Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | JÚLIO GOMES | ||
Descritores: | DIREITO DE PROPRIEDADE AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DE PAI DE FAMÍLIA SINAIS VISÍVEIS E PERMANENTES USUCAPIÃO | ||
Nº do Documento: | SJ | ||
Data do Acordão: | 09/26/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA. | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL – DIREITOS REAIS / SERVIDÕES PREDIAIS / CONSTITUIÇÃO E EXERCÍCIO DAS SERVIDÕES. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1549.º, 1565.º, N.º S 1 E 2, 1566.º. | ||
Sumário : | I - A usucapião é um meio de aquisição originária da propriedade que retroage ao início da posse, pelo que quem adquire por usucapião não pode ficar vinculado a servidões criadas por contrato posterior no qual não foi parte. II - A servidão constituída por destinação do pai de família exige que (i) os dois prédios tenham sido do mesmo dono e que (ii), no momento da separação, existam, pelo menos em um deles, sinais visíveis e permanentes da serventia de um para com o outro – art. 1549.º do CC. III - Um tanque, uma mina e um rego instalados num prédio não são sinais de que a água captada e armazenada serve um outro prédio. IV - A utilização pelos réus da água da mina que desagua no tanque situado na propriedade da autora, pelo menos no período do Verão, durante três dias por semana, desde há mais de 20,30 e 50 anos, revela a existência de uma servidão constituída por usucapião que se restringe àqueles três dias por semana no período do Verão. V - Relativamente ao período do ano em que não existe servidão, procede a condenação dos réus a absterem-se da prática de qualquer acto que perturbe o direito de propriedade da autora sobre o referido prédio | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6.ª Secção) Processo 43/14.7TBMDB.G1.S1 I - Relatório AA instaurou a presente acção de processo comum contra BB e mulher, CC, pedindo que: A) Se declare e reconheça que a A. é dona e legítima possuidora dos prédios identificados no n.º 1 da petição inicial; B) Se declare e reconheça que a A. é dona e legítima possuidora da mina, respectiva água, caixas de captação de água, tubo condutor e tanque devidamente identificados na petição e integrados no prédio identificado em 1 al. c) daquele articulado; C) Se condenem os RR. a reconhecer e respeitar o direito de propriedade da A. sobre os aludidos imóveis e bens identificados em A) e B); D) Se condenem os RR. a absterem-se da prática de qualquer acto que perturbe o direito de propriedade da A. sobre os imóveis e bens referidos em A) e B) supra, nomeadamente, durante o período de inverno, abstendo-se de entrar no referido prédio rústico e na mina nele implantada. E) Declarar-se que não assiste aos RR. qualquer direito de propriedade ou outro, no período de Inverno, ou seja, de 22 de Setembro a 20 de Junho, nem sobre a mina, nem sobre a água proveniente da mina, nem sobre as caixas de captação de água, nem sobre o tubo condutor e tanque devidamente identificados na petição, de que a A. é proprietária. F) Se condenem os RR. no pagamento de indemnização no valor de 15,00 € (quinze euros), por cada dia de invasão e uso ilegítimo de todos esses bens, bem como de uma indemnização de 10,00 € (dez euros), diários, por danos morais, conforme o acima articulado, contabilizados desde Novembro de 2013 e enquanto o R. marido continuar a praticar esses actos. G) Se condenem os RR. no pagamento de uma indemnização à A. no valor de 200,00€ (duzentos euros) pelos prejuízos sofridos com a mencionada destruição das caixas de captação da água. H) Se condenem os RR. em juros e na sanção pecuniária compulsória referidos em 32.º da petição inicial. I) Se condenem os RR. em custas e procuradoria condigna. Os Réus apresentaram a contestação e deduziram reconvenção peticionando que se: a) Declare e reconheça que os RR. são donos e legítimos possuidores do prédio identificado em 5º da contestação; b) Declare e reconheça que os RR. são donos e legítimos possuidores da água da mina existente no prédio identificado no artigo 1º alínea c) da p.i., três dias por semana, às segundas, terças e quartas-feiras, desde domingo ao pôr-do-sol até quarta-feira ao pôr-do-sol, durante todo o ano, para irrigação do seu prédio identificado em 5º da contestação, e bem assim do direito de presa e de aqueduto para armazenamento e condução da respectiva água; c) Condene a reconvinda a ver reconhecido tal direito e a não mais perturbar, por qualquer modo, a posse, uso e fruição da água em causa; d) Fixe, a título de sanção pecuniária compulsória, uma indemnização de € 50,00 por cada dia ou fracção que decorra em que se verifique a turbação da passagem dos RR. no prédio da autora identificado no artigo 1.º alínea c) da p.i., para acesso quer à mina identificada em 18º, quer ao tanque referido em 30º, ambos da contestação; e) Condene a reconvinda a reparar os prejuízos causados aos reconvintes resultante da privação do uso da água em quantia a liquidar em execução de sentença. f) Condene a Ré nas custas e demais encargos do processo. Foi proferida sentença com o seguinte teor, na parte decisória: “ Nos termos e pelos fundamentos expostos, decido julgar a acção parcialmente procedente, em consequência do que, decido: 1 – Declarar e reconhecer a Autora dona e legítima possuidora dos prédios identificados no ponto A) dos factos provados; 2 – Declarar e reconhecer a Autora dona e legítima possuidora da mina, respectiva água, caixa de captação de água, tubo condutor e tanque que se encontram integrados no prédio referido no ponto A-c) dos factos provados; 3 – Condenar os Réus a reconhecerem e respeitarem o direito de propriedade sobre os imóveis e bens referidos em 1 e 2; 4 – Condenar os Réus a absterem-se da prática de qualquer acto que perturbe o direito de propriedade da Autora sobre os imóveis e bens referidos em 1 e 2, nomeadamente durante o período compreendido entre 22 de Setembro e 20 de Junho, inclusive, e, bem assim, abstendo-se de entrar no prédio referido em A-c) dos factos provados e na mina nele implantada; 5 – Declarar que, durante o período referido em 4, não assiste aos Réus qualquer direito, de propriedade ou outro, nem sobre a mina, nem sobre a água proveniente da mina, nem sobre as caixas de captação de água, nem sobre o tubo condutor e tanque referidos em 2; 6 – Condenar o Réu marido a pagar à Autora a quantia que se apurar em sede de incidente de liquidação de sentença, correspondente ao preço de reparação das caixas de captação de água referidas em 8º dos factos provados; 7 – Absolver os réus do demais peticionado. Mais decido, julgar o pedido reconvencional parcialmente procedente e, em consequência: 1 – Declarar e reconhecer os Réus/reconvintes donos e legítimos possuidores do prédio mencionado no ponto G) dos factos provados, condenando-se a autora a reconhecê-lo. 2 – Declarar e reconhecer a existência de um direito de servidão de utilização da água nascida no prédio da Autora referido em A-c) dos factos provados, a favor do prédio dos réus referido em G) dos factos provados, durante no período de Verão, compreendido entre 21 de Junho a 21 de Setembro, à razão de três dias por semana, mais concretamente às segundas, terças e quartas-feiras, desde domingo ao pôr do sol até quarta-feira ao pôr do sol, a que acresce o direito ao respectivo rego e ao depósito da água no tanque da “...”. 3 – Absolver a autora/reconvinda do demais peticionado em sede reconvencional. Considerando que ambas as partes reconheceram reciprocamente os direitos de propriedade que incidem sobre os prédios identificados em A) e G) dos factos provados, e que a autora/reconvinda admitiu o direito do prédio dos réus sobre as águas nos termos em que a reconvenção foi julgada parcialmente procedente, fixa-se as custas a cargo de autora e réus na proporção de 1/6 a cargo da primeira e 5/6 a cargo dos segundos (artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC)”. Inconformados os Réus recorreram, tendo a Autora contra-alegado. O Tribunal da Relação julgou parcialmente procedente a apelação e revogou parcialmente a sentença recorrida, tendo proferido decisão com o seguinte teor: Inconformada a Autora veio interpor recurso de revista, pedindo a revogação da decisão recorrida. Os Réus contra-alegaram pedindo, por seu turno, a manutenção do Acórdão recorrido. Fundamentação De facto Foram os seguintes os factos apurados nas instâncias:
De Direito O Acórdão recorrido considerou que porque os Réus Reconvintes não formularam um pedido subsidiário pedindo o reconhecimento de uma servidão de águas constituída por destinação do pai de família, mas apenas um pedido de reconhecimento de um direito de propriedade estava vedado ao Tribunal conhecer a existência dessa servidão e “declarar que os apelantes são titulares de um direito de servidão por não ter sido pedido” (f.414). Apesar disso, afirmou que “mostra-se constituída por destinação do pai de família uma servidão a favor dos apelantes sem limitação temporal” (f.417), muito embora tal reconhecimento não faça parte do segmento decisório, por não ter sido pedido pelos Réus Reconvintes. Sucede, no entanto, que a Autora na sua petição inicial formulou ao Tribunal o pedido de designadamente “declarar-se que não assiste aos Réus qualquer direito de propriedade ou outro, no período de Inverno, ou seja de 22 de Setembro a 20 de Junho, nem sobre a mina, nem sobre a água proveniente da mina, nem sobre as caixas de captação de água, nem sobre o tubo condutor e tanque devidamente identificados na petição, de que a Autora é proprietária”. Ou seja é do próprio pedido da Autora que resulta que o Tribunal pode – e deve – pronunciar-se sobre a existência não apenas de um direito de propriedade dos Réus, mas também de outros direitos, entre os quais se contam as servidões reais, mormente sobre a água proveniente da mina. Assiste, pois, razão aos Recorrentes quando defendem que o Acórdão recorrido deveria ter conhecido e decidido a questão da existência de uma eventual servidão a favor dos Réus. Antes de prosseguir sublinhe-se que a invocada – no seu pedido reconvencional – propriedade das águas em questão pelos Réus é questão que não se coloca no presente recurso. Com efeito, o Acórdão recorrido julgou o pedido reconvencional parcialmente procedente, mas apenas na parte em que declarou e reconheceu os Réus Reconvintes donos e legítimos possuidores do prédio mencionado no ponto G dos factos dados como provados, tendo absolvido a Autora Reconvinda quanto à parte restante do pedido reconvencional (cfr. pontos f) e h) do segmento decisório do Acórdão recorrido, f.420). Esta decisão de que os Réus não são proprietários das águas da mina existente no prédio identificado no ponto A dos factos provados não foi, de resto, objeto de recurso, já que os Réus concluem as suas contra-alegações, afirmando que “o douto acórdão recorrido não merece qualquer censura” (f.470). A existência de uma servidão foi afirmada pelo Tribunal de 1.ª Instância, que entendeu tratar-se de uma servidão contratual á luz do facto dado como provado em H). O Tribunal da Relação, muito embora tenha decidido que a questão da existência de uma servidão não podia ser objeto de decisão pelo Tribunal pronunciou-se pela existência de uma servidão por destinação do pai de família. A existência de uma servidão contratual deve ser rejeitada por várias razões. Não só é questionável se a declaração contida no contrato celebrado a 18.08.1978 é uma declaração de vontade, como é necessário ter em conta que a Autora adquiriu o seu prédio por usucapião como resulta do ponto I) dos factos dados como provados, tendo sido afirmado na escritura de 15/12/1995 que à data eram já possuidores do prédio há mais de vinte anos. Ora decorre do artigo 1288.º do Código Civil e do artigo 1317.º alínea c) que na usucapião o momento da aquisição da propriedade é o momento do início da posse. Por conseguinte a Autora é proprietário do prédio serviente de uma eventual servidão desde pelo menos 1975, e portanto desde data anterior ao referido contrato, o qual não a vinculará. Acresce que a usucapião é um meio de aquisição originária da propriedade (neste caso) não devendo quem adquire por usucapião ficar vinculado a servidões criadas por contrato. Existirá, então, uma servidão constituída por destinação do pai de família? É certo que está presente um dos seus requisitos, a saber, terem sido os dois prédios do mesmo dono (artigo 12.º dos factos dados como provados), mas verificar-se-ão os outros requisitos do artigo 1549.º do Código Civil? Este preceito exige que em um ou ambos os prédios pertencentes ao mesmo dono haja sinais visíveis e permanentes que revelem a serventia de um prédio para com outro (ou de uma fracção de um prédio para com outra fracção do mesmo prédio). Tais sinais hão-de existir, pois, no momento da separação e a sua subsistência posterior será havida como prova da servidão, “salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento”. Tais sinais hão-de pois ter existido no momento da separação e revelarem por si a existência do que atá a esse momento era uma serventia. Os sinais que vêm mencionados no presente processo são: - Uma mina para captação de água implantada no prédio da Autora (ponto C), a cerca de 10 metros da casa de habitação da Autora (ponto E), mina essa subterrânea e à qual se acede através de uma boca de mina, obra visível e permanente (ponto K), mina essa construída pela Autora e seus antecessores (ponto P 3.º) que utilizava a água dessa mina para rega e para abastecimento da casa de habitação, sobretudo quando não havia na freguesia rede pública de fornecimento de água (ponto P. 4.º) ; - Um tanque, situado no prédio da Autora, a cerca de trinta metros da boca da mina (ponto D) que existe há mais de 40 anos de forma visível e permanente (ponto M), onde são armazenadas as águas provenientes da mina; - Um rego (ponto F) cavado a céu aberto, que se estende pela confrontação nascente do prédio da Autora pelo menos ao longo de 100 metros (ponto O), terminando no caminho público que separa o prédio da Autora do prédio dos Réus (ponto P), sendo que só depois de 2009 é que foram colocados uma torneira e um tubo que conduz as águas armazenadas no tanque para o prédio propriedade destes, tubo colocado no leito do rego a céu aberto por onde anteriormente eram conduzidas as águas (ponto P 17.º e 18.º): Serão estes sinais suficientes para a constituição de uma servidão por destinação do pai de família? Resulta da letra do artigo 1549.º do Código Civil que os sinais podem existir apenas em um dos prédios. Não é, pois, obstáculo que os sinais estejam todos no prédio que seria o prédio serviente a existir servidão. Mas tais sinais hão-de ser suficientes para revelar a existência do que até ao momento da separação do domínio era uma relação de serventia de um prédio ou fracção relativamente ao outro prédio ou à outra fracção. Ora não resulta da existência de uma mina e de um tanque que servem o prédio ou fracção onde estão implantados qualquer relação de serventia com outro prédio ou com outra fracção, mesmo que o proprietário utilize as águas nos dois prédios (ou fracções de prédio), como efectivamente sucedia quando os prédios eram propriedade da mesma pessoa (ponto P 13.º). Um tanque e uma mina instalados em m prédio não são obviamente sinais de que a água assim captada e armazenada serve um outro prédio (recorde-se que a torneira e o tubo apenas foram instalados após 2009). Quanto ao rego não só não está provado que o mesmo existisse à data da separação, ou seja, por volta de 1975, como tratando-se de um rego a céu aberto que termina na via pública não seria um sinal permanente que permitisse concluir pela existência da serventia, podendo tratar-se, por exemplo, de uma aparência correspondente ao disposto no artigo 1558.º n.º 2. Em suma, um rego a céu aberto que termina na via pública não será suficiente para a constituição da servidão a favor de um outro prédio por não revelar a existência da referida serventia. Dos factos constantes dos autos resulta, no entanto, que se pode afirmar a existência de uma servidão constituída por usucapião, porquanto “os Réus utilizam a água da mina e que desagua no tanque situado na propriedade da Autora, pelo menos no período de Verão, desde 21 de Junho a 21 de Setembro, durante três dias por semana” (ponto J) e fazem-no nestes termos “desde há mais de 20, 30 e 50 anos” (ponto P 19.º). Simplesmente é face ao uso dado como provado que se terá que aferir o conteúdo da servidão, pelo que há que concluir que os Réus são titulares de uma servidão que se restringe a três dias por semana de 21 de Junho a 21 de Setembro. Uma questão conexa invocada pela Autora na petição inicial e novamente suscitada no seu recurso de revista (conclusão 15.ª) respeita ao pedido de condenação dos Réus a absterem-se da prática de qualquer acto que perturbe o direito de propriedade da Autora durante o período de Inverno (ou seja, de 22 de Setembro a 20 de Junho), abstendo-se de entrar no prédio da Autora e na mina nele implantada. É sabido que o exercício da servidão deve fazer-se de modo a causar o mínimo de prejuízo para o prédio serviente (artigo 1565.º n.º 2), pelo que muito embora o direito de servidão compreenda tudo o que é necessário para o seu uso e conservação (artigo 1565.º n.º 1) afigura-se razoável limitar o acesso dos Réus ao prédio serviente ao período do ano relativamente ao qual efectivamente existe o seu direito de servidão. Aliás, o próprio artigo 1566.º muito embora reconheça o direito do proprietário do prédio dominante de fazer obras no prédio serviente, afirma que tal direito deve ser exercido dentro dos poderes conferidos pelo artigo 1565.º e no tempo e pela forma mais convenientes para o proprietário do prédio serviente.
Custas do Recurso de Revista pelos Réus Lisboa, 26 de Setembro de 2017 Júlio Gomes – Relator José Rainho Graça Amaral
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