Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª. SECÇÃO | ||
Relator: | JÚLIO GOMES | ||
Descritores: | CONTRATO DE SEGURO OBJECTO NEGOCIAL OBJETO NEGOCIAL CLÁUSULA CONTRATUAL INCAPACIDADE PERMANENTE ABSOLUTA INTERPRETAÇÃO | ||
Nº do Documento: | SJ | ||
Data do Acordão: | 01/24/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL. | ||
Doutrina: | - JOSÉ CARLOS MOITINHO DE ALMEIDA, «A interpretação e integração das lacunas do contrato de seguro», Scientia Ivridica, tomo LVI, n.º 309, 2007, 439 e ss., 443, 454. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 236.º, N.º 1. | ||
Sumário : | I - A cláusula do contrato de seguro que prevê, como objecto da cobertura, a invalidez total e permanente de 66,66% de uma das pessoas seguras e a define como a incapacidade total da pessoa segura, com carácter permanente e irreversível, que corresponda a um grau de desvalorização mínimo de 66,68% de acordo com a TNI e que a pessoa segura fique total e permanentemente impossibilitada de exercer a profissão indicada na proposta de seguro, pode colher no leigo destinatário o sentido de que a impossibilidade total é compatível com um grau de desvalorização de 66,68% e que releva a impossibilidade do exercício da profissão do segurado. II - Reforça esse sentido, o facto de na interpretação do contrato de seguro dever ter-se em conta o fim prosseguido com a celebração do contrato e o seu efeito útil: em concreto, o tomador de seguro, empresa de venda de materiais de construção, celebrou um contrato de seguro de vida com uma protecção complementar para a pessoa segura, o seu gerente, pretendendo a cobertura do risco da sua morte ou da impossibilidade de exercer a gerência dessa mesma sociedade. III - Tendo ficado provado que o segurado, gerente da tomadora, ficou com uma incapacidade permanente global definitiva de 68,7% e que enquanto gerente recebia diariamente clientes na sua empresa, tratava da documentação inerente à actividade comercial que aí desenvolvia e que procedia a cargas e descargas de matérias de construção e fazia transportes dos mesmos em veículos ao serviço da empresa, estão verificados os requisitos cumulativos da cobertura do seguro e o autor tem direito ao pagamento do capital contratado.
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6.ª Secção) Processo n.º 1237/14.0TBSTR.E1.S1 Relatório Fundamentação De Facto Foram os seguintes os factos dados como provados nas Instâncias: a) Em 4 de Outubro de 2010 a sociedade CC, Lda., celebrou com a ré um contrato de seguro de vida, titulado pela apólice nº 00.0006221, denominado “Solução Protecção Vida SEGURO BB”. b) Tal contrato garantia o pagamento do capital seguro em caso de morte ou em caso de invalidez total e permanente a 66% nos termos da seguinte cláusula: “i. As lesões sofridas, após completa consolidação, tenham carácter permanentemente irreversível e correspondam a um grau de desvalorização mínimo de 66.66%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais ou do Diagnóstico da Doença que esteja na origem desta invalidez; ii. A pessoa segura fique total e permanentemente impossibilitada de exercer a profissão indicada na proposta de seguro ou a que posteriormente, venha a ser comunicada por escrito à SEGURO BB, e desde que efetivamente seja exercida à data do acidente ou constatação da doença ou qualquer outra atividade lucrativa incompatível com as suas capacidades, conhecimentos e aptidões.” c) De acordo com as condições particulares do contrato o autor assumiu a posição de pessoa segura, a sociedade CC, Lda., a posição de tomador do seguro e DD e EE a posição de beneficiários. d) Ficou ainda estabelecido o pagamento do prémio, em frações mensais, no valor de € 84.00 (oitenta e quatro euros). e) Na data da assinatura do contrato foi acordado o valor do capital seguro em € 100.000,00 (cem mil euros). f) No dia 9 de Abril de 2012, o autor foi submetido a uma intervenção cirúrgica ao nível da coluna vertebral para tentar debelar uma lombalgia incapacitante. g) Submetido a junta médica, ao autor foi atribuída, em 24 de Abril de 2013, uma incapacidade permanente global definitiva de 68,7%. h) Com data de dia 20 de Março de 2013, o médico ortopedista, Dr. FF, que acompanhou o autor desde o início das queixas e respetivas consultas, elaborou o relatório de fls. 30 no qual declarou que “o valor global final encontrado de I. P. P. é de 0,685 (68,5%) e que “O utente com esta desvalorização não pode exercer a profissão de acordo com os conhecimentos e aptidões”. i) O Instituto da Segurança Social, IP, atribuiu ao autor uma pensão de invalidez com início 16 de Novembro de 2012. j) Em 22 de Abril de 2013, a sociedade CC, Lda., na qualidade de tomadora do contrato de seguro, participou à ré que o autor se encontrava numa situação de invalidez total e permanente, pelo que lhe deveria ser pago o valor do capital seguro. l) Em assembleia geral da empresa CC Lda, realizada no dia13 de Janeiro de 2014, o autor declarou renunciar à gerência. m) Enquanto gerente o autor recebia diariamente clientes na sua empresa, tratava da documentação inerente à atividade comercial que aí desenvolvia, procedia a cargas e descargas de matérias de construção e fazia transportes dos mesmos em veículos ao serviço da empresa. n) Após a operação, o autor não mais pôde desenvolver os esforços físicos que fazia enquanto gerente, embora seja capaz de praticar atos como passar cheques, receber telefonemas e tratar da demais documentação da empresa. o) Por fax datado de 30 de Dezembro de 2013, a ré comunicou ao Centro Distrital da Segurança Social de ... que o autor se encontraria a exercer as suas funções no seu local de trabalho e solicitou a realização de uma fiscalização. p) A Unidade de Fiscalização do Instituto da Segurança Social encetou uma ação inspetiva, no decurso da qual dois funcionários deslocaram-se às instalações da empresa CC, Lda. q) Não tendo aí encontrado o autor, deslocaram-se à residência do mesmo, onde foi encontrado, tendo aquele prestado as declarações constantes do auto de fls. 46-47. r) Na sequência daquela inspeção foi elaborado o relatório de fls. 49 a 53, que terminou com a sugestão de arquivamento do processo. s) A empresa CC, Lda., foi fundada pelo pai do autor há cerca de cinquenta anos e contava, antes do sinistro, com quatro/cinco trabalhadores, sendo que dois deles exerciam funções no escritório e um outro era motorista. b) De Direito Como se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de Novembro de 2005 (JOSÉ ANTÓNIO DE SOUSA LAMEIRAS), o contrato de seguro é um contrato em que normalmente as duas partes “não se encontram exactamente no mesmo plano de igualdade”, antes o segurador assume, em regra, “uma nítida posição de supremacia”. E como também se refere nesse Acórdão, “também é normal que a leitura que a parte mais fraca faz desse contrato é sempre uma leitura superficial, não atendendo em todas as cláusulas que lhe são propostas e ao ler o seu conteúdo não faça uma interpretação profunda do seu alcance”. Acresce que o contrato de seguro é frequentemente um contrato de adesão, sendo que embora o tomador do seguro seja o proponente as condições contratuais são, na realidade, pré-elaboradas e pré-redigidas pelo segurador, não havendo, na prática, prévia negociação individual – o que bem pode suceder mesmo relativamente a condições designadas de particulares – com a consequência de que tais cláusulas devem ser objecto de uma comunicação de modo a tornar possível o seu conhecimento por quem use de comum diligência. O ónus de que se cumpriu esse dever de comunicação de modo adequado e efectivo cabe ao segurador sob pena de a cláusula se dever ter por excluída do contrato. E recentemente, ainda que a respeito de um tomador do seguro que era igualmente consumidor, o Tribunal de Justiça no seu Acórdão proferido a 23 de Abril de 2015 no caso C-96/14, Jean Claude Van Hove contra CNP Assurances SA, decidiu, inclusive, que “a exigência de transparência das cláusulas contratuais, imposta pela Diretiva 93/13, não pode ficar reduzida apenas ao carácter compreensível das mesmas nos planos formal e gramatical”, sendo igualmente imprescindível, como se pode ler nas Conclusões, que o contrato exponha “de maneira transparente o funcionamento concreto do mecanismo a que se refere a cláusula em causa, bem como a relação entre esse mecanismo e o mecanismo previsto noutras cláusulas de modo a que o consumidor possa avaliar, com base em critérios precisos e inteligíveis, as consequências económicas que daí decorrem para ele”. Em todo o caso, a Petição Inicial, no presente caso nunca invoca a natureza do contrato como contrato de adesão ou a eventual violação de deveres de transparência e informação, limitando-se a colocar o problema da interpretação de uma cláusula do contrato. Por seu turno, o Réu mencionou, na Contestação – na sequência, aliás, do que já tinha sucedido antes da propositura da acção – o fenómeno da fraude no seguro (artigo 14.º da Contestação) e invocou factos (artigos 22.º a 24.º da Contestação) – que no entanto não vieram a ser dados como provados – no sentido de o Autor ter continuado a trabalhar e a exercer a sua profissão habitual após a sua incapacidade, de que decorreria a não verificação da impossibilidade total e permanente a que se refere a cláusula contratual que adiante referiremos. Além disso, e mormente nas suas contra-alegações no presente recurso de Revista sustenta uma determinada interpretação da cláusula cujo sentido é o principal elemento de controvérsia nos presentes autos. É o seguinte o teor literal da cláusula cujo significado divide as Partes no presente litígio: “Cobertura Complementar de Invalidez Total e Permanente a 66,66% Cláusula 1.ª Objecto da Cobertura Sublinhe-se, antes de mais, que foi dado como provado que. “Submetido a uma junta médica, ao autor foi atribuída, em 24 de Abril de 2013, uma incapacidade permanente global definitiva de 68,7%” (alínea g) Destaque-se que já na Contestação, mais precisamente no seu artigo 19.º, a Ré afirmou expressamente que “nunca colocou em causa o grau de incapacidade do Autor, tendo o fundamento da recusa do pagamento do prémio sido unicamente o facto de o Autor não se encontrar permanentemente impossibilitado de continuar a sua actividade profissional”. Destarte as partes acordam em que a alínea i) está preenchida. As dúvidas prendem-se exclusivamente com o preenchimento da alínea ii) e com a interpretação deste segmento da Cláusula. A questão controvertida é a de saber se perante os factos dados como provados em m) e n) se encontra preenchida, ou não, a previsão de ii) Foi, com efeito, dado como provado que: “Enquanto gerente o autor recebia diariamente clientes na sua empresa, tratava da documentação inerente à actividade comercial que aí desenvolvia, procedia a cargas e descargas de matérias de construção e fazia transportes dos mesmos em veículos ao serviço da empresa” (m)) e “Após a operação, o autor não mais pôde desenvolver os esforços físicos que fazia enquanto gerente, embora seja capaz de praticar atos como passar cheques, receber telefonemas e tratar da demais documentação da empresa”. Perante estes factos dados como provados o Réu considera que não está preenchida a alínea II) porque não se verificaria uma impossibilidade total e permanente do exercício da gerência. A este propósito vale a pena transcrever o que o Réu afirmou na Contestação, tanto mais que o mesmo argumento, porventura de modo mais sintético, é também invocado nas contra-alegações a este Recurso de Revista. Afirmou, com efeito, na Contestação que: “A lei não exige que os gerentes exerçam de forma continuada a gestão da sociedade, mas apenas que pratiquem actos vinculativos da sociedade, em que intervenham em vários momentos e tenham uma intervenção na condução da vida sociedade, nem que para tanto seja apenas necessário dar instruções verbais para pagamento de contas, transferências, encomendas, essenciais ao seu normal funcionamento” (artigo 35,º da Contestação); “Como Gerente a responsabilidade do Autor reside essencialmente na formação da vontade da pessoa colectiva, exteriorizando instruções, analisando opções de contratação, de compra, análise de resultados, gestão dos resultados do inventário, etc.” (artigo 36.º da Contestação): “Podendo fazê-lo, de acordo com os horários que entender ou melhor lhe convier, mediante a mera assinatura de escritos, cartas, memorandos, representando a sociedade perante terceiros e nas suas relações internas” (artigo 37.º da Contestação). E nas suas Contra-Alegações reitera: “No âmbito da actividade de Gerente, a responsabilidade do Recorrente reside essencialmente na formação da vontade da pessoa colectiva, exteriorizando instruções, analisando opções de contratação, de compra, análise de resultados, gestão dos resultados do inventário, etc.” “Podendo fazê-lo, de acordo com os horários que entender ou melhor lhe convier, mediante a mera assinatura de escritos, cartas, memorandos, representando a sociedade perante terceiros e nas suas relações internas” (f.297) Assim o Recorrente continuaria a ter “capacidade para exercer diversas tarefas que cabem e definem por si o conceito de gerente de empresa” (f.297), não se devendo confundir o conceito de exercício de gerência e a capacidade necessária para o fazer, “com a predisposição ou a necessidade de exercer tarefas que saem claramente deste âmbito e que apenas por uma razão de economia na gestão, disponibilidade, gosto ou interesse o Recorrente desenvolvia em benefício da empresa” (cfr. também números 47 a 50 das Conclusões). Por seu turno, o Autor não deixa de afirmar no seu Recurso que “cada caso é um caso, e que cada gerência é uma gerência, não sendo comparável, a título de exemplo, a gerência de uma boutique com a gerência de uma empresa de materiais de construção” (n.º 34 do Recurso de Revista; cfr., também, as Conclusões XVI e XVII). Impõe-se, pois, interpretar a Cláusula para aferir se se deve considerar preenchida a sua previsão. O Acórdão recorrido entendeu que o Autor embora tivesse provado que ficou parcialmente impossibilitado de exercer as funções de gerente tal como até então [até à intervenção cirúrgica na coluna vertebral com a sequela da incapacidade permanente, global e definitiva de 68,7%], não provou que ficasse total e permanentemente impossibilitado de exercer a profissão de gerente. O Tribunal da Relação entendeu, igualmente, que para um destinatário normal esse seria o sentido da cláusula. Mas sê-lo-á efectivamente? Na aplicação do artigo 236.º n.º 1 do Código Civil aos contratos de seguro é necessário ter em conta que, como ensina MOITINHO DE ALMEIDA, o declaratário a que o preceito alude é “o tomador do seguro, tomador médio, sem especiais conhecimentos jurídicos, que lê as condições gerais com atenção e razoavelmente as aprecia”[1]. Ora, para um leigo, ainda que lesse a cláusula com atenção, a mesma seria algo hermética, já que se considera Invalidez Total e Permanente a 66,66% um grau de desvalorização mínimo de 66,68% e que corresponda a uma impossibilidade total e permanente de exercício da profissão. O leigo poderia assim chegar à conclusão de que a tal impossibilidade total era compatível com um grau de desvalorização de 66,68% e, sobretudo, de que o que conta é a impossibilidade do exercício da profissão do segurado. Acresce que, como também refere MOITINHO DE ALMEIDA, importa na interpretação do contrato de seguro ter em conta o fim prosseguido com a celebração dos contratos e o seu efeito útil: o tomador do seguro, a empresa de venda de materiais de construção, celebra um seguro de vida com uma protecção complementar para o seu gerente, a pessoa segura, tendo em consideração a eventual possibilidade de o seu gerente morrer ou ficar impossibilitado de exercer a gerência dessa mesma sociedade. O que é decisivo aqui não é o conceito jurídico de gerência que o segurador pretendeu configurar como válido universalmente, para todas as empresas, independentemente do seu objecto ou da actividade a que se dediquem, mas a realidade económica e social da gerência habitual de uma empresa, aliás de uma micro-empresa, de venda de materiais de construção civil. E há que concordar com o Autor e ora Recorrente quando sublinha esta diversidade económica e social. Não é a mesma coisa gerir uma micro-empresa e uma pequena ou grande empresa, como não o é gerir uma empresa de venda de materiais de construção civil, uma empresa de venda de flores ou uma empresa que venda software na Internet. E o gerente de uma empresa de venda de materiais de construção tem, naturalmente, que ter uma certa mobilidade física: terá normalmente que receber e visitar clientes, visitar fornecedores, controlar stocks e inventários, visitar obras ou acompanhar os trabalhadores na entrega de mercadorias. O modo como o Réu constrói um conceito puramente jurídico e universal de gerência não corresponde, de todo, às expectativas e ao horizonte normal do destinatário[2]. À luz do fim do contrato, do seu escopo económico e social e da impressão do destinatário, tomador médio sem especiais conhecimentos jurídicos, deve, por conseguinte, entender-se que a situação do Autor preenche os dois requisitos cumulativos, pelo que o mesmo tem direito ao pagamento antecipado do capital seguro. Como é sabido, este Tribunal está limitado pelo pedido apresentado pelo Autor. Ora este pediu apenas que lhe fosse pago o capital seguro no valor de €100.000,00 (cem mil euros), não apresentando qualquer pedido de compensação de danos morais e nem sequer as consequências de uma mora do Segurador ou quaisquer juros. Destarte, apenas há que condenar o Segurador no pagamento do valor peticionado. Decisão: Concedida a Revista, revogando-se o Acórdão recorrido e condenando-se a Ré no pagamento ao Autor do capital seguro Custas pela Ré Lisboa, 24 de Janeiro de 2017
Júlio Gomes – Relator José Rainho Nuno Cameira
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