigos e familiares para conseguir aquelas quantias monetárias, quis deixá-lo em situação financeira precária e difícil, o que conseguiu.

28. — Agiu ainda a arguida com o intuito de causar ao ofendido prejuízo patrimonial, consubstanciado na entrega indevida de montantes monetários, objectivo que logrou alcançar, bem como de obter para si, como obteve, um aumento do seu património, a que sabia não ter direito, à custa do património do ofendido.

28. — A arguida agiu, em todas as descritas circunstâncias, deforma deliberada livre e consciente, bem sabendo serem os seus comportamentos proibidos e punidos por lei.

29. — Aquando da prática dos factos, a arguida sofria de depressão recorrente, moderada, e evidenciava traços de uma personalidade deficitária, com traços dependentes e narcísicos, que se revelavam, designadamente, por imaturidade, idealização, recurso a fantasia e dramatização, tendência à auto-desculpabilização, baixo limiar à frustração e atitudes desajustadas, tais como manipulação, sedução e disposição para a impulsividade e dificuldades no juízo moral, dependentes tanto das pobres bases escolares como das suas características da personalidade, o que determinou que a capacidade da arguida para avaliar a ilicitude destes seus actos e de se determinar de acordo com essa avaliação, estivesse atenuada.

30. — Existe uma elevada probabilidade de repetição futura da prática, pela arguida, de factos da mesma espécie daqueles supra referidos, por os mesmos estarem relacionados com a estrutura da sua personalidade. (…)

Das condições económicas e pessoais da arguida provou-se que:

32. — A arguida, é divorciada e vive juntamente com os pais, em casa arrendada, pela qual paga a renda mensal de € 510,00.

33. — A arguida tem o 5.º ano de escolaridade e trabalhou como funcionária pública, encontrando-se reformada desde os 41 anos de idade.

34. — Recebe a reforma mensal no valor de € 510,00.

35. — Os pais da arguida encontram-se ambos reformados, ascendendo a € 580,00 o montante mensal da reforma da sua mãe e a €500,00 o montante mensal da reforma do seu pai.

36. — Não são conhecidos antecedentes criminais à arguida.”


5. O réu BB é filho de FF, sendo a ré CC casada com o mesmo.

6. Os réus DD e EE são os pais de FF.

7. Do dinheiro que o autor lhe entregou, referido na fundamentação de facto reproduzida no n° 4, FF entregou aos réus BB e CC a quantia de Euros 35.000,00 (trinta e cinco mil euros) que estes utilizaram para comprar o automóvel referido no n° 11 (art° Io dos temas da prova).

8. Do mesmo dinheiro, a referida FF entregou ao réu DD e à ex-ré EE, quantia concreta não apurada com a qual estes compraram o automóvel referido no n° 12 (art° Io dos temas da prova).

9. Com o mesmo dinheiro, FF efectuou, a partir da sua conta bancária na Caixa HH, S.A com o n° 03…0, para a conta dos réus BB e CC na mesma instituição, com o n.° 00…0, as seguintes transferências bancárias:

— Em 16/05/2005 €1.500.00;

— Em 17/05/2005 €12.500.00

— Em 07/06/2005 €650.00

— Em 27/07/2005 €8.300.00

— Em 09/08/2005 €16.500.00

— Em 02/09/2005 €2.700.00

— Em 16/09/2005 €30.000.00

— Em 20/09/2005 €2.000.00

— Em 25/09/2005 €2.000.00

— Em 27/09/2005 €2.500.00

— Em 13/10/2005 €5.000.00

— Em 24/10/2005 €2.000.00

— Em 23/11/2005 €5.000.00

— Em 19/12/2005 €2.000.00

— Em 20/12/2005 €1.000.00

— Em 21/12/2005 €1.000.00 (art. 2.º dos temas da prova).

10. Ainda com o mesmo dinheiro, a referida FF depositou na conta dos réus BB e CC na Caixa HH, S.A com o n° 00…0, a quantia de €17.212.72 em numerário no dia 30/04/2004 e no dia 09/06/2005 a quantia de €7.500,00 (art. 3.º dos temas da prova).

11. Em 19 de Setembro de 2005 foi registada a favor de BB a propriedade de um veículo automóvel, de marca "BMW", com a matrícula n° ...-AD-....

12. Em 17 de Janeiro de 2006 foi registada a favor de DD a propriedade de um veículo automóvel, de marca Mitsubishi, com a matrícula ...-...-SS.

13. A data dos factos referidos nos n°s 7 a 10 FF tinha como único rendimento uma pensão de invalidez no valor de cerca de Euros 500 mensais, sobre a qual incidia uma penhora (art. 6.º dos temas da prova).

14. Durante o segundo semestre de 2005 e até Maio de 2006 o réu BB esteve desempregado e não auferiu qualquer rendimento (art. 7.º dos temas da prova).

15. No dia 4 de Fevereiro de 2006, na presença do réu BB, FF disse ao autor que tinha dado o dinheiro que este lhe havia entregado aos seus filhos BB e GG para os ajudar a pagar as casas, tendo o referido réu, quando confrontado pelo autor nesse momento, declarado que prometia que ele e o irmão iam vender as moradias que tinham para pagar ao demandante.

16. No dia 12 de Março de 2010 o autor, representado por advogado, deu entrada nos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal de … à participação criminal certificada de fls. 413 a 429, que aqui se dá por reproduzida, na qual concluiu pela existência de indícios suficientes do envolvimento e comparticipação dos réus BB e DD no crime de burla qualificada praticado por FF.

17. Essa participação deu origem ao inquérito criminal com o n° 801/110.1T… que correu termos nos serviços do Ministério Público de … e que culminou com o despacho de arquivamento certificado de fls. 421 a 426, do qual o autor foi notificado.

18. O réu BB intentou no dia 25 de Junho de 1999, junto do Tribunal da Comarca de …, uma acção para inabilitação por anomalia psíquica em que figura como requerida a sua mãe FF, a qual correu termos sob o n° 419/1999 junto do … Juízo Cível.

19. Na petição inicia] dessa acção o mesmo indicou-se a si para integrar o conselho de família e ao co-réu DD para exercer a curatela (art. 34° da petição inicial).

20. Essa acção foi remetida à conta por falta de impulso processual, dado que o autor da mesma nada mais requereu (idem).


 18. Em contrapartida, o acórdão recorrido deu como não provados, “nomeadamente”, os factos seguintes:

a) Que FF tivesse comprado aos réus BB e CC, pelo preço de Euros 35.000,00 (trinta e cinco mil euros), o automóvel referido no n° 11 dos factos provados (art. 1.º dos temas da prova).

b) Que a mesma tivesse comprado aos réus DD e EE o automóvel referido no n° 12 dos mesmos factos, pelo preço de Euros 15.000,00 (quinze mil euros) (art. 1.º dos temas da prova).

c) Que os réus soubessem que FF, com base nos seus rendimentos, não podia ter o dinheiro necessário aos dispêndios atrás referidos e tivessem aceitado os automóveis e as transferências bancárias sem indagar da proveniência desse dinheiro (art. 4.º dos temas da prova).

d) Que os réus BB e CC soubessem que o dinheiro das transferências bancárias referidas no n° 9 dos factos provados não pertencia a FF (art. 5.º dos temas da prova).

e) Que durante todo o período dos factos referidos nos n°s 7 a 10 da matéria provada o réu BB se encontrasse desempregado e não auferisse qualquer rendimento (art. 7.º dos temas da prova).


            O DIREITO


  19. A primeira questão suscitada pelo Réu, agora Recorrente, consiste em averiguar se o requisito de que o enriquecimento tenha sido conseguido à custa de outrem do art. 473.º, n.º 1, do Código Civil deve ser interpretado no sentido de que o enriquecimento deve ter sido directa ou imediatamente obtido à custa de outrem.


  20. O requisito da imediação [1], ou da unidade do procedimento de enriquecimento [2], significa que, entre empobrecimento e enriquecimento, não deve encontrar-se um facto intermédio [3] ou, em todo o caso, não deve encontrar-se um património intermédio, de terceiro [4].

  Exigir-se que a atribuição patrimonial seja directa ou imediata, ou que o procedimento por que se concretiza a atribuição patrimonial seja um procedimento unitário, — exigir-se que entre o empobrecimento e o enriquecimento não haja nenhum facto intermédio, ou que entre o património empobrecido e o património enriquecido não haja nenhum património intermédio. — é, em todo o caso, algo de controvertido [5]. Em favor do requisito da imediação, pronunciaram-se os Professores Antunes Varela [6], Francisco Manuel Pereira Coelho [7], Jorge Ribeiro de Faria [8] e Diogo Leite de Campos [9] e, em desfavor do requisito, pronunciou-se, p. ex., o Professor Luís Menezes Leitão [10].

     Constatando a controvérsia, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Maio de 2006, proferido no processo n.º 06A825, diz expressamente que “[n]ão é possível inferir com segurança das normas que regulam o instituto do enriquecimento sem causa — arts. 473.º a 482.º do Código Civil — que a lei faça da imediação um requisito geral desta figura” [11].


  21. Entre os dois pólos, — entre os dois pólos extremos, — a doutrina e a jurisprudência portuguesas tendem a abandonar os critérios mais simples, de aplicação automática ou quase-automática, como sejam a regra da ausência de um facto intermédio ou a regra da ausência de um património intermédio, em favor de critérios mais complexos [12], por que se exige uma ponderação global [13] ou uma valoração global [14], orientada, p. ex., pelo comum sentimento de justiça [15].

    O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Janeiro de 1998, proferido no processo n.º 97A354, enunciou os critérios, mais complexos, aplicáveis aos casos em que as atribuições patrimoniais sejam só indirectas ou mediatas em termos de uma regra e de uma excepção.

     Em primeiro lugar, enunciou a regra — o enriquecimento há-de ser directa ou imediatamente obtido à custa do empobrecido [16] — e, em segundo lugar, a excepção — exceptua-se os casos em que o requisito da imediação conflitue com o comum sentimento de justiça [17].

    Os dois critérios foram aplicados, p. ex., pelos acórdãos de 30 de Maio de 2006 — processo n.º 06A825 —, de 16 de Novembro de 2006 — processo n.º 06B3568 —, de 12 de Fevereiro de 2009 — processo n.º 08A3714 —, de 31 de Janeiro de 2019 — processo n.º 89/16.0T8VGS.P1.S2 —, e de 6 de Junho de 2019 — processo n.º 593/14.5TBTNV.E2.S2.

  O acórdão de 16 de Novembro de 2006 afirma que, ainda que a regra seja a imediação, “sempre se deve admitir que uma atribuição patrimonial indirecta deve fundamentar a restituição do injustamente locupletado, sob pena da exigência da deslocação patrimonial directa se mostrar excessiva, conduzindo a soluções que chocam o comum sentimento de justiça” e o acórdão de 6 de Junho de 2019 confirma, em termos em quase tudo semelhantes, que

“a atribuição patrimonial indirecta pode justificar a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa, de modo a evitar casos que, por falta da imediação, ficariam juridicamente desprotegidos e chocariam o ‘comum sentimento de justiça’” [18].


  O sistema esboçado corresponde no mínimo a uma recompreensão [19] e, no máximo, a uma superação do requisito de que o enriquecimento seja directo ou imediato  [20].


  22. Em todo o caso, o art. 481.º do Código Civil é claro e, ainda que o art. 481.º não fosse claro, sempre a doutrina e a jurisprudência estariam de acordo em que o requisito da imediação, ou da unidade do procedimento do enriquecimento, não se aplica aos casos de alienação ou de disposição gratuita do objecto da obrigação de restituição. O terceiro fica sempre obrigado a restituir na hipótese de aquisição gratuita [21] — e fica sempre obrigado a restituir pela razão de que “uma liberalidade não deve ser mantida em detrimento de outrem” [22].

    Os factos dados como provados sob os n.ºs 7, 8, 9, 10 e 14 depõem no sentido de que FF alienou gratuitamente, ou dispôs gratuitamente, das quantias que deveria restituir. O Réu, agora Recorrente, admite-o explicitamente, ao dizer que o enriquecimento tinha uma causa justificativa e que a causa justificativa do enriquecimento foi um contrato de doação. Em consequência, o requisito da imediação, ou da unidade do procedimento de enriquecimento, nunca se aplicaria (nunca poderia aplicar-se) ao caso concreto.


  23. A segunda questão — estreitamente relacionada com a primeira — consiste em averiguar se está preenchido o requisito de que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de outrem.


 24. O Réu, agora Recorrente, alega que “[d]everá ser concedida a revista, e substituído o arresto decisório ora recorrido, confirmando que não estão verificados os pressupostos do instituto do enriquecimento sem causa, dado que inexiste o carácter imediato da deslocação patrimonial, que postula que ‘(…) haja uma unidade do processo de enriquecimento, ou seja, uma deslocação patrimonial directa – no sentido de que entre o acto gerador do prejuízo do empobrecido e a vantagem conseguida pela outra parte não deve existir qualquer outro acto jurídico’” (conclusão 2.ª das alegações de recurso).


 25. O argumento não procede — o facto de o adquirente ser só o sujeito mediatamente enriquecido não é, só por si, suficiente para que se sustente que não tem a obrigação de restituir aquilo que recebeu. Em primeiro lugar, o art. 481.º do Código Civil determina que, no caso de alienação gratuita do objecto da obrigação de restituição, o sujeito indirecta ou mediatamente enriquecido fica obrigado em lugar do sujeito directa ou imediatamente enriquecido; em segundo lugar, ainda que o art. 481.º do Código Civil não o determinasse, sempre o requisito da imediação, ou da unidade do procedimento do enriquecimento, deveria atender a uma ponderação global ou a uma valoração global dos bens e dos interesses relevantes nas circunstâncias do caso concreto.

    Os factos provados são suficientes para que se conclua que seria contrário ao comum sentimento de justiça que o empobrecimento do Autor AA e que o enriquecimento do Réu BB se consolidassem.

    Embora conste dos factos não provados “que os réus soubessem que FF, com base nos seus rendimentos, não podia ter o dinheiro necessário aos dispêndios atrás referidos” — alínea c) —, que os réus soubessem “que o dinheiro das transferências bancárias referidas no n° 9 dos factos provados não pertencia a FF” — alínea d) — ou que “os réus tivessem aceitado os automóveis e as transferências bancárias sem indagar da proveniência desse dinheiro” — alínea c) —, deve chamar-se a atenção, designadamente, para a gravidade dos factos ilícitos, para a proximidade entre os sujeitos directa e indirecta, imediata e mediatamente enriquecidos e para a promessa do Réu, agora Recorrente:

— FF foi condenada como autora material de um crime de burla, e de burla qualificada, na pena de quatro anos e seis meses de prisão [23]; — BB é filho de FF [24]; — ficou provado nos acórdãos proferidos em processo criminal que FF tinha o rendimento mensal de 510 euros [n.º 33], sobre o qual incidia uma penhora [25], e que o rendimento mensal, de 510 euros, correspondia sensivelmente às despesas e encargos mensais com a renda de casa [n.º 33]; — ficou provado nos acórdãos proferidos em processo criminal que, “[c]omo consequência da actuação da arguida, [AA se encontra] em situação económica difícil, […] procurando pagar as dívidas que contraiu, no valor de, pelo menos, €205.200,00, que ainda não conseguiu liquidar na totalidade, referentes aos vários empréstimos que teve de contrair junto de amigos e familiares para satisfazer as solicitações da arguida” [n.º 24]; — ficou provado que BB “declar[ou] que prometia que ele e o irmão iam vender as moradias que tinham para pagar ao demandante” (facto provado sob o n.º 18).

   Seria contrário ao comum sentimento de justiça que se admitisse a consolidação de um enriquecimento e de um empobrecimento alcançados através da prática de factos ilícitos extraordinariamente graves; que se admitisse que o Réu, agora Recorrente, pudesse ficar com aquilo que chegou ao seu património, deixando de honrar a sua palavra; ou que se admitisse que o Autor, agora Recorrido, devesse continuar a honrar a sua palavra, pagando a terceiros, amigos e familiares, as quantias que, directa ou mediatamente, chegaram ao património do Réu.  


 26. A terceira questão consiste em averiguar se está preenchido o requisito de que o enriquecimento tenha sido obtido sem causa justificativa.


27. O Réu, agora Recorrente, alega que “deverá ser concedida a revista, e substituído o aresto decisório ora recorrido confirmando que não estão verificados os pressupostos do instituto do enriquecimento sem causa, pois que há doação de coisa móvel […]. Manifestando-se a liberalidade, está preenchido o animus donandi, o que legitima a aquisição por parte do Recorrente do dinheiro objeto das transferências relacionadas na fundamentação da matéria provada, porque não podem deixar de ser entendidas como sendo realizadas à custa de bens que ingressaram no património de FF e como tal ‘[n]estas circunstâncias, por efeito da doação, o levantamento do dinheiro tem uma causa justificativa, pelo que afasta, desde logo, por ausência de um dos requisitos, o alegado enriquecimento sem causa’” (conclusão 3.ª das alegações de recurso).


 28. O argumento não procede — o facto de o adquirente, de o sujeito mediatamente enriquecido, ter recebido uma doação, e de a doação ser válida e eficaz, não é por si só suficiente para que se sustente que não tem a obrigação de restituir aquilo que recebeu.

    O art. 481.º do Código Civil, ao determinar explicitamente que, no caso de alienação gratuita, o sujeito mediatamente enriquecido fica obrigado à restituição, está a determinar implicitamente que a causa justificativa da alienação gratuita — ou seja, que a conclusão de um acto gratuito, ou de um negócio gratuito, válido e eficaz — seja de todo em todo irrelevante.

     O critério enunciado está de acordo com o texto e, sobretudo, está de acordo com o pensamento subjacente ao texto do art. 481.º do Código Civil. Se o adquirente, — se o sujeito mediatamente enriquecido, — pudesse opor-se ao pedido de restituição, alegando e provando que o enriquecimento tinha causa justificativa e que a causa justificativa do enriquecimento era um acto gratuito ou um negócio gratuito, o art. 481.º não se aplicaria nunca ou quase nunca [26].


 29. Independentemente do art. 481.º do Código Civil, o requisito da ausência de causa justificativa, ou da falta de causa justificativa, remete-nos para o conceito de causa, ou de causa justificativa, e o conceito de causa justificativa é um conceito indeterminado [27] — remete-nos para os “critérios legais definidores de uma correcta ordem ou ordenação dos bens” [28].

     Ora os critérios legais definidores de uma correcta ordem ou de uma correcta ordenação dos bens são todos os princípios e todas as regras do ordenamento ou do sistema jurídico — e, como os critérios legais definidores de uma correcta ordenação dos bens são todos os princípios e todas as regras do ordenamento ou do sistema jurídico, o requisito da falta de causa justificativa significa, em última análise, “uma remissão para o resto do ordenamento” [29].

      O Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado, constantemente, que

“[a] noção de falta de causa do enriquecimento é… muito controvertida e difícil de definir, inexistindo uma fórmula unitária que sirva de critério para a determinação exaustiva das hipóteses em que o enriquecimento deve considerar-se privado de justa causa” [30].


   Entre os pontos mais ou menos consensuais estão o de que a ausência de causa justificativa põe um problema de interpretação e de integração da lei [31] e o de que, através da interpretação e da integração da lei, há-de determinar-se, “em cada caso concreto, ‘se o ordenamento jurídico […] acha ou não legítimo que o beneficiado […] conserve [o enriquecimento]” [32].

    Como se diz, p. ex., nos acórdãos de 28 de Junho de 2011 — processo n.º 3189/08.7TVLSB.L1.S1 —, de 29 de Abril de 2014 — processo n.º 246/12.9T2AND.C1.S1 — ou de 3 de Maio de 2018 — processo n.º 175/05.2TBALR.E1.S1 —,

“[o] eixo directriz da definição da ausência de causa justificativa da deslocação patrimonial tem a ver com a correcta ordenação jurídica dos bens aceita pelo sistema jurídico, de modo que, de acordo com a mesma, se o enriquecimento deve pertencer a outra pessoa, carece de causa justificativa”.

 Ora o enriquecimento alcançado através da prática de factos ilícitos extraordinariamente graves, punidos como crime de burla qualificada, e transmitido para o Réu, agora Recorrente, BB através da entrega de dinheiro, de depósitos ou de transferências, está em conflito com a correcta ordem ou ordenação jurídica dos bens.


 30. Finalmente, a quarta questão consiste em determinar se a obrigação de restituição dos Réus se extinguiu ou se modificou, por prescrição, por ter decorrido o prazo de três anos do art. 482.º do Código Civil.


  31. O Réu, agora Recorrente, alega que “o [Autor, agora Recorrido,] tomou conhecimento dos fundamentos para exercer o seu direito no dia 04 de Fevereiro de 2006, pelo que o prazo de prescrição do exercício do aludido direito completou-se em 05 de Fevereiro de 2009, nos termos do artigo 482.º do [Código Civil]” (conclusão 4.ª das alegações de recurso).


  32. O facto alegado pelo Réu, agora Recorrente, para sustentar que o Autor, agora Recorrido, tinha tomado conhecimento do direito de restituição contra o Réu BB em 4 de Fevereiro de 2006 é o facto dado como provado sob o n.º 15, cujo teor é o seguinte:


15. No dia 4 de Fevereiro de 2006, na presença do réu BB, FF disse ao autor que tinha dado o dinheiro que este lhe havia entregado aos seus filhos BB e GG para os ajudar a pagar as casas, tendo o referido réu, quando confrontado pelo autor nesse momento, declarado que prometia que ele e o irmão iam vender as moradias que tinham para pagar ao demandante.


  33. As instâncias concordaram em que o facto provado sob o n.º 15 não era suficiente para sustentar que o Autor, agora Recorrido, AA tivesse tido conhecimento dos factos relevantes para efeito do art. 482.º do Código Civil em 4 de Fevereiro de 2006.

    Em primeiro lugar, não era suficiente para que sustentar que o Autor, agora Recorrido, tivesse tido conhecimento do seu direito à restituição — a 1.ª instância considera que “os factos que trazem o autor a esta acção [não] são aqueles que a referida ré afirmou no dia 4 de Fevereiro de 2006” e a Relação confirma-o, entendendo que o Autor “não tomou conhecimento de factos essenciais como sejam o montante monetário que constituiu a deslocação patrimonial para os enriquecidos, pois que o mesmo não correspondeu à totalidade da quantia monetária desembolsada pelo Apelado”. Em segundo lugar, o facto provado sob o n.º 15 não era suficiente para sustentar que o Autor, agora Recorrido, tivesse tido conhecimento das pessoas responsáveis, ou seja, das pessoas com o dever de restituição das quantias entregues — a 1.ª instância considera que “os responsáveis pela restituição não são as pessoas que [FF] identificou” no dia 4 de Fevereiro de 2006 e a Relação confirma-o, entendendo que “o Apelado não ficou conhecedor das pessoas dos responsáveis (enriquecidos), dado que dos quatro demandados nesta causa apenas o nome do Apelado foi nessa data referido pela Co-Ré habilitada FF”.


  34. Os argumentos deduzidos nas instâncias só podem ser reforçados pela relação entre o prazo de prescrição e o princípio da subsidiaridade do art. 474.º do Código Civil [33].

    Como decorre, p. ex., dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 1999 — processo n.º 98B1201 —, de 26 de Fevereiro de 2004 — processo n.º 03B3798 —, de 2 de Dezembro de 2004 — processo n.º 04B3828 — e de 23 de Novembro de 2011 — processo n.º 754/10.6TBMTA.L1.S1 —,

“[o] prazo de prescrição do direito à restituição por enriquecimento sem causa não se inicia enquanto o empobrecido tiver à sua disposição outro meio ou fundamento que justifiquem a restituição” [34].


    Os termos “enquanto o empobrecido tiver à sua disposição outro meio ou fundamento que justifiquem a restituição” significam, p. ex., enquanto o empobrecido estiver, de boa fé, a utilizar outro meio ou fundamento que justifique a restituição — ainda que, a final, o utilize sem êxito [35].

 

 35. O Autor, agora Recorrido, utilizou, e utilizou de boa fé, dois meios para ser restituído: em 2006, apresentou uma participação criminal contra FF e, no quadro do processo criminal, em que foi assistente, deduziu pedido de indemnização cível (factos provados sob os n.ºs 2 e 3) e, em 2010, apresentou uma participação criminal contra BB e DD (factos provados sob os n.ºs 16 e 17).

    A 1.ª instância pronunciou-se no sentido de que o prazo de prescrição do art. 482.º do Código Civil só começaria a contar-se do arquivamento da participação criminal contra o Réu, agora Recorrente, BB; a Relação pronunciou-se, pela negativa, no sentido de que o prazo não podia começar a contar-se de Fevereiro de 2006 — não se pronunciou, pela positiva, no sentido de que o prazo devesse começar a contar-se de alguma data.

  Os factos provados sob os n.ºs 2 e 3, em ligação com o princípio de que o prazo de prescrição não começa a contar-se enquanto o empobrecido estiver, de boa fé, a utilizar outro meio de ser indemnizado ou restituído, sugerem que o prazo de prescrição não começa a correr enquanto não terminar o prazo de um ano a contar do trânsito em julgado da decisão de Março de 2013.

    FF teve sempre conhecimento da falta de causa do seu enriquecimento e, em consequência, a transmissão do objecto da obrigação de restituição teve lugar depois da verificação de um dos factos previstos no art. 480.º, alínea b), do Código Civil.

    O problema põe-se no quadro do art. 481.º, n.º 2, do Código Civil — e, dentro do quadro do art. 481.º, n.º 2, distingue-se consoante o terceiro esteja de boa ou de má fé.

    Estando provada a má fé do sujeito directa ou imediatamente enriquecido, de FF, não está provada a má fé do sujeito só indirecta ou só mediatamente enriquecido, no caso de BB — a sua boa fé resulta dos factos não provados ou, em todo o caso, a sua má fé não resulta dos factos provados [36].

    A boa fé do sujeito indirecta ou mediatamente enriquecido faz com que seja sustentável que a obrigação de restituição do terceiro “[deva] ser subordinada à impossibilidade prática de exercitar a acção de enriquecimento contra o alienante, em virtude da insolvência deste” [37] [38].

   Ora FF foi condenada como autora material de um crime de burla qualificada, na pena de quatro anos e seis meses de prisão, cuja execução foi suspensa, “sujeita à condição de pagamento ao assistente da quantia de Euros 412.675,00 no prazo de um ano a contar da data do trânsito em julgado” (factos provados sob os n.ºs 2 e 3).

    Entre 2006 e 2014, o Autor, agora Recorrido, AA utilizou, de boa fé, um meio alternativo de ser indemnizado ou restituído — o pedido de indemnização deduzido contra FF —; só lhe era exigível que tivesse a certeza de que o meio alternativo de ser indemnizado ou restituído não alcançaria o fim pretendido depois de decorrido o prazo de um ano a contar do trânsito em julgado da decisão proferida em Março de 2013, sem que FF cumprisse a obrigação de que dependia a suspensão da execução da pena de quatro anos e seis meses de prisão; e só lhe era exigível que deduzisse o pedido de restituição contra o Réu, agora Recorrente, BB depois de ter a certeza de que o meio alternativo não alcançaria o fim pretendido.


 III. — DECISÃO


   Face ao exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido.

    Custas pelo Recorrente BB.

 

Lisboa, 7 de Novembro de 2019


Nuno Manuel Pinto Oliveira (Relator)

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

Olindo dos Santos Geraldes

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[1] Expressão preferida por Fernando Andrade Pires de Lima / João de Matos Antunes Varela (com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita), anotação ao art. 473.º, in: Código Civil anotado, vol. I — Artigos 1.º a 761.º, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, págs. 454-458 (457); João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. I, 10.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2000, págs. 493-496; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das obrigações, 10.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2006, págs. 496-499; ou António Menezes Cordeiro, Tratado de direito civil, vol. VIII — Direito das obrigações. — Gestão de negócios. Enriquecimento sem causa. Responsabilidade civil, Livraria Almedina, Coimbra, 2017, págs. 232-235.

[2] Expressão preferida por Jorge Ribeiro de Faria, Direito das obrigações, vol. I, Livraria Almedina, Coimbra, 2001 (reimpressão), págs. 381-385 — com algum eco em António Menezes Cordeiro, Tratado de direito civil, vol. VIII — Direito das obrigações. — Gestão de negócios. Enriquecimento sem causa. Responsabilidade civil, cit., págs. 233-234 (nota n.º 836).

[3] No sentido de que imediação é a ausência de um facto intermédio, vide p. ex. Fernando Andrade Pires de Lima / João de Matos Antunes Varela (com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita), anotação ao art. 473.º, in: Código Civil anotado, vol. I — Artigos 1.º a 761.º, cit., pág. 457; João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. I, cit., págs. 493-496

[4] No sentido de que a imediação é a ausência de um património intermédio, vide, p. ex., Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das obrigações, cit., pág. 497 — caracterizando o enriquecimento indirecto ou mediato como aquele em que “a deslocação [se faz] através de um património intermédio”, ou em que há “duas deslocações sucessivas” — e Luís Menezes Leitão, Direito das obrigações, vol. I — Introdução. Da constituição das obrigações, 13.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2017, págs. 425-426.

[5] O acórdão do STJ de 30 de Maio de 2006 — processo n.º 06A825 — fala de um requisito, “no mínimo, discutível e polémico”.

[6] Fernando Andrade Pires de Lima / João de Matos Antunes Varela (com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita), anotação ao art. 473.º, in: Código Civil anotado, vol. I — Artigos 1.º a 761.º, cit., pág. 457; João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. I, cit., págs. 493-496.

[7] Francisco Manuel Pereira Coelho "Um problema de enriquecimento sem causa", in: Revista de Direito e Estudos Sociais, ano 27.º (1970), págs. 351-356 (354-356).

[8] Jorge Ribeiro de Faria, Direito das obrigações, vol. I, cit., págs. 381-385

[9] Diogo Leite de Campos, A subsidiariedade da obrigação de restituir o enriquecimento, Livraria Almedina, Coimbra, 1974, pág. 327 (nota n.º 1).

[10] Luís Menezes Leitão, O enriquecimento sem causa no direito civil. Estudo dogmático sobre a viabilidade da configuração unitária do instituto, face à contraposição entre as diferentes categorias de enriquecimento sem causa, Centro de Estudos Fiscais, Lisboa, 1996, págs. 627 ss.; e, em termos mais sintéticos, Direito das obrigações, vol. I — Introdução. Da constituição das obrigações, 13.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2017, págs. 425-426.

[11] Considerando que a posição do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Maio de 2006 é a “posição correcta”, vide Júlio Gomes, anotação ao art. 473.º, in: Luís Carvalho Fernandes / José Carlos Brandão Proença (coord.), Código Civil anotado, vol. II — Direito das obrigações. Das obrigações em geral, cit., pág. 251.

[12] Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das obrigações, cit., págs. 498-499.

[13] Cf. Luís Menezes Leitão, Direito das obrigações, vol. I — Introdução. Da constituição das obrigações, cit., págs. 425-426.

[14] António Menezes Cordeiro, Tratado de direito civil, vol. VIII — Direito das obrigações. — Gestão de negócios. Enriquecimento sem causa. Responsabilidade civil, cit., pág. 234.

[15] Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das obrigações, cit., págs. 498-499.

[16] Cf. acórdão do STJ de 27 de Janeiro de 1998 — processo n.º 97A354 —, em cujo sumário se escreve: “I. — No enriquecimento sem causa, como fonte da obrigação de restituir, é necessário que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa do empobrecido que se arroga o direito à restituição, ou seja, é preciso que a vantagem, por um lado, e a perda, por outro, tenham sido originados pelo mesmo facto ou circunstância”.

[17] Cf. acórdão do STJ de 27 de Janeiro de 1998 — processo n.º 97A354 —, em cujo sumário se escreve: “II. — A adopção deste princípio é de excluir, devendo admitir-se uma atribuição patrimonial indirecta com a intervenção de um património intermédio, sempre que a exigência da deslocação patrimonial directa se mostre excessiva, susceptível de ferir a justiça material, o comum sentimento de justiça”.

[18] Entre os elementos relevantes para averiguar se a atribução patrimonial indirecta choca, ou não, com o comum sentimento de justiça poderão estar, p. ex., regras relativas ao risco da prestação e do concurso de credores, através dos […] pontos de vista valorativos [da] manutenção das excepções […], [da] protecção contra as excepções de terceiro […] [e da] justa repartição do risco de insolvência” [cf. Luís Menezes Leitão, Direito das obrigações, vol. I — Introdução. Da constituição das obrigações, cit., págs. 425-426].

[19] Como parece pensar António Menezes Cordeiro, Tratado de direito civil, vol. VIII — Direito das obrigações. — Gestão de negócios. Enriquecimento sem causa. Responsabilidade civil, cit., pág. 234 — sustentando que deve, tão-só, substituir-se a imediação ou unidade do enriquecimento pela unidade da valoração.

[20] Como parece pensar Júlio Gomes, O conceito de enriquecimento, o enriquecimento forçado e os vários paradigmas do enriquecimento sem causa, Universidade Católica, Porto, 1998, págs. 433 ss. e 675 ss.; e Júlio Gomes, anotação ao art. 473.º, in: Luís Carvalho Fernandes / José Carlos Brandão Proença (coord.), Código Civil anotado, vol. II — Direito das obrigações. Das obrigações em geral, cit., pág. 251.

[21] Cf. designadamente Fernando Andrade Pires de Lima / João de Matos Antunes Varela (com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita), anotação ao art. 481.º, in: Código Civil anotado, vol. I — Artigos 1.º a 761.º, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pág. 469; Ana Prata, anotação ao art. 481.º, in: Ana Prata (coord.), Código Civil anotado, vol. I — Artigos 1.º a 1250.º, Livraria Almedina, Coimbra, 2017, págs. 624-625; Júlio Gomes, anotação ao art. 473.º, in: Luís Carvalho Fernandes / José Carlos Brandão Proença (coord.), Código Civil anotado, vol. II — Direito das obrigações. Das obrigações em geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, págs. 245-253 (251), e anotação ao art. 481.º, in: Luís Carvalho Fernandes / José Carlos Brandão Proença (coord.), Código Civil anotado, vol. II — Direito das obrigações. Das obrigações em geral, cit., págs. 269-270; e sobretudo Francisco Manuel Pereira Coelho, "Um problema de enriquecimento sem causa", cit., pág. 355.

[22] Cf. Francisco Manuel Pereira Coelho, "Um problema de enriquecimento sem causa", cit., pág. 355. 

[23] Cf. factos provado sob os n.ºs 2 e 3.

[24] Cf. facto provado sob o n.º 5.

[25] Cf facto provado sob o n.º 13.

[26] O adquirente, o sujeito mediatamente enriquecido, não ficaria nunca obrigado, por a sua aquisição ter sempre, ou quase sempre, uma causa justificativa — o acto, ou o negócio, por que o alienante, o sujeito imediatamente enriquecido, alienou gratuitamente o objecto da obrigação de restituir.

[27] Cf. Luís Menezes Leitão, Direito das obrigações, vol. I — Introdução. Da constituição das obrigações, cit., pág. 453: “seguramente o conceito mais indeterminado no âmbito do enriquecimento sem causa”.

[28] Rui de Alarcão, Direito das obrigações (policopiado), Coimbra, 1983, pág. 190.

[29] Júlio Gomes, anotação ao art. 473.º, in: Luís Carvalho Fernandes / José Carlos Brandão Proença (coord.), Código Civil anotado, vol. II — Direito das obrigações. Das obrigações em geral, cit., pág. 251.

[30] Cf. acórdão do STJ de 24 de Março de 2017 — processo n.º 1769/12.5TBCTX.E1.S1.

[31] Cf. designadamente os acórdãos do STJ de 23 de Setembro de 1999 — processo n.º 99B686 —, de 16 de Outubro de 2003 — processo n.º 03B2813 — e de 19 de Fevereiro de 2013 — processo n.º 2777/10.6TBPTM.E1.S1.

[32] Cf. acórdão do STJ de 24 de Março de 2017 — processo n.º 1769/12.5TBCTX.E1.S1.

[33] Cf. Ana Prata, anotação ao art. 498.º, in: Ana Prata (coord.), Código Civil anotado, vol. I — Artigos 1.º a 1250.º, Livraria Almedina, Coimbra, 2017, págs. 651-653 (653); Júlio Gomes, anotação ao art. 482.º, in: Luís Carvalho Fernandes / José Carlos Brandão Proença (coord.), Código Civil anotado, vol. II — Direito das obrigações. Das obrigações em geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, págs. 270-272 (271-272); Gabriela Páris Fernandes, anotação ao art. 498.º, in: Luís Carvalho Fernandes / José Carlos Brandão Proença (coord.), Código Civil anotado, vol. II — Direito das obrigações. Das obrigações em geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, págs. 370-382 (381-382); José Carlos Brandão Proença, “À volta da natureza subsidiária da obrigação de restituir fundada em enriquecimento sem causa”, in: Cadernos de direito privado, n.º 50 — Abril / Junho de 2015, págs. 3-21 (11-17).

[34] Cf. acórdãos do STJ de 26 de Fevereiro de 2004 — processo n.º 03B3798 — e de 2 de Dezembro de 2004 — processo n.º 04B3828.

[35] Cf. acórdãos do STJ de 26 de Fevereiro de 2004 — processo n.º 03B3798 — e de 2 de Dezembro de 2004 — processo n.º 04B3828 —, em sujo sumário se escreve: “Uma vez que só se conta a partir da data em que o empobrecido tomou conhecimento do direito que lhe assiste por este fundamento, [o prazo de prescrição do art. 482.º] não abarca o período em que, com boa fé, tiver utilizado sem êxito outro meio de ser indemnizado ou restituído.”

[36] Cf. factos não provados sob as alíneas c) e d).

[37] Luís Menezes Leitão, Direito das obrigações, vol. I — Introdução. Da constituição das obrigações, cit., pág. 477.

[38] Sobre a interpretação do requisito da subsidiaridade, no sentido de que um meio alternativo de indemnização só “mera e hipoteticamente viável” não impede a acção de restituição fundada no enriquecimento sem causa, vide, por último, o acórdão do STJ de 24 de Outubro de 2019, proferido no processo 8319/09TBMAI.P1.S1.