Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
535/11.0TYVNG.P1.S2-A
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
CONTRADIÇÃO DE ACÓRDÃOS DO STJ
IDENTIDADE DA QUESTÃO ESSENCIAL DE DIREITO
Data do Acordão: 05/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA - RECLAMAÇÃO PARA A CNFERÊNCIA
Decisão: INDEFERIDO O REQUERIDO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª ed., 427 e ss..
- Amâncio Ferreira, Manual de Recursos em Processo Civil, 8.ª ed., 116.
- Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. III, 119.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 763.º ( ARTIGO 688.º, DO NCPC).
Jurisprudência Nacional:
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

ACÓRDÃOS:
-DE 16-2-16, DE 26-3-15, DE 29-1-15 E DE 2-10-14, TODOS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 10-1-13, EM WWW.DGSI.PT .

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DECISÃO SINGULAR:
-DE 22-3-13, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1. O recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência pressupõe a demonstração de uma contradição directa entre o acórdão recorrido e outro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça relativamente a alguma questão de direito essencial para cada um dos acórdãos.

2. Não sendo exigível a identidade da situação de facto, é imprescindível que em ambos os acórdãos tenha sido apreciada a mesma questão de direito, sendo resolvida de forma diversa.

3. Não se verifica a referida contradição essencial se, estando em causa a responsabilidade civil de gerente ou administrador de sociedade comercial, no acórdão recorrido a improcedência da acção foi sustentada quer na falta de demonstração da ilicitude, quer na inexistência de dano na esfera jurídica da sociedade, ao passo que no acórdão fundamento a discussão girou em torno da prova da culpa e do nexo de causalidade.

Decisão Texto Integral:
1. Após a prolação do anterior acórdão no âmbito do recurso de revista foi interposto recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, o qual foi rejeitado por despacho do ora relator, considerando que não estava preenchido o requisito da contradição jurisprudencial que é essencial para a admissibilidade de tal recurso.

Insiste o recorrente na contradição entre o acórdão recorrido e outro acórdão deste mesmo Supremo Tribunal de Justiça, de 25-10-12, a respeito dos pressupostos da responsabilidade civil dos gerentes de sociedades, nos termos previstos no art. 72º do CSC.

Tal não ocorre no caso concreto.


2. Na reforma do regime dos recursos cíveis de 2007, sob a designação de recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, foi reintroduzido o recurso para o Pleno que vigorara antes da reforma de 1995 (art. 763º, nº 1, do anterior CPC), seguindo-se a opção que já fora adoptada tanto no processo penal como no contencioso administrativo (para mais desenvolvimentos, cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no NCPC, 3ª ed., págs. 427 e segs.).

Porém, a natureza extraordinária desse recurso, susceptível de afectar o caso julgado formado sobre um acórdão do Supremo, demanda que a sua admissibilidade obedeça a requisitos rigorosos (cfr. os Acs. do STJ, de 16-2-16, de 26-3-15, de 29-1-15 e de 2-10-14, em www.dgsi.pt), entre os quais avulta a comprovada existência de uma contradição directa (e não meramente indirecta ou implícita) entre o acórdão e outro acórdão anterior, do Supremo Tribunal de Justiça, relativamente à mesma questão essencial de direito, num quadro normativo substancialmente idêntico.

Considera-se que para esse efeito apenas relevam contradições em sede de matéria de direito, ainda que naturalmente esta não possa desligar-se totalmente da questão de facto subjacente a cada um dos acórdãos (Ac. do STJ, de 10-1-13, em www-dgsi.pt), verificando-se a identidade “quando o núcleo da situação de facto, à luz da norma aplicável, seja idêntico, obtendo, no entanto, uma qualificação jurídica diversa (Amâncio Ferreira, Manual de Recursos em Processo Civil, 8ª ed., pág. 116).

Por outro lado, devendo ser feita a distinção entre questões apreciadas e argumentos empregues, apenas releva o que tenha sido verdadeiramente decisivo para a resolução do caso, sendo desvalorizados os aspectos que, no caso concreto, assumam natureza acessória. Como referia Castro Mendes, pronunciando-se sobre o anterior recurso para o Pleno, mas com inteira aplicação em face do actual regime, deve exigir-se que a contradição nos fundamentos se mostre “decisiva para a decisão final” (Direito Processual Civil, vol. III, pág. 119).

Afinal, o recurso extraordinário visa sanar contradição jurisprudencial directa, levando a que a questão de direito seja reapreciada pelo Pleno das Secções Cíveis, cuja resposta, para além de poder implicar a alteração do resultado que foi expresso no acórdão recorrido, posto que coberto pela força do caso julgado, terá ainda um valor persuasivo e indirectamente vinculativo para a resolução dos demais casos por parte dos Tribunais Judiciais.

Por isso, apenas razões muito ponderosas, em que se evidencie, sem qualquer espécie de dúvida, contradição relativamente ao cerne de cada um dos litígios poderão justificar que se coloque em crise um acórdão transitado em julgado (cfr. a decisão singular do STJ, de 22-3-13, do ora relator, em www.dgsi.pt).

A contradição relevante deve verificar-se fundamentalmente ao nível jurídico, mas necessariamente que a complexidade da matéria de facto submetida a cada uma das decisões não deixa de influir também na verificação daquele pressuposto. Ou seja, quanto mais diversificados forem os elementos de facto apurados em cada um dos processos e mais complexa a norma ou normas jurídicas que estiverem em causa, mais difícil se tornará identificar uma real e efectiva contradição, pois que, como é natural, cada elemento acaba por interferir, isoladamente ou em conjugação com outros elementos, no resultado declarado.

Dificuldades que se tornam mais evidentes quando se está perante direitos cujo reconhecimento depende de diversos requisitos legais, como ocorre na responsabilidade civil contratual ou extracontratual ou, mais concretamente, em sede de responsabilidade civil conexa com a administração de sociedades comerciais.

A contradição pode, assim, ser mais facilmente evidenciada quando o direito depende de um único requisito normativo, mas torna-se mais difícil quando diversos elementos tenham influído no resultado ou quando a decisão é o corolário de diversos elementos que actuam em termos alternativos ou subsidiários.


3. O recorrente juntou, para justificar a admissibilidade do recurso extraordinário, o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 25-10-12, no qual, aliás, o ora relator também interveio como adjunto.

A extensão dos argumentos apresentados revela, desde logo, as dificuldades que o recorrente terá enfrentado para articular e evidenciar a existência de alguma contradição que efectivamente correspondesse às exigências legais.

Não se tratava, aliás, de uma operação fácil. Sendo compreensível o impulso da parte vencida no sentido de procurar a reversão da decisão que a afecta, no caso, essa pretensão debate-se com a dificuldade na detecção de outro acórdão que satisfaça os pressupostos legais.

Os sumários dos arestos assinalam, em princípio, os aspectos de ordem jurídica que foram decisivos para a solução encontrada, sendo que colocados em confronto os sumários de cada um dos acórdãos não se revela a alegada contradição.

No acórdão recorrido o ora relator elaborou o seguinte sumário:

“- A acção declarativa intentada por um dos sócios-gerentes de uma sociedade por quotas visando efectivar a responsabilidade civil de outro sócio-gerente da mesma sociedade, nos termos dos arts. 72º e 77º do CSC, pressupõe, além do mais, a prova da ilicitude da conduta e da existência de um dano na esfera jurídica da sociedade comercial.

- Para o efeito revela-se insuficiente a prova de que o sócio-gerente sacou um cheque da sociedade a favor de outro sócio-gerente, o qual, sem qualquer endosso, acabou por ser depositado na conta bancária do primeiro.

- Para além de tal facto não demonstrar, por si, a violação de deveres legais ou contratuais que recaem sobre os gerentes de sociedades por quotas (ilicitude), também é insuficiente para concluir que, por aquela via, houve uma diminuição do património da sociedade em benefício ilegítimo do sócio-gerente (dano)”.


Já no acórdão-fundamento o sumário relevante é o seguinte:

“…

- Nos termos do art. 72º, nº 1, do CSC, ex vi do art. 9º do Cód. Coop., as RR, na qualidade de membros da direcção da A. (Cooperativa), respondem para com a Cooperativa pelos danos a esta causados por actos ou omissões com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa.

- O citado art. 72º, nº 1 – ex vi do citado art. 9º do Cód. Coop. – estabelece uma presunção de culpa que impende sobre os gerentes ou administradores, no caso em apreço, sobre as RR., como membros da direcção da Cooperativa, presunção esta que pode ser ilidida se provarem que procederam sem culpa.


- As RR. também são responsáveis à luz dos citados normativos pelo pagamento de uma importância que receberam de uma seguradora em nome da A., na sequência de um sinistro (incêndio), nomeadamente quando as próprias RR não provaram o destino dessa importância, ónus, que, aliás, sobre elas sempre impendia, também por força da inversão do ónus da prova nos termos do art. 344º do CC, inversão esta que tem a sua justificação no facto de as RR. não apresentarem contas nos diversos exercícios das sua gerências, circunstância que sempre prejudica ou dificulta a A. de saber qual o destino que foi dado a essa verba”.


4. A leitura da motivação de cada um dos arestos acaba por confirmar a ausência da referida contradição. Existem algumas semelhanças entre as realidades que subjazem a cada um dos acórdãos, mas não ao ponto de evidenciarem uma identidade juridicamente relevante susceptível de sustenta uma contradição directa nas respostas que foram dadas por este Supremo Tribunal.

No acórdão recorrido, a improcedência da acção de responsabilidade civil foi sustentada quer na falta de demonstração da ilicitude da actuação da gerente da sociedade, quer na inexistência de dano na esfera jurídica da sociedade que é a entidade que poderia reclamar da actuação daquela.

Já no acórdão fundamento a discussão jurídica, além de ser sustentada numa realidade que é muito diversa daquela que estava em causa no primeiro aresto, girou em torno da prova da culpa e do nexo de causalidade.

Repare-se que todos os referidos requisitos são necessários para que se verifique a responsabilidade do gerente de sociedades, embora a norma do art. 72º do CSC faça presumir a culpa que, deste modo, se tem por reconhecida se não for elidida. A falta de algum dos elementos da responsabilidade civil determina a improcedência da acção, improcedência que foi declarada no acórdão recorrido quer por falta de prova da ilicitude, quer por falta de prova do dano relevante.

Por conseguinte, ainda que porventura existisse alguma contradição acerca do pressuposto da ilicitude no que concerne à apropriação da quantia titulada por cheque, o facto de na presente acção a improcedência ter sido sustentada também na inverificação do dano na esfera jurídico-patrimonial da sociedade comercial eliminaria a existência de uma contradição relevante para sujeitar o acórdão recorrido a um novo julgamento, agora pelo Pleno.

Enfim, ainda que a admissibilidade do recurso extraordinário não dependa da verificação de uma situação que corresponda totalmente à que foi objecto de decisão no acórdão fundamento, deve encontrar-se na comparação entre ambos os arestos uma contradição insustentável, de forma a justificar uma pronúncia suplementar, a fim de dirimir a divergência acerca da questão ou questões de direito que se mostraram decisivas para a solução declarada em cada um dos acórdãos.


5. O facto de em ambas as acções estar em causa um valor monetário titulado por um cheque de que cada uma das responsáveis pela sociedade se apropriou é insuficiente para revelar tal contradição, na medida em que a factualidade subjacente a tais cheques era diversa.

De facto, no acórdão fundamento, relativamente ao cheque que foi emitido por uma terceira entidade para compensar um prejuízo decorrente de um incêndio que afectara bens da pessoa colectiva, a apropriação por parte da directora da Cooperativa, para além de revelar a existência da ilicitude, traduzia, sem qualquer espécie de dúvida, o pressuposto do dano na esfera patrimonial da cooperativa.

Foi no facto de a directora não ter zelado pela apresentação de contas que reflectissem o destino que foi dado ao valor recebido que levou a considerar a existência da inversão do ónus da prova quanto à ilicitude da actuação que, em princípio, caberia à A., mas que, por aquela via, passou para a administradora. Só complementarmente se afirmou, ainda assim, num contexto fáctico bem mais complexo do que aquele que o recorrente sugere, que caberia à directora a prova de licitude do destino que foi dado ao dinheiro.

Nem o facto relacionado com o saque por parte da directora de um cheque à sua ordem e a seu favor revela a referida contradição relevante, pois que, mais uma vez, tal situação não se confunde com a dos autos em que o cheque em causa foi sacado pela R. a favor do ora recorrente, sendo este, em termos formais, a pessoa que eventualmente poderia considerar-se prejudicada, não ocorrendo um dano na esfera da sociedade que é pressuposto da presente acção de indemnização.

Enfim, a argumentação do recorrente reporta-se a uma factualidade que, além de não coincidir com a que esteve presente nestes autos, não tem subjacente a existência de uma contradição com o que aqui foi decidido, mais a mais com o relevo suficiente para determinar a sujeição do caso a um novo juízo decisório em sede de recurso extraordinário.

Efectivamente, no acórdão recorrido, a situação de facto e os respectivos contornos jurídicos são diversos. Como se referiu amplamente na respectiva fundamentação, tratava-se de um cheque que foi sacado pela R. em representação da própria Sociedade, indicando-se como beneficiário o autor, actuação em que não se visiona, nem por via directa, nem por indução, qualquer facto ilícito, sendo da competência da gerente da Sociedade o saque de cheques respeitantes a contas bancárias da Sociedade.

Se é verdade que tal cheque foi depositado numa conta bancária da gerente, o acórdão revela que não foi encontrado em tal facto qualquer motivo para se considerar que, ao agir dessa forma, foi inflingido um dano patrimonial na esfera da Sociedade, sendo este dano – e não o que porventura tenha ocorrido na esfera do Autor – o que é relevante para efeitos de responsabilização da gerente.

Em suma, foi negada no acórdão recorrido quer a existência da ilicitude, quer a verificação do dano, pressupostos que, contudo, foram afirmados no acórdão fundamento e que determinaram um resultado diverso cujo enquadramento jurídico encontra sustentação na divergência fáctica que efectivamente se verificava.


6. Por conseguinte, tendo em consideração a falta de contradição, acorda-se em indeferir a reclamação, confirmando o despacho do ora relator que rejeitou o recurso extraordinário.

Custas da reclamação a cargo do recorrente.

Transitado em julgado este acórdão, remeta os autos à 1ª instância

Notifique.

Lisboa, 5-5-16


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Bettencourt de Faria