Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6283/09.3TBBRG.G1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALVES VELHO
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
Data do Acordão: 02/14/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
No uso dos poderes relativos à alteração da matéria de facto, conferidos pelo art. 712º do CPC, a Relação deverá formar e fazer reflectir na decisão a sua própria convicção, na plena aplicação e uso do princípio da livre apreciação das provas, nos mesmos termos em que o deve fazer a 1ª Instância, sem que se lhe imponha qualquer limitação, relacionada com convicção que serviu de base à decisão impugnada, em função do princípio da imediação da prova.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - "AA & Filhos, Lda." intentou acção declarativa contra "BB Construções, Lda.", pedindo que esta fosse condenada a pagar-lhe a quantia de 74. 416, 70€, por serviços que lhe prestou, acrescida de juros de mora, contados à taxa supletiva aplicável aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, vencidos e vincendos, até efectivo pagamento, importando os primeiros na quantia de €1.939,50.

A Ré contestou alegando que a contrapartida pecuniária globalmente ajustada com a A. ascendeu apenas a 52.888,40€, dos quais 40.000,00€ correspondiam a trabalhos "normais" e 12.888,40€ a trabalhos "extra", e que, tendo-lhe sido paga a quantia de 2.888,00€, a A. vem recusando a transferência da propriedade de um lote de terreno que aceitou receber em troca dos seus serviços, cujo valor saldaria os restantes 50.000,00€.
Reconvindo, pediu a condenação da A. a pagar-lhe o montante de 469,19€, correspondente aos impostos que teve de suportar por não ter sido operada a oportuna transferência da propriedade do lote, acrescido de juros de mora, contados à taxa legal, desde Março de 2005 até efectivo pagamento, bem como, por litigar de má-fé, em multa e indemnização a seu favor, esta de montante não inferior a 2.000,00€.

Percorrida a normal tramitação do processo, foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção, condenou a Ré a pagar à A. a quantia de 66. 578, 08€, acrescida de juros de mora, contados à taxa supletiva aplicável aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, desde 13 de Março de 2010 no que concerne ao montante titulado pela factura inserta a fls. 12, deduzido dos 2.888,00€ entregues em Abril de 2006, e desde a data da citação, no que concerne ao remanescente, até integral pagamento.

A Ré apelou.
Impugnou, com êxito, a decisão sobre a matéria de facto, em consequência do que viu a relação revogar a sentença e absolvê-la do pedido.


Agora é a Autora a pedir revista, visando a revogação do acórdão, para o que verte nas conclusões da alegação:
1 - Em 29 de Setembro de 2011 foi proferido douto Acórdão nos autos acima identificados, o qual julgou a apelação procedente e em consequência revogou a sentença recorrida e absolveu a apelante e ora recorrida do pedido.
2 - Com efeito, deu razão o Tribunal “a quo" à apelante ao proceder à alteração da matéria de facto, por entender que não foi feita pelo Tribunal de 1.ª Instância uma correcta apreciação da prova produzida, tendo como consequência errado no julgamento da matéria de facto controvertida.
3 - Pois bem, discorda a recorrente, em absoluto com a decisão proferida. A razão do dissenso prende-se com o modo como o Tribunal “a quo" usou dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 712º do CPC quanto à modificabilidade da matéria de facto.
4 - Merece censura o "uso" feito pela Relação dos referidos poderes conferidos pela lei processual civil.
5 - De facto, verifica-se no caso "sub judice" uma clara desvalorização da sentença de 1.ª Instância por parte do Tribunal da Relação, ao considerar, sem fundamentar devidamente, que " os depoimentos oriundos da prova trazida pela autora carecem, manifestamente, de razoabilidade e sustentabilidade", e que " a prova testemunhal da ré foi desapaixonada, circunstanciada, plena porque sustentada em experiências próprias que se cruzaram aqui e ali, em episódios das partes relevantes para os autos".
6 - Fazendo deste modo "tábua rasa" da sentença da 1.ª Instância. O Tribunal da Relação deveria ter como ponto de partida a decisão recorrida, e verificar se o Tribunal de 1.ª Instância julgou bem a matéria em causa, o que não fez.
7 - Não se vislumbra na decisão ora recorrida qualquer fundamentação plausível para justificar que a decisão do Tribunal de 1.ª Instância é errada. É necessário demonstrar o erro! O que não foi feito, nem sequer fundamentado.
8 - Na verdade, é o Juiz do Tribunal de 1.ª Instância que está perante a pessoa que depõe, e portanto melhor se apercebe da forma como ela realiza o seu depoimento, da convicção com o que o presta, da espontaneidade que revela, das imprecisões que deixa escapar, enfim, tudo o que serve para fundamentar a impressão que o depoimento deixa no seu espírito e contribui com menor ou maior grau para formar a sua convicção.
9 - Os princípios da imediação e da oralidade devem prevalecer no julgamento da matéria de facto, na medida em que a verdade judicial resulta de uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade.
10 - Ora, o Tribunal "a quo" ao julgar como o fez, sem recorrer a uma fundamentação plausível para justificar a alteração da matéria de facto, violou tais princípios, e usou os poderes que lhe são conferidos pelo art. 712.º do CPC. em desconformidade com os critérios legais nele definidos, violando assim o disposto neste mesmo dispositivo legal.
11 - Em conformidade, pelas razões supra expostas, não deveria a Sentença recorrida ter revogado a sentença de 1.ª Instância e absolvido a ora recorrida do pedido.

A Recorrida respondeu em apoio do julgado.




2. - A questão única colocada tem por objecto o arguido uso indevido pela Relação dos poderes relativos à alteração da matéria de facto, por violação dos limites conferidos pelo art. 712º do CPC.




3. - Mérito do recurso.

3. 1. - A Recorrente acusa a Relação de, ao proceder, como procedeu, à alteração da matéria de facto, com clara desvalorização da sentença de 1.ª Instância, ao considerar, sem fundamentar devidamente, que "os depoimentos oriundos da prova trazida pela Autora carecem, manifestamente, de razoabilidade e sustentabilidade", e que a prova testemunhal da Ré é merecedora de maior credibilidade.

A Relação procedeu à alteração das respostas a vários pontos da base instrutória, em apreciação da pretensão nesse sentido formulada pela Apelante que, para o efeito, invocou a existência de prova documental e testemunhal gravada, cuja reapreciação pediu, nos termos previstos no art. 685º-B CPC.
Em consequência, procedeu à reformulação da decisão de facto em conformidade com o que, na sua perspectiva, resultara da apreciação da globalidade das provas, disponíveis no processo.
Fê-lo ao abrigo do disposto no art. 712º do referido diploma.


3. 2. - Como se pressupõe no recurso, quando tal suceda, isto é, quando a Relação tenha procedido a alteração da matéria de facto, o Supremo não está impedido de apreciar o uso que a 2.ª Instância fez dos seus poderes nesse campo, pois que, como dito, em causa está averiguar se houve violação da lei, designadamente dos critérios legais fixados no art. 712.º-1 CPC e dos preceitos substantivos relativos ao regime probatório. Trata-se, então, de "verificar da correcção do método discursivo de raciocínio" e, em geral, saber se esses critérios se mostram respeitados, produzindo alteração factual, examinando a questão estritamente do ponto de vista da legalidade, tudo aquém do campo da apreciação das questões de facto que os arts. 721º-2 e 722º-2 vedam ao recurso de revista (ac. de 12-9-2006, desta Secção e relator, no proc. 1994/06).


3. 3. - Como se escreveu no acórdão citado, face ao mencionado objecto do recurso, impunha-se à Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, procedendo à audição ou leitura dos depoimentos indicados pelas partes (arts. 712º-2 e 685º-B-4).

Dada a amplitude com que a lei os prevê, os poderes de reapreciação contidos no preceito traduzem-se num verdadeiro e efectivo 2º grau de jurisdição sobre a apreciação do conteúdo da prova produzida. À Relação impõe-se declarar se os pontos de facto impugnados foram bem ou mal julgados e, em conformidade com esse julgamento, manter ou alterar a decisão proferida sobre os mesmos.
Nessa medida, pode mesmo dizer-se que o tribunal de recurso actua como tribunal de substituição relativamente ao tribunal recorrido, regime que se revela aceitável como decorrência do concurso dos pressupostos a que alude o n.º 1 do art. 712º, a colocar a 2ª instância de posse dos mesmos elementos probatórios de que dispunha a 1ª.

Na 1ª instância ou na Relação, a questão é sempre de valoração das provas produzidas em audiência ou em documentos de livre apreciação.
Em ambos os casos vigoram para os julgadores de ambos os Tribunais as mesma regras e princípios, dos quais avulta o da livre apreciação da prova ou sistema da prova livre (por contraposição ao regime da prova legal), consagrado no art. 655º-1.
Quer isto dizer que a prova há-de ser sempre apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, tudo se resolvendo, afinal, na formação de juízos e raciocínios que, tendo subjacentes as ditas regras, conduzem a determinadas convicções reflectidas na decisão dos pontos de facto sob avaliação. Deve, ela, ainda ser considerada globalmente, conjugando todos os elementos disponíveis e atendíveis (art. 515º CPC).

Finalmente, no âmbito dessa valoração das provas no seu conjunto, poderão os julgadores lançar mão de presunções naturais, de facto ou judiciais – art. 351º C. Civil.

Numa palavra, a Relação deverá formar e fazer reflectir na decisão a sua própria convicção, na plena aplicação e uso do princípio da livre apreciação das provas, nos mesmos termos em que o deve fazer a 1ª Instância, sem que se lhe imponha qualquer limitação, relacionada com convicção que serviu de base à decisão impugnada, em função do princípio da imediação da prova.


3. 4. - Como corolário da sujeição das provas à regra da livre apreciação, deve o julgador indicar os fundamentos da sua convicção por forma a permitir o controlo da razoabilidade da decisão mediante a intervenção das mesmas regras da ciência, lógica e experiência, tudo tendente a dotá-la de força persuasiva e a convencer da bondade do acerto do decidido.

Ora, como se viu, no acórdão impugnado alude-se expressamente à prova documental junta aos autos, à audição da prova que foi objecto de gravação áudio e às considerações tecidas pelas Partes quanto aos fundamentos da impugnação, como sustentáculos da modificação operada.

Depois, no tocante aos depoimentos – de parte e testemunhais – prestados e gravados, na reponderação que levou a cabo, a Relação não deixou de fazer, reportando-se mesmo a cada um deles, uma análise crítica, exteriorizando as razões conducentes à convicção própria e autónoma que se lhe impunha formular, coincidente ou não com a anteriormente extraída pelo Julgador da 1ª Instância.

Em suma, cumpriu o acórdão, ao menos em nosso entender, o dever de fundamentação que o sistema jurídico – Constituição da República (art. 208º-1) e lei ordinária – prevê.


3. 5. - Resta, respondendo mais concretamente à objecção da Recorrente no sentido de que “os princípios da imediação e da oralidade devem prevalecer no julgamento da matéria de facto”, dizer, como no recente acórdão de 10-01-2011 (proc. n.º 1452/04.5TVPRT.P1.S1), em que o ora relator interveio como 1º adjunto, que “é fácil verificar que foi intenção do legislador, aliás expressamente confessada no relatório do DL. 39/95 e reafirmada no preâmbulo do DL 329-A/95, criar um verdadeiro duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto … desiderato (que) só pode ser completamente conseguido se a Relação, perante o exame e análise crítica das prova produzida a respeito dos pontos de facto impugnados, puder formar a sua própria convicção (coincidente ou não com a formada pelo julgador da 1ª instância), no gozo pleno do princípio da livre apreciação da prova, sem estar, de modo algum, limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida.
(…) O que a Relação não deve é limitar-se a procurar determinar se a convicção (alheia) formada pelo julgador da 1ª instância tem suporte na gravação, ou limitar-se a apreciar, genericamente, à fundamentação da decisão de facto, para concluir, sem base suficiente, não existir erro grosseiro ou evidente, na apreciação da prova, tudo em homenagem ao princípio da imediação das provas, erigido em princípio absoluto (…). Uma tal prática impede o real controlo da prova pela 2ª instância, transformando a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto numa garantia puramente virtual, praticamente inútil”.


3. 6. - No caso, estava, sem dúvida, a Relação, de posse dos mesmos elementos probatórios de que dispunha a 1ª Instância para se poder substituir a esta e proceder à reapreciação completa da decisão da matéria de facto impugnada, sem quaisquer limitações, a não ser as impostas pelas regras de direito probatório material, como permitido pelo art. 712º-1-a) e 2 CPC.

Por isso, e dentro desse alargado âmbito de actuação, colocada na mesma posição do julgador da 1ª Instância, nada podia impedir a Relação, também como tribunal de instância, de proceder às modificações a que levou a efeito ou mesmo de extrair ilações a partir dos factos provados, quer essas ilações assentassem em factos base já anteriormente provados, quer se viessem a apoiar em factos já resultantes da modificação de respostas em consequência de diferentes valorações da prova documental ou testemunhal.

Conclui-se, pois, que, no âmbito da reapreciação das provas em sede de modificação da matéria de facto em aplicação das normas do art. 712º-1-a) e 2 nenhum vício de ilegalidade se detecta.

A matéria de facto fixada pela Relação é, deste modo, intocável por este Tribunal.


3. 7. - Mantida ela, manter-se-á também a decisão sobre o mérito da causa, como admite e pressupõe a Recorrente.




4. – Respondendo, em síntese final, à questão colocada poderá concluir-se que:
No uso dos poderes relativos à alteração da matéria de facto, conferidos pelo art. 712º do CPC, a Relação deverá formar e fazer reflectir na decisão a sua própria convicção, na plena aplicação e uso do princípio da livre apreciação das provas, nos mesmos termos em que o deve fazer a 1ª Instância, sem que se lhe imponha qualquer limitação, relacionada com convicção que serviu de base à decisão impugnada, em função do princípio da imediação da prova.




5. - Decisão.

Em conformidade com o exposto, acorda-se em:
- Negar a revista;
- Confirmar o acórdão impugnado; e,
- Condenar a Recorrente nas custas.

Lisboa, 14 de Fevereiro 2012.


Alves Velho (Relator)

Paulo Sá

Garcia Calejo