Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1201/19.3T8LRA.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: CASO JULGADO
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
LITISCONSÓRCIO VOLUNTÁRIO
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
CONTA BANCÁRIA
PREJUÍZO PATRIMONIAL
Data do Acordão: 09/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Do caso julgado emerge um efeito negativo – proibição de repetição da causa (excepção de caso julgado) – e um efeito positivo – proibição de contradição de decisão transitada em julgado por decisão posterior (autoridade de caso julgado).

II. Para que se verifique a excepção de caso julgado é necessário que se verifique identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.

III. É de considerar como a mesma parte não só os concretos titulares do direito ou bem litigioso que eram partes na causa à data do trânsito em julgado da sentença, solitariamente ou em litisconsórcio necessário, como também os seus transmissários ou sucessores.

IV. A apreciação da identidade da qualidade jurídica dos sujeitos, em caso de pluralidade destes, para efeito de verificação da excepção de caso julgado haverá de se desdobrar em dois enfoques complementares em função da estrutura da relação jurídica subjacente: enquanto no caso de litisconsórcio necessário (necessário, legal, convencional ou natural) se atenta fundamentalmente ao interesse colectivo, no caso de litisconsórcio voluntário ou coligação atenta-se sobretudo ao interesse individual.

V. Estão excluídos da identidade subjectiva aqueles que podendo participar da acção em litisconsórcio voluntário o não fizeram, sendo, no entanto, de admitir a coincidência parcial entre sujeitos quanto àqueles que concretamente estiveram na causa; mas já se terá de entender haver identidade subjectiva nos casos de litisconsórcio voluntário que seja unitário, porquanto neste cada interessado processual representa, em substituição processual, todos os demais interessados não partes do processo, que ficam sujeitos aos efeitos da sentença.

VI. A pluralidade activa de partes na acção destinada a obter a reparação do prejuízo decorrente da actuação do banco na aquisição de valores mobiliários configura uma situação de litisconsórcio voluntário.

VII. Há identidade (parcial) de sujeitos se na primeira acção os Autores (casal) actuam como co-titulares exclusivos de uma conta bancária que veio a ser utilizada para a aquisição de instrumentos financeiros e na segunda acção se apresentam como Autores o mesmo casal e dois filhos, invocando agora que são eles os co-titulares exclusivos daquela conta.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA





NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE ACÇÃO DECLARATIVA DE CONDENAÇÃO




ENTRE

AA

e mulher

BB

CC

DD


(aqui patrocinados por EE, adv.)

Autores / Apelantes / Recorrentes






CONTRA




BANCO BIC PORTUGUÊS, SA

(aqui patrocinado por FF)

Réu /Apelado / Recorrido



I – Relatório


 Os Autores intentaram a presente acção pedindo a condenação do Réu a pagar-lhes a quantia de 200.000 € acrescida de juros desde 30ABR2015 alegando que sendo, enquanto simples aforradores, clientes (o 1º Autor apenas desde 2012, altura em que se tornou contitular da conta) do Banco Português de Negócios (a quem o Réu sucedeu) viram-se, em 08MAI2006, sem a sua participação e consentimento e sem qualquer informação, subscritores de obrigações SNL2016, no valor de 200.000,00, debitados da sua conta à ordem; confrontados com tal situação só se vieram a com ela conformar porque os funcionários do banco, em quem depositavam confiança, os convenceram que se tratava de produto financeiro substancialmente idêntico a um depósito a prazo com juros mais elevados, com retorno garantido pelo próprio banco e resgatável a qualquer momento, sendo que jamais aceitariam a situação não fora essa circunstâncias (capital garantido e livre disponibilidade do mesmo), como os funcionários do banco bem sabiam; jamais lhe foi prestada pelo banco, que agiu como intermediário financeiro, qualquer informação sobre as verdadeiras características das obrigações em causa; as obrigações não foram pagas na data do seu vencimento e os respectivos juros só foram pagos até ABR2015.

O Réu contestou excepcionando caso julgado e prescrição e por impugnação.

No despacho saneador foi julgada procedente a invocada excepção de caso julgado; decisão essa que foi, unanimemente e com idêntica fundamentação, confirmada pela Relação.

 Inconformados vieram os Autores interpor recurso de revista excepcional, nos termos da al. c), e subsidiariamente als. a) e b), do art.º 672º do CPC, o qual foi admitido pela formação a que alude o nº 3 daquele artigo, concluindo, em síntese, pela inexistência de caso julgado uma vez que não se verifica nem identidade de partes nem identidade de pedido nem identidade de causa de pedir.

Houve contra-alegações onde se propugnou pela manutenção do decidido.

II – Da admissibilidade e objecto do recurso


 O recurso encontra-se já admitido

 Destarte, merece conhecimento.

 Vejamos se merece provimento.           


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Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.

Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

 Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, a questão a resolver por este tribunal é se se verifica a excepção de caso julgado.


III – Os factos


É a seguinte a factualidade relevante para a apreciação do presente recurso, resultantes dos documentos insertos nos autos:

1. Correu termos no Juízo Central Cível ..., Juiz …, sob o nº 1814/…, a ação declarativa em que figuraram como Autores:

1º - Associação para o Desenvolvimento e Formação Profissional de Miranda do Corvo;

2ºs - GG e mulher HH;

3ºs - II e mulher JJ;

4ºs - LL e mulher MM;

5ºs - NN e mulher OO;

6ºs - PP e mulher QQ;

7ºs - RR e mulher SS;

8ºs - AA e mulher BB;

9º - TT.

 2. Nessa acção foram Réus o BPN – Banco Português de Negócios, S.A., e GALILEI, SGPS, SA (anteriormente SLN – Sociedade Lusa de Negócios, SA).

3. Nessa acção foram formulados os seguintes pedidos:

Pelo 1º Autor – a condenação solidaria dos Réus a restituir-lhe a quantia de 1.203.000,00 € acrescida de juros legais desde 31MAI2007;

Pelos 2ºs Autores – a condenação solidária dos Réus a restituírem-lhes a quantia de 230.000,00 €, acrescida de juros;

Pelos 3ºs Autores- a condenação solidária dos Réus a restituírem-lhes a quantia de 100.000,00 €, acrescida de juros legais desde 11MAR2009;

Pelos 4ºs Autores - a condenação solidária dos Réus a restituírem-lhes a quantia de 300.000,00 €, acrescida de juros legais desde 10ABR2007 (sobre 50.000,00 €), 09MAI2008 (sobre 50.000,00 €) e 08OUT2009 (sobre 200.000,00 €);

Pelos 5ºs Autores - a condenação solidária dos Réus a restituírem-lhes a quantia de 50.000,00 €, acrescida de juros legais desde 12ABR2007;

Pelos 6ºs Autores - a condenação solidária dos Réus a restituírem-lhes a quantia de 100.000,00 €, acrescida de juros legais desde 30SET2009;

Pelos 7ºs Autores - a condenação solidária dos Réus a restituírem-lhes a quantia de 350.000,00 €, acrescida de juros legais desde 25OUT2005;

Pelos 8ºs Autores - a condenação solidária dos Réus a restituírem-lhes a quantia de 300.000,00 €, acrescida de juros legais desde 05OUT2007;

Pelo 9º Autor - a condenação solidária dos Réus a restitui-lhe a quantia de 220.000,00 €, acrescida de juros legais.

4. Para fundamentar aqueles pedidos todos eles alegaram que manifestando junto do BPN a sua intenção de constituir depósitos a prazo viram aquele banco, sem a sua autorização e conhecimento, ou mediante a assinatura de documentação que lhes foi apresentada pelo banco como a necessária para a constituição de depósito a prazo, ou porque lhes foi assegurado pelo banco que este lhes garantia o retorno do capital investido, fazê-los subscrever obrigações da SLN, sem lhes ter sido prestada informação quanto às características esse tipo de instrumentos financeiros, que jamais teriam adquirido se essa informação lhe tivesse sido dada; que o BPN não cumpriu os seus deveres de protecção, lealdade e informação para com os depositantes seus clientes induzindo-os em erro na subscrição de obrigações da SLN, sendo que esta é solidariamente responsável pelo ressarcimento dos prejuízos causados dado o BPN ter agido como seu agente.

5. Em particular os 8º Réus alegaram:

- os 8.ºs AA. tinham €300.000,00 (trezentos mil euros) depositados numa conta a prazo.

- sem autorização, nem conhecimento, nem sequer através de uma ordem escrita dos 8.ºs AA., o BPN retirou da referida conta €200.000,00 que aplicou em Obrigações SLN 2006.

- os 8.ºs AA. nem sequer foram informados pelo Banco Réu da aplicação dos seus valores na subscrição de obrigações, nem qual seria a taxa liquida anual.

- ou seja, sem o conhecimento nem autorização dos 8.ºs AA., sem que estes dessem ordem, o Banco 1.º R. resolveu subscrever € 200.000,00 (duzentos mil euros) em Obrigações SLN 2006.

- porém, os 8.ºs AA. nunca foram informados relativamente a este investimento em Obrigações SLN, nunca tendo assinado nenhum documento nem nenhuma subscrição.

- o BPN nunca fez o retorno dos valores que aplicou nas Obrigações, em nome dos 8.ºs AA., apesar de a tal estar obrigado.

6. Esta ação veio a ser julgada improcedente, tendo os Réus sido absolvidos do pedido por sentença de 17.10.2014, com fundamento em não terem os Autores logrado provar os factos em que baseavam a sua pretensão, chegando em alguns deles a demonstrar-se que conheciam as características do produto financeiro e quiseram subscrevê-lo.

7. Desta sentença recorreram os Autores para o Tribunal da Relação de Lisboa, que veio a confirmar a dita sentença por Acórdão de 27.10.2015.

8. De novo recorreram os Autores, desta feita para o Supremo Tribunal de Justiça, que veio a proferir Acórdão 14.06.2016 que confirmou a absolvição do pedido.

9. Na presente ação os Autores AA e mulher, BB, CC e DD pedem o seguinte:

«Nestes termos e nos melhores de direito, deve a presente ação ser julgada procedente por provada e o Banco réu ser condenado a restituir e a pagar aos autores a quantia de €230.838,36 (duzentos e trinta mil oitocentos e trinta e oito euros e trinta e seis cêntimos), acrescida de juros à taxa supletiva legal, contados sobre €200.000,00, desde a citação e até integral e efetivo pagamento, bem como em custas e em procuradoria condigna.».

10. Na presente ação os Autores alegaram essencialmente o seguinte:

- Os primeiros autores são casados entre si, estão atualmente reformados e são pais da segunda e do terceiro autores.

- Em 2006, a primeira autora mulher, juntamente com os seus dois filhos, ora segunda autora e terceiro autor, tinham dois depósitos a prazo no Banco réu, num total de €300.000,00 (trezentos mil euros).

- Quando entregaram a quantia em questão no Banco réu, a primeira autora mulher, juntamente com os seus dois filhos, ora segunda autora e terceiro autor, deixaram bem claro que pretendiam uma aplicação totalmente segura.

- Não obstante, no dia 8 de maio de 2006 foi debitada na conta de depósitos à ordem da primeira autora mulher e dos seus dois filhos, ora segunda autora e terceiro autor, a quantia de €200.000,00 (duzentos mil euros) para a subscrição de 4 obrigações SLN 2006.

- Sem que a primeira autora mulher ou seus filhos, ora segunda autora e terceiro autor tivessem sido informados ou auscultados, com o seu completo desconhecimento e contra a sua vontade, no dia 8 de maio de 2006, alguém da agência ... – ..., onde, à data, aqueles tinham domiciliadas as suas contas junto do Banco réu, procedeu ao resgate de um dos referidos depósitos a prazo, no valor de €190.000,00, e, ato contínuo, subscreveu, em nome da primeira autora mulher, da segunda autora e do terceiro autor, quatro obrigações SLN 2006, no valor unitário de €50.000,00 e global de €200.00000, debitando, de imediato, tal valor na sua conta de depósitos à ordem.

- Não foi dado a assinar nem à primeira autora mulher, nem à segunda autora, nem ao terceiro autor, o boletim de subscrição de tais obrigações.

- Contudo, os seus interlocutores – funcionários do Banco réu – descansaram-nos, asseverando que se tratava de um produto substancialmente semelhante a um depósito a prazo, porém melhor remunerado.

- A primeira autora mulher e os seus dois filhos, ora segunda autora e terceiro autor, pessoas humildes e trabalhadoras, confiaram na explicação que lhes foi dada pelos funcionários do Banco réu.

- A primeira autora e os seus dois filhos, ora segunda autora e terceiro autor, só se conformaram com a atuação ilegítima e abusiva do Banco réu por que lhes foi afiançado pelos funcionários do mesmo que o retorno da quantia subscrita era garantido pelo próprio Banco, uma vez que se tratava de um sucedâneo melhor remunerado de um depósito a prazo, com semelhantes características.

- Consumado o abuso, não foi dada nem à primeira autora mulher, nem à segunda autora e nem ao terceiro autor a nota informativa da operação, fosse em 2006, fosse logo após a nacionalização do Banco réu, fosse até à presente data.

- Apenas foi dada a palavra empenhada de todos os funcionários do Banco, que atuaram em representação e sob as ordens do réu, de que se tratava de um produto sem qualquer risco e que podia ser resgatado a qualquer altura.

- Destarte, lograram convencer a primeira autora mulher e os seus dois filhos, ora segunda autora e terceiro autor.

IV – O direito


O Réu, na sua contestação, invocou a “excepção de caso julgado” porquanto a causa seria a repetição de causa já anteriormente julgada (proc. 1814/…).

Ao que as Autores obtemperaram invocando não ocorrer entre aquela e esta acção identidade de partes, pedido e causa de pedir.

As instâncias entenderam ocorrer a invocada repetição da causa, sendo contra isso que se insurge o Recorrente.


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O ‘caso julgado’ é a condição resultante decisões transitadas em julgado (logo que não susceptíveis de recurso ou reclamação – art.º 628º do CPC) desdobrando-se num efeito negativo e num efeito positivo.

Discutiu-se se o ‘caso julgado’ se restringia à decisão ou se estendia também aos fundamentos dessa decisão. Considerando que “a fundamentação vale como elemento pressuposto pela decisão, e nessa medida possui a natureza vinculativa da decisão que a implica, e a decisão vale como elemento pressuposto pela fundamentação, e nessa medida tem a eficácia vinculativa da fundamentação que a implica” é hoje consensualmente aceite que “o caso julgado material integra os fundamentos decisivos para o sentido da sentença e os elementos ou motivos objectivos da relação jurídica litigiosa” (MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ, 325, pg. 210-211; acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12JUL2011, proc. 129/07.4TBPST.S1, e 22FEV2018, proc. 3747/13.8T2SNT.L1.S1).

O efeito negativo – excepção de caso julgado (‘exceptio rei judicatae’) – resulta na proibição de repetição da apreciação da causa, de os tribunais voltarem a apreciar a causa, quer contrariando quer confirmando a decisão anterior.

O efeito positivo – autoridade de caso julgado (‘auctoritas rei judicatae’) – resulta na imposição do respeito pelo conteúdo da decisão transitada (nos precisos limites e termos em que julga – art.º 621º do CPC) em decisão posterior, que não pode contradizer a anterior decisão transitada (art.º 619º do CPC). Este efeito positivo, não se verifica apenas relativamente ao caso julgado material, mas também no caso julgado formal; a diferença é que no caso julgado material esse efeito positivo se estende a decisões posteriores proferidas noutras acções enquanto no caso julgado formal esse efeito positivo apenas afecta as decisões posteriores proferidas no mesmo processo (cf. RUI PINTO, Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, JULGAR Online, NOV2018, pg. 25).

“Quando o objecto processual anterior é condição para a apreciação do objecto processual posterior, o caso julgado da decisão antecedente releva como autoridade de caso julgado material no processo subsequente; quando a apreciação do objecto do processual antecedente é repetido no objecto processual subsequente o caso julgado da decisão anterior releva como excepção de caso julgado no processo posterior” (MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ, 325, pg. 171).

 “Deste modo, se o efeito negativo do caso julgado (excepção de caso julgado) leva à admissão de apenas uma decisão de mérito sobre um mesmo objecto processual, mediante a exclusão de poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, o efeito positivo (autoridade de caso julgado) admite a produção de decisões de mérito sobre objectos processuais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão. (…) na autoridade de caso julgado a decisão anterior determina os fundamentos da segunda decisão; na excepção de caso julgado a decisão anterior obsta à segunda decisão” (cf. RUI PINTO, Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, JULGAR Online, NOV2018, pg. 28).

 No entanto, nem todas as decisões são susceptíveis de transitar em julgado e, consequentemente, de adquirir a condição de ‘caso julgado’ (cf. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed. 1997, pg. 567); desde logo os despachos de mero expediente e os proferidos no uso legal de um poder discricionário (artigos 620º, nº 2, e 630º do CPC). Quando muito podem aspirar a irrevogabilidade, nos termos do art.º 613º do CPC.


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A ‘excepção de caso julgado’ (que, enquanto excepção dilatória, é do conhecimento oficioso do tribunal) exige, nos termos do art.º 581º do CPC, a verificação de uma ‘tríplice identidade’: quanto aos sujeitos, quanto ao pedido e quanto à causa de pedir (‘eadem personae, eadem res, eadem causa petendi’).


A identidade de sujeitos não se reporta às concretas pessoas, físicas ou jurídicas, presentes nas duas causas, mas antes a um conceito material de identidade sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, conforme o prescrito no nº 2 do art.º 581º do CPC. Dessa forma haverá de considerar como a mesma parte não só os concretos titulares do direito ou bem litigioso que eram partes na causa à data do trânsito em julgado da sentença, solitariamente ou em litisconsórcio necessário, como também os seus transmissários ou sucessores, com ressalva dos direitos indisponíveis ou intransmissíveis. Estão excluídos da identidade subjectiva aqueles que podendo participar da acção em litisconsórcio voluntário o não fizeram, sendo, no entanto, de admitir a coincidência parcial entre sujeitos quanto àqueles que concretamente estiveram na causa; mas já se terá de entender haver identidade subjectiva nos casos de litisconsórcio voluntário que seja unitário, porquanto neste cada interessado processual representa, em substituição processual, todos os demais interessados não partes do processo, que ficam sujeitos aos efeitos da sentença. No campo da identidade subjectiva irreleva a concreta posição processual ocupada na acção (cf. RUI PINTO, Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, JULGAR Online, NOV2018, pg. 13).


Entendendo-se o pedido, nos termos do nº 3 do art.º 581º do CPC, como o efeito jurídico pretendido (objecto imediato do pedido), e que este se repercutirá sobre certo e determinado bem jurídico (objecto mediato do pedido) haverá identidade do pedido quando em causas diferentes a parte activa pretende uma sentença com idêntico efeito jurídico para um mesmo e determinado bem jurídico (cf. RUI PINTO, Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, JULGAR Online, NOV2018, pg. 8-10).


Um mesmo conflito de interesses pode ser fonte de uma diversidade de pretensões judiciais, consoante os diversos modos de tutela jurídica que o mesmo potencie, cabendo ao impetrante optar por aquele que, em função dos meios de prova de que disponha ou de outras condicionantes, melhor satisfaça o interesse pretendido.

Não sendo imposto ao Autor qualquer ónus de cumular na mesma acção pretensões distintas que, porventura, possa deduzir com base na mesma factualidade, o que, de resto, melhor condiz com o princípio do dispositivo, é-lhe lícito formular n vezes a mesma pretensão, desde que a baseie em n causas de pedir. Efeito preclusivo só se verifica aqui no domínio pouco importante das questões secundárias ou instrumentais, ou seja, as referentes a factos que visam completar o objecto da acção anteriormente apreciada.

A causa de pedir é, assim, constituída pelos factos necessários para individualizar a pretensão material alegada. Nesse sentido a causa de pedir não se basta com a mera alegação de factos naturalísticos (factos ‘brutos’), mas antes esses factos devem ser alegados por referência a um quadro jurídico-normativo (factos ‘institucionais’) em função do efeito jurídico pretendido.

Não estando, no entanto, o tribunal vinculado às qualificações jurídicas efectuadas pelas partes, incumbindo-lhe antes proceder às qualificações jurídicas que tiver por corretas de modo a esgotar as possíveis qualificações dos factos alegados em função do efeito prático-jurídico pretendido, não basta uma mera qualificação jurídica dos factos alegados diferente da pretendida pelas partes para se concluir por causa de pedir diferente. Importa, no entanto, moderar essa liberdade de qualificação no sentido de não permitir uma convolação qualificativa tão ampla que conduza a um modo de tutela de conteúdo essencialmente diferente do visado pelo autor, extravasando o limite da condenação prescrito no art.º 609.º, n.º 1, do CPC e atentando mesmo contra os princípios do dispositivo e do contraditório, em função dos quais as partes pautaram a configuração do litígio e a discussão da causa (cf. acórdão do STJ de 18SET2018, proc. 21852/15.4T8PRT.S1).

A identidade da causa de pedir deve aferir-se, nos termos e para os efeitos do nº 4 do art.º 581º do CPC, em função dos factos jurídicos essenciais, irrelevando para o efeito a diversidade de factos complementares ou a diferente qualificação jurídica (cf. RUI PINTO, Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, JULGAR Online, NOV2018, pg. 8-10; MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., 1997, pg. 576).


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A ‘autoridade de caso julgado’ (que tem de ser invocada, não sendo de conhecimento oficioso, porquanto “resume-se à invocação de sentença anterior para se alegar factos principais que constituem a causa de pedir da acção ou em que se baseiam as excepções, apenas cabendo às partes alegar esses factos - cf. RUI PINTO, Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, JULGAR Online, NOV2018, pg. 35-36) consiste na vinculação de uma decisão posterior a uma decisão já transitada em julgado em razão de uma específica conexão dos respectivos objectos processuais, e tem requisitos diferenciados da ‘tríplice identidade’ da ‘excepção de caso julgado’

A possibilidade de invocação da ‘autoridade de caso julgado’ exige a verificação de três condições: uma condição objectiva negativa, uma condição objectiva positiva e uma condição subjectiva (cf. RUI PINTO, Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, JULGAR Online, NOV2018, pg. 26-29).

A condição objectiva negativa é de que não ocorra uma repetição de causas; que não ocorra ‘excepção de caso julgado’.

A condição objectiva positiva consiste na existência de uma relação de prejudicialidade ou concurso entre os objectos processuais de dois processos de tal ordem que a desconsideração do teor da primeira decisão redundaria na prolação de efeitos que serial lógica ou juridicamente incompatíveis com esse teor, impondo-se que a consideração da sentença já transitada determine o sentido da posterior decisão de mérito.

A prejudicialidade exige a pressuposição da decisão do objecto posterior pela decisão do objecto anterior, o que torna a decisão sobre o objecto antecedente uma premissa da decisão do objecto subsequente. Dito de outro modo, a resolução da segunda questão está dependente da resolução de uma primeira questão (cf. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ, 325, pg. 172, e RUI PINTO, Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, JULGAR Online, NOV2018, pg. 38-39).

Há concurso de objectos processuais quando duas ou mais acções têm um pedido idêntico com diferentes fundamentos (cf. RUI PINTO, Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, JULGAR Online, NOV2018, pg. 40-44).

No caso de concurso de objectos processuais a ‘autoridade de caso julgado’ só actua no caso de procedência (caso julgado positivo), pois que só no caso de procedência ficam vedadas novas acções entre os mesmos sujeitos sempre que o pedido seja idêntico (valendo o que foi já decidido com trânsito em julgado); no caso de improcedência ao vencido não está vedado repetir o mesmo pedido com diferentes causas de pedir.

O autor pode escolher entre deduzir algum ou deduzir todos os fundamentos de facto que concorrem como causa de pedir. Se vencer, alcança o seu fito, sendo irrelevante quais e quantos fundamentos trouxe: todos serão consumidos pelos efeitos positivos e negativos de caso julgado, tanto os fundamentos de facto, como os fundamentos de direito, e tanto os que deduziu (estes relevando para a excepção de caso julgado) como os que podia ter deduzido (este relevando para a autoridade do caso julgado). Se perder, há uma diferença prática entre ter deduzido todos os fundamentos (de facto e de direito) ou deixado “de fora” certos fundamentos de facto: se deduziu todas as causas de pedir possíveis, não mais podem ser invocadas para o mesmo pedido, dada a excepção de caso julgado; mas se apenas deduziu alguma ou algumas das causas de pedir possíveis, pode instaurar nova acção por outro fundamento, sem que se lhe possa opor vitoriosamente a autoridade de caso julgado.

A condição subjectiva, que resulta desde logo das exigências do processo equitativo consagrado nº art.º 20º, nº 4, da Constituição, é a de, em regra, apenas podem ser sujeitos aos efeitos de uma decisão judicial aqueles que participaram na sua produção de modo contraditório; apenas a quem seja tido como parte do ponto de vista da sua qualidade jurídica (na acepção do art.º 581º, nº 2, do CPC) pode ser oposta a ‘autoridade de caso julgado’; a ‘autoridade de caso julgado’ não é invocável perante terceiros (‘nec res inter alios judicata aliis prodesse aut nocere solet’).

Admite-se, no entanto, que terceiros possam invocar a ‘autoridade de caso julgado’ alheio quando tal extensão de efeitos é determinada por via legal (necessária, como no caso do art.º 622º do CPC nas questões relativas ao estado das pessoas e do art.º 19º da Lei 83/95, 31AGO, na acção popular; ou eventual, como ocorre nas situações previstas nos artigos 522º - codevedor solidário -, 531º - credor solidário -, 538º, nº 2 – credor de obrigação indivisível -, 635º - terceiro fiador – ou 717º, nº 2 – terceiro hipotecário).

E tendo em linha de conta que a limitação inter partes do caso julgado se justifica pela necessidade de proteger quem não se pode defender, se é o próprio protegido a querer “usar” a decisão, não se vislumbra obstáculo (salvo em casos de indisponibilidade de direitos) à possibilidade de terceiro de aderir voluntariamente ao caso julgado alheio fazendo valer em seu benefício a respectiva ‘autoridade de caso julgado’. Daí que vá ganhando campo a consagração da existência de um princípio de aproveitamento por terceiros do caso julgado alheio (cf. RUI PINTO, Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, JULGAR Online, NOV2018, pg. 32).

Na jurisprudência a análise das condições necessárias para a operacionalidade da ‘autoridade de caso julgado’ tem sido levada a cabo, numa divergência que se nos afigura apenas terminológica que não material, sob a égide da questão de saber da necessidade de verificação de tríplice identidade, como na ‘excepção de caso julgado’, em particular da identidade de sujeitos.

Nesse conspecto a jurisprudência tem vindo a afirmar que ‘a autoridade do caso julgado’ dispensa a verificação da tríplice identidade requerida para a procedência da exceção dilatória, sem dispensar, porém, a identidade subjectiva; significando que tal dispensa se reporta apenas à identidade objectiva, a qual é substituída pela exigência de que exista uma relação de prejudicialidade entre o objecto da segunda acção e o objecto da primeira. Nesses termos, a ‘autoridade de caso julgado’ não estende os seus efeitos a terceiros, salvo os casos em que estes se encontrem legalmente abrangidos por uma extensão dos seus efeitos (cf. acórdãos do STJ de 29MAI2011, proc. 1722/12.9TBBCL.G1.S1, 07MAR2017, proc. 2772/10.5TBGMR-Q.G1.S1, 28JUN2018, proc. 2147/12.1YXLSB.L2.S1, 25MAR2021, proc. 12191/18.0T8LSB.L1.S1, 04MAI2021, proc. 1051/18.4R8CHV.G1.S1 e 02JUN2021, proc. 2381/19.3T8CBR.C1.S1). Não deixa, porém, de se manifestar entendimento no sentido da dispensa também da identidade subjectiva (cf. acórdão do STJ de 15JAN2013, proc. 816/09.2TBAGD.C1.S1, e 27FEV2018, proc. 2472/05.8TBSTR.E1 [“A decisão da responsabilidade dos intervenientes em acidente de viação numa primeira acção proposta por alguns lesados contra a seguradora A, volta a inserir-se no objecto da segunda acção, proposta por outro lesado contra a mesma seguradora, devendo aqui ser acatada a decisão anteriormente proferida sobre o ponto – a exclusiva responsabilidade do condutor segurado na ré –, por se impor a autoridade de caso julgado” – situação, em nosso modo de ver, reconduzível à acima referida situação de aproveitamento por terceiro de caso julgado alheio).


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 O acórdão recorrido acolheu por inteiro o entendimento da 1ª instância de ocorrência de identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir. Especificamente em relação à identidade de sujeitos, entendendo que o que para o efeito releva não é a correspondência física entre os sujeitos, mas a identidade do ponto de vista da qualidade jurídica, que ocorre quando as partes são portadoras do mesmo interesse substancial. E a partir daí concluiu que o interesse feito valer pelos Autores da anterior acção é exactamente o mesmo feito valer pelos Autores desta acção.

Não se nos levanta qualquer dúvida quanto à identidade de pedido e de causa de pedir, sendo infundada as objecções dos Recorrentes.

 Com efeito o núcleo essencial de factos jurídicos em que se baseia a pretensão deduzida é idêntico em ambas as acções: utilização pelo banco do saldo de conta bancária, à revelia dos seus titulares, para aquisição de instrumento financeiro, sem informação adequada relativamente ao mesmo. E nessa identidade não interfere a alegação mais pormenorizada da violação do dever de informação constante da alegação da segunda acção pois que estamos no domínio dos factos complementares e da sua repercussão na qualificação jurídica.

 Por outro lado, a identidade de pedido afere-se pelo efeito jurídico pretendido – no caso a condenação no pagamento de um quantitativo monetário – e não na igualdade do montante peticionado. Além de a quantia de 300.000 € peticionada na primeira acção resulta de um evidente lapso de escrita uma vez que o que vem alegado é que foi utilizada a quantia de 200.000 € dos 300.000 € que os Autores tinham em depósito.


 Já quanto à identidade de sujeitos impõem-se uma análise mais pormenorizada.  

 Muito perfunctoriamente se dirá que o facto de a anterior acção ter sido intentada por oito conjuntos de Autores não obsta a que, para efeito de apreciação de invocada excepção de caso julgado, se autonomize a posição de apenas um desse conjunto de Autores, uma vez que se trata de mera coligação, com diferenciados e autónomos pedidos e causa de pedir (cf. factos 1, 3 e 4). E o mesmo se diga relativamente aos Réus.

  Na anterior acção foram Autores apenas os agora dois primeiros Autores, que aí actuaram como (únicos) co-titulares de uma conta bancária (e, consequentemente, como donos do capital nela representado), da qual, segundo alegaram, o banco réu, de forma ilícita e culposa, debitou 200.000 € para subscrição de instrumentos financeiros, dando azo a que viessem a ver-se privados desse capital e correspondente frutos civis.

  Já na presente acção a titularidade da conta bancária utilizada para a aquisição dos mesmos instrumentos financeiros é invocada pelo conjunto dos quatro Autores.

  O que levanta desde logo a dúvida de saber se essa pluralidade de titulares da conta bancária (e, consequentemente, da relação material controvertida) consubstancia um litisconsórcio (pluralidade de partes relativamente à mesma relação material controvertida) voluntário ou necessário.

 Há lugar a litisconsórcio necessário natural (único que para o caso pode relevar) quando pela própria natureza da relação jurídica seja necessária a intervenção de todos os interessados para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal (art.º 33º, nº 2, do CPC), sendo que o efeito útil normal da decisão consiste em esta, não vinculando embora os restantes interessados, poder regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado (nº 3 do mesmo artigo).

 Segundo a definição de MANUEL DE ANDRADE (Significado da expressão ‘efeito útil normal’ da decisão, na doutrina do litisconsórcio, Scientia Iuridica, 1958, Tomo VII, nº 34, pg. 186) o efeito útil normal consiste em « a sentença definir uma situação jurídica (…) que não só não poderá mais ser contestada por qualquer das partes, como ainda é de molde a poder subsistir inalterada não obstante a sentença ser ineficaz em confronto dos outros cointeressados, e como quer que uma nova sentença venha a definir a posição ou situação deste últimos».

  O escopo pretendido «é que não sejam proferidas decisões que praticamente venham a ser inutilizadas por outras proferidas em face dos restantes interessados, por virtude de a relação jurídica ser de tal ordem que não possam regular-se inatacavelmente as posições de alguns sem se regularem as dos outros. Por maior, portanto, que possa, eventualmente, vir a ser a contrariedade lógica entre as decisões, desde que sejam susceptíveis de aplicação sem inconciliabilidade prática, a decisão produz o seu efeito útil normal, e o litisconsórcio não se impõe pela natureza da relação jurídica» (ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, vol. II, 1982, pg. 205).

 O sistema processual não se opõe à existência de decisões incongruentes, conquanto «cada decisão seja susceptível de produzir o seu efeito útil normal, ou seja, desde que a sentença que venha a ser proferida possa regular definitivamente a situação concreta dos interessados intervenientes na lide, com independência relativamente aos não intervenientes» (GERALDES / PIMENTA/ SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª ed., 2020, pg. 67). Assim ficam deliberadamente fora do litisconsórcio necessário «os casos em que falta de um ou alguns dos interessados na relação material não impede a decisão de regular definitivamente a situação concreta entre os litigantes, embora possa dar lugar a decisões ilógicas, contraditórias nos seus fundamentos, relativamente a situações nascidas da mesma situação» (VARELA / BEZERRA / NORA, Manual de Processo Civil, 2ª ed. Revista, 1985, pg.168). O sistema não rejeita uma incompatibilidade abstracta, teórica; o que rejeita é uma incompatibilidade prática, concreta, ou seja, «decisões que não possam executar-se ao mesmo tempo» (MANUEL DE ANDRADE, op. cit., pg. 188)

 O litisconsórcio necessário natural «deve ser encarado com excecionalidade, verificando-se apenas quando a sentença que porventura vier a ser proferida fique numa situação instável em face de outra eventual sentença que venha a ser proferida noutra acção com intervenção de outros interessados» (GERALDES / PIMENTA/ SOUSA, op. cit., pg. 68), reservando-se para aquelas situações em que «o entrelaçamento das posições dos vários interessados vai a tal ponto, pela natureza da relação jurídica, que nada de definitivo se pode decidir senão para todos e portanto entre todos, quer dizer, vai a tal ponto que não podem regular-se inatacàvelmente as posições de alguns sem se regularem as dos outros» (MANUEL DE ANDRADE, op. cit., pg. 187).

 Concretizando a aplicabilidade do litisconsórcio natural a jurisprudência vêm entendendo que são casos de litisconsórcio necessário as acções em importam juízos divisórios (e.g., divisão de coisa comum, rateio de montante indemnizatório legalmente com limite máximo legalmente fixado), as acções constitutivas (e.g., declaração de nulidade, resolução) e ainda as que tenham por objecto um interesse indivisível ou incindível dos vários interessados (cf. acórdão do STJ de 22OUT2015, proc. 2394/11.3TBVCT.G1.S1).

  A apreciação da identidade da qualidade jurídica dos sujeitos, em caso de pluralidade destes, para efeito de verificação da excepção de caso julgado haverá de se desdobrar em dois enfoques complementares em função da estrutura da relação jurídica subjacente: enquanto no caso de litisconsórcio necessário (necessário, legal, convencional ou natural) se atenta fundamentalmente ao interesse colectivo, no caso de litisconsórcio voluntário ou coligação atenta-se sobretudo ao interesse individual.


  No caso concreto está em causa a reparação do prejuízo patrimonial que a imputada conduta ilícita e culposa do Réu causou aos co-titulares da conta bancária cujo saldo foi afecto à aquisição de valores mobiliários.

Embora as consequências danosas se repercutam, dada a situação de co-titularidade, sobre o conjunto dos titulares dessa conta bancária não se descortina qualquer característica de indivisibilidade ou incindibilidade dos interesses em causa; pelo contrário, o que sobreleva é o interesse individual de cada um dos co-titulares em ver reintegrado o seu património individual, na medida da sua quota parte naquela co-titularidade. Nem se vislumbra que a decisão que sobre a matéria possa vir a ser tomada quanto a algum ou alguns possa vir a ser afectada por outra decisão que possa vir a ser tomada quanto aos restantes; a possibilidade de divergência de decisões, podendo ser abstractamente ilógico ou contraditório não o são em concreto, não impedindo, na feliz expressão de MANUEL DE ANDRADE, que possam ser executadas ao mesmo tempo.

  Temos, pois, que a situação dos autos configura, por banda dos Autores, uma situação de litisconsórcio voluntário.

  E o mesmo ocorre por banda do Réu, pois que também se não vislumbra qualquer circunstância que implique a necessidade, em função da obtenção do efeito útil normal, de apreciação conjunta do comportamento do banco Réu, enquanto depositário e intermediário financeiro, e da entidade emitente do valor mobiliário. O que, aliás, corresponde à visão dos Autores que também não sentiram qualquer necessidade de nesta acção fazer intervir aquele último.

 E aqui chegados estamos em posição de concluir que ocorre uma identidade parcial de sujeitos entre as duas acções. Com efeito verifica-se que nas duas acções foram partes, na mesma qualidade jurídica defendendo o mesmo interesse individual, os dois primeiros Autores (AA e BB) e o agora Réu, pelo que relativamente a eles ocorre repetição da causa.

  Em conformidade haverá de considerar nessa parte verificada a excepção de caso julgado; a acção haverá, no entanto, de prosseguir quanto aos restantes Autores.

V – Decisão

Termos em que, concedendo parcialmente a revista, se revoga o acórdão recorrido, julgando procedente a invocada excepção de caso julgado relativamente aos Autores AA e BB, absolvendo, relativamente a eles, o Réu da instância; e julgando improcedente a mesma excepção de caso julgado relativamente aos demais Autores, devendo a acção prosseguir quanto a eles.

Custas:

 - da acção, a decidir a final;

- da apelação e da revista, a meias.

  Não há lugar a dispensa do remanescente da taxa de justiça (na apelação e na revista) pois que se entende respeitada a proporcionalidade entre o montante desta e a alocação de recursos implicada na apreciação da causa conjugada com a capacidade contributiva evidenciada pelas partes.

                                                                                 

Lisboa, 23SET2021


Rijo Ferreira (relator)

[Com voto de conformidade do Exmo. Juiz Conselheiro Batista de Oliveira, conforme o disposto no art.º 15º-A do DL 10-A/2020, 13MAR, com  a redacção introduzida pelo DL 20/2020, 01MAI]

Cura Mariano

Fernando Baptista