Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1624/20.5T8LLE-A.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS
TÍTULO EXECUTIVO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
PODERES DA RELAÇÃO
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
É possível em embargos de executado deduzir como defesa a compensação do crédito exequendo com um contracrédito, mesmo que este não se encontre documentado em título com força executiva.
Decisão Texto Integral:

Exequente: Mec – Montagens Electricas, Limitada

Executada: Quinta do Infante – Construção Civil e Obras Públicas, Limitada                                       

                                               *

I - Relatório

A Executada deduziu embargos à execução lhe moveu a Exequente, invocando, além do mais, ser titular de um direito de indemnização sobre esta, relativo aos prejuízos por ela sofridos em resultado do incumprimento de um contrato de empreitada celebrado entre ambas, pretendendo efetuar a compensação do mesmo com o crédito exequendo, de modo a extingui-lo.

Concluiu pela procedência dos embargos e pela consequente extinção da execução.

Contestou a Exequente, alegando, além do mais, que o direito de crédito invocado pela Executada, não é suscetível de ser utilizado para compensar o crédito exequendo, uma vez que não se encontra documentado em título executivo.

Concluiu pela improcedência dos embargos

Foi proferido saneador-sentença que julgou os embargos totalmente improcedentes.

A Executada recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação que julgou improcedente o recurso, tendo confirmado a decisão recorrida.

A Executada interpôs recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça, constando das conclusões destas alegações:

I) Visa-se com o presente recurso discutir a bondade da interpretação do artigo 847.º do CC e a alínea h) do artigo 729.º do NCPC no que respeita à figura da compensação, o que deve ser feito pelo Venerando Tribunal uniformizando a jurisprudência com ele conforme;

II) O douto acórdão recorrido está em contradição com a jurisprudência dominante do NCPC, nomeadamente com os citados Acórdãos do TRP, TRL, TRC e TRE, que defende maioritariamente e inequivocamente não ser necessária a existência de decisão judicial transitada em julgado que venha declarar a existência do crédito a invocar em sede de compensação;

III) Aliás, o NCPC diz-nos literalmente na alínea h) do artigo 729.º que é admissível «o contracrédito sobre o exequente, com vista a obter a compensação de créditos»;

IV) O douto acórdão recorrido violou por errada interpretação o disposto nos artigos 847.º do CC e alínea h) do artigo do artigo 729.º do NCPC.

A Executada apresentou resposta, pronunciando-se, em primeira linha, pela inadmissibilidade do recurso, e subsidiariamente, pela sua improcedência

Foi proferido acórdão pela Formação a que alude o artigo 672.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, admitindo o recurso de revista excecional, com fundamento em que o acórdão recorrido se encontra em oposição com o acórdão da Relação de Lisboa proferido no Processo 21843/15.5T8SNT-A.L1-2.


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II - Do objeto do recurso

Tendo em consideração as conclusões das alegações do recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar se nos embargos de executado pode ser invocada a compensação de um crédito da executada sobre a exequente que não esteja documentado em título com força executiva.

Para o conhecimento desta questão é indiferente a factualidade julgada provada neste processo.


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III - O direito aplicável

Perante a pretensão da Executada de, nos embargos à execução, extinguir o crédito exequendo através da sua compensação com um contracrédito de valor superior, cujos factos constitutivos alega nos embargos,  a sentença da 1.ª instância, na sua fundamentação de direito, após referir que não se provou o alegado contracrédito, sem que tenha incluído na lista dos factos não provados aqueles que haviam sido alegados nos embargos e de onde resultava a constituição do contracrédito, acrescentou em obiter dictum que não era possível, em embargos de executado, obter a compensação judicial do crédito exequendo, se o contracrédito não estivesse dotado de força executiva, como ocorria no caso presente.

Interposto recurso para o Tribunal da Relação, foi proferido acórdão sobre esta questão, que manteve a decisão da 1.ª instância nesta parte, agora com o único fundamento que era inadmissível a defesa por compensação judicial de créditos em embargos de executada, sem que o contracrédito alegado não estivesse documentado de título dotado de força executiva.

É a correção desta posição processual que é colocada em causa no presente recurso de revista e que, por isso, cumpre decidir.

Efetivamente no Código de Processo Civil de 1961 esta questão dividiu as opiniões e a jurisprudência [1].

Na linha do que foi decidido nestes embargos, registava-se uma forte corrente jurisprudencial [2], com alguns apoios na doutrina [3], que sustentava, em nome de uma suposta igualdade de tratamento do Exequente e do Executado e da celeridade processual executiva, que a compensação, como forma de extinção do crédito exequendo só podia ser realizada através de embargos de executado, se o contracrédito invocado estivesse documentado em título com força executiva.

Contudo, o Código de Processo Civil de 2013 resolveu legislativamente esta questão (o que não significa que não se continuem a ouvir vozes que não relevam a alteração legislativa ocorrida, quer na doutrina [4], quer na jurisprudência [5]) ao introduzir expressamente entre as defesas que é possível deduzir a uma execução de sentença “contracrédito sobre o exequente, com vista a obter a compensação de créditos” (alínea h) do artigo 729.º, do Código de Processo Civil), sem que tenha condicionado o contracrédito a compensar à sua documentação em título com força executiva, sendo essa defesa, sem quaisquer condicionantes, por identidade de razão, também possível quando a execução é baseada noutro título (artigo 731.º do Código de Processo Civil) [6].

A necessidade de uma referência expressa à possibilidade de invocar em embargos de executado este meio de defesa extintivo do crédito exequendo deveu-se, à nova qualificação processual que se pretendeu dar à compensação na ação declarativa, no artigo 266.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Como explicam Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, é que, excedendo a reconvenção a função defensiva dos embargos, a caraterização adjetiva da compensação como reconvenção levaria a negar a sua invocabilidade na dependência da ação executiva, o que seria contrário ao seu regime substantivo [7].

E esta nova norma, aditada já na parte terminal do processo legislativo que levou à aprovação de um novo Código, não só teve a virtude de esclarecer que a compensação não deixava de poder ser invocada nos embargos de executado como meio de defesa da pretensão executiva, como, ao fazê-lo, sem quaisquer restrições ou condicionantes, tomou posição na anterior problemática suscitada sobre a necessidade do contracrédito se encontrar suportado por título com força executiva.

Na verdade, não só a exigibilidade judicial do contracrédito, referida no artigo 847.º, n.º 1, a), do Código Civil, não se confunde com o seu reconhecimento judicial, como a sua invocação como meio de defesa apenas tem como finalidade fazer vingar um facto extintivo do crédito exequendo e não executar esse contracrédito, pelo que não valem aqui argumentos de igualdade de armas das partes. E razões de celeridade não se podem sobrepor à admissão de direitos de defesa.

Esta opção encontra-se agora bem expressa na lei, não tendo justificação, no domínio do direito constituído, prolongar a polémica que ocorria no âmbito do Código de Processo Civil de 1961.

Sendo possível a invocação, como fundamento de embargos de executado à execução, da existência de contracrédito sobre o exequente, com vista a obter-se a compensação de créditos, mesmo que esse contracrédito não tenha suporte em título com força executiva, o único motivo invocado pelo acórdão recorrido para julgar improcedente este fundamento dos embargos deduzidos pela Executada deixa de subsistir, tendo ficado prejudicada uma apreciação de mérito sobre a existência do contracrédito invocado e a sua compensabilidade.

Não tendo o Supremo Tribunal de Justiça o poder de se substituir ao Tribunal recorrido na apreciação das questões que ficaram prejudicadas pela solução que agora se revoga, deve o processo baixar para que aquele Tribunal as aprecie.

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Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso interposto, revogando-se o acórdão recorrido e determinando-se a baixa do processo para que seja apurado o mérito da compensação de créditos pretendida pela Executada nos embargos que deduziu.

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Custas do recurso pela Exequente.

A responsabilidade pelo pagamento das custas das instâncias será definida aquando da decisão sobre o mérito da compensação, tendo em consideração o sentido dessa decisão.

                                               *

Notifique.

                                               *

Lisboa, 10 de novembro de 2022

                                                          

João Cura Mariano (Relator)

Fernando Baptista

Ana Paula Lobo

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[1] Esta discussão tem a sua origem no facto do Código de Processo Civil de 1876, no n.º 8, do seu artigo 912.º, dispor que o executado só poderia embargar a execução ... por compensação líquida, com execução aparelhada, quando admissível nos termos de direito...(sublinhado nosso).
[2] Entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21.11.2002, 9.10.2003, 27.11.2003, 21.02.2006, 22.06.2006, 11.07.2006, 14.12.2006, 28.06.2007, 14.03.2013, 12.09.2013, 01.07.2014, 02.06.2015 e 13.07.2017.
[3] Lopes Cardoso, Manual da Ação Executiva, 3.ª ed., Almedina, 1996, pág. 263.
  No entanto, em sentido contrário, Anselmo de Castro, Ação Executiva Singular, Comum e Especial, 3.ª ed., Coimbra Editora, 1977, pág. 287-288.
[4] VIRGÍNIO DA COSTA RIBEIRO e SÉRGIO REBELO, A Ação Executiva Anotada e Comentada, 2.ª ed., Almedina, 2016, pág. 236-237, e PAULO RAMOS DE FARIA e ANA LUÍSA LOUREIRO, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. II, Almedina, 2014, pág. 249-250.
[5] V.g. Acórdãos da Relação de Évora de 23.11.2017, Proc. 3459/14 (Rel. Isabel Peixoto Imaginário), e de 30.05.2019, Proc. 5432/18 (Rel. Isabel Peixoto Imaginário), da Relação de Lisboa de 29.11.2018, Proc. 24270/16 (Rel. Carlos Marinho), e da Relação de Guimarães de 31.01.2019, Proc. 3003/17 (Rel. Alcides Rodrigues), e de 30.05.2019, Proc. 3584/18 (Rel. Joaquim Boavida).
[6] Neste sentido, LEBRE DE FREITAS, A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª ed., Gestlegal, 2018, pág. 204, nota 22, LEBRE DE FREITAS, ARMINDO RIBEIRO MENDES e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, 3.ª ed., Almedina, 2022, pág. 465, ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2.ª ed., Almedina, 2022, pág. 88, JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Manual de Processo Civil, vol. II, AAFDL, 2022, pág. 653, RUI PINTO, A Problemática da Dedução da Compensação no Código de Processo Civil de 2013, acessível em www.acdemia.edu.pt., e  Manual da Execução e Despejo, Coimbra Editora, 2013, pág. 440, e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11.07.2019, Proc. 1664/16. (Rel. Bernardo Domingos), de 28.10.2021, Proc. n.º 16/14 (Rel. Maria da Graça Trigo), e de 24.05.2022, Proc. 293/09 (Rel. Oliveira Abreu).
[7] Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, pág. 465.