Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
13580/16.0T8LSB-C.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SOUSA LAMEIRA
Descritores: GARANTIA BANCÁRIA
CAUÇÃO
EMBARGOS DE EXECUTADO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
IDONEIDADE DO MEIO
BANCO
Data do Acordão: 11/15/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / APELAÇÃO / EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA / PROCESSO ORDINÁRIO / OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÕES EM GERAL / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 635.º, 650.º, N.º 3 E 733.º, N.º 1, ALÍNEA A).
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 623.º, N.ºS 1, 2 E 3.
Sumário : A garantia bancária autónoma é uma forma de prestação de caução admissível no nosso ordenamento jurídico, nada obstando a que seja efectuada por garantia bancária efectuada pelo próprio banco/executado, com a finalidade de conferir efeitos suspensivos aos embargos deduzidos pelo executado/embargante.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I – RELATÓRIO

  

l. Neste incidente de prestação de caução, em execução para pagamento de quantia certa com oposição por embargos de executado, deduzido pela executada embargante AA, S.A, contra o exequente embargado BB - Construtores, ACE, para obter, nos termos do artigo 733°, n.º1, al. a), do Código de Processo Civil (CPC) a suspensão da execução mediante prestação de caução por garantia bancária emitida pela própria executada, foi proferida decisão que, julgando idónea a caução, concluiu pela procedência do incidente.

 

2. O Exequente, que em primeira instância contestou a idoneidade da caução, recorreu para o Tribunal da Relação de ... que por Acórdão de 13 de Abril de 2017 decidiu pela procedência do recurso, revogou a sentença recorrida, julgando improcedente o incidente, bem como julgando inidónea a aludida (cfr. ponto 2 supra) caução oferecida pela requerente como executada e embargante.


3. Inconformado, a Executada-embargante AA, SA, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:

1ª. A garantia bancária prestada no âmbito de um negócio jurídico bilateral ou multilateral constitui situação jurídica diversa daqueloutra que é a garantia bancária prestada nos termos e para os efeitos previsto no art. 733° n° 1 a) do CPC;

2ª. A prestação de caução em sede de processo executivo visa por um lado garantir ao exequente o pagamento do crédito exequendo bem como assegurar o ressarcimento dos prejuízos sofridos com o atraso na satisfação da obrigação exequenda ou com a impossibilidade dessa satisfação e, por outro lado, visa assegurar ao executado/embargante que este não seja privado do direito de dispor livremente do seu património enquanto não estiver sentenciada definitivamente a razão que o levou a opor-se à execução;

3ª. A garantia bancária quando usada para o efeito de suspender o prosseguimento de processo executivo (art. 733° n° 1 a) do CPC) desvia-se do padrão definido doutrinariamente para este instituto jurídico-garantístico atendendo a que neste último caso não se destina a garantir nenhum contrato-base mas, ao invés, a garantir ao exequente o pagamento do crédito exequendo e assegurar o ressarcimento dos prejuízos sofridos pelo exequente com o atraso na satisfação da obrigação exequenda ou com a impossibilidade dessa satisfação e, por outro lado, a assegurar ao executado/embargante o direito de poder continuar a dispor livremente do seu património enquanto não estiverem sentenciados definitivamente os embargos à execução;

4ª. A garantia bancária prestada pelo banco executado/embargante no âmbito do art. 733° n° 1 a) do CPC não consubstancia uma situação típica de prestação de garantia bancária, atendendo a que não é prestada no âmbito de um negócio jurídico bilateral (ou trilateral), sendo, ao invés, prestada no âmbito de um processo judicial em que o beneficiário da mesma pode ser o próprio exequente/credor ou até o próprio Tribunal.

5ª. Ao contrário do entendimento do douto Acórdão recorrido quando argumenta que "não é razoável supor senão que o legislador se referiu ao negócio de prestação de garantia bancária como doutrinal e jurisprudencialmente estabelecido" tal argumentação não pode servir de fundamento válido para afastar liminarmente a possibilidade de prestação de garantia bancária prestada pelo próprio banco executado atentas as concretas especificidades da garantia bancária quando usada nos termos e para os efeitos do disposto no art. 733° n° 1 a) do CPC;

6ª. A não coincidência entre aquilo que é o desenho doutrinário da garantia bancária como uma relação tripartida e fundada na autonomia da vontade (art. 405° do C.C.) ainda mais se evidencia no esvaziamento deste princípio da autonomia da vontade/liberdade contratual quando a garantia bancária é usada para a finalidade prevista no art. 733° n° 1 a) do CPC;

7ª. Efectivamente, a caução prestada por garantia bancária destinada a suspender o prosseguimento da execução não carece da prévia aprovação do garantido (exequente/embargado) atendendo a que se encontra desassociada de uma relação contratual típica (contrato-base) perseguindo ao invés desiderato específico ligado ao processo executivo;

8ª. O que está em causa quando a caução se destina aos fins previstos no art. 733° n°1 a) do CPC é, antes, aferir se quando a mesma é prestada por garantia bancária é idónea e suficiente, e não saber se o exequente no âmbito da liberdade contratual e da autonomia da vontade concorda ou não com este tipo de prestação de caução e com a forma como ela é prestada;

9ª. Ao contrário do que concluiu o douto aresto recorrido a garantia bancária prestada in casu pela AA constitui um acréscimo de garantia patrimonial para o exequente sendo certo que o que está verdadeiramente em causa na apreciação desta questão é a solvabilidade do garante porquanto é esta a característica que deve prevalecer na análise da idoneidade da garantia;

10ª. O Tribunal a quo olvidou - ou não valorou - o facto de a executada embargante e aqui impugnante ser a instituição de crédito AA, ou seja um Banco de capitais exclusivamente públicos, constituindo facto incontestado e notório que tem património mais do que suficiente para honrar o pagamento da quantia peticionada na execução, se for o caso, sendo igualmente certo que inexiste norma jurídica alguma no nosso ordenamento jurídico que a impeça de emitir garantias bancárias como garante de uma obrigação na qual figure como devedora;

11ª. Quando o douto Acórdão recorrido refere "...qual a utilidade que se pode discernir na notificação do executado para pagar quando não pague nos trinta dias subsequentes ao definitivo julgamento dos embargos" está a olvidar que para a AA não se coloca nem se pode colocar a opção de não pagar caso haja sentença condenatória transitada nos embargos de executado;

12ª. Com efeito, ponderar sequer como hipótese (como o faz o aresto recorrido) que a AA não pagaria após sentença condenatória passada em julgado é admitir uma de duas: (i) Ou a insolvência do banco público ou (ii) a aceitação por parte deste de uma situação de venda em hasta pública de património do banco público, situações jamais vistas no histórico da instituição;

13ª. Não está em causa a solvabilidade da AA pelo que a garantia bancária prestada constitui um reforço efectivo da garantia de satisfação do alegado crédito dado à execução;

14ª. Ao apresentar garantia bancária no montante de 903.381,95 € a aqui recorrente está - autonomamente, atenta a específica natureza jurídica da garantia bancária - a admitir que o seu património seja duplamente onerado, seja pela via da execução seja pela via da caução prestada, respondendo assim duplamente face a uma alegada dívida exequenda, e respondendo com património que em muito excede seja a quantia exequenda seja a quantia envolvida com a prestada garantia, como é aliás facto notório;

15ª. A autonomia da garantia significa que o garante - a AA - assegura a verificação de um determinado resultado (no caso a entrega de uma determinada soma pecuniária ao beneficiário), totalmente independente da obrigação do devedor, sem que o garante (enquanto tal) possa opor à exequente excepção alguma que lhe assista enquanto garante (sendo a garantia independente das vicissitudes que possam ocorrer naquela relação principal) daí resultando, inequivocamente, que a garantia prestada constitui um importante acréscimo da segurança da exequente;

16ª. Quer o Tribunal da Relação do Porto, em aresto com data de 28.06.2016, processo n° 8220/15.7T8PRT-B.PI, consultável em www.dgsi.pt, quer o Supremo Tribunal Administrativo de 14-08-2013, processo n° 01315/13, consultável em www.dgsi.pt, - decidiram que nada obsta a que sendo o executado uma instituição bancária possa apresentar uma garantia bancária prestada por ele mesmo, atenta a autonomia desta, importando sim averiguar da suficiência e solidez da garantia oferecida e da solvência da entidade garante, conforme transcrevemos a seguir;

17ª. No que concerne à nulidade da sentença de primeiro o Tribunal de primeiro grau entendeu que ao ter decidido ser idónea a caução prestada pela AA estava implicitamente a pronunciar-se também sobre esta questão, pelo que não considerou necessário autonomizá-la, considerando-a inserida na questão da "idoneidade" da caução, o que aliás lhe é permitido ao abrigo do estipulado no art. 608° n° 2 do CPC, pelo que inexiste qualquer omissão de pronúncia;

18º. Aliás, o próprio douto Acórdão ora sob sindicância acaba por reconhecer que a questão do texto constante da garantia - não obstante encerrar alguma ambiguidade -acaba por se revelar desnecessária atendendo a que consta do texto que a garantia é prestada nos termos e para os efeitos do art. 733° n° 1 alínea a) do CPC;

19ª. Ou seja, acaba opor reconhecer que a questão suscitada não é, afinal, uma questão com relevância para a apreciação do mérito - idoneidade da garantia - o que significa que a declaração de nulidade se revela, afinal, desnecessária pelo que deverá ser revogada por esse Alto Tribunal.

Conclui pedindo que seja o Acórdão recorrido revogado e reposta a sentença proferida em primeira instância.

          

4. Contra-alegou a Exequente/embargada concluindo no sentido de ser mantida integralmente a decisão recorrida.


O Tribunal da Relação admitiu o recurso (fls. 974).


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.



II – FUNDAMENTAÇÃO


Foram dados como provados os seguintes factos:


1 - A requerente AA, S.A., veio, por apenso à execução para pagamento de quantia certa, na qual é executada e que corre termos na Iª Secção de Execução de Lisboa - J8, n.º I3580/16.0TYLSB, sendo exequente BB - Construtores, ACE, deduzir o presente incidente de prestação espontânea de caução, propondo a prestação de caução através de garantia bancária por si emitida, no montante de € 903.381,95, conforme consta do respectivo documento (neste apenso de recurso a fls. 47) com teor dado por integralmente reproduzido;

2 - A requerente AA, S.A., citada nos autos principais para pagar ou para se opor, deduziu embargos de executado, os quais foram recebidos, conforme resulta do despacho de fls. 39 do respectivo apenso.

 


III – DA SUBSUNÇÃO – APRECIAÇÃO


Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.


A) O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do Recorrente, artigo 635 do Código de Processo Civil.

Lendo as alegações de recurso bem como as conclusões formuladas pela Recorrente a única questão concreta de que cumpre conhecer é a seguinte:


1ª- A caução prestada pela executada/embargante através de garantia bancária prestada pela própria executada/embargante é idónea?

 

Vejamos


A questão que vem colocada a este Supremo Tribunal é apenas a de se saber se no caso de a caução se tratar de uma garantia bancária prestada pela própria executada – no caso a AA – deve a mesma ser considerada idónea ou não.

Dispõe o artigo 733.º n.º 1 al. a) do Código de Processo Civil que «o recebimento dos embargos só suspende o prosseguimento da execução se o embargante prestar caução».

E, nos termos do n.º 1 do artigo 623.º do Código Civil, que regula os casos de caução imposta ou autorizada por lei, «se alguém for obrigado ou autorizado por lei a prestar caução, sem se designar a espécie que ela deve revestir, pode a garantia ser prestada por meio de depósito de dinheiro, títulos de crédito, pedras ou metais preciosos, ou por penhor, hipoteca ou fiança bancária».

Acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito que «se a caução não puder ser prestada por nenhum dos meios referidos, é lícita a prestação de outra espécie de fiança, desde que o fiador renuncie ao benefício da excussão».

«Cabe ao tribunal apreciar a idoneidade da caução, sempre que não haja acordo dos interessados», n.º 3 do mesmo preceito.

Face ao estatuído no artigo 650 n.º 3 do CPC, dúvidas não subsistem em como a prestação de caução mediante garantia bancária é possível.

No caso em apreço, temos que em primeira instância foi julgada idónea a caução prestada pela executada AA tendo a Relação de … julgado inidónea a caução prestada por entender que pressupondo a garantia bancária, três diferentes sujeitos, o garante, o garantido e o beneficiário da garantia, não podia o embargante/executado ser igualmente o garante.

Entendemos que a razão se encontra do lado do Recorrente, acompanhado pela decisão de primeira instância.

Efectivamente não se vislumbra nenhuma razão que impeça a possibilidade do próprio executado/embargante emitir garantia bancária a favor do exequente/embargado.

A garantia bancária é uma das formas que pode revestir a caução sendo que o executado/embargante também podia, ele próprio, prestar a caução por outros meios designadamente «depósito de dinheiro, títulos de crédito, pedras ou metais preciosos, ou por penhor, hipoteca ou fiança bancária».

A caução no caso concreto destina-se a suspender a execução, uma vez que «o recebimento dos embargos só suspende o prosseguimento da execução» se for prestada caução garantindo que em caso de improcedência dos embargos, e face ao não pagamento pelo executado/embargante, o exequente verá o pagamento do seu crédito garantido.

O facto de ser o próprio executado/embargante, que é um Banco de dimensão nacional, a prestar a garantia bancária não significa que tal garantia bancária seja inidónea.

O garante, a AA, é uma entidade que não tem em causa a sua capacidade financeira, não tem em causa a sua solvência. O facto de ter deduzido oposição à execução através de embargos não significa que não vá cumprir os compromissos decorrentes da garantia bancária prestada.

São factos independentes, pois que quando os embargos são deduzidos ainda está em discussão a certeza ou não da dívida por parte do embargante/executado, o que já não sucede quando a garantia bancária for accionada.

E, nessa altura afigura-se-nos ser inequívoco que o garante – AA – tem capitais suficientes para suportar e honrar os compromissos derivados da garantia prestada.

Importa ter presente que no caso concreto estamos perante uma garantia bancária prestada no âmbito de um processo judicial executivo (e não de um negócio jurídico) sendo que o beneficiário designado é o Tribunal e não o credor/exequente (ainda que a sua função última seja a de garantir o crédito do exequente, como é evidente).  

Em nosso entender, nada obsta a que a caução (que visa conferir efeitos suspensivos aos embargos de executado) seja prestada por garantia bancária efectuada pelo próprio banco/executado, no caso a AA, uma vez que se trata de uma instituição de dimensão nacional a qual se for interpelada para o efeito pelo Tribunal, pagará de imediato o valor garantido.

Temos por seguro que o facto de a executada/apelante, que é uma instituição bancária autorizada a conceder garantias bancárias, surgir como garante de uma obrigação de que é devedora, em nada põe em causa a autonomia da garantia, a sua qualidade e eficácia.

Objectivamente apreciada a garantia bancária oferecida pela executada/apelante AA mostra-se idónea e capaz de satisfazer as finalidades pretendidas (garantir o pagamento do crédito do exequente em caso de incumprimento), pelo que não pode manter-se o Acórdão recorrido.

Em conclusão, podemos afirmar que a garantia bancária autónoma é uma forma de prestação de caução admissível no nosso ordenamento jurídico, nada obstando a que seja efectuada por garantia bancária efectuada pelo próprio banco/executado, com a finalidade de conferir efeitos suspensivos aos embargos deduzidos pelo executado/embargante

Em suma, entendemos que se impõe a procedência total das alegações da recorrente AA, pelo que se concede a revista.



III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se conceder a revista, e, em consequência revoga-se a decisão recorrida, julgando-se idónea a caução oferecida pela Embargante/Apelante AA, SA, através de garantia bancária prestada pela própria executada.

Custas pela Recorrida.  


Lisboa, 15 de Novembro de 2017


José Sousa Lameira (Relatora)

Hélder Almeida

Maria dos Prazeres Beleza