Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
182/10.3TAVPV.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
COMPETÊNCIA DA RELAÇÃO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONSENTIMENTO
CRIME CONTINUADO
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
CÚMULO JURÍDICO
DOLO
IDADE
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
RECURSO DA MATÉRIA DE DIREITO
REFORMATIO IN PEJUS
Data do Acordão: 01/22/2013
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENAL / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - RECURSOS ORDINÁRIOS.
Doutrina:
- Cristina Líbano Monteiro, “Crime Continuado e Bens Pessoalíssimos - A concepção de Eduardo Correia e a revisão de 2007 do Código Penal”, Estudos de Homenagem ao Professor Figueiredo Dias, p. 732 e segs..
- Hans Heinrich Jescheck, "Evolución del concepto jurídico penal de culpabilidad en Alemania y Austria”, Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia Núm. 05 (2003).
- Laura LowenKron, “(Menor)idade e consentimento sexual...”, Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2007, V. 50 Nº 2. Ag 715 e seg..
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 72.º, N.º1, 77.º, 78.º, N.º1, 2.ª PARTE, 171.º.
CÓDIGO PROCESSUAL PENAL (CPP): - ARTIGOS 400.º, N.º1, AL. F), 402.º, N.º1, 432.º, N.º1, ALÍNEA C).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 32.º, N.º1.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO UNIVERSAL DE DIREITOS DA CRIANÇA PELA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (1989).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 07-06-1995, ACORDÃO Nº 4/95 DR Iª SERIA A 06-07-1995, PÁG. 4298 A 4300;
-DE 03-05-2007, PROCESSO N.º 07P341;
-DE 07-10-2009, PROCESSO N.º611/07.3;
TODOS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :

I - Com a Lei 48/2007, que introduziu a Reforma de Processo Penal, alterou-se o art. 432.º, determinando-se na al. c) do n.º 1 que, dos acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo, apenas é admissível recurso para o STJ, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito, caso tenha sido aplicada pena de prisão superior a 5 anos.
II - Nos casos da realização de cúmulo jurídico em que alguma, ou algumas, das penas parcelares são inferiores a 5 anos de prisão e a pena conjunta resultante do cúmulo é superior a tal limite, compete ao STJ proceder à sindicância, em sede de recurso que vise exclusivamente matéria de direito, das penas parcelares e da pena conjunta aplicadas.
III -A ampliação da competência do STJ ocorre quando estejam verificados os pressupostos enumerados no caso vertente: a) pretensão do recorrente em que pelo STJ seja sindicada a pena conjunta aplicada; b) pretensão de que, para além da pena conjunta superior a 5 anos ─ cuja competência para apreciação se encontra inscrita no art. 432.º, n.º 1, al. c), do CPP ─, sejam apreciadas penas parcelares inferiores àquele limite.
IV -O crime continuado configura um conjunto de crimes repetidos, com uma característica peculiar: a repetição dá-se porque, acompanhando a nova acção, se repete também (ou simplesmente permanece), uma circunstância exterior ao agente que a facilita. Essa circunstância que o agente aproveita há-de ser tal que, se desaparecesse, a sucessão de crimes ver-se-ia provavelmente interrompida.
V - Tudo converge para um juízo de exigibilidade diminuída que impede uma sanção semelhante a outro conjunto de crimes repetidos, subjectivamente conexionados entre si, mas dos quais não possa fazer-se avaliação semelhante.
VI - Como nenhum dos elementos apontados na decisão recorrida imprime a ideia de culpa diminuída, nomeadamente atribuindo à adesão do menor às solicitações do arguido uma relevância tal que tenha entorpecido a capacidade deste decidir de uma outra maneira que não a da opção pelo ilícito, configura-se uma situação de concurso real de crimes de abuso sexual de criança do art. 171.º do CP, ainda que esta qualificação não tenha sequência a nível agravativo, nomeadamente tendo em atenção o princípio reformatio in pejus.
VII - Em alguns casos a situação de abuso sexual de criança tem sido enquadrada na figura do crime único de trato sucessivo, entendendo-se haver lugar a uma unificação das condutas ilícitas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando existe uma mesma só resolução criminosa desde o início assumida pelo agente.
VIII - Configura o trato sucessivo a existência de um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de resolução, a par da homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal. Porém, no caso, nenhum elemento da materialidade provada permite a redução do processo volitivo do arguido a uma linha uniforme sem qualquer fractura temporal.
IX - A existência de consentimento, sendo irrelevante no afastamento da tipicidade criminal, pode assumir um significado mais ou menos intenso consoante a idade da vítima, ou seja, em equação com a maior ou menor proximidade do limite que o legislador entendeu como relevante para a concessão de dignidade penal ao comportamento do arguido.
X - O princípio que fundamenta a menoridade sexual não é qualquer suposição de que o jovem abaixo da idade definida legalmente não tenha desejo ou prazo sexual, mas, sim, que ele não desenvolveu ainda as competências consideradas relevantes para consentir a relação sexual. Só o tempo, por meio de um processo de socialização no qual o sujeito racional completo é (com)formado permitem um processo de decisão correctamente elaborado.
XI - Como na decisão recorrida não foi ponderado que os actos praticados surgem num curto lapso de tempo e que configuram uma interrupção no percurso de vida do arguido em que ressalta uma relação familiar estável e harmoniosa e como a idade da vítima revela uma pequena diminuição da ilicitude, mostra-se adequada a pena conjunta de 7 anos de prisão.


Decisão Texto Integral:


                                      Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
       
AA veio interpor recurso da decisão que, como autor material da prática, em concurso real, de dois crimes de abuso sexual de crianças, p. p. pelo art° 171 °, n° 2 do Código Penal, sendo um deles na forma continuada o condenou nas penas de quatro (4) anos e seis (6) anos de prisão, respectivamente. Em cúmulo jurídico foi o arguido condenado na pena única de sete (7) anos e seis (6) meses de prisão.
As razões de discordância encontram-se sintetizadas nas conclusões da respectiva motivação de recurso onde se refere que:
a) Discorda o recorrente da decisão do tribunal "a quo" de o ter condenado na pena de prisão de 7 anos e 6 meses;
b) É certo que o arguido não é primário, mas respondeu por outros factos
diferentes dos que agora estão em apreço;
c) O arguido é pessoa muito pobre economicamente;
d) O arguido esta bem integrado, social e familiarmente;
e) O arguido tem pouca instrução escolar;
f) Assim, ponderando adequadamente todas as supracitadas circunstancias, estão reunidos todos os pressupostos previstos no artigo 48 do CP, designadamente os de prevenção e repressão criminal para lhe ser reduzida tal pena para 5 anos, cuja a execução será suspensa por igual período de tempo, pois tal será mais do que suficiente para afastar de praticar mais algum delito;
g) Pelo que antecede, foram violados na douta sentença recorrida os seguintes preceitos; artigos, 48, 70 do CP e 410 do CPP.
Termina pedindo que seja revogada a decisão recorrida no sentido de se reduzir a pena de prisão ao arguido para 5 anos e suspender a sua execução por igual período de tempo.
            O Ministério Publico respondeu apostrofando pela improcedência do recurso.
Neste Supremo Tribunal de Justiça o Exº Mº Sr. Procurador Geral Adjunto pronunciou-se pela forma constante dos autos e, advogando a improcedência do recurso, admite que a pena se fixe nos sete anos de prisão
                                               Os autos tiveram os vistos legais.
                                                                    *
                                                     Cumpre decidir.
Em sede de decisão recorrida encontra-se provada a seguinte factualidade:
1 - O arguido reside na Urbanização ........., na Rua .........., n°......, Praia da Vitória e exerce a profissão de vendedor ambulante.
2 - À data dos factos a seguir descritos, ocorridos nos meses de Junho a Setembro de 2010, BB, nascido em 19.08.97, filho de CC e de DD, tinha 12 a 13 anos de idade e EE, nascido em 08.01.97, filho de FF e de GG, tinha 13 anos de idade.
3 - O arguido tinha conhecimento da idade de cada um destes menores.
 - Quanto ao menor BB:
4 - O menor CC reside com os pais no n° 8 da mesma urbanização e rua do arguido, sendo os respectivos quintais contíguos, apenas separados por um muro.
5 - Mercê do bom relacionamento de vizinhança existente entre os seus pais e o arguido, o CC, por diversas vezes, saltava para o quintal deste e passava algum tempo com o arguido, nomeadamente auxiliando-o em pequenas tarefas de "bricolage", ou comendo guloseimas que ele lhe oferecia.
6 - Posteriormente, com o consentimento dos pais, no período compreendido entre finais do mês de Junho e inícios de Agosto de 2010, o CC acompanhou o arguido, pelo menos por três vezes, às festas que então ocorriam um pouco por toda a ilha e onde o arguido procedia à venda ambulante.
7 - Nestas deslocações às referidas festas o arguido, para além do CC, era acompanhado da mulher e/ou das filhas mas, nalguns desses dias, foi apenas acompanhado do menor.
8 - Em todas as ocasiões o arguido fazia-se transportar numa carrinha de três filas de bancos ~ de cor branca, matrícula 00-00-00, da marca KIA e modelo Pregio.
9 - Em data que não foi possível concretamente apurar mas situada no período supra referido, no regresso das festas ocorridas no Porto Judeu, conselho de Angra do Heroísmo, o arguido estacionou a sua carrinha em local que não é possível precisar em concreto e perguntou ao CC "Queres que eu te ponha a pomba no cu?" (termo alusivo ao pénis), ao que ele respondeu, de imediato, que "não" .
10 - Indiferente à recusa do menor, o arguido ordenou-lhe que fosse para a fila de bancos do meio da carrinha, o que este fez, por receio.
11 - Seguidamente, o arguido puxou as calças e as cuecas do CC para baixo, até ao nível dos tornozelos, e obrigou-o a deitar-se de barriga para baixo ao longo do referido banco.
12 - Com a criança deitada naquela posição, o arguido deitou-se em cima dela e introduziu-lhe o seu pénis erecto no ânus, friccionando-o.
13 - A introdução pelo arguido do seu pénis no ânus causou dores ao CC.
 - Quanto ao menor EE:
14 - Em data que não foi possível concretamente apurar mas situada no decurso da segunda quinzena de Julho ou início de Agosto de 2010, antes do início das festas de verão que têm lugar em Agosto, na Praia da Vitória, o arguido seguia ao volante da viatura supra referida, na Rua de S. Pedro, situada na Urbanização Nossa Senhora de Fátima, área desta comarca,  
15 - Ao passar junto a EE, que ali se encontrava, convidou-o para ir trabalhar com ele para as festas de Agosto, dizendo-lhe "Eu dou-te barriga cheia e 10 euros" .
16 - O menor, contente por ir ganhar algum dinheiro durante as férias escolares, dispôs-se a acompanhar e ajudar o arguido na sua venda ambulante.
17 - Dois ou três dias depois, o EE acompanhou o arguido pela primeira vez tendo-se deslocado na carrinha deste para local que não foi possível concretamente apurar mas situado nas imediações da Praia da Vitória.
18 - Nesse local o arguido disse ao menor para "mexer na pomba dele" e "se queres trabalhar tens de mexer na minha pomba" .
19 - Alguns dias depois, o EE mais uma vez foi com o arguido que, a dada altura, se dirigiu para a zona do Facho, junto ao miradouro da Praia da Vitória, onde existe uma "Santa" , local onde estacionou a carrinha.
20 - Nessa ocasião, depois de ambos terem tirado as calças, o arguido friccionou o pénis do EE, bem como lhe chupou o pénis com a boca, tendo também o menor friccionado o pénis do arguido, bem como lho chupou com a sua boca .
21 - Nessa ocasião apenas o arguido ejaculou.
22 - Durante as festas da Praia da Vitória, uma noite, o arguido foi com o EE para urna zona arborizada e sem habitações, nas imediações da cidade.
23 - Depois de ter parado a carrinha, foram os dois para a fila de bancos do meio, despiram as calças, o EE colocou-se de joelhos em cima do banco e o arguido introduziu-lhe o seu pénis erecto no ânus.
24 - Nas noites que se seguiram, durante o período de duração das referidas festas que tiveram lugar entre os dias 6 e 15 de Agosto, depois de concluídas as vendas que realizavam no decurso das festas, o arguido e o menor deslocaram-se para o local supra referido ou outro nas imediações e, no interior da viatura, friccionavam o pénis um do outro, bem como colocavam o pénis um do outro na boca e chupavam, ou ainda, o arguido colocava o seu pénis erecto no ânus do EE.
25 - Nessas ocasiões, pelo menos o arguido ejaculava.
26 - Foi também por esta época que, num dia que o EE foi a casa do arguido, depois de terem ficado sozinhos, o arguido foi com o menor para a casa de banho e depois deste se encontrar despido, introduziu-lhe o seu pénis no ânus, friccionando-o, causando-lhe dor.
27 - O arguido sabia que o CC e o EE, à data dos factos, tinham menos de 14 anos de idade e que são oriundos de famílias desestruturadas, de estratos sociais com dificuldades económicas, o que os tomava mais vulneráveis.
28 - Agiu de forma livre c deliberada, com a intenção de manter com os menores a prática dos actos sexuais que supra ficaram descritos, consciente da imaturidade destes para se determinarem na prática de tais actos e que lhes causava dor e, ainda assim, não se coibiu de agir pela forma descrita, movido pela excitação ou satisfação dos seus instintos lascivos, bem sabendo da ilicitude de tais actos, que sabia serem proibido e punidos pela lei penal.
Mais se provou que:
29 - O arguido nasceu no seio de uma família numerosa, com acentuadas dificuldades económicas mas, em termos de dinâmica interna, com ambiente estruturado.
30 - Frequentou a escola até aos 14 anos de idade, sem concluir o ensino básico, após o que começou a ajudar economicamente a família.
31 - Começou a trabalhar na construção civil como servente de pedreiro, actividade que manteve com regularidade até cerca dos 30 anos, altura em que obteve licença como vendedor ambulante, passando a desenvolver esta actividade com o suporte da esposa, até meados do ano passado.
32 - Casou com cerca de 27 anos, sendo a sua relação conjugal estável e harmoniosa, da qual tem três filhas, com idades compreendidas entre os 18 e os 14 anos.
33 - Em 2002, com a finalidade de melhorar a situação económica, o agregado deslocou-se para o Canadá onde permaneceu cerca de 4 anos e meio.
34 - A não obtenção de autorização de residência implicaram o regresso a esta ilha.
35 - Após o regresso, continuou com a actividade de venda ambulante, em paralelo com outras actividades, o que manteve até 2011 mas, face às dificuldades económicas por falta de rendimentos, passou a receber apoio da segurança social, no valor de € 459 mensais.
36 - Actualmente nenhum dos elementos exerce qualquer actividade profissional, ocupando-se o arguido com o cultivo de um terreno, em sociedade com o dono deste, dividindo os respectivos proventos, e com a actividade de pesca para consumo próprio.
37 - Socialmente está bem integrado.
38 - Por sentença de 16.05.2000, proferida no processo comum singular registado com o nº 492/98.6PAVPV, no tribunal Judicial de Praia da Vitória, foi condenado na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, cuja execução ficou suspensa por 2 anos, pela prática, em 17.10.98, de um crime de furto qualificado.
39 - Por sentença de 13.02.2004, proferida no processo comum singular registado com o n° 615/01.0PAVPV, no tribunal Judicial de Praia da Vitória, foi condenado em pena de multa, pela prática, em 09.11.2001, de um crime de condução sem habilitação legal.
40 - Não confessou os factos e não evidencia arrependimento.
c
Não ficou provado que :
- os factos ocorridos com o CC ocorreram no Monte Brasil, em Angra do Heroísmo e que o arguido ejaculou ;
- o arguido, no interior da sua residência, em cima da cama do seu quarto, introduziu o seu pénis no ânus do EE em outras ocasiões para além da referida no ponto 26 .
Não se provaram quaisquer outros factos.
I
Na génese da questão encontra-se a peculiaridade da situação em que estão em causa, em sede de recurso, as penas parcelares aplicadas, bem como a pena conjunta que das mesmas resulta, sendo certo que as primeiras são inferiores ao limite do artigo 432 alínea c) do Código de Processo Penal e a segunda superior ao mesmo limite.
            Sobre tal questão importa precisar que, com a Lei 48/2007, que introduziu a denominada Reforma de Processo Penal, alterou-se o teor do artigo 432 do respectivo Código determinando-se que, dos acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri, ou pelo tribunal colectivo, apenas é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito, caso tenha sido aplicada pena de prisão superior a cinco anos.
             A redacção impressa na reformulação legal suscita a questão, directamente equacionada nos presentes autos, que se prende com a formação da pena conjunta no caso da realização de cúmulo jurídico em que alguma, ou algumas, das penas parcelares são inferiores a cinco anos de prisão e a pena conjunta resultante do cúmulo é superior a tal limite. Interposto recurso qual o segmento da decisão proferida em relação ao qual deverá ser aferida a competência para o conhecimento do recurso?
            -Como já se enunciou em anteriores decisões a questão em apreço tem de ser resolvida com o apelo aos princípios de determinação da pena de concurso e aí, desde logo, deverão distinguir-se dois momentos: o primeiro é a determinação da pena que concretamente caberia a cada um dos crimes em concurso como se crimes singulares, objecto de cognições autónomas se tratasse, seguindo, para tanto, o processo normal de determinação da pena. O segundo momento consiste na definição da pena de concurso que resultará de uma moldura penal proveniente da conjunção das penas parcelares e, da determinação da pena dentro dos limites relativos aquela moldura penal e que se efectivará em função das exigências gerais de culpa e de prevenção.
            Importa, porém, acentuar, como refere Figueiredo Dias, em relação é definição de pena conjunta que “Nem por isso se dirá com razão, no entanto, que estamos aqui perante uma hipótese normal de determinação da medida da pena. Com efeito, a lei fornece ao tribunal, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 72.°-1, um critério especial: «na determinação concreta da pena [do concurso] serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente» (art. 78.°-1, 2.a parte). 
            No caso de concurso de infracções temos, assim, dois momentos de definição de pena com sujeição a critérios diferentes: a definição das penas parcelares que modelam a moldura penal dentro da qual será aplicada a pena conjunta resultante do cúmulo jurídico e, posteriormente, a definição da pena conjunta dentro dos limites propostos por aquela. A primeira daquelas operações, concretização das penas parcelares constitui um prius, um pressuposto; um antecedente lógico do segundo momento pois que, como refere o mesmo Mestre, a formação da pena conjunta opera no quadro de uma combinação de penas parcelares que não perdem a sua natureza de fundamento da pena de concurso.
 Maximizando tal entendimento pode-se dizer que se pode recorrer da pena conjunta sem colocar em causa as penas parcelares, mas o contrário já não acontece, ou seja, alterada a pena, ou as penas parcelares, necessariamente que está afectado o quadro dentro do qual foi encontrada a pena conjunta que, por tal forma, terá de ser, necessariamente, sindicada
Assim,
            o primeiro passo para aferição da competência para o conhecimento do recurso, nas circunstâncias do caso vertente, deve ser a própria interpretação do acto processual que se consubstancia na interposição de recurso. Como refere Roxin a declaração, qualquer que seja o seu momento, deve assumir um sentido fácil de reconhecer. Caso necessário o seu conteúdo objectivo deve ser determinado através da interpretação a qual se deve basear não só no sentido literal, mas, essencialmente, no sentido reconhecivelmente pretendido pelo requerente.
            Reconhecido o sentido da pretensão dos recorrentes, a emergência de uma situação de ambivalente, como no caso vertente, depende da circunstância de o mesmo impetrar que o tribunal superior ao qual se dirige conheça de objecto de recurso para o qual pode, simultaneamente, e numa perspectiva meramente literal, ter, e não ter, competência para conhecer.
            Na verdade, suponhamos que o recurso é dirigido directamente ao Supremo Tribunal de Justiça visando o conhecimento em termos de direito de uma pena conjunta superior a cinco anos, bem como de penas parcelares inferiores a tal limite inscrito no artigo 432 c) do diploma citado. Em tal situação o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do referido dispositivo, apenas tem competência para conhecer do recurso na estrita medida em que se trate de uma pena de prisão superior a cinco anos.
            Porém, com este raciocínio levado às últimas consequências, fica afastado o conhecimento do recurso no específico das penas parcelares aplicadas, ou seja, o exercício do recurso em relação àquela especifica dimensão das penas parcelares fica sem conteúdo.
            Sucede, porém, que, como a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem tido oportunidade de salientar, por diversas vezes, o direito ao recurso constitui uma das mais importantes dimensões das garantias de defesa do arguido em processo penal. Mesmo antes de o artigo 32.°, nº1, da Constituição da República Portuguesa ter passado a especificar o recurso como uma das garantias de defesa, o que sucedeu com a Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, constituía jurisprudência pacífica e uniforme do mesmo Tribunal que uma das garantias de defesa, de que fala o nº1 do artigo 32.°, é, justamente, o direito ao recurso.
Este direito ao recurso, como garantia de defesa, é de há muito identificado com a garantia do duplo grau de jurisdição, "quanto a decisões penais condenatórias e, ainda, quanto às decisões penais respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais" Consequentemente é inadmissível uma interpretação da lei que, perante a impetração do recorrente, deixe sem resposta o seu pedido de que também as penas parcelares sejam sindicadas.
            Aqui, surgem como possíveis duas interpretações cuja divergência reside na atribuição ao Tribunal da Relação ou ao Supremo Tribunal de Justiça da competência para o conhecimento das penas parcelares e da pena conjunta. Em qualquer uma dessas possibilidades o fundamento da ampliação do conhecimento do recurso fundamenta-se no artigo 402 nº1 do Código de Processo Penal. Porém, são diversas as consequências numa e noutra interpretação pois, como se refere no Acórdão de 7 de Outubro de 2009 (Processo 611/07.3) , a aceitar-se a primeira orientação, ficaria precludida a possibilidade de recurso para o STJ, por força da al. f) do n° 1 do art. 400 do CPP, dos acórdãos das Relações que aplicassem (confirmando) penas (conjuntas) entre 5 e 8 anos de prisão. Ainda na perspectiva da mesma decisão “Tal resultado que entra em conflito com o regime-regra dos pressupostos de recurso para o STJ, que está definido no art. 432° do CPP, cuja al. c) do nº1 estabelece como patamar de recorribilidade, quando o recurso visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, a pena concreta superior a 5 anos de prisão.
Esse "conflito" não pode deixar de ser resolvido a favor desta última norma que é, insiste-se, a que define o regime de recurso para o STJ.
O "alargamento" da competência do STJ à apreciação das penas parcelares (não superiores a 5 anos de prisão) nada tem de incongruente, pois se trata de questão exclusivamente de direito, compreendida (isto é, integrada) na questão mais geral da fixação da pena conjunta, a qual, nos termos do art. 77° do CP, deve considerar globalmente os factos e a personalidade do agente”.
Sem embargo das considerações constantes daquela decisão pensamos que um outro elemento poderá ser aduzido no sentido de consagrar uma ampliação da competência do Supremo Tribunal de Justiça quando estejam verificados os restantes pressupostos enumerados no caso vertente ou seja:
a) Pretensão do recorrente em que, por este Supremo Tribunal de Justiça, seja sindicada a pena conjunta aplicada.
b) Pretensão de que, para além da pena conjunta superior a cinco anos-cuja competência para apreciação se encontra inscrita no artigo 432 mº1 alínea c) do diploma citado- sejam apreciadas penas parcelares inferiores àquele limite.
            Na verdade, se a pretensão do recorrente é dirigida a este Supremo Tribunal a referida ampliação sempre se poderá fundamentar numa regra de interpretação jurídica afirmando a existência de um poder-dever implícito que não é mais do que a regra elementar da hermenêutica segundo a qual quando se concede a determinado órgão ou instituição uma função (actividade-fim), implicitamente está concedendo os meios necessários para que esse fim seja atingido. Numa linguagem menos elaborada dir-se-á que “quem pode o mais pode o menos”, ou seja, quem tem competência para apreciar a pena conjunta também deve ter competência para decidir sobre as penas parcelares que lhe estão subjacentes.  
            Assim, entende-se que este Supremo Tribunal de Justiça pode proceder á sindicância de penas parcelares e pena conjunta aplicada.
                                                            
A conclusão agora impressa depara-se, porém, com o sobressalto algo insólito de o arguido não colocar minimamente em causa as penas parcelares que lhe foram aplicadas, bem como os pressupostos que lhe estão subjacentes.
            Assim sendo, e numa primeira análise, deveríamos ter por inultrapassáveis as considerações expendidas na decisão recorrida no que respeita aos crimes praticados, atomisticamente considerados, valorando apenas a pena conjunta. Porém, tal acepção ignora o facto de nada impedir que este Supremo Tribunal no exercício das suas funções de sindicar de “motu próprio”  a correcção da subsunção jurídica feita no acórdão recorrido.
Tal posicionamento reconduz este Tribunal de revista naquilo que é a sua natural área de actuação: dizer o direito em última instância”  ou como  refere o Acórdão n.º 4/95, de 07-06-1995 O Tribunal Superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus”.
II
            Entendendo da forma supracitada e relativamente aos actos praticados sobre o menor EE é imputada ao arguido a prática de crime na forma continuada.
        A decisão recorrida fundamenta tal entendimento com a argumentação de que
Da factualidade assente temos que o arguido, actuando por forma sempre idêntica, levou a cabo actos que configuram a prática do mesmo tipo de crime, com a lesão do mesmo bem jurídico e sempre de forma semelhante, verificando-se uma situação exterior que mais não é do que uma certa relação, um "acordo" entre o arguido e o EE, pelo que somos do entendimento que se mostram verificados todos os elementos constitutivos do crime continuado, pelo qual o arguido haverá de ser condenado.
     Discordamos do entendimento ora desenhado. Na verdade, no que concerne á figura em causa impõe-se relembrar que se mantêm inteiramente válidos os ensinamentos do Professor Eduardo Correia que, aliás, tiveram acolhimento no artigo 30 do Código Penal que dispõe "constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente".
            O normativo citado consubstancia a doutrina de Eduardo Correia formulada a propósito da mesma figura. Afirma o mesmo Mestre que o núcleo do problema reside em que se está por vezes perante uma série de actividades que, devendo, em regra, ser tratadas nos quadros da pluralidade de infracções, tudo parece aconselhar - nomeadamente a justiça e a economia processual – que se tomem unitariamente, como um crime só. Para resolução do problema, duas vias fundamentais de solução podem ser trilhadas:- ou se parte dos princípios gerais da teoria do crime, procurar deduzir os elementos que poderiam explicar a unidade inscrita no crime continuado- e teremos então uma construção lógico-jurídica do conceito ; ou atender antes à gravidade diminuída que uma tal situação revela, em face do concurso real de infracções, e procurar, assim, encontrar no menor grau de culpa do agente a chave do problema - intentando, desta forma, uma construção teológica do conceito.
A opção, na esteira do ensinamento de Eduardo Correia, é no último sentido pois que existem certas actividades às quais presidiu uma pluralidade de resoluções (que, portanto, em principio atiraria a situação para o campo da pluralidade de infracções), todavia devem ser aglutinadas numa só infracção na medida em que revelam uma diminuição de culpa do agente. O fundamento desta diminuição da culpa  encontra-se no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. Assim, o pressuposto da continuação criminosa será a existência de uma relação que, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é de acordo com o direito.
Procurando alinhar as configurações fácticas que podem sugerir tal ambiente exterior com reflexo na densidade da culpa, diminuindo-a, indica-se a circunstância de se ter criado, através da primeira actividade criminosa uma certa relação de acordo entre os sujeitos; a circunstância de voltar a verificar-se uma oportunidade favorável á prática do crime que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa: a circunstância da perduração do meio apto para executar um delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira conduta criminosa; a circunstância de o agente, depois de executar a resolução que tomara, verificar que se lhe oferece a possibilidade de alargar o âmbito da actividade criminosa
Nas situações enumeradas existe um denominador comum apontando a diminuição considerável da culpa do agente. Só tal situação exterior poderá justificar a facilitação da reiteração criminosa pois que quando se verifique uma situação exterior normal, ou geral, que facilite a prática do crime, o agente contar com elas para modelar a sua personalidade de maneira a permanecer fiel aos comandos jurídicos.
Na perspectiva de Eduardo Correia não se trataria do simples "amolecimento" das inibições, ou reacções morais, que resultaria da pratica do primeiro crime, facilitando a repetição, pois, nesse caso, qualquer repetição criminosa implicaria menor censurabilidade, mas o reconhecer da relevância a uma certa relação entre "um crime e o ambiente" ou uma "disposição exterior das coisas para o facto", que "arraste Irresistivelmente o agente para a sua pratica". Na génese o conteúdo da continuação criminosa apela à ideia de culpa como o "poder de agir de outra maneira", considerando que as circunstâncias externas, mesmo não excluindo totalmente o "poder de livre determinação do delinquente ... todavia mais ou menos o tentam, mais ou menos o arrastam para o crime, diminuindo ou alargando a sua liberdade de resolução e tornando, portanto, mais ou menos exigível outro comportamento"
             Em última análise a circunstância externa facilitadora do crime molda uma diminuição da resistência da pessoa "normalmente fiel ao Direito”.
Como refere Cristina Líbano Monteiro (Crime Continuado e Bens Pessoalíssimos-A concepção de Eduardo Correia e a revisão de 2007 do código Penal Estudos de Homenagem ao professor Figueiredo dias pag 732 e seg)  Eduardo Correia chama as doutrinas da «não exigibilidade» e da «culpa pela não formação da personalidade» para fundamentar a solução que quer dar ao crime continuado. Contrapõe a influência do lado exógeno e do lado endógeno no juízo de culpa, restringindo a culpa diminuída própria da figura em apreço à resultante do primeiro dos aspectos. Se a influência de circunstâncias exteriores pode tornar menos exigível ao agente normal um comportamento conforme ao direito, já uma tendência endógena para o crime, não contrariada, diminuindo embora a culpa pelo facto, pode aumentá-la enquanto negligência na formação da personalidade, enquanto perigos idade censurável. E esta última situação não se mostra compatível com a benevolência punitiva própria do crime continuado. Por outras palavras: o lado endógeno da culpa, a existir como tendência criminosa, neutraliza uma eventual circunstância exógena que parecesse determinante. Para Eduardo Correia, e por assim dizer, ou a culpa foi das circunstâncias ou do agente. Se o acento tónico do caso estiver neste segundo domínio, desaparece a razão decisiva a continuação.
O crime continuado configura, afinal, um conjunto de crimes repetidos, com uma característica peculiar: a repetição dá-se porque, acompanhando a nova acção, se repete também (ou simplesmente permanece), uma circunstância exterior ao agente que a facilita. Essa circunstância que o agente aproveita, e que de alguma maneira o incita para o crime há-de ser tal que, se desaparecesse, a sucessão de crimes ver-se-ia provavelmente interrompida.
Criada pelo autor com a primeira conduta, ou surgida de modo casual, sem a sua intervenção, funciona como ocasião propícia ou tentação; em linguagem dogmática, como causa de diminuição da exigibilidade de uma conduta conforme ao direito; em último termo, como factor que afasta de forma significativa o comportamento em análise do grau 'típico' de culpa correspondente àquele crime (conjunto de crimes) e reflectido na sua consequência jurídico-penal.
Segundo Eduardo Correia o crime continuado tem na sua génese uma conexão de resoluções criminosas. Aparentemente autónoma, cada resolução depende, na verdade, da anterior, de tal modo que apenas a primeira se pode dizer normal. O nexo subjectivo - sustentado do lado do ilícito pela homogeneidade das condutas e pela unicidade do tipo ou do bem jurídico contra o qual atentam - determina a conveniência de excluir o comportamento do regime habitual do concurso efectivo de crimes.
            Assim, tudo converge para um juízo de exigibilidade diminuída. Será este que impede uma sanção semelhante a outro conjunto de crimes repetidos, subjectivamente conexionados entre si, mas dos quais não possa fazer-se avaliação semelhante.
                                                                   * 
          Face ao exposto estamos em crer que nenhum dos elementos apontados na decisão recorrida imprime a ideia duma do patamar da culpa diminuído, nomeadamente atribuindo á adesão do menor às solicitações do arguido uma relevância tal que entorpeceu a capacidade de este decidir de uma outra maneira que não a da opção pelo ilícito.
          Saliente-se que a relação, ou seja, o denominado acordo na decisão recorrida tem subjacente uma relação comunicacional em que o arguido está na génese criando as condições necessárias para que tal aquiescência do menor tenha lugar. Assim, não se vislumbra a diminuição de culpa proclamada na decisão recorrida.
            Eventualmente poderia argumentar-se no sentido da decisão recorrida procurando, numa visão holística do comportamento do arguido, atribuir um significado á conexão temporal existente. Na verdade, em alguns casos a situação de abuso sexual de criança tem sido enquadrada na figura do crime único de trato sucessivo, entendendo-se haver lugar a uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando existe uma mesma só resolução criminosa desde o início assumida pelo agente.
Tal unidade de resolução, a par da homogeneidade de actuação, e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos actos sucessivos num só crime. O dolo do agente engloba ab initio uma pluralidade de actos sucessivos que ele se dispõe logo a praticar, para tanto preparando, se necessário, as condições de realização, estando-se no plano da unidade criminosa; a reiteração, revelando uma resolução determinada e persistente do agente, traduz uma culpa agravada.
Haverá aqui um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de resolução, a par da homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal, configura o trato sucessivo.
Porém, nenhum elemento existe na materialidade considerada provada que permita tal redução do processo volitivo do arguido a uma linha uniforme sem qualquer fractura temporal.
Entende-se, assim que em relação ao menor EE se configura uma situação de concurso real de crimes previstos e punidos no artigo 171 do Código Penal. Porém, tal diversa qualificação nunca poderá ter sequência a nível agravativo, nomeadamente tendo em atenção ao princípio “reformatio in pejus”
                                                                 *
            Mas questionar-se-á: será que tal adesão é, em absoluto, irrelevante, não assumindo qualquer significado em termos de dimensionamento da própria culpa do arguido e da ilicitude do acto?
            -O tipo legal de crime em referência visa-se “a protecção da autodeterminação sexual face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade, presumindo a lei que a prática de actos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o seu desenvolvimento”. A existência, ou não, de consentimento, sendo irrelevante no afastamento da tipicidade criminal, poderá assumir um significado mais, ou menos, intenso consoante a idade da vítima, ou seja, em equação com a maior ou menor proximidade do limite que o legislador entendeu como relevante para a concessão de dignidade penal ao comportamento do arguido.
            É pois a questão da relevância do consentimento que está em causa.[1]
 Este pode ser definido como uma decisão de concordância voluntária tomada por um sujeito dotado de capacidade de agência e livre-arbítrio. Refira-se que as polémicas contemporâneas sobre as leis da idade do consentimento são parametrizados num contexto em que crianças e adolescentes passaram de um estado de total subordinação à família ou aos tutores para se tornarem “sujeitos de direitos” – com a aprovação da Convenção Universal de Direitos da Criança pela Organização das Nações Unidas (1989),.
Surge, assim, a necessidade de conciliar a compreensão de crianças e jovens como sujeitos especiais, ou seja, necessitados de protecção e socialização, com o princípio de que são, também, indivíduos portadores de direitos. Esse é um dos dilemas, que está em jogo nos debates em torno das leis da idade do consentimento nos dias atuais, que discutem formas apropriadas de direitos de crianças e adolescentes em relação à sexualidade 
Nas leis da idade do consentimento, a noção de consentimento pode ser entendida como um tipo particular de competência que é considerada fundamental para o exercício do direito de liberdade sexual. O julgamento de quem é capaz de dar consentimento significativo para o acto sexual depende dos tipos de competência que se consideram relevantes. A competência considerada relevante para a tomada de decisão na atividade sexual é multidimensional, sendo concebida como uma combinação entre competência intelectual (habilidade para processar informação relevante), competência moral (capacidade para avaliar o valor social do gesto) e competência emocional (entendida como habilidade para expressar e manejar emoções).
O princípio que fundamenta a menoridade sexual não é qualquer suposição de que o jovem abaixo da idade definida legalmente não tenha desejo ou prazer sexual, mas, sim, que ele não desenvolveu ainda as competências consideradas relevantes para consentir em uma relação sexual. Só o tempo, por meio de um processo de socialização no qual o sujeito racional completo é (con)formado permitem a modelação de um processo de decisão correctamente elaborado.
Sendo assim, a incapacidade legal de autogestão que define a dimensão tutelar da menoridade apoia-se na ideia de uma incapacidade “natural” que define uma determinada “fase da vida”. (Conf. citada Autora Laura LowenKron  ibidem)
 Consequentemente, também o significado que deve ser atribuído á aproximação da idade em que o legislador entende que o consentimento assume um significado jurídico relevante, nomeadamente quando da proximidade da idade que a lei traça como fronteira para a consideração da ilicitude criminal. 
 III
Importa, agora verificar se, na esteira do afirmado pelo recorrente, existe uma incorrecta valoração na medida da pena conjunta que lhe foi aplicada pois só esta pena está sujeita á sindicância deste Supremo Tribunal de Justiça.
Os factores de medida da pena conjunta elencados na decisão recorrida são suficientemente explícitos para fundamentar a mesma pena. Nomeadamente refere-se ali que:
 O arguido agiu com dolo, que se apresenta na sua forma mais grave - dolo directo.
A ilicitude das suas condutas é muito elevada tendo em consideração não só a forma de actuação mas também o resultado.
Na realidade , o arguido , antes de tudo o mais, aproveitou-se da situação sócio económica das famílias dos menores - onde se colocam problemas ao nível da alimentação e do acompanhamento destas crianças, tão necessário nas idade em que se encontravam - para obter autorização para elas o acompanharem, dando assim um aspecto de seriedade a toda a sua actuação .
Depois, soube aliciar os menores a acompanharem-no através, por um lado, do dinheiro, por outro, da comida e, finalmente, pela possibilidade de andarem pelas festas que, no verão, ocorrem um pouco por toda a ilha, com a inerente possibilidade de se divertirem, pese embora fossem "contratados" para trabalhar.
Finalmente, aproveitou-se da ingenuidade e da falta de discernimento e de capacidade necessária, em razão da sua tenra idade, para enfrentarem situações com as quais se viram confrontados.
De considerar também o modo como o arguido levava a cabo os seus actos, ou seja, aproveitando-se da circunstância de se encontrar sozinho com as crianças, levava-as para locais ermos isolados onde os menores ficavam ainda mais indefesos face à impossibilidade de recorrerem a qualquer tipo de ajuda.
Relativamente ao menor EE, pese embora se vislumbre alguma adesão deste às práticas do arguido, pelo menos até ao momento em que denunciou toda esta actividade, há que atentar na reiteração da prática dos actos sexuais que, no período das festas da Praia da Vitória ocorreu todos os dias (noites) após concluir o período de vendas, sem esquecer a sua diversidade, na medida em que não só introduziu o seu pénis no ânus do menor, como também na boca, para além dos actos de masturbação, sendo que levou a criança a praticar actos da mesma natureza, ou que é revelador de um maior desvalor da acção.
Em termos de resultado, nada se pode aferir neste momento na medida em que os menores não foram submetidos a qualquer tipo de observação/avaliação psicológica com tal finalidade. Contudo, atentas as regras de experiência comum, este tipo de práticas, em crianças de tão tenra idade, certamente que terão reflexos no seu desenvolvimento sexual e psicológico.
Em desfavor do arguido há ainda que atentar na falta de arrependimento que resulta, desde logo, da não assumpção dos seus actos, para além de ter já passado criminal, pese embora não na área dos crimes sexuais
Em favor do arguido apenas se alinha a sua modesta condição sócio económica e a sua boa integração social
        Como já tivemos ocasião de referir em anteriores decisões de Supremo Tribunal de Justiça, e como refere Jeschek, o ponto de partida da individualização penal é a determinação dos fins das penas pois que só arrancando de fins claramente definidos é possível determinar os factos que relevam na respectiva ponderação. Aqui, é preciso, em primeiro lugar, readquirir a noção da importância fundamental que assume a justa retribuição do ilícito, e da culpa, adquirindo o princípio da culpa quer uma função fundamentadora, quer uma função limitadora da mesma pena. Ao mesmo nível que a retribuição justa situa-se o fim da prevenção especial.
                  Nunca é demais acentuar o papel da culpa como critério fundamentador da medida da pena, ao invés da preponderância que alguns, entre os quais Jakobs, outorgam á prevenção geral, colocando-a acima da retribuição da culpa pelo delito quando é esta, na realidade, que justifica a intervenção penal. O arguido tem direito a esperar, e espera, uma resposta ao facto injusto e culposo que cometeu. Realçando-se a prevenção como critério fundamental desvanece-se, com prejuízo da justiça individual, a orientação que o Direito penal faz da responsabilidade do agente pela sua acção.
           A culpa e a prevenção situam-se em planos distintos. A culpa responde á pergunta de saber se, e em que medida, o facto deve ser reprovado pessoalmente ao agente, assim como qual é a pena que merece. Só então se coloca a questão, totalmente distinta da prevenção em que se decide qual a sanção que parece apropriada para introduzir de novo o agente na comunidade e para influir nesta num sentido social-pedagógico.
         A culpa é a razão de ser da pena e, também, o fundamento para estabelecer a sua dimensão. A prevenção é unicamente uma finalidade da mesma.
A culpa, se é o limite superior da pena, também deve ser co-decisivo para toda a determinação da mesma que se encontre abaixo daquela fronteira. Aliás, e fundamentalmente, ao limitar-se a fixação concreta da pena a fins preventivos, a decisão do juiz perde o ponto de conexão com a qualificação ética do facto que é julgado, e a pena, por esse facto perde também todo a possibilidade de influir a favor daqueles objectivos de prevenção.
               Só apelando á profundidade moral da pessoa se pode esperar, tanto a ressocialização do condenado, como também uma eficácia socio-pedagógica da pena sobre a população em geral.
             A renúncia ao critério da culpa para a pena concreta é um preço demasiado alto por evitar o problema da liberdade na teoria da culpa (Hans Heinrich Jescheck, "Evolución del concepto jurídico penal de culpabilidad en Alemania y Austria Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia Núm. 05 (2003))
             Face a esta consideração de natureza teórica, e que apenas pode relevar como premissa na lógica que nos leva á individualização da pena no caso concreto, impõe-se, agora, a consideração das circunstâncias singulares que este revela nomeadamente em termos daquela culpa, relevante como parâmetro de retribuição, e da ilicitude do acto.
            Uma primeira conclusão que se impõe, face á argumentação do recorrente, é de que, como se referiu, foram devidamente identificados os factores de medida da pena que justificam, na perspectiva da decisão recorrida, a manutenção da pena conjunta aplicada
             A decisão recorrida imprime, ainda, um carácter vincante, na medida da pena, às necessidades de prevenção geral expressas na perturbação comunitária que provoca este tipo de infracções em que está em causa um valor nuclear. É imperioso que a comunidade esteja certa de que as violações dos laços mais básicos de relação social sejam penalizados com adequada punição.
        Porém, revendo-nos na forma correcta como foram elencados aqueles factores, igualmente é certo que não foi ponderado que os actos praticados surgem durante um curto lapso de tempo, configurando-se como uma interrupção num percurso de normalidade de vida em que ressalta uma relação familiar “estável e harmoniosa” Igualmente é certo que, tal como entendeu a decisão deste Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Maio de 2007, não se afigura despicienda a consideração de em sede de fixação da pena, há que levar em conta as circunstâncias concretas que modelaram a actuação do arguido. E, dentro dessas circunstâncias, a idade da vítima não é indiferente, muito embora a sua idade – 13 anos – esteja situada dentro dos limites de protecção do bem jurídico especifico aqui em causa, considerando-se a agressão a esse bem jurídico pelas formas indicadas na lei como abuso sexual de criança, desde que o menor tenha menos de 14 anos.
Por outro lado, não sendo necessária a coacção para a relevância da agressão ao referido bem jurídico, nos termos sobreditos, a verdade é que é diferente, em termos de ilicitude, ter ou não existido coacção, assim como é de considerar, em sede de determinação concreta da pena, o grau de desenvolvimento do menor.[2]
Tal entendimento, que colhe o nosso apoio, e que se situa na decorrência do supra exposto, tem inteira aplicação no caso vertente, relevando numa pequena diminuição da ilicitude de que revestem os actos praticados e tal como foram considerados na decisão recorrida.
  Considerando por tal forma, e atendendo á relevância que assumem os factores supra referidos entende-se por adequada a pena conjunta de sete anos de prisão.

Termos em que se julga parcialmente procedente o recurso interposto e, em consequência, se condena o arguido AA na pena conjunta de sete anos de prisão.
Sem custas.
Liboa, 22 de Janeiro de 2013

Santos Cabral (relator)
Oliveira Mendes (“Voto vencido. Atenta a gravidade dos crimes em concurso e a gravidade do ilícito global confirmaria a pena aplicada.”)
Pereira Madeira (“Com voto de desempate.”)

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[1] Como refere Laura LowenKron  (MENOR)IDADE E CONSENTIMENTO SEXUAL... REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2007, V. 50 Nº 2. Ag 715 e seg)  a comparação internacional e histórica revela uma enorme diversidade de estruturas legais nas quais as chamadas leis da idade do consentimento se inserem, até mesmo dificultando a análise comparativa.SegundoWaites, “the phrase is generally absent from the law in many different states,yet is frequently invoked to describe and constest laws, and is increasingly used to compare laws between different states with contrasting legal frameworks” (Waites, Mtthew The Age of Consent : young People, Sexuality and  Citizenship  2005, p. 2).
As diferentes maneiras de regular juridicamente a atividade sexual de acordo com a idade podem ser sistematizadas com base nos três principais tipos de previsões legais: (i) leis que estabelecem limite de idade mínima: quando a atividade sexual envolvendo pessoas abaixo de uma certa idade é considerada crime; (ii) previsões de sedução: referem-se a situações nas quais a legalidade do comportamento sexual em uma dada faixa de idade é definida pela característica da interação e/ou da motivação do participante mais velho; (iii) previsões legais sobre contato sexual em relações de autoridade: envolvem restrições adicionais sobre o comportamento sexual quando existe uma desigualdade de poder particular, por exemplo, entre professor e aluno. Além disso, as leis podem variar de acordo com o gênero e a orientação sexual (cf. Waites, 2005).
Nas décadas de 1960 e 1970, dois movimentos sociais e políticos tiveram influência especial sobre o debate internacional em torno das leis da idade do consentimento: o movimento feminista e o movimento gay.
O primeiro incluiu o tema nas agendas de luta contra “abuso” sexual  ligado a formas de dominação masculina, de modo que essas leis eram vistas como parte de uma estratégia mais ampla de demandas por proteção legal de sujeitos em situação de vulnerabilidade. Essa perspectiva ganha força no final do século XX, por meio da proliferação de campanhas mediáticas de denúncia de turismo sexual, pedofilia e prostituição infantil. ……Por outro lado, desde a metade da década de 1990, o tema da “violência sexual contra crianças e adolescentes” tornou-se um problema público central e vem cada vez mais sendo apresentado e discutido em relação ao conceito de “pedofilia”. Vale destacar que a “pedofilia” não é uma categoria jurídica, mas, sim, uma categoria clínica, definida por fantasias e desejos que não se atualizam, necessariamente, em condutas sexuais. No entanto, enquanto categoria social, o termo “pedofilia” tem- se disseminado com sentidos diversos e tem sido associado a crimes envolvendo sexo com menores, como estupro, pornografia e prostituição.
Nesse sentido, a “idade do consentimento” funciona como parâmetro, nos debates públicos e políticos, para definir não apenas o que é considerado criminoso, mas igualmente patológico.
[2]  Recorde-se que  no tipo legal de crime em referência visa-se “a protecção da autodeterminação sexual face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade, presumindo a lei que a prática de actos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o seu desenvolvimento”, como se refere no Comentário Conimbricense em anotação ao artigo tipificado no caso vertente.