Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1181/07.8TTPRT-H-P1-S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO LEONES DANTAS
Descritores: RETIFICAÇÃO DE ERROS MATERIAIS
CASO JULGADO FORMAL
Data do Acordão: 12/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / EFEITOS DA SENTENÇA.
Doutrina:
- Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 5.°, p. 132 a 134 ; RLJ, 87.°.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 620.º.
Sumário :

I – Arguida a nulidade processual consistente na falta de notificação do despacho que declarou deserta a instância, nulidade essa que foi indeferida com fundamento em que tal despacho havia sido notificado à arguente e que não foi por esta impugnado, tal decisão transitou em julgado, tendo força de autoridade de caso julgado formal (art. 620º do CPC).

II – Consequente, não podia o Juiz, posteriormente, determinar a notificação da recorrente do despacho de deserção da instância, notificação esta que  não poderá ser atendida para efeitos de início de contagem do prazo para interposição do recurso do despacho que julgou inicialmente deserta a instância.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


I

Nos presentes autos de inventário / partilha de bens em casos especiais  e que constitui o apenso H, AA veio, por apenso a Execução de sentença para pagamento de quantia certa, que constitui o apenso D, em que são exequente e executado, respetivamente, BB e CC, requerer a separação de bens, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 825.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na versão anterior à conferida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, correspondente ao art.º 740.º, na versão atual do referido diploma.

Neste apenso H, foi proferido despacho em 09.10.2013, determinando o seguinte: “Notifique a cabeça de casal e o interessado/executado para virem esclarecer a que factos deveriam responder as testemunhas pelos mesmos arroladas”.

Este despacho foi notificado à requerente da separação de bens [AA], também cabeça de casal, e ora recorrente, por correio registado expedido aos 10.10.2013 [a mesma litigava então como advogada em causa própria].

Nessa sequência, foi proferida decisão em 09.01.2015 com o seguinte teor:

“Nos termos do art.º 281.º do C. Pr. Civil, declara-se deserta a instância, arquivando-se oportunamente os autos.” (fls. 326).

No apenso D foi proferido despacho aos 13.06.2016 (fls. 339), com o seguinte teor: “Antes de tudo o mais, determino que o despacho proferido no apenso “H” a declarar deserta a instância dos autos de inventário para separação de meações seja notificado às partes (no âmbito desse apenso), aguardando-se após o respetivo trânsito em julgado”.

Este despacho, não obstante, não foi notificado à requerente AA, ora recorrente.

Aos 15.01.2018, a requerente AA  veio, a fls. 330-330 v/ do apenso H [agora já representada por mandatário judicial, conforme procuração junta a fls. 331], alegar nunca ter sido notificada do despacho a declarar a deserta a instância e, por isso, invocar a “nulidade de todo o processado por omissão de prática do ato, irregularidade esta que influi no exame e decisão da causa, que a requerente expressamente invoca ao abrigo do disposto nos artigos 195º e 19ºº do C.P.C.”, requerendo “a anulação de todos os atos processuais após a mencionada irregularidade”.

Na mesma data, juntou requerimento idêntico no apenso D (fls. 368-370).

Na sequência do referido requerimento, foi proferido em 30.01.2018, a fls. 373 no apenso D, o seguinte despacho: “Resulta de fls. 340, a notificação do despacho que, no apenso H, declarou deserta a instância. O fato de a correspondência remetida para o domicílio profissional do Ilustre Mandatário ter sido devolvida, nada contende com a validade da notificação. Consequentemente, inexiste qualquer nulidade processual. Notifique.”

Na sequência do mesmo sobredito requerimento, foi proferido em 15.02.2018, a fls. 332 no apenso H, o seguinte despacho: “Resulta de fls. 340 do Apenso D, a notificação do despacho que declarou deserta a instância. Inexiste, pois a alegada nulidade processual. Notifique.”.

Este despacho foi notificado ao mandatário da requerente, via citius, com data de elaboração de 19.02.2018.

Aos 03.04.2018, a requerente AA veio, a fls. 374-375 do apenso D, juntar requerimento dando conta de que a notificação devolvida de fls. 340 (a que é feita menção nos anteriores despachos de 30.01.2018 e 15.02.2018) foi dirigida ao mandatário da exequente e não a si ou ao seu mandatário, reiterando, por isso, a declaração da nulidade  invocada e a notificação à ora requerente da decisão proferida no apenso H em 09.01.2015, declarando-se deserta a instância, arquivando-se oportunamente os autos.” (fls. 326).

Nessa sequência, foi proferido despacho em 17.04.2018, a fls. 376 do apenso D, com o seguinte teor:

“Compulsado o apenso H verifico que, efetivamente, o despacho que declarou a deserção da instância não foi cumprido na pessoa da então cabeça-de-casal AA. Assim, conclua naquele apenso a fim de ser ordenada a notificação da mesma. Notifique o teor do presente despacho.”

Em cumprimento deste despacho, e aberta conclusão no apenso H, como ordenado, veio a ser proferido despacho neste apenso em 23.04.2018 (fls. 333) nestes termos: “Notifique a cabeça-de-casal do despacho que declarou a deserção da instância”, despacho esse notificado à ora recorrente, via citius, com data de elaboração de 23.04.2018.

Em 08.05.2018 foi, pela requerente AA, também cabeça de casal, interposto recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto da decisão de 09.01.2015 que declarou deserta a instância

No Tribunal da Relação do Porto, pela Sra. Desembargadora Relatora foi proferida decisão sumária em 08.03.2019 no sentido da não admissão do recurso de apelação interposto com fundamento na sua intempestividade.

Inconformada, a recorrente AA requereu que sobre a referida decisão sumária recaísse acórdão.

Em 13.05.2019 foi então proferido acórdão que decidiu manter a decisão sumária proferida em 08.03.2019, não se admitindo o recurso, por extemporaneidade do mesmo, interposto pela recorrente AA.

Novamente inconformada, a requerente AA recorre agora de revista, tendo para o efeito alinhado as seguintes conclusões:

«1.ª- Reconhecendo as instâncias que a recorrente não tinha sido notificada da douta sentença que declarou a deserção da instancia, também se não conforma que a solução da apelação seja aquela de ficcionar uma notificação por recurso à figura do caso julgado formal, pelo que nesta revista não nos movem razões de mera teimosia, mas de clara convicção da conformidade dos fundamentos que nos assistem.

2.ª- A questão a conhecer consiste na tempestividade da apelação que a recorrente intentou da sentença que decretou a deserção de instância no apenso no qual se insere este recurso.

3.ª- O disposto no artigo 625.º do C.P.C. exige que as decisões contraditórias versem as mesmas questões de facto e versem a mesma questão de direito.

4.ª- As questões dirimidas num e noutro despacho não são contraditórias, pois que distintas entre si, ou seja, no despacho de 15-2-2018 foi decidida a questão de uma nulidade invocada (que julgou inverificada), enquanto que o despacho de 23-4-2018, diversamente, ordena a notificação à parte de um ato processual (a sentença de deserção da instância).

5.ª- No caso, o despacho de 15-2-2018 versou a questão de direito consistente na aplicação do disposto nos artigos 195.º e seguintes do C.P.C. e o despacho de 23-4-2018 versou a questão de direito consistente na aplicação do disposto no artigo 253.º do C.P.C., pelo que as questões de direito não são as mesmas nas decisões julgadas e transitadas, e pretensamente contraditórias, invocadas no acórdão em crise, razão pela qual não há que retirar qualquer eficácia ao despacho de 23-4-2018 que ordenou a notificação da sentença que julgou deserta a instância à aqui recorrente.

6.ª- Sem prescindir, dir-se-á que o artigo 614.º do CPC permite a correção da sentença ou do despacho, caso ele(a) contenha inexatidões devidas a omissão ou lapso manifesto, a efetuar por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.

7.ª- Como se vê dos autos, e as distintas instâncias recorridas estão de acordo, a recorrente não tinha sido notificada da sentença que julgou deserta a instância quando foi proferido o despacho de 23-4-2018, pelo que o despacho anterior de 15-2-2018 lavra em inexatidão devida a lapso manifesto e evidente, e por isso o despacho de 23-4-2018 limita-se a corrigir esse mesmo lapso evidente, o que ocorreu oficiosamente e por iniciativa do Julgador.

8.ª- O despacho de 23-4-2018 acha-se, pois, legitimado pela previsão do artigo 614.º do CPC que permite ao Julgador, a todo o tempo e mesmo depois do trânsito em julgado da decisão, proceder à retificação de erros materiais evidentes, em consagração do princípio constitucional da prevalência da (sã) justiça material sobre uma (deficiente) justiça formal.

9.ª- Em suma, a recorrente impetra a V.Exªs a revogação do douto aresto em crise, determinando-se que o distinto Tribunal recorrido conheça do objeto da apelação.»

Não foram oferecidas contra-alegações.

Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Excelentíssimo Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo no sentido da negação da revista e da confirmação da decisão recorrida

Sabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, nos termos do disposto nos artigos 635.º, n.º 3, e 639.º do Código de Processo Civil, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, está em causa na presente revista saber se é tempestivo o recurso de apelação que a recorrente intentou da sentença que decretou a deserção de instância no apenso no qual se insere este recurso.


II


1 - Como se referiu supra, está em causa na presente revista saber se é tempestivo o recurso de apelação que a recorrente intentou da sentença que decretou a deserção de instância no apenso no qual se insere este recurso.
O Tribunal da Relação do Porto concluiu pela respetiva extemporaneidade e fundamentou a sua decisão nestes termos:                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         
«Cumpre apreciar se o recurso interposto pela Recorrente deverá, ou não, ser admitido.
E, pelas razões já aduzidas na decisão sumária acima transcrita, que não vemos razão para alterar e para as quais se remete, entende-se ser a mesma de manter, a qual dá resposta ao agora alegado pela Recorrente.
De todo o modo, entende-se ser de referir e de salientar o seguinte:
Dispõe o art. 620º do CPC/2013, que corresponde ao art. 672º do CPC revogado, que: “1. As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.
2. Excluem-se do disposto no número anterior os despachos previstos no art. 630º.”, sendo que o art. 630º do mesmo determina que “1. Não admitem recurso os despachos de mero expediente nem os proferidos no uso legal de um poder discricionário. 2. Não é admissível recurso das decisões de simplificação ou de agilização processual, proferidos nos termos previstos no nº 1 do artigo 6º, das decisões proferidas sobre as nulidades previstas no nº 1 do artigo 195º e das decisões de adequação formal proferidas nos termos previstos no artigo 547º, salvo se contenderem com os princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios probatórios.” [sublinhado nosso].
E, finalmente, dispõe o art. 625º do mesmo, que “1. Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar. 2. É aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual.”.
 Como é sabido, o caso julgado visa, essencialmente, “obstar à contradição prática” entre duas decisões – “decisões contraditórias concretamente incompatíveis” –, ou seja, que o tribunal decida de modo diverso sobre o direito ou questão concreta já definida por decisão anterior, evitando colocar o tribunal na situação de se contradizer (ou de reafirmar o que já havia sido decidido), princípio esse que, como é assinalado pela doutrina e jurisprudência, se desenvolve numa dupla vertente: uma vertente negativa (exceção do caso julgado) e uma vertente positiva (autoridade do caso julgado).
A função negativa do caso julgado é exercida através da exceção dilatória do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas (artigo 580.º n.ºs 1 e 2 do CPC), implicando a tríplice identidade a que se reporta o artigo 581.º, n.º 1 do CPC, a saber, os sujeitos, o pedido e a causa de pedir. Já a autoridade do caso julgado, por via da qual é exercida a sua função positiva, pode funcionar, independentemente, da verificação da aludida tríplice identidade, pressupondo, todavia, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida.
Revertendo ao caso em apreço, aos 09.01.2015 foi proferido o despacho recorrido a declarar deserta a instância, sendo que, na sequência de arguição, pela ora Recorrente, da nulidade processual de falta de notificação desse despacho, foi, aos 15.02.2018, proferida decisão de onde consta que tal despacho, a declarar deserta a instância, lhe foi notificado e, em consequência, a decidir no sentido da inexistência da alegada nulidade processual, despacho este que foi notificado à Recorrente, via citius, com data de elaboração de 19.02.2018, e que não foi por esta impugnado, que dele não recorreu e que, assim, transitou em julgado. Esclareça-se  que tal alegada nulidade processual [falta de notificação do despacho de deserção da instância] se prende com a necessidade de notificação dos atos processuais que possam prejudicar a parte, contendendo com o princípio do contraditório, pelo que a recorribilidade da decisão de 15.02.2018 [que considerou que o despacho de deserção da instância de 09.01.2015 havia sido notificado à ora Recorrente e, por essa razão, indeferiu a alegada nulidade processual]  estava salvaguardada pela parte final do nº 2 do art. 630º do CPC/2013, dele cabendo recurso.
Ora, tendo o citado despacho de 15.02.2018 força obrigatória dentro do processo (art. 620º, nº 1) e por força da autoridade do caso julgado formal formado por tal decisão,  que é extensiva não apenas ao sentido da decisão (indeferimento da nulidade processual), mas também ao seu fundamento (por, segundo essa decisão, o despacho de deserção da instância já haver sido notificado à ora Recorrente), impõe-se  acatá-lo e, assim também, acatar  que a decisão de 09.01.2015 (a declarar deserta a instância) foi notificada à Recorrente, assim como se impõe  concluir que, tendo então (aos 15.02.2018) o Mmº Juiz decidido que a decisão de 09.01.2015 lhe havia sido notificada e, por isso, indeferido a nulidade  invocada, não poderia o mesmo, posteriormente e em violação da autoridade do caso julgado formal, vir a determinar, em contradição com aquela outra decisão, a notificação dessa decisão, sendo que havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma questão, valerá a que haja transitado em julgado em primeiro lugar – art. 625º, nºs 1 e 2, do CPC. E, no caso, a que transitou em julgado em primeiro lugar foi a de 15.02.2018, que decidiu no sentido de que a decisão de 09.01.2015 já havia sido notificada à Recorrente e que, por isso, indeferiu a nulidade invocada (não determinando, por consequência, a notificação dessa decisão), sendo, pois e como referido na decisão sumária, irrelevante o despacho de 23.04.2018 (a determinar tal notificação).
Acresce dizer que, nos termos do art. 613º, nº 1, do CPC, “1. Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”, norma esta aplicável também aos despachos. Ora, apreciada e decidida a invocada nulidade de falta de notificação da decisão de deserção da instância no sentido da sua inexistência, não poderia o Mmº Juiz, sob pena também de violação do citado preceito, apreciar novamente da questão da notificação ou não, de tal decisão e vir, em contrário ao decidido anteriormente, a determinar essa notificação.
Os recursos têm prazos certos e perentórios para a sua interposição, que se contam da notificação da decisão de que se pretende recorrer.
No caso, perante a notificação da decisão de 15.02.2018 (na qual, aliás, se faz referência ao despacho que declarou deserta a instância), notificação essa que foi remetida, via citius, com data de elaboração de 19.02.2018, tinha a Recorrente ao seu dispor a possibilidade de dela recorrer com fundamento em (eventual) erro de julgamento da mesma (por falta de notificação da decisão de 09.01.2015) e/ou, eventualmente, na melhor das hipóteses para a Recorrente e se assim o entendesse,  de impugnar (também) o despacho de 09.01.2015 (que declarou deserta a instância). O que não pode é, para início da contagem do prazo para recorrer da decisão de 09.01.2015, aproveitar-se do despacho de 23.04.2018 (e da sua notificação),  que foi proferido em violação da autoridade do caso julgado formal formado pela decisão de 15.02.2018, despacho aquele que,  assim, não poderá ser atendido e sendo, por consequência, extemporâneo o recurso, interposto que foi apenas aos 08.05.2018.»

2 - Decorre dos autos que em 09.01.2015 foi proferida decisão a declarar deserta a instância a que se reportam os presentes autos de inventário/partilha de bens em casos especiais, que constituem o apenso H e que foram instaurados pela ora recorrente, AA, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 825.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na versão anterior à conferida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho[1], por apenso a Execução de sentença para pagamento de quantia certa, em que são exequente e executado, respetivamente, BB e CC.

É ponto assente que a referida decisão de 09.01.2015 não foi notificada à requerente AA, ora recorrente, sendo manifesto que foi cometida uma nulidade processual decorrente da omissão de formalidade legal que constitui uma irregularidade suscetível de influir no exame ou na decisão da causa – art.º 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Dado que nem a ora recorrente ou o seu mandatário estavam presentes no momento em que foi cometida, o prazo para a arguição da apontada nulidade conta-se do dia em que, depois de cometida, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência – art.º 199.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

No caso concreto, a ora recorrente veio arguir a nulidade de todos atos praticados após a apontada omissão através de requerimento apresentado em 15.01.2018, tendo sido esta a primeira vez em que interveio no processo após a prolação da decisão de 09.01.2015.
Com efeito, foi naquela data - 15.01.2018 -  que a requerente AA veio alegar nunca ter sido notificada do despacho a declarar a deserta a instância e, por isso, invocar a “nulidade de todo o processado por omissão de prática do ato, irregularidade esta que influi no exame e decisão da causa, que a requerente expressamente invoca ao abrigo do disposto nos artigos 195º e 199º do C.P.C.”, requerendo “a anulação de todos os atos processuais após a mencionada irregularidade”.
Sobre o referido requerimento, recaiu o despacho que consta de fls. 332 do apenso H, proferido em 15.02.2018: “Resulta de fls. 340 do Apenso D, a notificação do despacho que declarou deserta a instância. Inexiste, pois a alegada nulidade processual. Notifique.”[2].
Decorre do mencionado despacho que o Mm.º Juiz da 1.ª Instância considerou inverificada a nulidade processual invocada pela requerente em virtude de a ter considerado notificada da decisão de 09.01.2015 através da correspondência devolvida a fls. 340 do apenso D.

A requerente não impugnou este despacho, que veio a transitar em julgado.

Contudo, em 03.04.2018, a requerente AA veio, a fls. 374-375 do apenso D juntar requerimento dando conta de que a notificação devolvida de fls. 340 foi dirigida ao mandatário da exequente e não a si ou ao seu mandatário, reiterando, por isso, a declaração da nulidade invocada e a notificação à ora requerente da sentença proferida no apenso H.
E foi nessa sequência, que o Mm.º Juiz da 1.ª instância proferiu despacho no apenso D em 17.04.2018 (fls. 376) com o seguinte teor:
“Compulsado o apenso H verifico que, efetivamente, o despacho que declarou a deserção da instância não foi cumprido na pessoa da então cabeça-de-casal AA. Assim, conclua naquele apenso a fim de ser ordenada a notificação da mesma. Notifique o teor do presente despacho.”
E em cumprimento deste despacho, e aberta conclusão no apenso H, como ordenado, veio a ser proferido despacho neste apenso em 23.04.2018 (fls. 333) nestes termos: “Notifique a cabeça-de-casal do despacho que declarou a deserção da instância”, despacho esse notificado à ora recorrente, via citius, com data de elaboração de 23.04.2018.
A questão que se coloca consiste em saber se o Mm.º Juiz da 1.ª instância poderia ter proferido este último despacho (em 23.04.2018), depois de ter, em momento anterior, proferido um outro (em 15.02.2018) julgando inverificada a nulidade invocada pela ora recorrente decorrente da omissão de notificação da decisão que declarou deserta a instância.
Como se referiu supra  o primeiro despacho, de 15/02/2018  não foi impugnado e transitou em julgado.

Neste contexto, considerou-se na decisão recorrida que «perante a notificação da decisão de 15.02.2018 (na qual, aliás, se faz referência ao despacho que declarou deserta a instância), notificação essa que foi remetida, via citius, com data de elaboração de 19.02.2018, tinha a Recorrente ao seu dispor a possibilidade de dela recorrer com fundamento em (eventual) erro de julgamento da mesma (por falta de notificação da decisão de 09.01.2015) e/ou, eventualmente, na melhor das hipóteses para a Recorrente e se assim o entendesse,  de impugnar (também) o despacho de 09.01.2015 (que declarou deserta a instância). O que não pode é, para início da contagem do prazo para recorrer da decisão de 09.01.2015, aproveitar-se do despacho de 23.04.2018 (e da sua notificação),  que foi proferido em violação da autoridade do caso julgado formal formado pela decisão de 15.02.2018, despacho aquele que, assim, não poderá ser atendido e sendo, por consequência, extemporâneo o recurso, interposto que foi apenas aos 08.05.2018».

3 – Entende a recorrente que «o disposto no artigo 625.º do C.P.C. exige que as decisões contraditórias versem as mesmas questões de facto e a mesma questão de direito» e que «As questões dirimidas num e noutro despacho não são contraditórias, pois que distintas entre si, ou seja, no despacho de 15-2-2018 foi decidida a questão de uma nulidade invocada (que julgou inverificada), enquanto que o despacho de 23-4-2018, diversamente, ordena a notificação à parte de um ato processual (a sentença de deserção da instância)».
Realça que «o despacho de 15-2-2018 versou a questão de direito consistente na aplicação do disposto nos artigos 195.º e seguintes do C.P.C. e o despacho de 23-4-2018 versou a questão de direito consistente na aplicação do disposto no artigo 253.º do C.P.C., pelo que as questões de direito não são as mesmas nas decisões julgadas e transitadas, e pretensamente contraditórias, invocadas no acórdão em crise, razão pela qual não há que retirar qualquer eficácia ao despacho de 23-4-2018 que ordenou a notificação da sentença que julgou deserta a instância à aqui recorrente».

As decisões proferidas no processo são contraditórias e têm por objeto, no essencial, a mesma pretensão, o que releva nos termos e para os efeitos do disposto no mencionado artigo 625.º do Código de Processo Civil.

Na verdade, enquanto o primeiro despacho tinha por objeto a arguição da nulidade dos termos processuais subsequentes ao despacho que declarou deserta a instância, com fundamento na falta de notificação aquele despacho à requerente e aí se indeferiu a pretensão da requerente com fundamento na notificação do mesmo, no segundo decidiu-se em sentido contrário e determinou-se a notificação da requerente para reagir perante a deserção da instância, com fundamento da falta de notificação daquela deserção, considerando-se agora que a requerente não tinha sido notificada do mencionado despacho que declarou deserta a instância.

Deste modo, a pretensão da requerente no sentido de ser notificada do despacho que decretou a mencionada deserção da instância - (é essa no fundo a verdadeira pretensão da requerente) -, recebeu duas decisões em sentido em sentido contrário: a primeira de indeferimento e a segunda de deferimento.

Importa ainda que se tenha presente que a segunda pretensão da requerente é posterior ao trânsito em julgado da decisão de indeferimento da pretensão inicialmente apresentada, nos termos do artigo 620.º do Código de Processo Civil .
Esta contradição releva, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 625.º do Código de Processo Civil, havendo que dar cumprimento à que primeiro transitou em julgado.

Por outro lado, carece de sentido a pretensão da recorrente de que as pretensões em causa não são as mesmas, porque não derivariam dos mesmos factos e do mesmo direito e que não haveria aqui que dar cumprimento ao disposto naquele artigo 625.º do Código de Processo Civil.
Na verdade, tal como se referiu na decisão recorrida, «A função negativa do caso julgado é exercida através da exceção dilatória do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas (artigo 580.º n.ºs 1 e 2 do CPC), implicando a tríplice identidade a que se reporta o artigo 581.º, n.º 1 do CPC, a saber, os sujeitos, o pedido e a causa de pedir. Já a autoridade do caso julgado, por via da qual é exercida a sua função positiva, pode funcionar, independentemente, da verificação da aludida tríplice identidade, pressupondo, todavia, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida».
Deste modo, independentemente da forma como a mesma pretensão foi apresentada no processo, a verdade é que nem por isso ela deixa de ser a mesma e as especificidades que enquadram a forma como foi apresentada, não obstam à preclusão do indeferimento da pretensão do requerente e ao consequente preenchimento dos pressupostos do caso julgado decorrentes do artigo 625.º do Código de Processo Civil.

Importa que se tenha presente que o caso julgado na sua dimensão meramente processual – artigo 620.º do Código de Processo Civil - é uma exigência do conceito de processo e a necessidade de estabilização dos atos processuais do mesmo decorrente é essencial à realização das finalidades do processo.

4 – Carece igualmente de sentido a pretensão da recorrente de que estaríamos perante uma mero erro material do juiz suscetível de ser reparado, a todo o tempo, nos termos do artigo 614.º do Código de Processo Civil.

Com efeito refere, a recorrente que «a recorrente não tinha sido notificada da sentença que julgou deserta a instância quando foi proferido o despacho de 23-4-2018, pelo que o despacho anterior de 15-2-2018 lavra em inexatidão devida a lapso manifesto e evidente, e por isso o despacho de 23-4-2018 limita-se a corrigir esse mesmo lapso evidente, o que ocorreu oficiosamente e por iniciativa do Julgador», pelo que «O despacho de 23-4-2018 acha-se, pois, legitimado pela previsão do artigo 614.º do CPC que permite ao Julgador, a todo o tempo e mesmo depois do trânsito em julgado da decisão, proceder à retificação de erros materiais evidentes, em consagração do princípio constitucional da prevalência da (sã) justiça material sobre uma (deficiente) justiça formal.»

O art.º 613.º do Código de Processo Civil estabelece que «[p]roferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (n.º 1), -no entanto, «[é] lícito (…) ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes (n.º 2), sendo certo que «[o] disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se, com as necessárias adaptações, aos despachos».
Por outro lado, o n.º 1 do art.º 614.º permite a correção oficiosa, ou a requerimento de qualquer das partes, de erros materiais de escrita ou de cálculo ou quaisquer outras inexatidões devidas a omissão ou lapso manifesto.
E o n.º 3 estatui que «[s]e nenhuma das partes recorrer, a retificação pode ter lugar a todo o tempo».
Outrossim, o art.º 249.º do Código Civil refere que «(o] simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à retificação desta».

Como ensina Alberto dos Reis, em “Código de Processo Civil Anotado”, 5.°-132 a 134, e RLJ, 87.°, a propósito da distinção entre o erro material e o erro de julgamento:
«Há que distinguir, cuidadosamente, o erro material do erro de julgamento. O primeiro verifica-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da decisão não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real. No segundo caso, o juiz disse o que queria dizer, mas decidiu mal, decidiu contra a lei expressa ou contra os factos apurados. Está errado o julgamento. Ainda que o juiz logo se convença de que errou, não pode socorrer-se do art. 667.° para emendar o erro.
Por outras palavras: é necessário que do próprio conteúdo da decisão ou dos termos que a precederam se depreende claramente que se escreveu manifestamente coisa diferente do que se queria escrever: se assim não for, a aplicação do art. 667.° é ilegal, pois importa evitar que, à sombra da mencionada disposição, o juiz se permita emendar erro de julgamento, espécie diversa do erro material.
Mais particularmente, quanto ao erro de cálculo, importa salientar que este erro há-de também evidenciar-se através a decisão ou das peças que a precederam.
O caso de erro de cálculo pressupõe que o juiz escreveu o que quis escrever, mas devia ter escrito coisa diversa. Errou as operações do cálculo, e porque as errou chegou a resultado diferente do que chegaria se as operações estivessem certas. Aqui o erro material ainda será, na maior parte dos casos, mais palpável do que na hipótese de simples erro de escrita».

Atento o que resulta supra, no caso em apreço, no despacho de fls. 332 do apenso H proferido em 15.02.2018[3], o Mm.º Juiz da 1.ª instância considerou que a correspondência devolvida a fls. 340 do apenso D na sequência da notificação da decisão de 09.01.2015 do apenso H, dizia respeito ao mandatário da requerente AA e não ao mandatário da exequente e com base nisso decidiu que a mesma tinha sido notificada.
Não temos quaisquer elementos que nos permitam afirmar que o que declarou no despacho, a notificação da requerente, não corresponde à valoração que fez dos elementos que resultavam do processo e ao julgamento que dos mesmos fez.
Não podemos, pois, afirmar que se esteja perante um mero erro material revelado no próprio contexto da declaração (mais concretamente, pelo que resulta de fls. 340) e que, nessa situação seria suscetível de retificação nos termos do art.º 614.º, do Código de Processo Civil.

É verdade que em 03.04.2018, a requerente AA veio, a fls. 374-375 do apenso  D, juntar requerimento dando conta de que a notificação devolvida de fls. 340 foi dirigida ao mandatário da exequente e não a si ou ao seu mandatário, e que o Mm.º Juiz da 1.ª instância, dando-se conta do lapso cometido, proferiu despacho em 17.04.2018 (fls. 376 do apenso D) constatando que o despacho que declarou a deserção da instância não fora, afinal, cumprido na pessoa da então cabeça-de-casal AA, motivo pelo qual ordenou fosse aberta conclusão no apenso H a fim de ser ordenada a notificação da mesma, o que foi feito, e na sequência do que veio a ser proferido despacho neste apenso H em 23.04.2018 (fls. 333) ordenando a notificação da cabeça-de-casal do despacho que declarou a deserção da instância.

A verdade é que essa intervenção colide diretamente com o indeferimento da pretensão da requerente, decorrente do anterior despacho e que se estabilizara já no processo por não ter sido impugnado nos termos legalmente previstos.

Nenhuma censura merece, pois, a decisão recorrida quando considerou intempestiva a interposição do recurso de apelação,  uma vez que a recorrente, à luz do disposto no artigo 625.º do Código de Processo Civil  não pode aproveitar-se dos termos processuais decorrentes do despacho que lhe deferiu a pretensão de notificação da decisão que declarou a deserção da instância.
IV

Em face do exposto, acorda-se em negar a revista e em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Junta-se sumário do acórdão.

Lisboa, 17 de dezembro de 2019

António Leones Dantas (Relator)

Júlio Gomes

Ribeiro Cardoso

________________
[1] Correspondente ao art.º 740.º, na versão atual do referido diploma.
[2] Tenha-se também presente que a fls. 373 do apenso D, foi proferido despacho em 30.01.2018 sobre o aludido requerimento de 15.01.2018, que reza assim: “Resulta de fls. 340, a notificação do despacho que, no apenso H, declarou deserta a instância. O fato de a correspondência remetida para o domicílio profissional do Ilustre Mandatário ter sido devolvida, nada contende com a validade da notificação. Consequentemente, inexiste qualquer nulidade processual. Notifique.”
[3] Assim como o despacho de fls. 370 do apenso D proferido em 30.01.2018.