Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1339/16.9T8FAR.E1.S2
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: QUESTÃO NOVA
DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
DESAFECTAÇÃO
PROPRIEDADE PRIVADA
POSSE
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 06/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / POSSE / USUCAPIÃO / NOÇÃO.
Doutrina:
-Freitas do Amaral, colaboração de Lino Torgal, Curso de Direito Administrativo, II, Almedina, 2006, p. 542 a 545;
-Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, II, p. 956.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1287.º.
DECRETO REAL DE 31 DE DEZEMBRO DE 1864.
REGIME JURÍDICO DOS TERRENOS NO DOMÍNIO PÚBLICO HIDRICO, (RJTDPH), APROVADO PELO DL N.º 468/71;
-TITULARIDADE DOS RECURSOS HÍDRICOS, APROVADA PELA LEI N.º 54/2005, DE 15-11, ARTIGOS 19.º.
Jurisprudência Nacional:
-ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


-DE 09-04-2013, PROCESSO N.º 79/06.1TBODM.E1.S1;
-DE 04-06-2013, PROCESSO N.º 6584/06.2TBVNG.P1.S1.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:


-DE 12-11-2014, PROCESSO Nº 786/2014, IN DR Nº 251/2014, II, DE 30-12-2014;

Sumário :

I - Não configura a colocação de uma “questão nova”, para efeitos de delimitação da cognoscibilidade do STJ, a invocação, feita apenas no recurso de revista, da aplicabilidade aos factos assentes de um diploma legal, até então nunca suscitada pelas partes e pelas instâncias.
II - O quadro normativo originalmente estabelecido pelo Decreto Real de 31 de Dezembro de 1864, erigindo o conceito de “domínio público”, designadamente hídrico, com o principal propósito de acautelar o reconhecido interesse público para o país dos bens por ele abarcados e assumindo, também, as dimensões típicas dessa dominialidade pública, de modo a colocá-los “fora do comércio” jurídico, foi sendo replicado e actualizado pelos sucessivos diplomas posteriormente publicados, entre os quais, o DL n.º 468/71, de 05-11, e a (actual) Lei n.º 54/2005, de 15-11.
III - Foi assim acolhido o princípio geral de que o Estado beneficia da presunção juris tantum de dominialidade dos terrenos que constituem o leito e a margem das águas dominiais da sua jurisdição, ainda que se permita que terrenos incluídos na respectiva área sejam utilizados por sujeitos privados – mediante ocupação, manutenção e rentabilização económica, objecto de licença ou de concessão – ou, até, que possam ser objecto de propriedade privada.
IV - Na verdade, os leitos e margens de águas do mar e de cursos de água, embora se presumam públicos, serão privados se assim forem reconhecidos, por força de direitos adquiridos anteriormente a 31 de dezembro de 1864 (ou a 22 de março de 1868, no caso de se tratar de arribas alcantiladas), em acção judicial intentada nos termos dos n.os 1 a 4 do art. 150.º da citada Lei 54/2005.
V - E o reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis pode ainda ser obtido, sem sujeição ao regime de prova previsto nas normas acabadas de referir, nos casos de terrenos que hajam sido objecto de um acto de desafectação do domínio público hídrico nos termos da lei (arts. 150.º n.º 5, al. a) e 19.º da citada Lei n.º 54/2005), seguido, naturalmente, da alienação de tais terrenos a favor dos sujeitos privados.
VI - No caso dos autos, apenas se extrai que o título a que os autores fazem apelo (de Julho de 1884) consubstancia uma mera concessão do direito de uso privativo de parcelas de domínio público hídrico, conferindo autorização ao concessionário para enxugar, vedar e cultivar terrenos abandonados e incultos integrados na bacia salgada da Ria Formosa, tendo sido, desde logo, também autorizado o trespasse de tal concessão.
VII - Por isso, a pretensa posse invocada pelos autores, mesmo que se verificassem os respectivos pressupostos, só teria decorrido a partir de 1884 e não antes de 1864, pelo que, uma vez assente que os terrenos em questão se localizam dentro da faixa litoral incluída no domínio público marítimo, não poderá ser reconhecida a sua adquisição por particulares, designadamente por usucapião, nos termos dos arts. 1287.º e sgs. do CC, excepto se os mesmos tivessem sido desafectados do domínio público ou certificados como privados.
VIII - Ainda que uma determinada área esteja incluída no domínio público marítimo, não está proibido o direito da sua utilização por privados, atribuído através dum título – acto administrativo de licença ou contrato de concessão –, desde que sejam respeitados os fins e o conteúdo definidos pelo título.
IX - E, em princípio, nada obstará à transmissão inter vivos, mediante contrato, de alvará de concessão relativa ao uso privativo de terrenos do domínio público hídrico, desde que precedida de autorização da entidade que a outorgou, não podendo, obviamente, tal contrato, transmitir direitos não conferidos, ainda que os contraentes declarem coisa diferente.
X - O instrumento invocado pelos autores, com que o Estado permitiu que determinados terrenos públicos fossem destinados ao uso privativo, não seria meio idóneo à efectivação da desafectação daqueles do domínio público, bem como, na sequência dessa desafectação, à transmissão da respectiva propriedade para um sujeito privado, mas, ainda que o fosse, nele nunca se lobrigaria o mais leve indício do intuito de, por via do mesmo, também se estar a proceder a tais desafectação e transmissão da propriedade, assim como de nada releva o “nomen” proposto pelos respectivos intervenientes aos sucessivos negócios de trespasse de tal concessão, celebrados a partir de determinada altura.


Decisão Texto Integral:
                                                                                             

AA e outros intentaram acção contra o Estado Português,  pedindo a condenação deste a reconhecer o seu direito de propriedade sobre os prédios que indicam, alegando estarem preenchidos os requisitos para tanto impostos pelo art. 15º, nº 5, a), da Lei 54/2005, de 15/11, porque, em síntese, o direito a que se arrogam teve origem numa concessão régia outorgada em 21/7/1884, autorizando BB a enxugar, vedar e cultivar os terrenos, mantendo-se na posse de tal direito as pessoas que sucessivamente lhe foram sucedendo e que presentemente são os AA, tendo, agora, a “CC.” manifestado pretender tomar posse administrativa daqueles terrenos, sob a invocação de se tratarem de parcelas de domínio público marítimo.
 O R contestou, invocando que a alegada concessão não transmitiu o direito de propriedade sobre o terreno, limitando-se a facultar os limitados poderes sobre um bem público definidos em tal acto (enxugar, vedar e cultivar os terrenos).
Foi proferido despacho saneador sentença, julgando improcedente a acção e, em consequência, absolvendo o R do pedido.
A Relação julgou improcedente a apelação interposta pelos AA, confirmando, sem voto de vencido, a decisão proferida em 1ª instância.

Os AA interpuseram revista excepcional desse acórdão, admitida pela competente Formação, tendo delimitado o objecto do recurso com conclusões em que suscitam a questão de saber se, nos termos do art. 15º da Lei nº 54/2005, de 15/11 (na sua actual redacção dada pela Lei 34/2014, de 19/6), deve ser reconhecida a sua propriedade sobre os indicados terrenos, porque, sendo parcelas originariamente públicas de leitos ou margens, a concessão régia outorgada pelo Decreto de 21 de Julho de 1884, conjugada com o Alvará de 11 de Abril de 1815 (“Lei Agrária”) e a Lei de 24 de Novembro de 1823, desafectou-as do domínio público hídrico e constituiu um seu título aquisitivo válido.
Nas suas contra-alegações, o R sustentou que a “questão” da aplicabilidade do Alvará de 11 de Abril de 1815 (“Lei Agrária”) não poderá ser apreciada pelo STJ porque os recorrentes nunca a colocaram quer na 1ª instância, quer na Relação.
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Como é sabido e é entendimento uniforme da jurisprudência sobre as regras do processamento das impugnações das decisões, o âmbito do recurso, para além dos eventuais casos julgados formados nas instâncias, é confinado pelo objecto (pedido e causa de pedir) da acção, pela parte dispositiva da decisão impugnada desfavorável ao impugnante e pela restrição feita pelo próprio recorrente, quer no requerimento de interposição, quer nas conclusões da alegação (art. 635º do CPC). Portanto, é em face do objecto da acção, do conteúdo da decisão impugnada e das conclusões da alegação da recorrente que se determinam as questões concretas controversas que importa resolver.
E, por outro lado, os recursos são meios de obter a reponderação das questões já anteriormente colocadas e a eventual reforma de decisões dos tribunais inferiores, e não de alcançar decisões novas, só assim não acontecendo nos casos em que a lei determina o contrário, ou relativos a matéria indisponível, sujeita por isso a conhecimento oficioso.
Porém, a expressão «questões», que se prende, desde logo, com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir, de modo algum se pode confundir com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia. Por isso, é em face do objecto da acção, do conteúdo da decisão impugnada e das conclusões da alegação do recorrente que se determinam as questões concretas controversas que importa resolver. Ao Tribunal incumbe resolver as questões ou pretensões cuja apreciação lhes seja suscitada e, para o efeito, apenas se pode estribar nos factos essenciais que as partes tenham alegado, mas não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (arts. 5º e 608º do CPC).
Portanto, o problema da aplicabilidade aos factos assentes de determinadas normas ou diplomas legais, não sendo uma “questão” com o apontado significado, também não pode assumir a natureza de “novidade” no sentido alvitrado pelo R.
Cumpre, pois, apreciar e decidir a questão suscitada no recurso e acima enunciada, para o que releva a matéria de facto considerada provada pela Relação.
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São os próprios recorrentes a configurar a questão que submetem à apreciação do Tribunal como consistindo, no essencial, em saber se a concessão régia que invocam, outorgada pelo Decreto de 21 de Julho de 1884, constituiu um título de transmissão da propriedade sobre esses terrenos a favor do concessionário.
Os recorrentes sempre defenderam nos autos que a falada concessão teria desafectado os terrenos do domínio público hídrico e constituiu para o seu concessionário (e para os que lhe sucederam) um seu título aquisitivo válido. Agora, estribam tal tese na pretensa ideia de que teria sido o Alvará Régio de 11 de Abril de 1815 (“Lei Agrária”) e a Lei de 24 de Novembro de 1823 a proceder à desafectação do domínio público dos terrenos salgadiços cobertos pelo mar em favor daquele que os enxugou, vedou e cultivou, sendo que um tal aproveitamento dos terrenos, para conduzir à aquisição da respectiva propriedade, estaria sujeita a autorização governamental titulada por concessão régia. Ou seja, pretendem os recorrentes que o facto aquisitivo supostamente previsto na “Lei Agrária” – enxugamento, vedação e cultivo de terrenos salgadiços – estaria dependente da autorização para o efeito conferida ao particular por concessão régia e que a verificação desta condição encontrar-se-ia cabalmente comprovada nos autos.
Vejamos.
O evocado Alvará de 1815, com o intuito de «promover e animar a agricultura dos Reinos de Portugal e dos Algarves», concedeu isenção de «direitos, imposições e dízimos», por 10 anos, aos que rompessem charnecas e baldios incultos (de todas as Províncias do Reino à excepção do Minho «por estar bem cultivada»), por 20 anos, aos que abrissem «Paúes junto ao Tejo, e em toda a Estremadura» e, por 30 anos, aos que tirassem terras às marés, como sapais e areais em todos os rios e costas. Mais se estabeleceu que: os «Administradores dos Vínculos» poderiam, a partir de então «aforar as terras incultas a elles pertencentes com authoridade do Corregedor ou Provedor da respectiva Comarca, sendo depois confirmados os aforamentos pela Meza do Desembargo do Paço», sendo que «para que haja uma certa regra na formalidade destes emprazamentos, se determinará por Louvados o foro que deve ter huma geira, ou hastim de terras»; e, «para os mesmos Administradores dos Vínculos melhor poderem romper as terras incultas, ou aprovoitar as perdidas dos mesmos, poderão tomar dinheiro a juro com hypoteca nos bens vinculados».
Entretanto, pela Carta de Lei de 24 de Novembro de 1823, que revogou a Carta de 14 de Março do mesmo ano, foi mandado observar o disposto naquele Alvará de 1815 e ficou esclarecido, para além da natureza e alcance das isenções concedidas, que por terrenos incultos se entendia os que por espaço de 40 anos não tivessem sido aproveitados e que o benefício da “nova cultura” se estendia, então, a todas as Províncias «deste Reino e do do Algarve».
É certo que, como se viu, a concessão outorgada ao primitivo concessionário (Bazílio Castelbranco) pelo Decreto de 21 de Julho de 1884 se traduziu numa autorização «para enxugar, vedar e cultivar os terrenos pertencentes à bacia salgada da ria de Faro, denominada Valle Formoso», que se achavam desaproveitados nos concelhos de Loulé, Faro e Olhão.
Contudo, para além de não se vislumbrar como se poderá extrair das isenções concedidas pelas mencionadas Leis de 1815 e 1823 o putativo facto aquisitivo condicionado – (apenas) neste recurso sugerido –, ainda que este encontrasse em tais diplomas qualquer espécie de abrigo e independentemente do acerto desse pretenso efeito jurídico, os recorrentes obnubilam um determinante detalhe da cronologia legislativa que faz esboroar a construção por eles erigida: a autorização em questão – que, na tese dos recorrentes, seria a condição da eficácia da almejada aquisição – foi concedida apenas em 21-07-1884, quando por Decreto Régio já fora inovadoramente estabelecido, no reinado de Dom Luís I, o regime jurídico dos terrenos do domínio público hídrico (marítimo e fluvial), desde 31 de Dezembro de 1864 ou, para o caso de se tratar de arribas alcantiladas, desde 22 de Março de 1868.
O Decreto Real de 1864 surgira com o principal propósito de, face aos potenciais desmandos do poder absoluto do rei, acautelar o reconhecido interesse público para o país da costa e das águas interiores navegáveis, na perspectiva da sua relevância estratégica, tornando públicas essas águas e respectivos leitos e margens – abarcando uma faixa da margem com condicionantes especiais – bem como outros bens (estradas, ruas, portos de mar e praias, rios navegáveis e flutuáveis com as suas margens, canais e valas, portos artificiais e docas “existentes ou que de futuro se construam”).
Teve aí origem o conceito de “domínio público”, designadamente “marítimo”, assumindo expressamente o diploma, também, as dimensões típicas da dominialidade pública dos bens por ela abarcados, de modo a colocá-los “fora do comércio” jurídico ([1]) – como seja a imprescritibilidade ou impossibilidade de aquisição por usucapião, a impenhorabilidade, a insusceptibilidade de serem dados como garantia de obrigações, de serem objecto de servidões reais, de posse privatística ou de execução forçada – embora ressalvando os direitos dos particulares em relação a parcelas já identificadas como privadas da margem, que não estariam, portanto, integradas no domínio público, ou às que tivessem sido desqualificadas como bens do domínio público, mediante uma acto de desafectação e devolvidos ao regime de propriedade privada do Estado (em sentido amplo), podendo, depois, ser eventualmente privatizados, mediante a sua alienação a particulares.
Por isso, a concessão outorgada (apenas) em 1884 só pode ser aqui recebida à luz desse regime, vigente a partir de 1864, que a emoldurou juridicamente, cingindo-lhe os efeitos e limites. Assim sendo, para nada relevaria a invocada cobertura das Leis de 1815 e 1823, pois tudo se resume a saber se, como, aliás, defendem os recorrentes, a falada concessão, autorizando um determinado e confinado uso dos terrenos sobre que incidiu, então integrados no domínio público hídrico (por força do Decreto de 1864), afinal, desafectou-os desse domínio e constituiu um título aquisitivo válido da propriedade sobre os mesmos.
O quadro normativo originalmente estabelecido pelo Decreto régio de 1864, atinente aos recursos hídricos, foi sendo replicado e atualizado pelos sucessivos diplomas posteriormente publicados, entre os quais, para o que aqui mais interessa, destacamos o DL 468/71, de 5/11, e a Lei 54/2005, de 15/11, vigente na data da proposição da acção (na versão conferida pela Lei 34/2014, de 19/06) ([2]).
Foi assim acolhido o princípio geral de que o Estado beneficia(va) da presunção juris tantum de dominialidade dos terrenos que constituem o leito e a margem das águas dominiais da sua jurisdição ([3]).
O que, no essencial, se retira de tal quadro normativo é que a lei, não obstante a natureza inerente ao domínio público hídrico, permite que terrenos incluídos na respectiva área sejam utilizados por sujeitos privados – mediante ocupação, manutenção e rentabilização económica, objecto de licença ou de concessão – ou, até, que possam ser objecto de propriedade privada:
«A circunstância de um terreno se situar nos limites do domínio público, não obsta a que possam subsistir direitos de natureza privada já existentes. As dúvidas que frequentemente se suscitam quanto à existência e origem desses direitos devem ser resolvidas por aplicação do regime de reconhecimento que o legislador estabeleceu, quer no diploma de 1971 (art. 8.º), quer no diploma de 2005 (art. 15.º). Essas faixas de terreno, qualificadas como margens, estão sujeitas a uma presunção juris tantum de propriedade pública, mas podem os particulares invocar direitos de natureza privada, devendo para tal elidir essa presunção, mediante propositura de acção judicial.» ([4]).
Na verdade, os leitos e margens de águas do mar e de cursos de água, embora se presumam públicos ([5]), serão particulares, ainda que sujeitos a servidões administrativas, se forem reconhecidos como privados por força de direitos adquiridos anteriormente. Para tanto, o interessado terá de intentar acção judicial e nela provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objecto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 (ou antes de 22 de março de 1868, no caso de se tratar de arribas alcantiladas). E, na falta de documentos comprovativos da propriedade desses terrenos, portanto, na impossibilidade de tal meio de prova, pode ainda provar que, antes daquelas datas, tais terrenos estavam na posse (em nome próprio) de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa.
Por fim, o reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis pode ser obtido sem sujeição ao regime de prova acabado de referir nos casos de terrenos que hajam sido objecto de um acto de desafectação do domínio público hídrico, nos termos da lei [arts. 15º, nº 5, a), e 19º da citada Lei 54/2005 ([6])], seguido, naturalmente, da alienação de tais terrenos a favor dos sujeitos privados.
No caso dos autos, a pretensa posse invocada pelos AA, mesmo que se verificassem os respectivos pressupostos, só teria decorrido a partir de 1884 e não antes de 1864 (ou Março de 1868, na hipótese de haver arribas alcantiladas). Por isso e uma vez que, tal como os próprios AA admitem, os terrenos em questão se localizam dentro da faixa litoral incluída no domínio público marítimo (definida pelos arts. 1º, 2º, 3º e 5º do DL 468/71 e 1º, 2º, 3º e 5º 10º e 11º da Lei 54/2005), não poderá ser reconhecida a sua adquisição por particulares, designadamente por usucapião, nos termos dos arts. 1287º e ss do CC, excepto se os mesmos tivessem sido desafectados do domínio público ou certificados como privados.
Assim, assente que o Estado beneficia da aludida presunção iuris tantum da dominialidade pública dos terrenos ajuizados, por se situarem dentro de tal faixa, resta indagar se os AA lograram ilidir essa presunção com a questionada transmissão da propriedade sobre os mesmos subsequente à sua desafectação do domínio público.
A resposta a tal questão é, evidentemente, negativa.
Com efeito, os recorrentes erigem essa sua pretensão na concessão, outorgada em 21-07-1884, da autorização «para enxugar, vedar e cultivar os terrenos pertencentes à bacia salgada da ria de … Valle Formoso».
Ora, a autorização por tal via concedida reconduz-se, basicamente, a uma concessão de uso privativo de uma parcela de domínio público hídrico, que, como vimos, é legalmente consentida: o art. 17º do citado DL 468/71 já previa que a dominialidade pública não obsta a que parcelas determinadas dos terrenos públicos sejam «destinados a usos privativos».
Realmente, ainda que uma determinada área esteja incluída no domínio público marítimo, não está proibido o direito da sua utilização por privados, mediante a contrapartida do pagamento de quaisquer taxas, atribuído através dum título – acto administrativo de licença ou contrato de concessão –, desde que sejam respeitados os fins e o conteúdo definidos pelo título. Com efeito, o uso privativo dos bens públicos e as condições em que o mesmo será exercido são os outorgados pela Administração num instrumento (título) jurídico individual.
O uso privativo do domínio público titulado por concessão justificar-se-á nas situações que sejam consideradas de utilidade pública e em que seja necessária a realização de investimentos, por vezes avultados, tais como instalações ou outras obras, de modo a proteger o privado que os efectuou, nomeadamente com o estabelecimento de um prazo longo (em casos excepcionais, por prazo superior a 30 anos ou indeterminado) e do direito a indemnização no caso de rescisão antes do termo do contrato de concessão ([7]). Nos restantes casos, a que subjazem apenas fins particulares, já se adequará que o uso privativo do domínio público seja atribuído por licença, a título precário.
Aos poderes da Administração sobre o domínio público (hídrico ou não), inerentes quer aos direitos de administrar e de gerir quer aos de uso e fruição, sendo de natureza pública, aplica-se um regime de direito público especial relativamente ao dos direitos civis. Quando o Estado (em sentido amplo) confere um direito de uso privativo do domínio público, por via de acto administrativo (licença) ou contrato administrativo (concessão), transfere para o particular parte dos poderes que lhe estão atribuídos, nomeadamente o de usar e fruir determinado bem necessariamente público.
Assim, o direito de uso privativo de um bem do domínio público, fundado em acto ou contrato administrativos, por permitir o uso e a fruição daquele por um determinado período de tempo, é dogmaticamente comparável ao direito real de uso previsto no art. 1484º do CC (a que também são aplicáveis as disposições que regulam o usufruto), mas está subordinado ao regime do direito administrativo ([8]). E, em princípio, nada obstará à transmissão inter vivos, mediante contrato, de alvará de concessão relativa ao uso privativo de terrenos do domínio público hídrico, desde que precedida de autorização da entidade que a outorgou, não podendo, obviamente, tal contrato, transmitir direitos não conferidos, ainda que os contraentes declarem coisa diferente ([9]).
O já extenso caminho percorrido cimenta a afirmação com que o iniciámos: o invocado título de Julho de 1884 consubstancia uma mera concessão do direito de uso privativo de parcelas de domínio público hídrico, conferindo autorização ao concessionário para enxugar, vedar e cultivar terrenos abandonados e incultos pertencentes à bacia salgada da Ria Formosa – tendo sido, desde logo, também autorizado o trespasse de tal concessão –, mediante o pagamento de contrapartidas equivalentes a todos os impostos que pesam sobre a propriedade e as demais condições enunciadas no referido título, nomeadamente a da exclusão do direito a indemnização aos concessionários, na hipótese de aquele direito de uso vir a ser sujeito a ablação em consequência de o governo carecer dos terrenos a que a concessão se referia para estradas, caminhos de ferro, obras do porto ou quaisquer outras obras de utilidade pública.
Tal instrumento, com que o Estado permitiu que determinados terrenos públicos fossem destinados ao uso privativo, não seria meio idóneo à efectivação da desafectação daqueles do domínio público, bem como, na sequência dessa desafectação, à transmissão da respectiva propriedade para um sujeito privado. Mas, ainda que o fosse, nele nunca se lobrigaria o mais leve indício do intuito de, por via do mesmo, também se estar a proceder a tais desafectação e transmissão da propriedade.
Assim é quanto à desafectação porque esta, implicando a cessação da dominialidade pública, pressuporia que, por lei, se determinasse que os terrenos públicos em causa teriam deixado de possuir tal carácter dominial ou de estarem afectos a uma utilidade pública ([10]). E, quanto à transmissão da propriedade sobre os terrenos – apenas possível se se tratasse de bens integrados no domínio privado do Estado, o que não sucedia, como vimos, pois tal também dependeria da sua prévia desafectação do domínio público –, a mesma não se poderia quedar pela transferência dos poderes de enxugar, vedar e cultivar os terrenos, teria, sim, de compreender todos os direitos de uso, fruição e disposição de coisas de que o suposto transmitente gozaria de modo pleno e exclusivo, sob pena de descaraterização da tipicidade do direito de propriedade.

Poderia conjecturar-se se os AA, com a evocação do Alvará Régio de 11-04-1815 (“Lei Agrária”), não teriam pretendido retirar da alusão contida no diploma à possibilidade de os «Administradores dos Vínculos», a partir de então, aforarem as terras incultas aos mesmos pertencentes a virtualidade de a autorização (outorgada em 21-07-1884) do uso privativo dos terrenos da Ria Formosa ser configurada como a formalização de um «contrato de emprazamento», previsto no art. 1653º do então vigente Código Civil de 1867, que dispunha: «Dá-se o contrato de emprazamento, aforamento ou enfiteuse, quando o proprietário de qualquer prédio transfere o seu domínio útil para outra pessoa, obrigando-se esta a pagar-lhe anualmente certa pensão determinada, a que se chama foro ou cânon».
Porém, o aforamento ou emprazamento – vocábulos indistintamente utilizados na época para a mesma realidade – foi sempre um acto jurídico privado – quer fosse concedido por pessoas privadas (casas senhoriais por exemplo), quer públicas – que, embora gerasse o desmembramento da propriedade em dois domínios, não transmitia o domínio “directo” do senhorio para o foreiro, ainda que constituísse um vínculo estável entre este e o imóvel, com um leque alargado de faculdades inerentes ao direito de propriedade: tratava-se, tão-só, de um contrato pelo qual o proprietário de terreno alodial cedia a outrem o direito de percepção da utilidade do mesmo terreno, temporária ou perpetuamente, com o encargo de lhe pagar uma pensão ou foro anual e a condição de conservar para si o domínio “directo” ([11]).
Ora, ainda que se pudesse admitir uma tal hipotética interpretação – contra a concepção, que perfilhamos, do dito acto enquanto concessão de uso privativo, subordinada ao regime do direito administrativo –, continuaria por arredar o escolho já exibido anteriormente: também o putativo emprazamento, conduzindo embora ao desmembramento da propriedade em dois domínios, não só não seria legítimo sem a prévia desafectação dos terrenos do domínio público, nem meio idóneo para a concretização desta, como, mesmo que ocorresse esse pressuposto, nunca importaria a transmissão da propriedade, que sempre se teria mantido no domínio do respectivo titular «directo», não obstante o aforamento.

Aqui chegados, teremos de concluir como se fez na decisão recorrida. Na verdade, não dispõe a invocada concessão dos requisitos que no recurso lhe são atribuídos. E se “nemo plus juris ad alium transferre potest quam ipse habet” de nada releva o “nomem” proposto pelos respectivos intervenientes aos sucessivos negócios de trespasse de tal concessão, celebrados a partir de determinada altura dos anos vinte do século passado.

Por conseguinte, improcede o recurso.

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Síntese conclusiva:
1. Não configura a colocação de uma “questão nova”, para efeitos de delimitação da cognoscibilidade do STJ, a invocação feita apenas no recurso de revista da aplicabilidade aos factos assentes de um diploma legal, até então nunca suscitada pelas partes e pelas instâncias.
2. O quadro normativo originalmente estabelecido pelo Decreto Real de 31 de Dezembro de 1864, erigindo o conceito de “domínio público”, designadamente hídrico, com o principal propósito de acautelar o reconhecido interesse público para o país dos bens por ele abarcados e assumindo, também, as dimensões típicas dessa dominialidade pública, de modo a colocá-los “fora do comércio” jurídico, foi sendo replicado e actualizado pelos sucessivos diplomas posteriormente publicados, entre os quais, o DL 468/71, de 5/11, e a (actual) Lei 54/2005, de 15/11.
3. Foi assim acolhido o princípio geral de que o Estado beneficia da presunção juris tantum de dominialidade dos terrenos que constituem o leito e a margem das águas dominiais da sua jurisdição, ainda que se permita que terrenos incluídos na respectiva área sejam utilizados por sujeitos privados – mediante ocupação, manutenção e rentabilização económica, objecto de licença ou de concessão – ou, até, que possam ser objecto de propriedade privada.
4. Na verdade, os leitos e margens de águas do mar e de cursos de água, embora se presumam públicos, serão privados se assim forem reconhecidos, por força de direitos adquiridos anteriormente a 31 de dezembro de 1864 (ou a 22 de março de 1868, no caso de se tratar de arribas alcantiladas), em acção judicial intentada nos termos dos nºs 1 a 4 do art. 15º da citada Lei 54/2005.
5. E o reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis pode ainda ser obtido, sem sujeição ao regime de prova previsto nas normas acabadas de referir, nos casos de terrenos que hajam sido objecto de um acto de desafectação do domínio público hídrico nos termos da lei [arts. 15º, nº 5, a), e 19º da citada Lei 54/2005], seguido, naturalmente, da alienação de tais terrenos a favor dos sujeitos privados.
6. No caso dos autos, apenas se extrai que o título a que os AA fazem apelo (de Julho de 1884) consubstancia uma mera concessão do direito de uso privativo de parcelas de domínio público hídrico, conferindo autorização ao concessionário para enxugar, vedar e cultivar terrenos abandonados e incultos integrados na bacia salgada da Ria Formosa, tendo sido, desde logo, também autorizado o trespasse de tal concessão.
7. Por isso, a pretensa posse invocada pelos AA, mesmo que se verificassem os respectivos pressupostos, só teria decorrido a partir de 1884 e não antes de 1864, pelo que, uma vez assente que os terrenos em questão se localizam dentro da faixa litoral incluída no domínio público marítimo, não poderá ser reconhecida a sua adquisição por particulares, designadamente por usucapião, nos termos dos arts. 1287º e ss do CC, excepto se os mesmos tivessem sido desafectados do domínio público ou certificados como privados.
8. Ainda que uma determinada área esteja incluída no domínio público marítimo, não está proibido o direito da sua utilização por privados, atribuído através dum título – acto administrativo de licença ou contrato de concessão –, desde que sejam respeitados os fins e o conteúdo definidos pelo título.
9. E, em princípio, nada obstará à transmissão inter vivos, mediante contrato, de alvará de concessão relativa ao uso privativo de terrenos do domínio público hídrico, desde que precedida de autorização da entidade que a outorgou, não podendo, obviamente, tal contrato, transmitir direitos não conferidos, ainda que os contraentes declarem coisa diferente.
10. O instrumento invocado pelos AA, com que o Estado permitiu que determinados terrenos públicos fossem destinados ao uso privativo, não seria meio idóneo à efectivação da desafectação daqueles do domínio público, bem como, na sequência dessa desafectação, à transmissão da respectiva propriedade para um sujeito privado, mas, ainda que o fosse, nele nunca se lobrigaria o mais leve indício do intuito de, por via do mesmo, também se estar a proceder a tais desafectação e transmissão da propriedade, assim como de nada releva o “nomem” proposto pelos respectivos intervenientes aos sucessivos negócios de trespasse de tal concessão, celebrados a partir de determinada altura.
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Decisão:
Nos termos expostos, negando a revista, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes.      


Lisboa, 5/6/2018


Alexandre Reis

Lima Gonçalves

Cabral Tavares

       

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[1] Assim continua a estatuir, actualmente, o comando do art. 202º do CC que «Consideram-se, porém, fora do comércio todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza, insusceptíveis de apropriação individual» E o art. 18º nº 1 da Lei 54/2005, de 15/11 que «Todos os recursos hídricos que não pertencerem ao domínio público podem ser objeto do comércio jurídico privado e são regulados pela lei civil, designando-se como águas ou recursos hídricos patrimoniais», sendo que recursos hídricos «compreendem as águas, abrangendo ainda os respetivos leitos e margens, zonas adjacentes, zonas de infiltração máxima e zonas protegidas e, em função da titularidade, compreendem os recursos dominiais, ou pertencentes ao domínio público, e os recursos patrimoniais, pertencentes a entidades públicas ou particulares» (art. 1º da mesma Lei).
[2] Lembra-se apenas que, no ínterim, o Código Civil de 1867, classificou como públicas «as águas salgadas das costas, baías, fozes, rias e esteiros...» (art. 380º), o que o Decreto nº 8, de 1-12-1892 preservou «até onde se alcançasse o colo da máxima preia-mar de águas vivas», tendo o Decreto nº 952 de 15-10-1914 determinado que a jurisdição marítima em terrenos do domínio público se estendia a uma «faixa de 50m de largura a contar da linha da máxima preia-mar de águas vivas», regime que, no essencial, se manteve com a designada “Lei das Águas” (Decreto nº 5787-IIII, de 10-05-1919) e com o Decreto nº 12.445, de 29-09-1926.
[3] «De acordo com os arts. 3.º, n.ºs 1, 2 e 6, e 2.º, n.º 2, do DL n.º 468/71, a margem das águas do mar, bem como das águas navegáveis ou flutuáveis sujeitas à jurisdição das autoridades marítimas ou portuárias, tem a largura de 50 m, contando-se a largura da margem a partir da linha limite do leito, e o leito das águas do mar, bem como das demais águas sujeitas à influência das marés, é limitada pela “linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais”» (acórdão deste Tribunal de 4-06-2013, p. 6584/06.2TBVNG.P1.S1).
[4] Acórdão citado.
[5] Quanto às margens, do mar, numa faixa de 50 m e, dos rios, numa faixa de 30m.
[6] Cf. o teor deste último preceito: «Pode, mediante diploma legal, ser desafetada do domínio público qualquer parcela do leito ou da margem que deva deixar de ser afeto exclusivamente ao interesse público do uso das águas que serve, passando a mesma, por esse facto, a integrar o património do ente público a que estava afeto».
[7] Segundo Freitas do Amaral (Curso de Direito Administrativo, com a colaboração de Lino Torgal, II, Almedina, 2006, pp. 542 a 545), «a concessão de uso privativo do domínio público é o contrato administrativo pelo qual a Administração faculta a um sujeito de direito privado a utilização económica exclusiva de uma coisa ou parcela do domínio público para fins particulares de utilidade pública». Diz ainda este autor que as concessões de uso privativo «apenas consentem a particulares, com base num título jurídico individual (unilateral ou bilateral), o uso e fruição de parcelas dominiais, para fins de interesse público ou de interesse prevalentemente privado. (…) o concessionário é um mero utente de um bem dominial gerido por uma entidade pública, continuando esta no exercício da sua actividade pública e continuando o concessionário no desempenho da sua actividade privada.».
[8] Das conclusões do Parecer da PGR de 15-09-2016 (doc. CA00122016, in wwwdgsi.pt e DR de 9-01-2017) colhe-se o seguinte extracto: (…) «3.ª Trata-se de concessões do uso privativo de bens do domínio público (…).
4.ª Em todo o caso, nem a concessionária é investida em privilégios de autoridade nem eximida ao cumprimento da lei, dos regulamentos e dos planos e programas territoriais que protegem a ordem pública ambiental, urbanística e cultural.
5.ª As concessões dominiais públicas, contrariamente às concessões de serviço público ou de certas obras públicas, têm como base contratos administrativos de atribuição (não de colaboração) e obedecem a um princípio de relatividade, com o sentido de o uso ou exploração estarem subordinados à satisfação de outras necessidades coletivas assumidas constitucionalmente como interesses públicos.
6.ª O que a concessão dominial proporciona é a exclusividade do específico uso sem a concorrência de terceiros, de modo a sustentar a viabilidade económica dos investimentos necessários (…)
16.ª O uso privativo do domínio público limita-se ao possível e ao necessário, revelando-se o menor dos direitos reais administrativos menores de gozo, à semelhança do direito de uso e habitação, no direito civil (cf. por similitude, artigos 1484.º e seguintes do Código Civil). O gozo proporcionado ao usuário é confinado por critérios de possibilidade e de necessidade, subsistindo enquanto subsistir o interesse público primário (…)».
[9] O artigo 25º, do citado DL 468/71 estipulava, expressamente, que aqueles a quem for consentido o uso privativo de terrenos dominiais não poderiam, sem autorização da entidade que conferiu a licença ou a concessão, transmitir para outrem os direitos conferidos, nem por qualquer forma fazer-se substituir no seu exercício.
[10] Cf. Marcelo Caetano, “Manual de Direito Administrativo”, II, p. 956.
[11] O instituto do aforamento, emprazamento ou enfiteuse teve origem grega e foi depois disseminado pelo império romano. Historicamente, o direito de usar e gozar, por tempo ilimitado, de um terreno alheio, para cultivo, contra o pagamento de uma pensão ou de um foro anual ao proprietário do terreno, teve como objectivo permitir a este, quando não desejasse ou não o pudesse usar de maneira directa, poder ceder a outro o uso da propriedade, assim se promovendo a ocupação de terras incultas ou impropriamente cultivadas. O instituto teve o seu apogeu na Idade Média, continuando, hoje, a ser considerado como sequela do modo de produção feudal, e daí que, em Portugal, um diploma de 1822 tenha imposto a redução dos forais, por influência dos ideais da revolução francesa, adversa ao feudalismo. Contudo, o instituto perdurou no CC de 1867 – sendo aí contemplado no domínio dos contratos, como se disse – e na fase inicial da vigência do CC de 1966, deixando, então, de ser tratado como um mero contrato e merecendo lugar no seio dos direitos reais neste último diploma, cujo art. 1491º o definia como consistindo no «desmembramento do direito de propriedade em dois domínios, denominados directo e útil» e designava como «prazo» o prédio sujeito ao respectivo regime, bem como «senhorio» e «foreiro ou enfiteuta» os titulares dos domínios «directo» e «útil», respectivamente. O instituto, quanto a prédios rústicos, veio a ser abolido pelo DL 195-A/76, de 16/3, e, logo depois, proibido pela CRP de 1976 (art. 101º, nº 2, a que corresponde o actual art. 96º, nº 2). O acórdão deste Tribunal de 9-04-2013 (p. 79/06.1TBODM.E1.S1) desenvolveu detalhadamente o tema, sobre o qual também se pronunciou o acórdão do TC nº 786/2014, de 12/11/2014, in DR nº 251/2014, II, de 30-12-2014 (com voto de vencido do Cons. Cura Mariano).