Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
16/13.7YREVR.E1.S3
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
EXTRADIÇÃO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MAUS TRATOS
Data do Acordão: 05/21/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL - RECURSOS - COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL / EXTRADIÇÃO.
Doutrina:
- Cabral Barreto, “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, anotada, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, pp. 248, 253 (nota II/3 ao art. 8.º), 257 (nota II/6.1. ao art. 8.º) e jurisprudência do TEDH aí referida, 258 (nota II/6.1 ao art. 8.º).
- Conselho da Europa (Gender Equality Commission), estudo publicado, consultável em : http://www.coe.int/t/dghl/standardsetting/convention-violence/Docs/Analytical%20Study%20ENG.pdf.
- Miguel João Costa, O princípio da dupla incriminação na extradição, Temas de extradição e entrega, Coimbra: Almedina, 2015, p. 57 (43 e ss).
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 410.º, N.º2, 426.º, N.º1, 432.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 152.º E 152.º-A.
LEI N.º 144/99, DE 31 DE AGOSTO: - ARTIGOS 10.º, 18.º, N.º2.
Legislação Estrangeira:
LAW OF UKRAINE ON PREVENTION OF DOMESTIC VIOLENCE, LAW NO. 2789-III OF 15.11.2001 ( HTTP://LEGISLATIONLINE.ORG/DOCUMENTS/ACTION/POPUP/ID/5052 )
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM (CEDH): - ARTIGO 8.º, N.º1.

RESOLUÇÃO A/RES/58/147, DE 22 DE DEZEMBRO DE 2003, DAS NAÇÕES UNIDAS, “ELIMINATION OF DOMESTIC VIOLENCE AGAINST WOMEN” ( HTTP://DACCESS-DDS-NY.UN.ORG/DOC/UNDOC/GEN/N03/503/40/PDF/N0350340.PDF?OPENELEMENT ).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 31.03.2011, PROC. N.º 257/10.9YRCBR.S1, HTTP://WWW.DGSI.PT/JSTJ.NSF/954F0CE6AD9DD8B980256B5F003FA814/4D6E3C6C9E4BF7F6802578D900305716?OPENDOCUMENT
Jurisprudência Internacional:
DECISÃO DO TEDH:
-DE 4/9/1995, QUEIXA N.º 25342/94.
Sumário :

I — Os vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP são do conhecimento oficioso, e constituem vícios que devem decorrer do próprio texto da decisão recorrida. Ora, constitui insuficiência da matéria de facto quando da própria decisão não decorrem elementos suficientes para que se possa obter uma conclusão quanto aos factos.
II — Apenas se pode verificar se o que foi dado como provado é suficiente ou não para a decisão que o tribunal proferiu. Neste ponto, é claro que o Tribunal da Relação de Évora, a partir “da análise da documentação constante dos autos, das declarações da extraditanda e dos depoimentos das testemunhas inquiridas” entendeu como provado que a extraditanda terá sofrido de violência doméstica e de maus tratos.
III — Tendo em conta o conhecimento generalizado do que seja “violência doméstica” ou “maus tratos” consideramos, por um lado, que contestar a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal da Relação não está no âmbito dos poderes de cognição deste tribunal (art. 432.º, do CPP, última parte) e, por outro lado, a utilização de conceitos como de “violência doméstica” e “maus tratos” não integra o vício de insuficiência da matéria de facto provada.
IV — Não cabe ao Tribunal português avaliar a ilicitude e a culpa da extraditanda pelos factos cometidos fora do território português. Na verdade, a decisão de extradição não constitui um julgamento antecipado, nem deve “constituir um julgamento antecipado – tanto por motivos “internos” (dogmáticos), como por motivos “externos” (de não ingerência e respeito mútuo)” (Miguel João Costa).
V — Não só não existe esta contradição entre a fundamentação e a decisão, pois a decisão de não extradição é uma decorrência lógica deste entendimento de que a conduta da extraditanda seria de diminuta ilicitude e culpa, como não existe contradição entre a própria fundamentação quando o tribunal parte dos factos indiciados pelas autoridades da Ucrânia e os analisa, apresentando aquela conclusão. Coisa diferente seria a de saber se poderia ter apreciado, sob o ponto de vista da ilicitude e da culpa, aqueles factos indiciados, mas não foi isto que o Ministério Público alegou.
VI — Parece estar subjacente a este discurso alguma contradição, pois se, por um lado, considerou que o retorno da extraditanda ao país a irá sujeitar a situações de violência, por outro lado, admitiu que as autoridades locais a protegeriam daquela violência. Assim, ainda que possamos considerar estarmos perante um vício do art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, tal não obsta a que, nos termos do art. 426.º, n.º 1, do CPP, este Tribunal possa decidir da causa se considerar que tem elementos para o fazer, ainda que se verifique algum dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, que no caso será a, pelo menos aparente, contradição.
VII — Sabendo já que não cabe aos tribunais portugueses avaliar a ilicitude e a culpa do comportamento da extraditanda em território diferente do português, desde logo em cumprimento do princípio da não ingerência e do respeito mútuo, tal não obsta a que abstratamente se possa confrontar os ilícitos por que a extraditanda está indiciada e os que a estes correspondem na legislação portuguesa.
VIII — Coisa diferente seria contestar a ideia que está subjacente à aplicação do art. 10.º, da Lei n.º 144/99, segundo a qual, e atendendo a um princípio da proporcionalidade, a reduzida importância dos ilícitos praticados na Ucrânia justificaria a recusa de cooperação. Se temos algumas dúvidas quanto a esta fundamentação, isto apenas nos permite discordar da recusa de extradição com base no dispositivo referido. Mas não nos permite considerar estarmos perante um caso subsumível no âmbito do art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP como pretende o recorrente.
IX — Não só não foi isto que resultou provado, como não foi este o argumento do Tribunal da Relação de Évora. Este tribunal recusou o pedido de extradição afirmando: “dos factos que nos autos resultaram provados, que a extraditanda não tem qualquer apoio familiar na Ucrânia e, que a deslocação da mesma para aquele país a irá colocar numa situação de grave proximidade com o seu ex-marido e, dos familiares do mesmo e, por isso a irá sujeitar de novo a situações de grande violência, temos como verificada a existência de consequências graves para a pessoa da extraditanda, no deferimento do pedido, nos termos do disposto no artigo 18.º, no 2, da Lei no 144/99” (fls. 408). Assim, entendeu verificado o pressuposto deste art. 18.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99.
X — Constituiu fundamento para a não extradição não o facto de a extraditanda poder em território ucraniano ser julgada, poder vir a ser condenada e poder vir a cumprir pena, o que constitui uma consequência normal de uma extradição, mas sim o facto de uma vez extraditada para a Ucrânia não só não ter qualquer apoio familiar naquele território, como ainda o facto de poder vir a ser novamente sujeita a maus tratos e violência doméstica, ou seja, existindo risco para a sua integridade física e psicológica decorrente daquela extradição, o que não constitui uma decorrência normal de uma extradição ou da prática de um crime. E assim consideramos não haver razão para entender que foi violado o art. 18.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99.
Decisão Texto Integral:



Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:


I

Relatório


1. Na sequência do despacho de deferimento proferido pela Senhora Ministra da Justiça no dia 08 de Janeiro de 2014, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 48.º da Lei 144/99, de 31 de Agosto (vide pág. 113), o Ministério Público, junto do Tribunal da Relação de Évora, promoveu o cumprimento do pedido de extradição da cidadã de nacionalidade ucraniana AA, melhor identificada nos autos, com base nos seguintes fundamentos (vide págs.. 109 a 112):

«1.º

Ao abrigo da Convenção Europeia de Extradição (Paris, 1957), a República da Ucrânia solicitou ao Estado português a extradição da sua nacional acima identificada, para efeitos de procedimento criminal.

2.º

Com efeito, como resulta do pedido formal de extradição que se junta, e da sua documentação anexa, a cidadã em causa foi acusada, no âmbito do processo n.º 4-347/11, do Tribunal Distrital de SchevenKivkiy, pela prática de factos puníveis como crime de transporte ilegal de pessoas e crime de uso de documentos falsificados, p. e p. pelos artigos 332.º e 358.º do Código Penal da Ucrânia, com penas de 2 a 5 anos e de 6 meses a 2 anos, respectivamente.

                                                                              3.º

Tendo sido emitidos mandados de captura para difusão internacional, a fim de a extraditanda vir a ser colocada em prisão preventiva à ordem dos referidos autos, para neles ser julgada pela prática daqueles crimes.

                                                                              4.º

O pedido formal de extradição foi devidamente apresentado às autoridades portuguesas, tendo sua Excelência a Senhora Ministra da Justiça, por despacho datado de 08 de Janeiro de 2014, considerado admissível o seu prosseguimento.

                                                                              5.º

Os factos imputados pelas autoridades judiciárias ucranianas à extraditanda encontram correspondência, na lei penal portuguesa, no disposto nos artigos 249.º e 256.º, ambos do Código Penal.

                                                                              6.º

Não se encontrando extintos nem o procedimento criminal nem a pena, por prescrição, amnistia ou perdão, quer nos termos da legislação portuguesa quer nos termos da legislação ucraniana.

                                                                              7.º

A extraditanda encontra-se em liberdade, à ordem dos presentes autos, conforme despacho datado de 04 de abril de 2013 (a fls. 65), sujeita à medida de coacção de obrigação de apresentação periódica (semanal) no posto policial da área da sua residência.

8.º

Não se encontra actualmente pendente perante os tribunais portugueses qualquer processo criminal contra a extraditanda, por outros ou pelos mesmos factos que fundamentam o presente pedido de extradição.

                                                                              9.º

O pedido formal de extradição apresentado às autoridades portuguesas pelas autoridades ucranianas satisfaz os requisitos do artigo 2º da Convenção Europeia de Extradição, e do artigo 31º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto.

10.º

Nada de formal ou de substancial obsta, pois, à extradição para a República da Ucrânia da sua cidadã AA.

11.º

Este Tribunal da Relação é o competente para a decretar, nos termos do artigo 49º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto

2. AA teve autorização de residência para exercício de atividade profissional (cf. fls. 208), ao abrigo do art. 88.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2007, de 04.07; apresentou pedido de proteção internacional, ao abrigo da Lei n.º 27/2008, de 30.06, a 16.06.2014 (cf. fls. 259), e na sequência foi-lhe concedida  autorização de permanência no território nacional, enquanto o pedido estiver pendente (cf. fls. 259 e 315). Em consequência, requereu a suspensão do pedido de extradição (fls. 231).

3. Ao abrigo do disposto no n.º 1, do art. 54.º, da Lei 144/99, de 31 de Agosto, procedeu-se à audição da extraditanda que, para além de não ter abdicado da regra da especialidade, veio a declarar que não consente na sua extradição por a Ucrânia se encontrar em guerra e por ter sido alvo de violência doméstica por parte do seu ex-marido, receando a continuação da mesma caso regresse (vide págs. 234 e 235).

4. Notificada de harmonia com o disposto no n.º 2, do art. 55.º, da Lei 144/99, de 31 de Agosto, a extraditanda veio a deduzir oposição ao pedido de extradição, em virtude de considerar, muito em síntese, que:

- o pedido de extradição foi formulado por ter sido aplicada a medida de coação de prisão preventiva, em consequência de se ter ausentado do país com o seu filho e com uma autorização de saída falsificada, medida esta que entende como excessiva, e apenas aplicada para que pudesse constar da lista e pessoas procuradas internacionalmente;

- porém, entende que saiu da Ucrânia com o filho (e sem autorização) para fugir à “violência e coação psicológica do seu ex-marido”, pois “na Ucrânia sempre foi vítima de agressões e violência por parte do seu ex-marido na qual tem a certeza de que se para lá voltar terá uma vida miserável, se conseguir sobreviver”;

- o filho atualmente já está na Ucrânia, pois o pai “veio a Portugal buscá‑lo”;

- não tem outros familiares na Ucrânia, pelo que a sua extradição a afastaria da família que tem em Portugal, e voltando tem “grave receio de ser perseguida e maltratada pelo seu ex-marido”

- entende que os ilícitos praticados são de menor gravidade, e não fugiu para impedir a investigação;

- o pedido de cooperação não satisfaz as exigências da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nem os direitos, as liberdades e as garantias consagrados pela Constituição da República Portuguesa;

pelo que deve vir a ser recusado, de acordo com o disposto na al. a) do art. 6.º do citado diploma legal (vide págs. 242 a 247). Indicou como prova testemunhal, 2 testemunhas — BB e CC —, ambas a residir em Albufeira.

5. O Ministério Público pronunciou-se no sentido da oposição deduzida ser julgada improcedente e de ser concedido provimento ao pedido de extradição da requerida para a República da Ucrânia (vide págs. 251 a 257), tendo concluído que “deve a oposição deduzida pela extraditanda AA ser julgada improcedente, pela falência dos factos e argu­mentos apresentados e, a final, ser proferida decisão que defira a requerida extradição para a República da Ucrânia, como peticionado”.

6. Por acórdão de 30 de Setembro de 2014, o Tribunal da Relação de Évora decidiu conceder a extradição para a República da Ucrânia da requerida AA, cidadã de nacionalidade ucraniana, para efeito de procedimento criminal, pelos factos por que foi deduzida acusação no Proc. n.º 4-347/11, que corre termos no Tribunal Distrital de Schevchenkivskiy, relativo à prática de factos integradores de um crime de transporte ilegal de pessoas, p. e p. pelo art. 332.° do CP da Ucrânia, e de um crime de uso de documentos falsificados, p. e p. pelo artigo 358.º do CP da Ucrânia, no qual se encontra decretada a prisão preventiva da requerida (vide págs. 276 a 289).

7. Inconformada com o acórdão proferido, a extraditanda AA interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que rematou com apresentação das seguintes conclusões (vide págs. 306 a 314):

«a) A República da Ucrânia solicitou ao estado Português a extradição da sua nacional AA, para efeitos de procedimento Criminal.

b) Vem a mesma indiciada da prática de factos que integram um crime de transporte ilegal de pessoas e um crime de uso de documentos falsificados nos termos do código Penal da Ucrânia e que obtêm correspondência com a legislação portuguesa nos crimes de subtracção de menor e no crime de falsificação.

c) Não se concorda com o douto acórdão recorrido porquanto, em primeiro lugar parece ter sido desvalorizado a alegação em sede de oposição de AA, onde a mesma refere que, na decisão que solicita a sua extradição podemos confirmar pela parte onde refere que "o tribunal só decidiu aplicar esta medida de coação que até pode ser desproporcionada”, apenas porque AA se encontrava ausente do pais e esta seria a única forma de colocarem a arguida na lista de pessoas procuradas internacionalmente.

d) podemos verificar que a Ucrânia poderá apesar de considerar que ê desproporcional a medida de coação aplicada , mas ainda assim aplica, infringindo assim a sua própria lei.

e) O que nos permite concluir que se a Ucrânia não respeita a própria lei muito menos irá, de acordo com o razoável proteger os cidadãos de quaisquer maus-tratos do seu ex-marido ou de quem quer que seja, contrariamente ao que refere o douto acórdão.

f} E segundo lugar parece que está em causa uma questão relacionada com a violação dos direitos do Homem e por isso,

g) não concorda a ora recorrente com a argumentação aposta no douto acórdão, designadamente quando refere "… estrangeiros que se sintam impossibilitados de regressar ao país da sua nacionalidade ou da residência habitual, quer atendendo à sistemática violação dos direitos humanos que ai se verifique, quer por correrem o risco de sofrer ofensa grave, ainda que venha a proceder e, lhe seja concedida a requerida autorização de residência, não impede de forma alguma a eventual procedência do pedido de extradição deduzido pela Republica da Ucrânia … " pois que,

h) Esta claramente a ser violado um dos requisitos negativos constantes do DL 144/99 de 31 de Agosto art. 6.° a) que é precisamente o facto de o processo de extradição não satisfazer ou não respeitar as exigências da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.

i) Visando acima de tudo que sejam respeitadas não só as exigências e pressupostos para a extradição bem como, se decorrente desta iram previsivelmente ser violados os direitos liberdades e garantias dos cidadãos neste caso da cidadã Ucraniana.

j) A recorrente receia porque tem a certeza de que quando regressar à Ucrânia irá estar novamente sob a influência e controle de seu ex-marido bem como de novo voltar a ser maltratada, receando deste modo pela sua vida e integridade física e psicológica.

k) Em Portugal tem vindo a receber ameaças de morte via telefone do seu ex-marido, principalmente no período em que seu filho estava com sua mãe.

I) Além do mais, a AA vive em Portugal desde 2010, e encontra-se acompanhada de toda a sua família designadamente, sua mãe, irmã, cunhados, sobrinhos que aqui vivem e trabalham há já alguns anos e que entretanto adquiriram nacionalidades Portuguesa.

m) Desde que chegou a Portugal a recorrente exerceu sempre uma actividade profissional regular, como empregada de balcão, pagando desde então os impostos fazendo IRS e pagando a segurança Social.

n) Por outro lado, na Ucrânia tem apenas o seu filho que vive com o seu pai.

o) Não tem mais familiares na Ucrânia, nem bens, nem perspectivas de emprego, ainda mais com a situação política e económica instável em que a Ucrânia se encontra. Por isso,

p) referiu que deu entrada junto do Sef de pedido de Asilo e no qual neste momento já obteve título de residência provisório, conforme documento que se junta doc. 1. Nunca teria tido necessidade de Asilo se não tivesse realmente sido maltratada e não estivessem aqui os seus direitos de segurança e integridade física a serem violados.

q} A extradição da requerida implicaria, forçosamente, a total desagregação da família, com grave prejuízo para si e, consequentemente, a sua família.

r) Logo a Extradição da ora requerida acarretaria desta forma, a violação de direitos constitucionalmente consagrados corno seja o direito à família plasmado no art. 67.º da CRP.

s) O que está aqui em causa é o Principio da Dignidade da Pessoa Humana, nas suas várias vertentes, o qual reclama, nesta situação em concreto. a necessidade de aplicar a. denegação facultativa da cooperação internacional.

t) Aliás é corrente saber-se que o sistema ucraniano tem muitas fragilidades, fragilidades essas que inclusivamente os ministros Ucranianos enunciam e referem constantemente que as condições de reclusão são duvidosas e que a requerida ficaria, sujeita, já agora coma aplicação da medida de coação de prisão preventiva, atentas as agressões recorrentes de que são vítimas as reclusas naquele país, o que é facto público e notório num pais que vive um clima de instabilidade extrema e que até a Onu refere na comunicação social que na Ucrânia os direitos humanos cada vez mais estão em decadência.

u) refere ainda o douto acórdão recorrido que "não consta que este país integre de alguma forma a lista dos países que de forma sistemática viole os direitos humanos, como aliás resulta dos recentes acordos firmados por este país com a comunidade Europeia.", não parece lógica esta afirmação uma vez que todos os acordos firmados entre ambos os países todos eles são anteriores à situação actual de conflito armado em parte do território do estado requerente,

v) Nestes termos, considera a recorrente estar em risco a sua integridade física e psicológica bem como estar a ser-lhe negado o direito à segurança e à família nos termos da CRP estando a ser violados os seus artigos 63.º, 25.° e 27.º, tal como o douto acórdão violado artigo 6.° a) da Lei n.º 144/99 de 31 de Agosto.»

8. O Senhor Procurador-Geral Adjunto do Tribunal da Relação de Évora respondeu ao recurso interposto, vindo a finalizar a resposta apresentada com a formulação das seguintes conclusões (vide págs. 323 a 335):

“1.ª - Não havendo a recorrente observado as exigências prescritas no artigo 412°, n.º 1, do CPP, deve à mesma ser endereçado convite para moldar as conclusões da motivação do recurso ao determinado normativamente - idem, artigo 417°, n.º 3 , sob pena de rejeição.

2.ª - Não vindo o recurso a ser rejeitado, deve o mesmo ser julgado manifestamente improcedente - CPP, artigo 420°, n.º 1, alínea a) -, já que a recorrente não assaca ao decidido nenhuma nulidade, vício ou erro de julgamento nem sustenta validamente a pretensa interpretação contra a Constituição, no acórdão recorrido, das normas constitucionais e de direito convencional e pactício aplicadas. Quando não,

3.ª - Não se verifica, no caso, nenhuma situação que corporize fundamento de recusa do pedido de extradição, pois,

4.ª - O pedido respeita os requisitos gerais da cooperação internacional (artigo 6° da lei n.º 144/99),

5.ª - A natureza dos crimes por cuja prática a extraditanda está acusada e que fundamentam o pedido de extradição não constitui fundamento de recusa (idem, artigo 7°), e

6.ª - O procedimento não se acha extinto (idem, artigo 8°) nem ocorre nenhuma situação que exclua a extradição (idem, artigo 320).

7.ª - Também não ocorre a causa de recusa facultativa a que alude o n.º 2 do artigo 18° da lei n.º 144/99, pois que a «desagregação» familiar não constitui, no caso, obstáculo ao pedido de extradição.

8.ª - À recorrente foi concedida pelos Estado português autorização (provisória) de residência, mas também esse mecanismo de protecção não obsta ao deferimento do pedido, visto não beneficiar ela do estatuto de asilo previsto na lei n.º 27/2008, de 30/6.

9.ª - Não foi alegado nem resultou provado nenhum facto concreto que permita concluir, para lá de qualquer dúvida, que o deferimento do pedido de extradição da recorrente para a Ucrânia não satisfaz/não respeita as exigências da Convenção Europeia dos Direitos do Homem ou de qualquer outro instrumento de direito internacional que Portugal haja ratificado, pelo que o requisito geral negativo inscrito na alínea a) do n.º 1 do artigo 6° da lei n.º 144/99 se tem por não verificado.

I0.ª - A decisão recorrida não viola nenhum preceito legal nem ofende qualquer normativo constitucional ou de direito convencional de aplicação direta, designadamente, os apontados pela recorrente, pelo que deve ser confirmada e mantida.”

9. Este Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 27.11.2014 declarou nulo o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, nos termos dos arts. 374.º n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, ex vi art. 3.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, de 31.08,  e determinando a sua reformulação pelo mesmo Tribunal.

10. O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 03.03.2015, deliberou “recusar o pedido de extradição formulado pela República da Ucrânia, referente a AA, com o fim de ser sujeita a julgamento no Processo n.º 4-347/11, que corre termos nos Tribunal Distrital de Schevchenkivskiy.

11. Inconformado, vem agora o magistrado do Ministério Público no Tribunal da Relação de Évora interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo nos seguintes termos:

« l.ª Padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto — CPP, artigo 410°, n.° 2, alínea a) — o acórdão que se limita a afirmar, no elenco dos factos provados, que alguém sofre de violência domés­tica e que irá voltar a sofrer maus tratos, sem que concretize a reali­dade que um e outro conceito encerram, não sustentando tais factos genéricos um juízo seguro de direito conducente a uma decisão justificante da recusa do pedido de extradição.

2.ª Está ferido do vício de contradição insanável, previsto na alínea b) do n.° 2 do artigo 410°, do CPP, o acórdão que afirma que o invocado receio da extraditanda pelo comportamento do seu ex-marido não constitui fundamento de recusa do pedido de extradição, porque o retorno ao país da prática dos factos ocorrerá sob a tutela das entida­des estatais que a protegerão de quaisquer maus tratos do seu ex-marido, e do mesmo passo, afirma, que a deslocação da extraditanda para aquele país a irá colocar numa situação de grave proximidade com o seu ex-marido, sujeitando-a de novo a situações de grande vio­lência

3.ª Esse mesmo acórdão está igualmente inquinado daquele mesmo ví­cio quando entende que a conduta da extraditanda configura a prá­tica dos crimes de falsificação de documento e de subtração de me­nor e, do mesmo passo, considera que tal conduta é de diminutas ilicitude e culpa, para, por via desse entendimento, recusar o pedido de extradição, à luz do disposto no n.° 2 do artigo 18°, da lei n.° 144/99.

4.ª Sofre do vício de erro notório na apreciação da prova - CPP, artigo 410°, n.° 2, alínea c) - o acórdão que, sem nenhum facto provado a respeito - factos que fundadamente permitam conjeturar que, do de­ferimento do pedido de extradição, advirão consequências graves pa­ra a pessoa da extraditanda -, considera que ocorrem motivos excecionais de caráter pessoal que justifiquem a recusa do pedido de ex­tradição, à luz do disposto no n.° 2 do artigo 18° da lei n.° 144/99.

5.ª Viola o estatuído no artigo 10° da lei n.° 144/99 e o preceituado no artigo 4100, n.° 2, alínea c), do CPP, o acórdão que elege como fun­damento de recusa do pedido de extradição a aplicação de um prin­cípio de proporcionalidade, considerando de reduzida importância a indiciada prática, pela extraditanda, dos crimes de falsificação e de subtração de menor, quando esse princípio de proporcionalidade só é aplicável quando, no confronto entre o ordenamento jurídico do Es­tado requerente da extradição e o ordenamento jurídico do Estado requerido, os ilícitos indiciados e a reação penal, num e noutro, se­jam valorados diferentemente, com exigências acrescidas e despro­porcionais no primeiro.

6.ª O acórdão recorrido violou o disposto nas alíneas a), b) e c), do n.° 2 do artigo 410°, do CPP, e o estatuído nos artigos 18°, n.° 2, e 10°, da lei n.º 144/99, em razão do que deve ser revogado e substituído por outro, que defira o pedido de extradição.»

12. À interposição de recurso nada respondeu a extraditanda.

13. Colhidos os vistos em simultâneo, e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão.


II

Fundamentação


A. Matéria de facto

1. Segundo o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, a 03.03.2015:

            “I Fundamentação

Com interesse para a decisão a proferir, da análise da documentação constante dos autos, das declarações da extraditanda e, dos depoimentos das testemunhas inquiridas, apura-se o seguinte:

Ao abrigo da Convenção Europeia de Extradição. (Paris 1957), a República da Ucrânia solicitou ao Estado português a extradição da sua nacional AA para efeitos de procedimento criminal.

A requerida no âmbito do Processo n.º 4-347/11, que corre termos no Tribunal Distrital de Schevchenkivskiy encontra-se acusada pela prática de factos integradores de um crime de transporte ilegal de pessoas, previsto e punido pelo artigo 332.º, do Código Penal da Ucrânia, com pena de prisão de 2 a 5 anos e, de um crime de uso de documentos falsificados, previsto e punido pelo artigo 358.º, do Código Penal da Ucrânia, com pena de prisão de 6 meses a 2 anos, tendo sido emitidos mandados de captura para difusão internacional, a fim de a extraditanda vir a ser colocada em prisão preventiva à ordem desses autos.

Porquanto, em Maio de 2010, solicitou ao seu ex-marido DD, que desse autorização, certificada notarialmente para deixar o País com o seu filho EE, nascido a 18-02-2006, pedido que não foi aceite por este.

Ciente de que, para viajar para o estrangeiro com o seu filho DD H.0. era necessário obter uma autorização por parte do pai, do qual se tinha divorciado em 23-06-2009, a arguida decidiu preparar a retirada do seu filho através da fronteira da Ucrânia e levou-o de sua casa, localizada na Rua ..., apanhou um táxi que os levou em direcção à fronteira.

Cerca das duas horas da noite de 14-08-2010, no posto de gasolina "OKKO", localizado perto de t. Chop, região de Zakarpatska, a arguida acordou com Shankov J.J., o seu transporte, com o seu filho, num veículo de marca BMW, com a matrícula ..., através da fronteira para t. Zahon, República Eslovaca.

Chegando cerca das 07.00 horas ao posto de fronteira entre a Ucrânia e a República Eslovaca, "Pequena Bereznyj", a arguida sabendo que a autorização para transportar o seu filho menor DD. era falsa e, tendo intenção de o levar ilegalmente para o outro lado da fronteira da Ucrânia, aquando do controlo de documentos deu o seu passaporte de cidadã ucraniana e, deu a falsa autorização do seu ex-marido EE. para poder sair da Ucrânia com o seu filho.

Na verificação dos documentos, a falsidade da autorização, não foi detectada pelo inspector do Controlo de Fronteiras e este permitiu que o menor deixasse a Ucrânia.

Assim no dia 14-08-2010r pelas 07.47 horas, a arguida deixou a Ucrânia para a República Eslovaca, no carro com a matrícula Ao 1136 Ah, levando ilegalmente consigo o seu filho EE.

Por este motivo, pelos actos que voluntariamente praticou e que são puníveis como organização de movimento ilegal de pessoas para fora das fronteiras da Ucrânia, na pessoa do seu filho menor, coordenando tais acções e criando as condições para que as mesmas alcançassem êxito, usando documentos falsos

Estes factos integram o crime de subtracção de menor, previsto no art. 249.º do CP Português e, a que corresponde pena de prisão de 2 anos e, o crime de falsificação, previsto no art. 256.°, do CP Português e, a que corresponde pena até 3 anos de prisão.”

Até este ponto a matéria de facto provada corresponde à matéria de facto provada no anterior acórdão. A descrição dos factos apresentada corresponde ao apresentado pelas autoridades da Ucrânia, junto a fls 115 e 116 (versão em língua portuguesa e inglesa).

Mas, para além desta, e fruto das diligências que o tribunal realizou, resultou ainda provado que:

«A extraditanda reside há cerca [[1]] de 4 anos em Portugal, em Albufeira, com a sua mãe, irmã, cunhado e sobrinhos, não tendo qualquer outra família na Ucrânia, para além do seu filho que reside com o progenitor.

Trabalha como empregada de balcão, com contrato de trabalho.

A extraditanda veio para Portugal para fugir do seu ex-marido, pai do seu filho, porque sofria de violência doméstica por parte do mesmo.

O mesmo refere a amigos comuns que se a extraditanda voltar para a Ucrânia, lhe irá voltar a dar maus tratos.

Estes factos provados, resultam dos elementos de prova supra descritos, sendo que os que não constam desta enumeração, não resultaram provados, pela parcialidade da sua referência ou imprecisão do seu conteúdo.»

B. Matéria de direito

1. Nas alegações apresentadas pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto do Tribunal da Relação de Évora podem isolar-se quatro questões a resolver:

a) o acórdão padece de vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão (art. 410.º, n.º 1, al. a), do CPP);

b) o acórdão está ferido de vício de contradição insanável entre a fundamentação (art. 410.º, n.º 1, al. b), do CPP).

c) o acórdão padece de erro notório na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP) e viola o estipulado nos arts. 10.º e 18.º, da Lei n.º 144/99

2. Considera o Ministério Público que o acórdão padece de insuficiência da matéria de facto provada dado que considerou como provado que a extraditanda terá sofrido de “violência doméstica” por parte do ex-marido quando vivia na Ucrânia e, além disso, se regressar, o ex-marido “lhe irá voltar a dar maus-tratos”, considerando o Ministério Público que “violência doméstica” e “maus-tratos” “são categorias conceituais que carecem de preenchimento com factos que as integrem” (fls. 419), e “nenhum facto concreto resultou provado que permita preencher o nomen juri; ou seja, a mera alusão, como factualidade provada, a violência doméstica e a maus tra­tos não passa, nem vai além, de uma realidade abstrata cujo conteúdo concreto e de facto se desconhece e ficou por demonstrar” (idem).

Os vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP são do conhecimento oficioso, e constituem vícios que devem decorrer do próprio texto da decisão recorrida. Ora, constitui insuficiência da matéria de facto quando da própria decisão não decorrem elementos suficientes para que se possa obter uma conclusão quanto aos factos. Porém, não cabe a este tribunal contestar os factos que o tribunal deu como provados. Não tendo havido produção de prova perante este tribunal e não tendo este tribunal poderes de cognição em matéria de facto, não pode sindicar a matéria de facto. Apenas se pode verificar se o que foi dado como provado é suficiente ou não para a decisão que o tribunal proferiu. Neste ponto, é claro que o Tribunal da Relação de Évora, a partir “da análise da documentação constante dos autos, das declarações da extraditanda e dos depoimentos das testemunhas inquiridas” entendeu como provado que a extraditanda terá sofrido de violência doméstica e de maus tratos. Ainda que não tenha especificado estes conceitos, entendemos que foram usados segundo a conceção que o nosso direito, maxime o direito penal, defende, nomeadamente tendo em conta o disposto nos arts. 152.º e 152.º-A, do nosso Código Penal. Ou então segundo o que as Nações Unidas entendem por violência doméstica e maus-tratos, ou seja,

“(a) That domestic violence is violence that occurs within the private sphere,

generally between individuals who are related through blood or intimacy;

(b) That domestic violence is one of the most common and least visible forms of violence against women and that its consequences affect many areas of the lives of victims;

(c) That domestic violence can take many different forms, including physical, psychological and sexual violence;

(d) That domestic violence is of public concern and requires States to take serious action to protect victims and prevent domestic violence;

(e) That domestic violence can include economic deprivation and isolation and that such conduct may cause imminent harm to the safety, health or well-being of women” (Resolução A/RES/58/147, de 22 de dezembro de 2003, das Nações Unidas, “Elimination of domestic violence against women”[2]).

Ou podemos ainda citar a lei ucraniana que entende como violência doméstica — Law of Ukraine on Prevention of Domestic Violence, Law No. 2789-III of 15.11.2001 [3]:

For the aims of this Law the terms stated below are used with the following meaning:

domestic violence - any intentional actions of physical, sexual, psychological or economic nature committed by one family member in relation to other family member, if these actions violate constitutional rights and freedoms of a family member as a person and citizen and inflict moral harm on her/him, harm to her/his physical or psychical health;

physical domestic violence - intentional causing by one family member to other family member of beatings, bodily harms, that can lead or has led to death of a victim, violation of his/her physical or psychical health, causing of harm to her/his honour and dignity;

sexual domestic violence - illegal encroachment of one family member on sexual inviolability of other family member, and also action of a sexual nature by one family member in relation to a juvenile family member;

psychological domestic violence - violence, related to influence of one family member on the psyche of other family member by verbal offenses or threats, pursuit, intimidations which intentionally cause emotional uncertainty, inability to protect her/himself and can cause or causes harm to psychical health;

economic domestic violence - intentional deprivation by one family member of other family member of habitation, meal, clothes and other property or funds, for which a victim has a legal right, that can cause her/his death, harm to physical or psychical health;

victim of domestic violence - a family member which suffered from physical, sexual, psychological or economic violence from the side of other family member” (art. 1.º).

Tendo em conta o conhecimento generalizado do que seja “violência doméstica” ou “maus tratos” consideramos, por um lado, que contestar a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal da Relação não está no âmbito dos poderes de cognição deste tribunal (art. 432.º, do CPP, última parte) e, por outro lado, a utilização de conceitos como de “violência doméstica” e “maus tratos” não integra o vício de insuficiência da matéria de facto provada. Isto porque nos presentes autos o que é necessário provar não são os factos que integram a violência doméstica; não se está aqui a pretender condenar ninguém pela prática de um crime de violência doméstica ou por um crime de maus-tratos, caso em que se teria que provar os factos que integrariam essa violência doméstica ou esses maus tratos. Até porque não poderemos ter a pretensão de provar a violência doméstica ou os maus-tratos sem que se proceda ao necessário contraditório e, em particular, ouvindo o ex-marido da extraditanda. Coisa diferente se pretende aqui provar — aqui o tribunal apenas pretendeu verificar haveria algum circunstancialismo pessoal que pudesse ser relevante para a decisão que lhe cabia tomar. E considerou como relevante provar que a extraditanda terá saído da Ucrânia para fugir ao ex-marido “porque sofria de violência doméstica por parte do mesmo” (fls. 403).

Improcede, pois, este fundamento.

3. Mas, entende ainda o Ministério Público que existe contradição nos termos do disposto no art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPP. Isto porque foi dado como provado que a extraditanda se ausentou da Ucrânia trazendo o filho sem a autorização do pai e contra a sua vontade, tendo retirado ilegalmente o filho daquele país e mediante o uso de uma autorização falsa, o que constitui “uma conduta direta e manifestamente dolosa” (fls. 420), sendo incompatível “com uma «diminuta culpa e ilicitude»” (idem). E conclui dizendo que “toda a conduta indiciariamente levada a cabo pela extraditanda, nos termos em que se verificou, atra­vés do uso de documentos de conteúdo falso, para a bom termo levar o seu propó­sito de retirar o menor da Ucrânia e subtraí-lo ao seu progenitor, é incompatível com o juízo de culpa e ilicitude diminutos de que o tribunal se serviu para fazer atuar o mecanismo de recusa previsto no n.° 2 do artigo 18°, da lei n.° 144/99” (fls. 420-1).

É certo que a conduta da extraditanda que deu origem ao procedimento criminal na Ucrânia constitui indício da prática dos crimes que fundamentaram o pedido de extradição (embora, e de acordo com os elementos que foram fornecidos, ainda não exista condenação). Também é certo que o Tribunal da Relação de Évora, no acórdão recorrido, baseou a sua decisão na “diminuta ilicitude e culpa da mesma extraditanda” (cf. fls. 409). O que, no entanto, não constitui fundamento para a não extradição ao abrigo do art. 18.º, n.º 2[4], da Lei n.º 144/99 como afirma o Ministério Público, mas ao abrigo do art. 10.º[5] da mesma lei. Ora, não cabe ao Tribunal português avaliar a ilicitude e a culpa da extraditanda pelos factos cometidos fora do território português. Na verdade, a decisão de extradição não constitui um julgamento antecipado, nem deve “constituir um julgamento antecipado – tanto por motivos “internos” (dogmáticos), como por motivos “externos” (de não ingerência e respeito mútuo)”[6]. Mas, abstraindo deste ponto, o certo é que o Ministério Público entende que há contradição entre a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão. Ora, não só não existe esta contradição entre a fundamentação e a decisão, pois a decisão de não extradição é uma decorrência lógica deste entendimento de que a conduta da extraditanda seria de diminuta ilicitude e culpa, como não existe contradição entre a própria fundamentação quando o tribunal parte dos factos indiciados pelas autoridades da Ucrânia e os analisa, apresentando aquela conclusão. Coisa diferente seria a de saber se poderia ter apreciado, sob o ponto de vista da ilicitude e da culpa, aqueles factos indiciados, mas não foi isto que o Ministério Público alegou.

Mas afirma ainda o Ministério Público que o vício constante do art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPP também ocorre porque se, por um lado, o Tribunal da Relação de Évora entendeu “dos factos que nos autos resultaram provados, que a extraditanda não tem qualquer apoio familiar na Ucrânia e, que a deslocação da mesma para aquele país a irá colocar numa situação de grave proximidade com o seu ex-marido e, dos familiares do mesmo e, por isso a irá sujeitar de novo a situações de grande violência, temos como verificada a existência de consequências graves para a pessoa da extraditanda, no deferimento do pedido” (fls. 408), por outro lado, também afirmou que “bem como o invocado receio do seu ex-marido poderá constituir fundamento para a recusa[7], sob pena de esvaziar de forma genérica todo o conteúdo do instituto da extradição, pois o mesmo constitui sempre um transtorno para o requerido, desde logo porque lhe vai impor responsabilidades penais e, irá fazer retornar obrigatoriamente ao país da prática dos factos, ainda que sobre a tutela das entidades estatais, que nos termos normais de um Estado de Direito, como é a República da Ucrânia, a protegerão[[8]] de quaisquer maus-tratos do seu ex-marido, bem como as qualidades ou os defeitos do sistema prisional do país requerente não poderão constituir obstáculo ao deferimento do pedido formulado, porque não é manifesto que o mesmo sistema prisional ofenda de forma manifesta e sistemática a Convenção Europeia para os Direitos do Homem e, os direitos liberdades ou garantias consagradas na Constituição da República Portuguesa, para além do legalmente admissível.” (fls. 406, itálico nosso).

Na realidade, parece estar subjacente a este discurso alguma contradição, pois se, por um lado, considerou que o retorno da extraditanda ao país a irá sujeitar a situações de violência, por outro lado, admitiu que as autoridades locais a protegeriam daquela violência. Assim, ainda que possamos considerar estarmos perante um vício do art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, tal não obsta a que, nos termos do art. 426.º, n.º 1, do CPP, este Tribunal possa decidir da causa se considerar que tem elementos para o fazer, ainda que se verifique algum dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, que no caso será a, pelo menos aparente, contradição.

Na verdade, se, por um lado, o Tribunal da Relação de Évora considerou, e deu como provado, que a extraditada sofreu maus tratos e violência doméstica; por outro lado, também se deu como provado que a extraditada não tem quaisquer familiares na Ucrânia para além do filho. Foi com estes elementos que o Tribunal da Relação de Évora acabou por concluir que poderia recusar o pedido de extradição a partir do estipulado no art. 18.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99.

Ter considerado anteriormente que, quando a  extraditada fosse entregue à Ucrânia, sê-lo-ia para um país onde a Convenção dos Direitos Humanos é respeitada, onde o Estado de Direito é assegurado (pelo menos nas zonas onde atualmente não existe conflito) não obsta a que não ser novamente vítima de maus tratos e violência. Também Portugal é um Estado de Direito, respeita a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, as entidades estatais tutelam os direitos, porém morrem diversas mulheres por ano vítimas de violência doméstica[9]/[10].

Assim sendo, consideramos que temos elementos suficientes para que possamos ultrapassar a aparente contradição e decidir quanto ao recurso interposto.

Pelo que também improcede neste ponto o recurso interposto.

4. Sabendo já que não cabe aos tribunais portugueses avaliar a ilicitude e a culpa do comportamento da extraditanda em território diferente do português, desde logo em cumprimento do princípio da não ingerência e do respeito mútuo, tal não obsta a que abstratamente se possa  confrontar os ilícitos por que a extraditanda está indiciada e os que a estes correspondem na legislação portuguesa.

E se fizermos esta avaliação abstratamente, o que só nos permite avaliar a ilicitude e não a culpa, uma vez que esta é determinada em função do agente e da situação concreta, não poderemos dizer que estamos perante ilícitos de pequena gravidade, mas de média gravidade. Porém, sabemos que a ilicitude não é apenas avaliada em função do ilícito pressuposto em cada tipo legal de crime, mas também em função da existência ou não, por exemplo, de causas de exclusão da ilicitude. Ora, não temos elementos para fazer esta análise, nem a podemos fazer em função dos princípios supra referidos. Pelo que consideramos não ter elementos suficientes para que se possa recusar o pedido de cooperação com base nestes argumentos. Porém, a avaliação a que o Tribunal da Relação de Évora procedeu apenas pode ter sido esta avaliação abstrata, dado que nada foi provado quanto aos factos que ocorreram na Ucrânia. Nem sequer cabia àquele tribunal fazer esta prova. Pelo que não podemos considerar que aqui temos um erro notório na apreciação da prova, prova esta que não foi realizada, pelo que improcede o fundamento da interposição de recurso baseado no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP.

Coisa diferente seria contestar a ideia que está subjacente à aplicação do art. 10.º, da Lei n.º 144/99, segundo a qual, e atendendo a um princípio da proporcionalidade, a reduzida importância dos ilícitos praticados na Ucrânia justificaria a recusa de cooperação. Se temos algumas dúvidas quanto a esta fundamentação, isto apenas nos permite discordar da recusa de extradição com base no dispositivo referido. Mas não nos permite considerar estarmos perante um caso subsumível no âmbito do art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP como pretende o recorrente — “Não é esse, manifestamente o caso, que não é de reduzida importância, seja à luz do ordenamento jurídico do Estado requerente da extradição seja à luz do ordena­mento jurídico do Estado requerido, pelo que, ao considerar os ilícitos que funda­mentam o pedido de extradição de reduzida importância, o acórdão ora sob recur­so violou o disposto no artigo 10.º da lei n.º 144/99, e o preceituado no artigo 410.º, n.° 2, alínea c), do CPP.” (fls. 424)

Acresce que este tribunal, em anterior aresto, considerou que “a decisão de extradição não se configura, não se deve configurar, como um procedimento quase automático, assente numa repetição  de estereótipos, mas sim uma cuidada equação das circunstâncias do caso vertente” (acórdão do STJ, de 31.03.2011, proc. n.º 257/10.9YRCBR.S1, relator Santos Cabral[11]), pelo que “o conceito de “reduzida importância da infração" não pode ser alcançado com referência a uma mera valoração abstrata desligada do caso concreto” (acórdão do STJ, de 31.03.2011, cit. supra)a exigir “a ponderação das  concretas circunstâncias do caso concreto numa dimensão de ilicitude e de culpa” (idem). Pelo que “a aplicação do normativo em causa [o art. 10.º, da Lei n.º 144/99] implica um juízo de valoração entre as razões do instituto de extradição e a relevância do caso concreto, ou seja, um juízo de proporcionalidade” (ibidem). Pelo que “a ponderação do princípio da proporcionalidade em sentido estrito terá de sopesar os interesses em conflito o que, na prática se resume aos direitos do indivíduo face aos interesses prosseguidos pelo Estado” (ibidem).  E foi este o raciocínio do Tribunal da Relação de Évora fez, considerando que os atos praticados pela extraditanda para “fugir do seu ex-marido, pai do seu filho, porque sofria de violência doméstica por parte do mesmo” (matéria de facto provada, fls. 403), e o facto de o filho já estar a residir com o progenitor na Ucrânia (idem), permitiam fazer um juízo de ponderação e sopesar os direitos do indivíduo relativamente aos interesses do Estado, fazendo pender a decisão para uma proteção dos direitos individuais da extraditanda; até porque os direitos individuais do filho e do outro progenitor a uma convivência estavam já assegurados, por força do regresso do filho àquele país.

Além do mais, não foi aquele o único fundamento para obstar à extradição.

5. Por fim, considera o Ministério Público ter sido violado o art. 18.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, quando obstou à extradição por considerar que o “deferimento daquele pedido possa implicar consequências graves para a pessoa visada em razão  (...) de outros motivos de carácter pessoal”. Afirma que neste âmbito se terão que integrar outros motivos que não sejam “a regra consequencial normal do deferimento de um pedido de extradição, como, p. ex., a possibilidade de cumprimento de uma pena muito mais grave do que a que resultaria da aplicação da lei portuguesa aos mes­mos facto” (fls. 422). E acrescenta: “As consequências que poderão advir para a extraditanda com o deferimento do pe­dido reconduzem-se, assim, a estar presente na Ucrânia para aí ser julgada pelos factos e crimes de que se acha acusada e, eventualmente, cumprir uma pena; sin­gularmente, mais não são do que as decorrências normais inerentes à própria ex­tradição, geradoras de incómodos, é seguro, mas que não constituem, contraria­mente ao que decidiu o tribunal, fundamento de recusa do pedido de extradição, em violação do disposto no n.° 2 do artigo 18° da lei n.° 144/99, e do artigo 410°, n.° 2, alínea c), do CPP.” (fls. 422-3). Ora, não só não foi isto que resultou provado, como não foi este o argumento do Tribunal da Relação de Évora. Este tribunal recusou o pedido de extradição afirmando: “dos factos que nos autos resultaram provados, que a extraditanda não tem qualquer apoio familiar na Ucrânia e, que a deslocação da mesma para aquele país a irá colocar numa situação de grave proximidade com o seu ex-marido e, dos familiares do mesmo e, por isso a irá sujeitar de novo a situações de grande violência, temos como verificada a existência de consequências graves para a pessoa da extraditanda, no deferimento do pedido, nos termos do disposto no artigo 18.º, no 2, da Lei no 144/99” (fls. 408). Assim, entendeu verificado o pressuposto deste art. 18.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99.

Ora, na verdade, constituiu fundamento para a não extradição não o facto de a extraditanda poder em território ucraniano ser julgada, poder vir a ser condenada e poder vir a cumprir pena, o que constitui uma consequência normal de uma extradição, mas sim o facto de uma vez extraditada para a Ucrânia não só não ter qualquer apoio familiar naquele território, como ainda o facto de poder vir a ser novamente sujeita a maus tratos e violência doméstica, ou seja, existindo risco para a sua integridade física e psicológica decorrente daquela extradição, o que não constitui uma decorrência normal de uma extradição ou da prática de um crime. E assim consideramos não haver razão para entender que foi violado o art. 18.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99. Até porque constitui jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a afirmação de que “a expulsão de um estrangeiro para um país onde não tem ligações só pode ser admitida em circunstâncias excepcionais”[12], pois a ingerência das autoridades no direito a uma vida familiar, previsto no n.º 1, do art. 8.º, da CEDH, deve ser proporcional ao fim visado[13], “deve estar justificada por uma necessidade social imperiosa, proporcional ao fim perseguido”[14], proporcionalidade esta que se estende aos casos de extradição, conforme decisão do TEDH, de 4.set.1995, queixa n.º 25342/94[15]. E, sabemos que, para além do filho menor, mais nenhuma família tem a extraditanda naquele país. É em Portugal que vive com a família (mãe, irmã, cunhado e sobrinhos “não tendo qualquer família na Ucrânia, para além do seu filho que reside com o progenitor” — facto provado, fls. 403).


III

Conclusão


Nos termos expostos acordam, em conferência, na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1. julgar improcedente o recurso interposto pelo magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Évora e

            2. determinar que se dê conhecimento à República da Ucrânia que, cumpridas as condições impostas pelo art. 79.º e ss, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, poderá o procedimento criminal contra AA prosseguir em Portugal.”

Não são devidas custas por força do disposto no art. 73.º, da Lei n.º 144/99, de 31.08.

Supremo Tribunal de Justiça, 21 de maio de 2015

Os juízes conselheiros,

     (Helena Moniz)

(Nuno Gomes da Silva)


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[1] No original “acerca”, embora tivéssemos considerado um lapso.
[2] Consultável aqui: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N03/503/40/PDF/N0350340.pdf?OpenElement
[3] Consultável aqui: http://legislationline.org/documents/action/popup/id/5052
[4] “Pode ainda ser negada a cooperação quando, tendo em conta as circunstâncias do facto, o deferimento do pedido possa implicar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de carácter pessoal.”
[5] “A cooperação pode ser recusada se a reduzida importância da infracção não a justificar.”
[6] Miguel João Costa, O princípio da dupla incriminação na extradição, Temas de extradição e entrega, Coimbra: Almedina, 2015, p. 57 (43 e ss).
[7] Pensamos que houve um lapso e, dentro do contexto, pensamos que o tribunal quereria dizer “bem como o invocado receio do seu ex-marido não poderá constituir fundamento para a recusa”
[8] No original “protegeram”, todavia consideramos um lapso.
[9] Cf., por exemplo, as estatísticas da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, de 2014 , aqui: http://apav.pt/apav_v2/images/pdf/Estatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2014.pdf
[10] Além disto, verificamos que no estudo do Conselho da Europa (Gender Equality Commission) “Analytical study of the results of the 4th round of monitoring the implementation of Recommendation Rec(2002)5 on the protection of women against violence in Council of Europe member states (2014) à pergunta sobre se as autoridades competentes (como a polícia) têm o poder de emitir ordens de restrição de emergência em situações de perigo imediato, ou proibir o agressor de entrar na residência ou proibi-lo de entrar em contacto com a pessoa em risco? (Do the competent authorities (such as the police) have the power to issue emergency barring orders in situations of immediate danger, to prohibit the perpetrator from entering the residence or contacting the person at risk?), a resposta foi “não” (cf. p. 65 do estudo; consultável aqui: http://www.coe.int/t/dghl/standardsetting/convention-violence/Docs/Analytical%20Study%20ENG.pdf).
[11] Consultável aqui: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4d6e3c6c9e4bf7f6802578d900305716?OpenDocument
[12] Caso Djeroud — cf. Cabral Barreto, , A Convenção Europeia dos Direitos do Homemanotada, Coimbra: Coimbra Editora, 20104, p. 248.
[13] Cabral Barreto, ob. cit., p. 253 (nota II/3 ao art. 8.º).
[14] Cabral Barreto, ob. cit., p. 257 (nota II/6.1. ao art. 8.º) e jurisprudência do TEDH aí referida.
[15] Cf. Cabral Barreto, ob. cit., p. 258 (nota II/6.1 ao art. 8.º).