Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2418/16.8T8FNC.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
VENDA JUDICIAL
HIPOTECA
CADUCIDADE
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
BEM IMÓVEL
INTERPRETAÇÃO DA LEI
DIREITO REAL
DIREITO PESSOAL DE GOZO
OBJETO DO RECURSO
CONTRA-ALEGAÇÕES
AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO
Data do Acordão: 11/03/2021
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
A venda, em processo executivo, de imóvel arrendado para habitação, quando o contrato de arrendamento tenha sido celebrado depois da constituição de hipoteca sobre esse imóvel, não faz caducar o arrendamento, como decorre do art. 1057.º do CC, não sendo aplicável o art. 824.º, n.º 2, do CC.
Decisão Texto Integral:


Processo nº 2418/16.8T8FNC.L1.S1

Recorrente: BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, SA

Recorrida: AA

RELATÓRIO

1.  Banco Comercial Português S.A. propôs a presente ação contra BB e AA, pedindo a condenação destes a:

 A) reconhecer ao A. o direito de propriedade sobre a fração autónoma identificada no art. 27 da petição inicial;

B) entregar ao A., imediatamente e livre de pessoas e coisas, essa mesma fração.

2. Na sentença, decidiu-se julgar a ação procedente por provada e, em consequência, declarou-se o seguinte:

 «a) Reconheço o Banco Comercial Português, S.A., como titular do direito de propriedade incidente sobre a fracção autónoma designada pelas letras “BA”, integrada no prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, denominado “Apartamentos ...”, sito ao ..., ..., freguesia ....., inscrito na matriz cadastral respetiva sob o artigo ......09ºe descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nºº ......26;

b) Condeno os Réus a reconhecer o Autor como proprietário da fracção referida em a);

c) Reconheço a caducidade do contrato de arrendamento celebrado entre os Réus e, em consequência, condeno os Réus a restituir ao Autor a fracção mencionada em a), livre e desocupada de pessoas e bens.».

3. Inconformada com essa decisão, a ré, AA, interpôs recurso de apelação, sustentando, entre outros argumentos, que a ação devia improceder por não ter ocorrido a caducidade do contrato de arrendamento. O autor contra-alegou sustentando a confirmação da sentença.

4. O Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão recorrido decidiu (com um voto de vencido) nos seguintes termos:

«Pelo exposto, julgando a apelação parcialmente procedente, improcedente na parte restante, altera-se a sentença recorrida, na medida em que se julga a acção parcialmente improcedente, por não provada, para eliminar da respectiva decisão, que no mais se mantém, o seu ponto C), acima transcrito, e absolver os réus do pedido de condenação a entregar ao autor, imediatamente e livre de pessoas e coisas, a identificada fracção autónoma designada pelas letras “BA” do prédio, denominado “Apartamentos ...”, sito ao ..., ..., freguesia ..., inscrito na matriz cadastral respectiva sob o artigo …09° e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº. .......26

5. Inconformado com a decisão, o autor, Banco Comercial Português, interpôs o presente recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

«A). A 1ª instância julgou a acção procedente por provada, e em consequência:

 “a. Reconheço o Banco Comercial Português, S.A. como titular do direito de propriedade incidente sobre a fracção autónoma designada pelas letras “BA”, integrada no prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, denominado “Apartamentos ...”, sito ao ..., ..., freguesia…..., inscrito na matriz cadastral respectiva sob o artigo .....09º e descrito na Conservatória do Registo Predial …... sob o nºº .......26;

b. Condeno os Réus a reconhecer o Autor como proprietário da fracção referida em a.;

c. Reconheço a caducidade do contrato de arrendamento celebrado entre os Réus e, em consequência, condeno os Réus a restituir ao Autor a fracção mencionada em a., livre e desocupada de pessoas e bens”.

B. Concluiu a 1ª instância pela inclusão do contrato de arrendamento na definição de ónus constante do artigo 824º, nº. 2, do Código Civil.

C. Contudo, o acórdão ora recorrido perfilha uma orientação jurisprudencial e doutrinaria minoritária, na medida em que entende que o Autor, como comprador, por venda judicial do imóvel hipotecado a seu favor, não beneficia do cancelamento do arrendamento, anterior à respectiva penhora, por aplicação do artigo 824.º, nº 2 do Código Civil.

D. A jurisprudência em que se louva a decisão de que agora se recorre, ressalvado o devido respeito, verifica-se obsoleta.

E. Atualmente é inquestionável a aplicação do nº 2 do artigo 824.º do Código Civil, uma vez que, sendo o arrendamento, registado ou não, constituído após o registo de hipoteca, arresto ou penhora, é inoponível ao comprador do imóvel em venda judicial na ação executiva, caducando automaticamente com a concretização dessa venda.

F. O entendimento contrário, como é o do acórdão de que se recorre, conduz a resultados profundamente nefastos, uma vez que, vistas as coisas pelo prisma do credor hipotecário, é consabida a repercussão negativa, em termos de valor-preço, que a celebração de um contrato de arrendamento provoca no imóvel.

G. Sendo certo que o valor de um prédio arrendado é, sempre, inferior ao valor de um prédio livre de ónus.

H. Entende o Tribunal da Relação através do acórdão de que se recorre (não sendo este o entendimento da jurisprudência maioritária deste Tribunal da Relação), que a relação jurídica de arrendamento, atendendo ao modelo de direito real ínsito no artigo 1305.º CC, não se confunde com um direito diretamente referido à coisa arrendada, com um direito que tem por objeto a coisa arrendada, isto é não se confunde com um direito real.

I. E que, o direito do arrendatário não é real, mas integra como direito de crédito uma estrutura jurídica obrigacional, não tem que ser suprimido por aplicação do artigo 824.º, nº 2 do CC.

J. Não poderíamos mais estar em desacordo.

K. Ora, o proprietário goza, de modo pleno e exclusivo, dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, como é o caso do identificado imóvel, nos termos do artigo1305º do Código Civil (CC).

L. E o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence, de acordo com o artigo 1311º do CC.

M. O imóvel em questão está a ser ocupado pela Ré AA sem autorização e contra a vontade do Autor.

Isto porque, o Réu BB celebrou com a Ré AA um Contrato de Arrendamento para habitação com prazo certo em 29.04.2011.

O. Sucede que, nos termos do artigo 824º nº 1 do CC, a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.

P. Contudo, pela aplicação analógica do nº 2 do mesmo preceito, o contrato de arrendamento caduca, na sequência da venda judicial do imóvel sobre o qual incidia garantia real constituída em beneficio do adquirente, em momento anterior à data da celebração de tal contrato.

Q. São, portanto, inoponíveis ao comprador em execução judicial as relações locativas constituídas posteriormente ao registo de qualquer garantia real constituída em benefício daquele.

R. E, na sequência do Contrato de Compra e Venda celebrado em 04.06.2009, entre o Réu BB e o ora A., foi constituída hipoteca a favor deste sobre a fração autónoma em questão.

S. E, o contrato de arrendamento celebrado entre os Réus data de 29.04.2011, ou seja, é posterior à constituição da hipoteca a favor do aqui A.

T. Posto isto, os efeitos decorrentes do contrato de arrendamento encontram-se claramente extintos por caducidade, pela enumeração não taxativa do artigo 1051º do CC.

U. Com todo o respeito que nos merece tal Alto Tribunal, não se pode deixar de entender datada e ultrapassada a teoria de que o autor, como comprador por venda judicial do imóvel hipotecado a seu favor, não beneficia do cancelamento do arrendamento, anterior à respectiva penhora, por aplicação do artigo 824.º, nº 2, do CC.

V. Assim, outra não poderia ser senão a conclusão da sentença proferida em 1ª instância: a compra executiva realizada pelo autor determinou, por aplicação do artigo 824.º, nº 2 do CC, a caducidade do contrato de arrendamento celebrado entre BB, como proprietário e senhorio, e AA, como arrendatária.

W. Mais, o acórdão ora proferido entra em contradição com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido dias antes, no processo 1452/17.5T8CSC.L1-7, já transitado em julgado, Rel. Maria da Conceição Saavedra, disponível para consulta em www.dgsi.pt.

X. Nesse acórdão da Relação de Lisboa (bem como em toda a jurisprudência supra mencionada), estabelece-se que o contrato de arrendamento de bem imóvel, com hipoteca registada em data anterior, caduca com a venda judicial, nos termos do art. 824.º, nº 2, do CC., enquanto, no acórdão ora recorrido, se entende precisamente o contrário.

Termos em que o recurso deve ser admitido e merecer provimento, com as legais consequências

6. A recorrida, AA, contra-alegou, invocando, em síntese (para além de outros argumentos que não relevam diretamente para o objeto do presente recurso), que o contrato de arrendamento não havia caducado.

7. Dado que se encontrava a correr no STJ processo tendente à uniformização de jurisprudência sobre o problema central em discussão nos autos, a instância foi suspensa até à prolação do respetivo acórdão, o qual veio a corresponder ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 2/2021, publicado no Diário da República nº 151/2021, (Série I de 05.08.2021).

II. APRECIAÇÃO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS:

1. Admissibilidade e objeto do recurso.

Dado que o acórdão revogou a alínea c) da sentença, o recurso de revista é, nessa medida, admissível, nos termos do art.671º, nº 1. Mesmo que nessa matéria tivesse existido dupla conformidade decisória, sempre a revista seria admissível, dada a existência de voto de vencido relativamente a esse ponto da decisão.

Tendo presente que o objeto do recurso é traçado pelas conclusões das alegações do recorrente [artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º do CPC], é a seguinte a questão jurídica a conhecer: saber se o contrato de arrendamento para habitação, no qual a recorrida é arrendatária, caducou com a venda executiva do imóvel locado (adquirido pelo autor recorrente).

A ré, agora recorrida, vem, nas suas contra-alegações, tecer considerações sobre a legitimidade processual passiva do outro réu [o seu anterior senhorio, BB (que não contra-alegou), invocando preterição do litisconsórcio, dado que a ação não havia sido proposta contra a mulher daquele), bem como considerações sobre o não reconhecimento do direito de propriedade do autor. Todavia, a recorrida não requereu a ampliação do objeto do recurso, nos termos do art. 636º (aplicável ex vi do art. 679º), pelo que tal matéria (mesmo que pudesse ter alguma sustentação; o que não se afigura acontecer), não pode integrar o objeto do presente recurso.

2. A factualidade provada:

A primeira instância deu como provada, e a segunda instância não alterou, a seguinte factualidade:

«A. A fracção autónoma designada pelas letras “BA”, destinada a habitação, integrada no prédio urbano em regime de propriedade horizontal denominado “Apartamentos ...”, sito ao ..., ..., freguesia ..., inscrito na matriz cadastral respectiva sob o artigo …09° e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ......26 encontra-se registada, por compra em processo de execução e pela Ap. 501 de 2015/05/21, em nome do Autor;

B. A fracção referida em A. foi, por escritura pública de compra e venda e mútuo oneroso com hipoteca, adquirida por BB e CC em 04 de Junho de 2009;

C. Por escritura pública celebrada em 04 de Junho de 2009, BB e CC confessaram-se devedores ao “Banco Comercial Português, S.A.” da quantia de € 120.000,00;

D. Sobre a fracção autónoma referida em A. encontrava-se registada, através da Ap. 4668, de 2009/06/08, hipoteca a favor do Autor, pelo montante máximo assegurado de € 150.612,00;

E. Em 29 de Abril de 2011, BB e AA celebraram acordo escrito, denominado “Contrato de Arrendamento para Habitação com prazo certo”, mediante o qual o primeiro cedia à segunda, mediante o pagamento mensal de € 500,00 e pelo período de um ano, o gozo da fracção referida em A.;

F. Sobre a fracção referida em A. encontrava-se registada, através da Ap. 2054, de 2014/10/07, penhora a favor da Fazenda Nacional, pelo montante de € 6.464.93;

G. Sobre a fracção referida em A. encontrava-se registada, através da Ap. 1895, de 2015/01/26, penhora a favor da Fazenda Nacional, pelo montante de € 4.107,35;

H. Por auto de 23/04/2013, elaborado no processo de execução fiscal número ...461, que correu termos no Serviço de Finanças  ... contra o aqui Réu BB, foi adjudicada ao Autor a fracção referida em A.;

I. Por despacho datado de 06 de Maio de 2015, proferido nos autos de execução fiscal número …460, foi ordenado o cancelamento das Ap. 4686, de 2009/06/08, Ap. 2054 de 2014/10/17 e Ap. 1895 de 2015/01/26;

J. Pela Ap. 501 de 2015/05/21 foi averbado o cancelamento da Ap. 4686, de 2009/06/08, da Ap.2054 de 2014/10/17 e da Ap. 1895 de 2015/01/26;   

K. A fracção referida em A. encontra-se ocupada pela Ré AA, sem autorização e contra a vontade do Autor;

L. Por documento entrado nos Serviços de Finanças ... em 29/02/2016, a Ré informou o Chefe do Serviço em causa que o imóvel se encontrava arrendado à sua pessoa.»

3. O direito aplicável.

3.1. A questão em apreço na presente revista é a de saber se o contrato de arrendamento para habitação, no qual a recorrida é arrendatária, caducou, por força do art. 824º, nº 2 do Código Civil, com a venda executiva do imóvel locado.

Entende o recorrente que o art. 824º, nº 2 tem aplicação ao caso concreto, pelo que, na sua tese, o contrato de arrendamento devia caducar como consequência da venda executiva, por meio da qual adquiriu o imóvel que se encontrava hipotecado antes da constituição do contrato de arrendamento.

 

3.2. Entendeu-se no acórdão recorrido que:

«(…) a relação jurídica de arrendamento, atendendo ao modelo de direito real ínsito no artigo 1305° do CC, não se confunde com um direito directamente referido à coisa arrendada, com um direito que tem por objecto a coisa arrendada, isto é não se confunde com um direito real.

Como o direito do arrendatário não é real, mas integra como direito de crédito uma estrutura jurídica obrigacional, não tem que ser suprimido por aplicação do artigo 824°, nº 2, do CC.

Por outro lado, a venda em execução de imóvel arrendado, com penhora posterior ao arrendamento, não se constitui como caso em que o direito do arrendatário, por premissas varáveis e contingentes sobre o vinculismo da relação jurídica de arrendamento, deva ser equiparado a direito real do gozo do imóvel para ser suprimido por aplicação do artigo 824°, nº 2, do CC

E acrescentou-se:

«Cumpre, pois, concluir que o autor como comprador, por venda judicial do imóvel hipotecado a seu favor, não beneficia do cancelamento do arrendamento, anterior à respectiva penhora, por aplicação do artigo 824°, nº 2, do CC.

Daí que não possa subsistir a conclusão da sentença de que a compra executiva realizada pelo autor determinou, por aplicação do artigo 824°, nº 2, do CC, a caducidade do contrato de arrendamento celebrado entre BB, como proprietário e senhorio, e AA, como arrendatária.

E a relação jurídica de arrendamento que intercedia entre a ré e o réu, mutuamente dependente na sua configuração, pela transferência da posição contratual deste para o autor é impeditiva de tal caducidade e da constituição deles em obrigação de restituição ao autor da fracção autónoma arrendada.

Consequentemente, nos termos e para efeitos dos artigos 1057°, 1311°, nº 2, do CC e 634°, nº 2, al. b) do CPC, nem esse contrato de arrendamento caducou, nem, por efeito de caducidade prescrita pelo artigo 824°, nº 2, do CC, os réus BB e AA têm de entregar ao autor a fracção autónoma em causa.

Portanto não pode subsistir, que aliás não tem adequada correspondência em pedido formulado, o segmento decisório seguinte: c) “Reconheço a caducidade do contrato de arrendamento celebrado entre os Réus e, em consequência, condeno os Réus a restituir ao Autor a fracção mencionada em a), livre e desocupada de pessoas e bens.”.

E não pode proceder o seguinte pedido também acima transcrito: b) “entregar ao A., imediatamente e livre de pessoas e coisas, essa mesma fracção”».

3.3. O acórdão recorrido não merece censura, pois seguiu, nessa aplicação do direito, a jurisprudência que atualmente se encontra uniformizada. Efetivamente, no Acórdão de uniformização de jurisprudência nº 2/2021, publicado no Diário da República nº 151/2021, (Série I de 05.08.2021) foi uniformizada jurisprudência nos seguintes termos:

«A venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, nº 3, do CIRE, conjugado com o artigo 1057º do Código Civil, sendo inaplicável o disposto no nº 2 do artigo 824.º do Código Civil»

Embora a factualidade subjacente ao processo no qual foi proferido aquele AUJ não seja integralmente equiparável à factualidade subjacente aos presentes autos (dado que aquela ação correu como apenso a um processo de insolvência), o modo como o art. 824º. nº 2 do CC foi interpretado nesse caso é plenamente aplicável ao caso concreto.

Efetivamente, em ambos os casos está em equação a questão de saber se um contrato de arrendamento para habitação, celebrado depois de o imóvel ter sido hipotecado (mas antes de ter sido penhorado ou apreendido para a massa insolvente), deve caducar com a venda judicial, por aplicação do art. 824º, nº 2 do CC, considerando-se incluído na categoria dos “direitos reais” ou dos ónus a que essa norma se refere.

3.4. No referido AUJ uniformizou-se jurisprudência no sentido da não aplicação do art. 824º, nº 2 do CC ao contrato de arrendamento para habitação. Mas ainda que esse AUJ não existisse, sempre essa seria a solução mais defensável do ponto de vista conjugado da interpretação literal, sistemática e teleológica.

Literalmente, o arrendamento não se encontra previsto no art. 824º nº 2 do CC, entre os direitos que não se transmitem com a venda executiva. Por tal razão, ao longo de algumas décadas, doutrina e jurisprudência dividiram-se quanto à questão de saber se a intenção do legislador foi a de incluir o arrendamento nessa previsão normativa, quando se refere a direitos reais, ou se deveria entender-se que existe uma lacuna legal, e que, ainda que se entenda que o direito do arrendatário não é um direito real, sempre a aplicação do art. 824º, nº 2 seria defensável por uma razão de equiparação teleológica com a solução prevista para os direitos reais (de gozo).

Do ponto de vista da interpretação sistemática, não se pode afirmar que a não inclusão expressa do arrendamento no art. 824º, nº 2 do CC constitua uma lacuna legal, pois o art.1057º deste Código soluciona a questão, ao determinar que a transmissão do direito com base no qual o arrendamento foi celebrado tem como consequência a sucessão na posição do locador, sem estabelecer qualquer restrição quanto ao modo, voluntário ou forçado, de transmissão do direito. Trata-se de normas que, tendo sido consagradas, em simultâneo, pelo mesmo legislador, no Código Civil de 1966 (independentemente da sua prévia evolução legislativa em diplomas diversos), não sofreram qualquer alteração até ao presente. O legislador estabeleceu, assim, claramente, para o direito do locatário uma norma especial (a emptio non tollit locatum), que constitui um desvio temporal (correspondente à duração do contrato de locação) ao princípio da prevalência dos direitos reais. E deve notar-se que o art. 1057º é uma norma imperativa, que não admite, por isso, convenção em contrário.

Acresce que, quando o legislador alterou o art. 819º (através do DL nº 38/2003), nele passando a incluir o arrendamento posterior à penhora, entre os atos inoponíveis à execução, podia ter alterado o art. 824º, nº 2, caso tivesse tido o propósito de fazer caducar o arrendamento anterior à penhora, mas posterior à hipoteca.

Sustentou-se, na doutrina e na jurisprudência, que o arrendamento seria qualificável como um direito real (total ou parcialmente) e, por isso, enquanto direito real de gozo, seria comportável no âmbito do art. 824º, nº 2. Todavia, a raiz de tal entendimento encontra-se datada no tempo, tendo sido ancorada, há várias décadas, sobretudo, no facto de o regime do arrendamento apresentar, a esse tempo, fortes limitações à liberdade do senhorio para extinguir o contrato de arrendamento. Todavia, as caraterísticas perenes do direito do arrendatário, que se situam para além das flutuações legislativas do seu regime,

demonstram que tal direito não pode ser qualificado como um direito real (nem total nem parcialmente).

De forma sucinta, podem enunciar-se algumas das razões nesse sentido: para além da inserção sistemática do contrato de locação no Livro das Obrigações, e de o art. 1682º-A designar, expressamente, o arrendamento como um direito pessoal de gozo, a tutela possessória conferida ao locatário pelo art. 1037º desvia-se das caraterísticas típicas da tutela possessória própria dos direitos reais (por razões de praticabilidade processual de defesa do direito), e sempre a indicação expressa dessa tutela seria desnecessária, caso o arrendatário tivesse um verdadeiro direito real. Acresce que, nem desta norma, nem do disposto no art. 1057º se poderá retirar a caraterística da sequela. O art. 1057º (acolhendo princípio inverso ao que vigorava no Direito Romano) é uma norma inerente à natureza duradoura do contrato de locação e particularmente do contrato de arrendamento, e ínsita à sustentação de todo o quadro legal do arrendamento destinado à manutenção do gozo do imóvel durante o tempo convencionado. Se o direito do arrendatário pudesse, a qualquer momento (pela alienação do imóvel), ser transformado num simples direito a uma indemnização por danos, o contrato de arrendamento perderia, praticamente, toda a sua importância enquanto instrumento de organização das relações económicas duradouras numa sociedade. Por outro lado, a subsistência do direito do arrendatário depende da subsistência de um contrato, que o senhorio pode extinguir por sua vontade unilateral (por via de oposição à renovação, denúncia, resolução), sendo esta uma caraterística que não encontra paralelo no regime dos direitos reais de gozo, os quais não são, em regra, suscetíveis de extinção por simples ato de vontade de um terceiro (vd. art. 1476º, quanto ao usufruto).

Deve ainda notar-se que o nível de “oneração” que a subsistência do direito do arrendatário representa (do ponto de vista do interesse do terceiro adquirente do imóvel) não é, em regra, equiparável à oneração que pode decorrer de um direito real de gozo, como o usufruto ou o direito real de uso e habitação, pois estes direitos podem ser constituídos a título vitalício e ter natureza gratuita. O direito do arrendatário nunca tem, obviamente, estas caraterísticas.

Não existem, portanto, argumentos de natureza literal ou sistemática que permitam incluir o arrendamento no âmbito do art. 824º, nº 2.  

3.5. Do ponto de vista do alcance teleológico da interpretação do art. 824º, nº 2 do CC, a solução que mereceu acolhimento do referido AUJ é também a mais justificável, sobretudo quando está em causa um arrendamento para habitação.

Sustentar a caducidade do contrato de arrendamento, em consequência da venda executiva, ou defender a manutenção do contrato de arrendamento até ao final do prazo convencionado ou renovado ou até que o novo locador possa denunciar o contrato (dependendo da respetiva modalidade temporal), implica harmonizar os interesses em jogo com os propósitos legislativos que se colhem tanto numa interpretação intra-sitemática como extra-sitemática. 

Assim, de um lado, identifica-se o interesse dos credores do executado em que seja alcançado um valor de venda mais elevado, para maior satisfação dos seus créditos.

Do outro lado estará o interesse do arrendatário em não sofrer uma privação abrupta da sua habitação, com todas as consequências inerentes a tal facto, sobretudo quando se trate de casa de morada da família. Efetivamente, caso se verificasse a caducidade do contrato de arrendamento, por aplicação do art. 824º, nº 2, o arrendatário teria a obrigação de imediatamente restituir o imóvel, como decorreria dos artigos 1038º, alínea i) e 1081º, nº 1 do CC. Acresce que, não se encontrando esta hipótese de caducidade prevista no art. 1051º, não lhe seria aplicável a moratória prevista no art. 1053º do CC. A obrigação de restituir o imóvel seria, portanto, imediatamente exigível. Não sendo tal obrigação cumprida, e existindo interpelação para a restituição, o ex-arrendatário torna-se-ia responsável pelo pagamento de uma indemnização correspondente ao dobro da renda que pagava, como determina o art. 1045º, nº 2.

Assim, além da perda abrupta de um direito dotado de dignidade constitucional (art. 65º da CRP), que assume também determinante relevo instrumental na realização de outros direitos fundamentais (como se torna evidente numa crise de saúde pública decorrente de uma pandemia), o arrendatário sofreria ainda penalizações de natureza económica por não conseguir encontrar, de imediato, uma habitação alternativa.

 Do ponto de vista do interesse do credor hipotecário, dificilmente se poderia sustentar a ideia de que este teria a expectativa de que o imóvel não fosse dado de arrendamento após a constituição da hipoteca, e que permanecesse devoluto para se conseguir maior valor numa eventual venda executiva. Na realidade, existe um interesse geral em que os imóveis urbanos não se encontrem devolutos, como decorre do art. 112º, nº 3 do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, nos termos do qual as taxas do imposto municipal sobre imóveis são elevadas, anualmente, ao triplo nos casos de prédios urbanos que se encontrem devolutos há mais de um ano. Este interesse geral encontra-se também expresso nos artigos 4º e 5º da Lei de Bases da Habitação (Lei nº 83/2019), estabelecendo a função social da propriedade e o princípio do uso efetivo dos imóveis habitáveis.

Nestes termos, ainda que a jurisprudência não tivesse sido uniformizada nos termos em que o foi, e apesar de as circunstâncias fáctico-processuais do presente caso serem parcialmente distintas daquelas que subjazeram ao referido AUJ, sempre se concluiria que o acórdão recorrido não merece censura, dado ter feito a correta aplicação do direito ao caso concreto.

Decisão: Pelo exposto, considera-se a revista improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas na revista: pelo recorrente.

Lisboa, 03.11.2021

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Ricardo Costa

António Barateiro Martins (com voto de vencido)

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

_________________________

Voto de Vencido

Entendo que a venda judicial de imóvel hipotecado faz caducar o arrendamento celebrado após o registo da hipoteca, solução esta que, a meu ver, está de acordo com a teleologia do art. 824.º/2 do C. Civil, cuja ratio é os bens vendidos judicialmente serem transmitidos livres de quaisquer ónus.

Trata-se de questão que há muito divide a nossa doutrina e jurisprudência (tendo dado azo, bem recentemente, ao referido AUJ nº 2/2021), o que só por si significa que há bons e ponderosos argumentos quer a favor da tese da caducidade do contrato de arrendamento quer a favor da tese (contrária) da transmissão (não caducidade) da posição do locador.

Tendo isto presente, “alinho” na posição que defende – em hipóteses como a dos autos, do arrendamento ser posterior ao registo da hipoteca – a caducidade do contrato de arrendamento pelo seguinte:

Não considero, como é evidente, o arrendamento um direito real (não cabendo assim a tese da caducidade numa interpretação literal do art. 824.º/2 do C. Civil) e não ignoro o disposto no art. 1057.º do C. Civil (segundo o qual “o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo”), porém, também não posso ignorar que o 824.º/2 do C. Civil estabelece e dele irradia o “princípio” dos bens vendidos judicialmente serem transmitidos livres dos encargos que não tenham registo ou constituição temporalmente anterior à garantia executada.

Ademais, para o fim da hipoteca – garantia de um crédito – o valor do imóvel dado em hipoteca é fundamental (na atribuição do empréstimo/crédito e na determinação do respetivo quantitativo) e, depois, na sua venda em execução, o respetivo valor/avaliação será menor se o imóvel tiver (e se mantiver) arrendado, importando assim ponderar que, caso no momento da constituição da hipoteca o prédio já estiver arrendado, o credor hipotecário não pode desconhecer esse facto, ou seja, não pode desconhecer que sobre a garantia incidia um tal “ónus”, porém, caso no momento da hipoteca o prédio estiver livre, o arrendamento posterior confronta o credor com um “facto novo”, causador da desvalorização do imóvel.

E embora a hipoteca não impeça o poder de disposição dos bens, mediante alienação ou oneração (faculdades que decorrem da respetiva inoponibilidade ao credor hipotecário, na medida em que este goza da preferência que lhe é concedida pela prioridade do registo), não deixa de produzir limitações de vária ordem ao direito de propriedade do hipotecador, a quem fica vedado praticar livremente atos que ponham em causa o valor da coisa hipotecada, estando limitado aos atos que caibam nos poderes de administração ordinária (arts. 695º, 700º e 701º C. Civil), pelo que, manter oponível ao adquirente (em venda judicial em que se executa a garantia anterior) o contrato de arrendamento, é consentir (ao arrepio de tais poderes) que possam ser praticados atos que coloquem em causa o valor da coisa hipotecada.

Sendo justamente aqui, neste ponto do raciocínio, que o apelo à “ratio” que emana do art. 824.º/2 do C. Civil – serem os bens vendidos judicialmente transmitidos livres dos encargos que não tenham registo ou constituição temporalmente anterior à garantia executada – faz sentido: ou por interpretação teleológica ou porventura até por analogia – face à “semelhança” entre o arrendamento e os direitos reais menores de gozo – entendo que o art. 824º/2 do C. Civil se aplica a todos os direitos de gozo, quer de natureza real quer pessoal, de que a coisa vendida seja objeto e que produzam efeitos em relação a terceiros.

Sairá, assim, objetivamente penalizado o arrendatário, mas não pode esquecer-se que, no jogo de interesses em confronto, fará menos sentido protegê-lo, em detrimento do credor hipotecário, tendo em consideração que o arrendatário não ignorava ou não devia ignorar que tomou de arrendamento um bem que já estava dado em garantia/hipoteca.

Em conclusão, a tese da caducidade é a que, a meu ver, dirime com mais justiça os interesses em confronto e a que melhor respeita a teleologia ínsita no art. 824.º/2 do C. Civil, inciso em cujo espírito está presente a ideia da alienação judicial ser livre de qualquer encargo, inciso cuja ratio, repete-se, é os bens vendidos judicialmente serem transmitidos livres dos encargos que não tenham registo ou constituição temporalmente anterior à garantia executada.

E, sendo este o meu entendimento – sendo o arrendamento posterior ao registo da hipoteca, consideraria que o arrendamento caducou, automaticamente, por aplicação do art. 824º/2 do C. Civil, com a venda executiva do imóvel – julgaria procedente a revista, revogando o Acórdão recorrido e repristinando a decisão proferida em 1.º Instância.

António Barateiro Martins