Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
262/17.4T8STR.E1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: ANULAÇÃO DA PARTILHA
MEIO PROCESSUAL ADEQUADO
HOMOLOGAÇÃO
DECISÃO JUDICIAL
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
CONSTITUCIONALIDADE
EXCEÇÃO DILATÓRIA
Data do Acordão: 06/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A AREVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS SUCESSÕES / SUCESSÕES EM GERAL / PARTILHA DE HERANÇA / IMPUGNAÇÃO DA PARTILHA / FUNDAMENTO DA IMPUGNAÇÃO.
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / ACESSO AO DIREITO E TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA.
Doutrina:
-Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Volume II, 2ª edição, p. 367, nota 1182;
-Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Volume II, 4ª edição, p. 549 e ss. e 552;
-Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, 2002, Volume VII, p. 337.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 2121.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 1388.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 20.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:


- ACÓRDÃO N.º 440/94, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT.
Sumário :
I - O meio processual adequado ao pedido de anulação de partilha judicialmente homologada, por decisão transitada em julgado, está previsto no art. 1388.º do CPC, perfilando-se no uso da acção declarativa comum – este, por aplicação analógica do art. 2121.º do CC – a excepção dilatória inominada de inadequação do meio processual utilizado.

II - A solução jurídica referida em I não viola o princípio constitucional da tutela judicial efectiva, ínsito no art. 20.º da CRP.
Decisão Texto Integral:

PROC. N.º 262/17.4T8STR.E1.S2
REVISTA EXCEPCIONAL
REL. 37[1]

                                                           *

              ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. RELATÓRIO

       AA, residente em …., … …, França, e BB, residente em …, .. …, em França, interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora do despacho proferido em 15 de Março de 2017 na Secção Cível da Instância Local de ..., da Comarca de Santarém, que fixou o valor da acção em 150.000,00 € e julgou verificada a excepção dilatória inominada de inadequação do meio processo utilizado, absolvendo da instância os Réus CC, residente na ..., n.º …, ..., DD e EE, ele com residência no ..., em …, …, e ela na Rua …, lote …, n.º …, …., em ... (estes últimos na qualidade de legais representantes da menor FF, residente na ..., n.º …, ...), e o Ministério Público, em representação dessa menor, nesta acção declarativa comum, em que vem pedido que “a) seja declarada a nulidade da partilha realizada no processo de inventário, Processo n.º 923/11.1TBVNO, que corre termos na Comarca de Santarém, Juízo Local Cível de ... - J1, por óbito de GG, repondo a situação de indivisão hereditária; b) seja declarada a nulidade de qualquer venda judicial que venha a realizar-se ou transmissões subsequentes do bem adjudicado às AA., que se compõe de prédio urbano inscrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº … da freguesia de ... e inscrito na matriz predial sob o artigo ..º da mesma freguesia;, e c) seja declarado nulo qualquer registo predial de aquisição ou inscrição matricial realizado com base em venda judicial ou subsequentes transmissões”.

         O acórdão da Relação de Évora negou provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida.

         Inconformados, interpuseram as Autoras recurso de revista excepcional, com fundamento na oposição de julgados, ao abrigo do disposto nos artigos 671º e 672º, n.º 1, alínea c), do CPC.

         Nas alegações de recurso, os recorrentes concluem do seguinte modo:
A. O presente recurso de revista nasce da inconformidade das recorrentes com o acórdão de que se recorre e tem fundamento na revista excepcional prevista no artigo 672º , n.º 1, alínea c) do CPC, por estar em contradição com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 8 de Março de 2016, no âmbito do processo 1419/15.8T8FIG.C1, já transitado em julgado, indicado como acórdão-fundamento publicado em www.dgsi.pt de que se junta fotocópia.
B. No caso dos autos estão reunidos os pressupostos gerais e específicos previstos nos artigos 671º e 672º, nºs 1 e 2, alínea c), do CPC, que permitem o presente recurso.
C. Com referência aos pressupostos específicos, constata-se que: ambos os acórdãos incidem sobre a mesma questão fundamental de direito; verifica-se a contradição entre a resposta dada pelo acórdão-fundamento e o acórdão recorrido no qual se optou por uma resposta diversa; oposição frontal entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido; a questão de direito sobre a qual se verifica a controvérsia foi essencial para determinar o resultado numa e noutra das decisões; o quadro normativo é igual em ambos os acórdãos; não existe acórdão de uniformização sobre a questão jurídica em causa.
D. A questão decidenda no acórdão-fundamento e no acórdão recorrido prende-se com o facto de se saber se a partilha homologada por sentença transitada em julgado, quando não se verifiquem os requisitos para a anulação, emenda da partilha ou recurso de revisão, pode ou não ser atacada com fundamento no vício de nulidade e mediante acção com processo comum.
E. No que concerne à oposição exigida para a admissibilidade do presente recurso de revista excepcional, a mesma está verificada porquanto no acórdão recorrido entendeu-se que “a partilha que agora as autoras pretendem pôr em causa encontra-se coberta pelo caso julgado, o que significa, salvo os casos de recurso extraordinário de revisão, e das excepções previstas nos artigos 1386º a 1388º, goza de estabilidade na ordem jurídica, não podendo ser alterada. (…). Assim, tendo transitado em julgado a sentença que homologou a partilha, salvo recurso de revisão, apenas por dependência do processo de inventário será possível as Autoras virem pôr em causa os termos em que foi feita a partilha, nos termos previstos nos artigos 1386º a 1388º do CPC. Deste modo, conclui-se que a presente acção não é o meio processual próprio para o fim visado pelas Autoras”.
F. Em sentido contrário, expendeu o acórdão-fundamento que “a partilha judicial homologada por sentença pode ser atingida pelos vícios aplicáveis aos negócios jurídicos (artigo 286º e seguintes do Código Civil), uma vez que incidindo a sentença homologatória da partilha sobre um encontro de vontades decorrente da conferência de interessados, releva e prevalece o acordo sobre a partilha entre todos os herdeiros, e não a autoridade  do caso julgado (tal acordo deve ser considerado, juntamente com a sentença transitada homologatória de tal partilha, elemento estruturante do ato da partilha), sendo assim defensável a aplicação das regras de ineficácia e de invalidade próprios dos negócios jurídicos (v.g., as dos artigos 240º e seguintes do Código Civil), senão directamente, pelo menos por analogia do artigo 2121º do CC”.
G. A matéria relevante no acórdão-fundamento apresenta indubitáveis traços de identidade com a do acórdão recorrido, sendo questão fulcral em ambos os acórdãos precisamente a mesma, embora com divergentes conclusões (o que, por si só, determina a pertinência do recurso apresentado).
H. No acórdão-fundamento entende-se de forma absolutamente clara que “para obter a declaração da nulidade das partilhas judiciais a ação declarativa de simples apreciação, sob a forma comum, é a forma de processo própria/adequada”.
I. No acórdão-fundamento considera-se que a acção com processo comum é o meio próprio porquanto a nulidade da partilha não se integra em nenhum dos fundamentos previstos que permita usar da acção de anulação ou emenda, nem do recurso de revisão; por outro lado, no acórdão recorrido consignou-se que a sentença homologatória de partilha goza de estabilidade na ordem jurídica apenas podendo ser atingida por um daqueles três meios.
J. As recorrentes pretendem ver declarada a nulidade da partilha por violação de disposição legal imperativa, invocável a todo o tempo e não sanável, pelo que, conduzindo há sua ineficácia global.
K. Atenta a realidade concreta dos autos, concluímos que o pedido formulado pelas recorrentes na acção é merecedor de tutela jurídica.
L. A oposição existente entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento é clara e evidente, aliada à inexistência de acórdão de uniformização de jurisprudência, uma vez que a questão jurídica em causa não encontra resposta estabilizada na jurisprudência.
M. A interpretação feita no acórdão-fundamento afigura-se-nos doutamente fundamentada e com sustentação na doutrina, parecendo-nos ser a jurisprudência a aplicar ao caso dos autos.
N. O dissentimento verificado não deve resolver-se do modo proposto pelo acórdão recorrido, mas antes do modo proposto no acórdão-fundamento, uma vez que a posição adoptada pelo acórdão recorrido afronta, de forma indelével, o princípio da verdade material e o princípio constitucional da tutela judicial efectiva, ínsito no artigo 20º da CRP.
O. A douta opinião do Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, António Santos Abrantes Geraldes, expressa in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2ª edição, páginas 333 e 334, adequa-se totalmente aos presentes autos quando escreve: “(…) o recurso de revista excecional pode constituir um bom pretexto para a promoção de uniformização de jurisprudência. Por um lado, porque assim o podem demandar os interesses em presença, tendo em conta os pressupostos da revista excepcional ligados à melhor aplicação do direito ou à atenção devida a interesses de particular relevância social. Por outro lado, porque, resolvidas as divergências interpretativas através de acórdãos uniformizadores, para além de se transmitir ao sistema maior segurança, o STJ consegue evitar, para o futuro, a invocação de contradições jurisprudenciais como motivo específico da revista excepcional, nos termos do artigo 672º, n.º 1, alínea c)”.
P. Estão assim verificados os pressupostos referidos no n.º 1, alínea c), do artigo 672º, do CPC, que permitem a admissão do presente recurso.
Q. O tribunal recorrido pronunciou-se no mesmo sentido da sentença proferida pela primeira instância, tecendo, para além do mais, as seguintes considerações:
          “Com efeito, a partilha que agora as Autoras pretendem pôr em causa encontra-se coberta pelo caso julgado, o que significa que, salvo os casos de recurso extraordinário de revisão, e das excepções previstas nos artigos 1386º a 1388º, goza de estabilidade na ordem jurídica, não podendo ser alterada. (…) Assim, tendo transitado em julgado a sentença que homologou a partilha, salvo recurso de revisão, apenas por dependência do processo de inventário será possível as Autoras virem pôr em causa os termos em que foi feita a partilha, nos termos previstos nos artigos 1386.º a 1388.º do CPC. Deste modo, conclui-se que a presente acção não é o meio processual próprio para o fim visado pelas Autoras”.

            Razões para que, neste enquadramento fáctico e jurídico, se tenha agora que manter, intacta na ordem jurídica, a douta decisão da 1ª instância que como tal veio a concluir, e assim improcedendo o presente recurso de apelação”.
R. As recorrentes instauraram acção na qual peticionaram, para lá do mais, a declaração de nulidade da partilha judicial por óbito de GG, realizada no âmbito do processo de inventário n.º 923/11.1TBVNO, que se encontra pendente no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Cível de ....
S. Invocaram para tanto a violação de disposições imperativas que eivam a partilha realizada do vício de nulidade insanável.
T. Para tanto, sustentam a aplicação àquela partilha judicial do regime de invalidade dos negócios jurídicos, tendo em consideração que a sentença se limitou a homologar a partilha, não se pronunciando sobre qualquer questão de mérito.
U. Nos termos do disposto no artigo 620º do CPC, o caso julgado da sentença abrange as situações de caso julgado formal e caso julgado material, sendo que a sentença homologatória da partilha não faz caso julgado material no que respeita à violação de disposições imperativas.
V. O acórdão recorrido atribuiu um efeito de estabilidade jurídica inatacável à sentença homologatória da partilha que esta não tem.
W. O douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, invocado como acórdão-fundamento, proferido em 08.03.2016, no âmbito do processo 1419/15.8T8FIG.G1, em que foi relator o Ex.º Juiz Desembargador Dr. Fonte Ramos, pronunciou-se a este respeito com o seguinte sumário:

“1.      Incidindo a sentença homologatória da partilha sobre um encontro de vontades decorrente da conferência de interessados, releva e prevalece o acordo sobre a partilha entre todos os herdeiros, e não a autoridade do caso julgado (tal acordo deve ser considerado, juntamente com a sentença transitada homologatória de tal partilha, elemento estruturante do acto da partilha), sendo assim defensável a aplicação das regras de ineficácia e de invalidade próprias dos negócios jurídicos (v. g., as dos art.ºs 240º e seguintes, do CC), senão directamente, pelo menos por analogia com o art.º 2121º, do CC.

2.        Em matéria de declaração da ineficácia da partilha, aplicam-se as regras gerais dos negócios jurídicos (art.ºs 286º e seguintes, do CC), sendo que a declaração de ineficácia global tem como consequência fazer extinguir, retroactivamente ao momento da abertura da sucessão (cf. os art.ºs 289º e 2119º, do CC), os efeitos próprios da partilha hereditária, repondo a situação de indivisão hereditária (que só poderá ser superada com nova partilha, face à ineficácia global da primitiva).

3.         Para obter a declaração da nulidade das partilhas judiciais a acção declarativa de simples apreciação, sob a forma comum, é a forma de processo própria/adequada”.

X.       As recorrentes perfilham a interpretação dada pelo acórdão-fundamento por se afigurar que é a que melhor realiza as finalidades do direito, com vista à boa decisão da causa e procura da mais correcta solução a aplicar.
Y.      O Tribunal interpretou e aplicou erradamente o disposto nos artigos 286º e 289º, 2156º, 2157º e 2159º do Código Civil; artigos 1386º a 1389º do CPC (na redacção anterior à Lei 41/2013, de 26/6) e nos artigos 620º, 576º, nºs 1 e 2, 577º, 578º do CPC, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6.

Z.        O acórdão recorrido viola o disposto nos artigos 154º, 193º, n.º 3, 576º, n.º 1 e 2, 577º, 578º do CPC, bem como os artigos 20º e 205º da Constituição da Republica Portuguesa, é ainda violadora da lei substantiva por erro de interpretação dos artigos 286º e 289º do CC e da lei substantiva constante dos artigos 1386º a 1388º na redacção anterior à Lei 41/2013, de 26/6.

            Não houve contra-alegações.

A Formação, em acórdão de 22.02.2018, admitiu a revista excepcional.

                                                           *

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das recorrentes, as questões que importa dirimir são:
a) Esta acção constitui o meio processual adequado para o fim visado, por ser de aplicar, por via analógica, o artigo 2121º do CC?
b) A solução jurídica vertida no acórdão recorrido viola o disposto no artigo 20º Constituição?

*

            II.        FUNDAMENTAÇÃO

            OS FACTOS

            Vêm provados os seguintes factos:

1. No dia 28 de Setembro de 2010 faleceu GG, no estado de divorciado de HH, natural que foi da freguesia de ..., concelho de ..., com última residência habitual na Rua ..., n.º …, …, ..., ... (artigo 5º da petição inicial).

2. No dia 7 de Junho de 2011 veio a Autora AA requerer inventário judicial para partilha da herança de seu pai GG, que deu origem ao processo 923/11.1TBVNO, que corre seus termos pelo Tribunal da Comarca de Santarém, ..., Instância Local Cível, J1 (artigo 6º da petição inicial).

3. Sucederam-lhe, como herdeiras legitimárias, as suas duas únicas filhas, aqui Autoras (artigo 7º da petição inicial).

4. O inventariado GG havia outorgado no dia 9 de Dezembro de 2005, testamento no Cartório Notarial de II, em ..., nos seguintes termos:
Que lega a CC, viúva, natural da freguesia de ..., concelho de ... e com ele residente, o usufruto do prédio urbano sito na ..., n.º …, na freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo …º.
Que lega a nua-propriedade do mesmo prédio, em partes iguais, a suas filhas, JJ e AA e a sua afilhada FF, filha de DD e de EE.
Que assim, termina esta sua disposição de última vontade” (artigo 8º da petição inicial).

5. Foi designada cabeça de casal e feito juramento pela Autora BB (vide fls. 26 e 27 do documento 2), apesar das Autoras terem sido representadas em todos os actos pela sua procuradora, sua tia KK, a qual constituiu mandatária (artigo 9º da petição inicial).

6. No âmbito desse processo de inventário, foi apresentada a relação de bens de onde consta a verba única que é o bem imóvel composto de prédio urbano, sito na ..., Lote 23, na freguesia de ..., concelho de ..., composto de prédio urbano, destinado a habitação, com a área total de 773 m2, inscrito na matriz sob o artigo …º (anteriormente, artigo 1812º) e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número …, com o valor patrimonial de € 73.360,00 (setenta e três mil e trezentos e sessenta euros) – (artigo 10º da petição inicial).

7. Em 8 de Janeiro de 2013 foi marcada a conferência de interessados a qual foi adiada por sobre o imóvel incidir uma inscrição hipotecária a favor do “LL, S.A.”, conforme a inscrição feita pela Apresentação 3, de 1999/09/16 (artigo 11º da petição inicial).

8.         O Tribunal procedeu à citação do credor hipotecário “LL, S.A.” para os termos do inventário e para, no prazo de trinta dias, deduzir oposição ou impugnação nas questões relativas à verificação dos seus direitos (artigo 12º da petição inicial).

9.        No dia 13 de Maio de 2013 foi realizada conferência de interessados, tendo sido requerida a avaliação do único bem que compunha a relação de bens (artigo 13º da petição inicial).

10.      Em 6 de Fevereiro de 2014 foi realizada conferência de interessados no âmbito da qual as aqui Autoras, representadas pela sua procuradora KK, licitaram em conjunto sobre a verba única, identificada na relação de bens de fls. 20, pelo valor de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) – (artigo 14º da petição inicial).

11.      Por requerimento datado de 17 de Fevereiro de 2014, foi indicada a forma à partilha, dele constando, para além do mais: “(...) Todavia o testador excedeu o que legitimamente poderia dispor, isto é, a sua quota disponível (1/3) em detrimento do quinhão legitimário das duas únicas filhas (2/3), pelo que haverá redução por inoficiosidade (...)” (artigo 15º da petição inicial).

12.       E veio a ser proferido despacho determinativo da partilha em 7 de Abril de 2014, nos seguintes termos:
O inventariado GG faleceu em 28.09.2010, no estado de divorciado.
O inventariado, por escritura datada de 9.11.2005, outorgou testamento, mediante o qual institui como legatárias da nua propriedade do seu único bem imóvel as filhas e FF, bem como instituiu legatária do usufruto desse mesmo bem, CC.
O inventariado deixou como descendentes as suas duas filhas: AA e MM, solteiras, maiores.
Sucedem-lhe as duas filhas e FF.
Procede-se à partilha da Herança deixada por GG do seguinte modo:
- O valor do único bem da relação de bens (corrigido pelo valor licitado na conferência de interessados) divide-se em três partes iguais, constituindo uma delas a quota disponível e as restantes duas a quota indisponível;
- No valor da quota disponível imputar-se-á o valor do usufruto legado a CC, calculado nos termos do disposto no artigo 13º do CIMI;
- O remanescente da quota disponível somar-se-á ao valor da quota indisponível dividindo-se este valor em três partes iguais, cabendo duas delas a cada uma das filhas do inventariado, a quem serão adjudicadas e a terceira parte a FF, a quem será adjudicada;
Na composição dos quinhões, tomar-se-á em consideração o acordado e licitado na conferência de interessados” (artigo 16º da petição inicial).

13.      Deste mesmo despacho determinativo da partilha veio a aqui Autora BB, e cabeça de casal no inventário, reclamar nos termos constantes de fls. 49 a 56, invocando, para lá do mais: “(...) O despacho, e só nesta parte, não está de acordo com as regras da sucessão e em desacordo com o que vem exposto anteriormente, pois a quota indisponível (legítima) pertence exclusivamente às suas duas filhas, é intocável e não pode ser alterada (...)”, que se dá por reproduzido na íntegra, requerendo o deferimento da reclamação e a rectificação daquele despacho (artigo 17º da petição inicial).

14.      A referida reclamação foi indeferida por despacho de 27 de Maio de 2014, por falta de fundamento legal, invocando, para tanto, que o despacho determinativo da partilha só poderia ser impugnado com a apelação interposta da sentença homologatória da partilha (artigo 18º da petição inicial).

15.       Em 22 de Setembro de 2014 foi elaborado o Mapa Informativo, nos termos do artigo 1376.º do Cód. Proc. Civil, resultando do mesmo a existência de excesso de quinhão das aqui Autoras (artigo 19º da petição inicial).

16.      Pelo que por despacho de 24.09.2014, foi ordenada a notificação do aqui Réu DD, na qualidade de curador da menor FF, e do aqui ainda Réu Ministério Publico, na qualidade de representante da referida interessada menor, para virem requerer a composição dos quinhões ou reclamar o depósito das tornas (artigo 20º da petição inicial).

17.      O Ministério Público, em representação da menor FF, em 10.10.2014, veio reclamar o depósito das tornas (artigo 21º da petição inicial).

18.       Notificadas para efectuarem o pagamento das tornas, a fls. 66 e 67, as Autoras, não concordando com o despacho determinativo da partilha, disso deram conta à sua procuradora, e por tal facto não efectuaram o pagamento das referidas tornas, tendo as aqui Autoras reclamado nos termos constantes do seu requerimento de fls. 68 a 75 do documento 2, peticionando a reforma do mapa, alegando, para lá do mais, que: “As ora Requerentes, na qualidade de herdeiras legitimárias, têm legitimidade para requerer, neste processo, a redução das liberalidades inoficiosas como exposto para defender a sua legítima, conforme estipulado nos artigos 2168º e 2169º do Código Civil” (artigo 22º da petição inicial).

19.      A referida reclamação foi indeferida nos termos de douto despacho, com fundamento em que o mapa havia sido elaborado em conformidade com o despacho determinativo da partilha (artigo 23º da petição inicial).

20.      Mas, não tendo as tornas sido pagas pelas aqui Autoras, o Ministério Público veio requerer que se procedesse à venda dos bens adjudicados aos devedores (artigo 24º da petição inicial).

21.      Em 30 de Abril de 2015 foi elaborado o Mapa de Partilha (artigo 25º da petição inicial).

22.      No dia 12 de Junho de 2015 foi proferida sentença homologatória da partilha, já transitada em julgado no dia 3 de Setembro de 2015 (artigo 26º da petição inicial).

23.       E, por despacho de 18 de Setembro de 2015, foi determinada a venda dos bens que foram adjudicados naqueles autos de inventário às aqui Autoras (artigo 27º da petição inicial).

O DIREITO

a)
           Conforme assinalado no acórdão da Formação, a questão controvertida consiste essencialmente em saber se a acção de processo comum de que as recorrentes se socorrem para obter a anulação da partilha judicial é o meio próprio.
Vejamos:
           Em 2011, foi requerido inventário judicial para partilha da herança de GG, falecido em 28.09.2010, a quem sucederam como herdeiras legitimárias as suas duas únicas filhas, aqui Autoras e recorrentes, AA e BB.
           O inventariado deixou testamento no qual instituiu como legatárias da nua propriedade do seu único bem imóvel as filhas (aqui Autoras) e FF (aqui representada pelos 2ºs Réus e pelo Ministério Público), e como legatária do usufruto desse mesmo bem a viúva CC (aqui 1ª Ré) – cfr. ponto 4., supra.
            No despacho determinativo da partilha, lavrado em 07.04.2014, determinou-se que o valor da quota indisponível fosse dividido em três partes iguais, cabendo duas delas a cada uma das filhas do inventariado e a terceira parte a FF – cfr. ponto 12.
           As recorrentes insurgem-se, agora, contra essa determinação, considerando que foi violada a sua legítima, em virtude da quota indisponível lhes pertencer em exclusivo e ser intocável. Manifestam-se ainda contra o facto de o tribunal não ter ordenado a redução da liberalidade inoficiosa do legado instituído no testamento, apesar de tal ter sido requerido no devido tempo.
A presente acção tem, portanto, como alvo uma partilha judicial, confirmada por sentença homologatória devidamente transitada em julgado.
           Aplicando-se aos autos o regime jurídico de processo de inventário anterior ao que foi introduzido pela Lei 23/2013, de 5 de Março, (por força do artigo 7º dessa Lei), vejamos o que dispunham os artigos 1386º a 1388º do CPC a respeito das possibilidades de emenda ou anulação da partilha judicial.

          Artigo 1386º
                                                                         Emenda por acordo
1 - A partilha, ainda depois de passar em julgado a sentença, pode ser emendada no mesmo inventário por acordo de todos os interessados ou dos seus representantes, se tiver havido erro de facto na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes.
2 - O disposto neste artigo não obsta à aplicação do artigo 667.º

Artigo1387.º
    Emenda na falta de acordo
1 - Quando se verifique algum dos casos previstos no artigo anterior e os interessados não estejam de acordo quanto à emenda, pode esta ser pedida em acção proposta dentro de um ano, a contar do conhecimento do erro, contanto que este conhecimento seja posterior à sentença.
2 - A acção destinada a obter a emenda segue processo ordinário ou sumário, conforme o valor, e é dependência do processo de inventário.
                                                                              Artigo 1388º
                                                                                Anulação
1 - Salvos os casos de recurso extraordinário, a anulação da partilha judicial confirmada por sentença passada em julgado só pode ser decretada quando tenha havido preterição ou falta de intervenção de algum dos co-herdeiros e se mostre que os outros interessados procederam com dolo ou má fé, seja quanto à preterição, seja quanto ao modo como a partilha foi preparada.
2 - A anulação deve ser pedida por meio de acção à qual é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo anterior.

Resulta destas disposições legais que, em relação à partilha judicialmente homologada por sentença transitada em julgado, os interessados que se julguem de alguma forma prejudicados só têm ao seu alcance, para além do recurso extraordinário de revisão, três meio específicos: a) a emenda da partilha por acordo de todos eles; b) na falta de tal acordo, a acção para a emenda da partilha proposta dentro de um ano a contar do conhecimento do erro; c) a acção para a anulação da partilha judicial.
A emenda da partilha, com ou sem acordo, pode ocorrer nas situações em que exista erro de facto na descrição (aqui se compreendendo toda a descrição que não corresponda à verdade: um prédio rústico por um urbano; um móvel por um imóvel; o número de fracções de um prédio em propriedade horizontal, etc.) ou qualificação dos bens (por exemplo, considerar-se como livre um prédio sujeito a cláusula fideicomissária ou mencionarem-se como pedras preciosas simples bagatelas) ou qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes (por exemplo, atribuírem-se valores superiores ou inferiores aos bens da herança, por não se terem tomado em atenção os novos valores resultantes de uma segunda avaliação, ou agir-se no convencimento de que determinados bens pertencem à herança quando, julgado o inventário, se vem a reconhecer que tal não sucede)[2].
Como ensina Lopes Cardoso[3], “só o erro objectivo é susceptível de emendar a partilha, pois todo o erro deve ter este conteúdo para ser atendido em ordem a obter-se esse fim. Doutra forma abrir-se-ia campo raso perante a emenda com dispensa de prazo para a obter através de acção idónea (Cód. Proc. Civil, art. 1387º). Por assim dizer, a sentença jamais transitaria”.
Os casos de anulação da partilha, por sua vez, estão taxativamente enunciados no artigo 1388º. São eles: o recurso extraordinário (revisão) e a preterição ou falta de intervenção de algum dos co-herdeiros mostrando-se que os outros interessados procederam com dolo ou má-fé, seja quanto à preterição, seja quanto ao modo como a partilha foi preparada.
No caso da emenda, a partilha mantém-se na sua essência, apenas se corrigindo a parte que padece de alguma das deficiências ou irregularidades tipificadas no artigo 1386º. No caso de anulação, a partilha é completamente invalidada, ficando destruídos os respectivos efeitos.
Tanto a acção destinada a obter a emenda da partilha (quando não haja acordo dos interessados), como a acção dirigida à anulação da partilha, correm por dependência do inventário respectivo, como decorre do n.º 2 de cada um dos artigos 1387º e 1388º.

As recorrentes, como já haviam feito nas alegações da apelação[4], afastam a aplicação de qualquer uma das supracitadas normas, referindo que a pretensão que deduziram se funda na violação de norma imperativa e que essa violação apenas pode determinar a nulidade da partilha e não a sua emenda ou anulação[5].
           Ou seja, entendem as recorrentes que a acção declarativa comum é o meio processual adequado para fazer valer a sua pretensão, em virtude de esta não se basear em nenhuma das possibilidades que a lei prevê para a emenda ou anulação da partilha judicial.
            Socorrem-se, para tanto, do decidido no acórdão da Relação de Coimbra de 08.03.2016 (acórdão-fundamento), no qual          se decidiu que, para obter a declaração de nulidade da partilha judicial, a acção declarativa de simples apreciação, na forma comum, é a forma de processo adequada, em função da aplicação, por analogia, do disposto no artigo 2121º do CC, uma vez que “incidindo a sentença homologatória da partilha sobre um encontro de vontades decorrente da conferência de interessados, releva e prevalece o acordo sobre a partilha entre todos os herdeiros e não a autoridade do caso julgado”.
            Com o devido respeito, não sufragamos este entendimento que, ao que julgamos, não encontra eco na doutrina e na jurisprudência.
            São duas as razões que podemos desde já avançar.
           
No que concerne à partilha há que distinguir a que foi celebrada por via extrajudicial da que foi homologada judicialmente por decisão transitada em julgado.
Os regimes de anulação de uma e de outra são completamente diferentes.
A primeira, reconduzindo-se a um mero negócio jurídico entre os interessados, é impugnável nos casos em que o sejam os contratos, conforme expressamente dispõe o artigo 2121º do CC, que remete para as regras da nulidade e anulabilidade do negócio jurídico constantes dos artigos 285º e seguintes do CC.
A partilha judicial, dependendo do trânsito em julgado da sentença que a homologar, só pode ser impugnada nos casos previstos no artigo 1388º do CPC.
Capelo de Sousa explica[6]:
“Porque não existe um acordo entre todos os herdeiros estruturante da partilha, a sentença homologatória da partilha (…), quando transitada em julgado, exprime a decisão judicial reguladora dos conflitos de interesses, subjacentes no inventário entre os partilhantes. Nestes termos, só ela contém e estrutura a partilha.
Simplesmente, tal sentença teve uma certa história e supõe determinados pressupostos substanciais e processuais, susceptíveis de vícios. Alguns deverão considerar-se sanados ou esgotados pelas necessidades de certeza e segurança atribuíveis ao caso julgado (…). Outros, a lei fá-los relevar pela sua influência em actos preparatórios fundamentais da partilha, admitindo a emenda ou a anulação judicial da partilha (arts. 1386º a 1388º do CPCiv.)”.
A acentuação desta diferença faz com que os casos de anulação da partilha extrajudicial não sejam aplicáveis à anulação da partilha judicial, nem que os pertinentes a esta relevem para aquela[7], refutando-se a possibilidade de aplicação analógica do artigo 2121º aos casos de anulação de partilha judicial.  Na realidade, o chancelamento de uma partilha mediante sentença passada em julgado, com tudo o que isso representa, não pode estar no mesmo patamar de impugnabilidade de uma partilha amigável realizada pelos interessados através de instrumento notarial. Daí que o caminho processual para a impugnação da partilha judicial tenha de ser mais estreito ou mesmo excepcional, em nome da certeza e segurança jurídicas que dimanam da força e autoridade do caso julgado.

            Por outro lado, não estando os interessados conformados com o modo como se fez a partilha judicial homologada por sentença, têm sempre eles ao seu dispor um instrumento legal poderoso para conseguirem a modificação do decidido: o recurso. Mas, se deixarem transitar em julgado a decisão homologatória da partilha, só lhes restará a possibilidade de pedirem a anulação da partilha, nos apertados casos acima descritos.
Certo para nós é que não podem as Autoras recorrentes usar a acção declarativa comum para esse efeito, ao abrigo da aplicação analógica do artigo 2121º, pelo que bem decidiram as instâncias ao considerarem verificar-se a excepção dilatória inominada de inadequação do meio processual utilizado.  

b)
Dizem as recorrentes que o acórdão recorrido afronta o princípio constitucional da tutela judicial efectiva, ínsito no artigo 20º da CRP – cfr. conclusão N).
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas[8].
No caso concreto, não vemos como possa dizer-se que a decisão recorrida violou a referida disposição constitucional, nomeadamente nas vertentes a) e b) acabadas de referir, na medida em que o tribunal apenas se limitou a não reconhecer como processualmente idóneo o meio processual escolhido pelas Autoras, em função do específico regime que o legislador ordinário, na sua liberdade de conformação, julgou adequado a regular os casos de anulação da partilha judicial. 

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III. DECISÃO

Nos termos que ficaram expostos, nega-se provimento à revista e confirma-se o acórdão recorrido.

                                                           *

            Custas pelas recorrentes.

                                                                       *


LISBOA, 19 de Junho de 2018

Henrique Araújo (Relator)
Maria Olinda Garcia
Salreta Pereira
           
       
_________________           
[1] Relator:     Henrique Araújo
  Adjuntos:  Maria Olinda Garcia
                      Salreta Pereira
[2] Exemplos retirados de “Partilhas Judiciais”, de Lopes Cardoso, Volume II, 4ª edição, páginas 549 e seguintes.
[3] Ob. cit., página 552.
[4] Cfr. conclusão R. da apelação, a fls. 224, verso.
[5] Cfr. conclusão S. da revista.
[6] “Lições de Direito das Sucessões”, Volume II, 2ª edição, página 367, nota 1182.
[7] Lopes Cardoso, ob. cit., página 569 e Rodrigues Bastos, “Notas ao Código Civil”, 2002, Volume VII, página 337.
[8] Cfr., entre outros, o Acórdão n.º 440/94, em www.tribunalconstitucional.pt.