Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
589/14.7T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: RAIMUNDO QUEIRÓS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ATROPELAMENTO
PEÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
RESPONSABILIDADE OBJECTIVA
NEXO DE CAUSALIDADE
CULPA EXCLUSIVA
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
DIRECTIVA COMUNITÁRIA
DIRETIVA
Data do Acordão: 06/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE PELO RISCO / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / REVISTA EXCEPCIONAL.
Doutrina:
- ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 2.ª Edição, Almedina, p. 544;
- DÁRIO MARTINS DE ALMEIDA, Manual de Acidentes de Viação, 3ª edição, p. 154 e 155;
- FAUSTO DE QUADROS e ANA MARTINS, Contencioso da União Europeia, 2ª Edição, Almedina, p. 71 a 74;
- JOSÉ LUÍS CARAMELO GOMES, O Juiz Nacional e o Direito Comunitário, Almedina, p. 157;
- MARIA DA GRAÇA TRIGO, Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade por acidente de viação - Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo Lobo Xavier, Vol. II, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, p. 485 e ss.;
- MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, Vol. I, 9.ª Edição, ed. AAFDL, p. 392;
- PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª Edição, Coimbra, p. 519.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 503.º, N.º 1, 504.º, N.º 1, 505.º E 570.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 672.º, N.º 3.
Referências Internacionais:
- DIRECTIVA 72/166/CEE.
- DIRECTIVA 84/5/CEE.
- DIRECTIVA 90/232/CEE, DO CONSELHO DE 14 DE MAIO DE 1990.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 20-01-2009, IN CJSTJ, TOMO I/2009, P. 62;
- DE 12-05-2011, PROCESSO N. º 1098/06.3TBCBR.C2.S1, IN SASTJ, CIVEL 2011, WWW.STJ.PT;
- DE 10-01-2012, PROCESSO N.º 308/2002.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 10-05-2012, PROCESSO N.º 4249/05.1TBVCT.G2.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 17-05-2012, PROCESSO N.º 1272/04.7TBGDM.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 11-07-2013, PROCESSO N.º 97/05.7TBPVL.G2.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 27-03-2014, PROCESSO N.º 136/07.7TBTMC.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 01-06-2017, PROCESSO N.º 1112/15.1T8VCT.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 11-01-2018, PROCESSO N.º 5705/12.0TBMTS.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 13-12-2018, PROCESSO N.º 974/17.2T8GMR.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 11-04-2019, PROCESSO N.º 622/08.1TVPRT.P2.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Jurisprudência Internacional:
ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (TJUE):


- ACÓRDÃO AMBRÓSIO LAVRADOR E FERREIRA BONIFÁCIO, PROCESSO N.º C-409/09, DE 09-06-2011, IN HTTP://CURIA.EUROPA.EU/JURIS/DOCUMENT/DOCUMENT.JSF?TEXT=&DOCID=124881&PAGEINDEX=0&DOCLANG=PT&MODE=LST&DIR=&OCC=FIRST&PART=1&CID=1769095;
- PROCESSO C-229/10, IN HTTP://CURIA.EUROPA.EU/JURIS/DOCUMENT/DOCUMENT.JSF?TEXT=&DOCID=135743&PAGEINDEX=0&DOCLANG=PT&MODE=LST&DIR=&OCC=FIRST&PART=1&CID=1770363.
- ACÓRDÃO CILFIT, DE 06-10-1982, PROCESSO N.º 283/81.
Sumário :

I- A questão da concorrência entre a culpa do lesado (arts. 505º e 570º do CC e a responsabilidade por riscos próprios do veículo (art. 503º, nº 1, do CC) constitui uma das mais complexas e controversas questão da jurisprudência civilista nacional.

II- O regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505º e 570º do CC deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre a culpa do lesado e os riscos do veículo causador do acidente.

III - Porém, tal não implica que, por si só e de forma imediata, se responsabilize o detentor efectivo do veículo (e respectiva seguradora) pelos danos sofridos pelo lesado, implicando sim que, em função da factualidade subjacente a cada caso concreto, se pondere a medida da contribuição do lesado, culposa ou não culposa.

IV- A responsabilidade objectiva não prescinde do nexo de causalidade entre o resultado danoso e a sua causa reportada à actividade que implica o risco.

V - Num caso como o dos autos em que ficou provado que o acidente foi causado, unicamente, pela conduta culposa do Autor lesado, pessoa menor, mas civilmente imputável, que, enquanto peão, atravessou, de forma súbita e inesperada, em passo de corrida, uma via de trânsito, não utilizando a passadeira, situada a 3 metros de distância, a indemnização, por parte da seguradora, deve ser totalmente excluída.

VI- Os arts. 503.°, n.° 1, 504.°, n.° 1, 505.° e 570° do CC, quando interpretados no sentido de que a existência de culpa exclusiva ou parcial da vítima pode fundamentar a exclusão ou redução da indemnização, por lesões sofridas em consequência de acidente de viação, não colidem com o Direito Comunitário, designadamente com a Primeira Directiva Directiva (72/166/CEE), com a Segunda Directiva (84/5/CEE) e com Terceira Directiva (90/232/CEE), relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de automóveis, por competir à legislação do Estado-membro regular, no seu direito interno, o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos automóveis. 

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. Relatório

No dia 30 de Dezembro de 2014, na Instância Central da Póvoa de Varzim, Comarca do Porto, AA, representado por BB e CC propôs acção declarativa comum contra a Companhia de Seguros DD, SA pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe o montante global de € 206.074,21, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais, despesas e assistência de terceira pessoa.

  Em síntese, para fundamentar as suas pretensões indemnizatórias contra a ré, alega que no dia 23 de Novembro de 2013, pelas 17h45, na Rua ........, ........, concelho de Matosinhos, quando atravessava aquela via numa passadeira, foi colhido pelo veículo de matrícula 00-00-00, conduzido por EE, a velocidade superior a sessenta quilómetros por hora, achando-se a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com a intervenção daquele veículo transferida mediante contrato de seguro para a ré e resultando desse embate os danos que pretende ver indemnizados nestes autos.

  Citada, a ré contestou admitindo a existência do contrato de seguro invocado pelo autor e impugnou a descrição do acidente feita na petição inicial, imputando a ocorrência do sinistro ao atravessamento inopinado da via pelo autor, em passo de corrida, fora de qualquer passadeira para peões, quando a menos de três metros do local do sinistro se achava uma, sem olhar para o trânsito, circulando o veículo PF a velocidade inferior a quarenta quilómetros por hora, verificando-se o embate na lateral esquerda do veículo, junto à porta do condutor, pugnando assim pela total improcedência da acção.   

Com data de 04 de Julho de 2018 foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo a ré dos pedidos que contra a mesma foram deduzidos.

  Em 06 de Agosto de 2018, inconformado com a sentença, AA interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto.

Este Tribunal, por unanimidade e idêntica fundamentação, julgou o recurso totalmente improcedente e, em consequência, confirmou a decisão recorrida.

Deste acórdão veio o Autor interpor recurso de revista excepcional, por particular relevância jurídica e social, para este Supremo Tribunal, concluindo as suas alegações do seguinte modo:

1. O Acórdão recorrido julgou improcedente o recurso da matéria de facto, mantendo na íntegra o decidido em primeira instância (o que o recorrente não concorda) e, apreciando a aplicação da responsabilidade pelo risco próprio da condução de veículos, aplicou erradamente, as disposições relativas à exclusão da responsabilidade quando seja atribuída culpa exclusiva do lesado (que no caso, à data do acidente, era menor, com apenas 10 anos de idade).

2. O acidente de viação, latu sensu, pode enquadrar-se quer na responsabilidade civil por factos ilícitos (extracontratual) pela clara violação de um direito de outrem – direito á integridade física e direito a vida -, quer na responsabilidade pelo risco por acidentes causados por veículos.

3. Os casos semelhantes, que ocorrem nas estradas portuguesas e as decisões díspares, quer seja pela responsabilidade civil pelo risco (que só excepcionalmente é aplicada), quer seja pela extrema rigidez da interpretação da conduta dos lesados menores, conduzem a uma enorme necessidade de se resolver com carácter definitivo a matéria em causa (ou no mínimo conceder algumas linhas orientadoras).

4. Na doutrina, numa tendência tradicionalista, Antunes Varela e Pires de Lima defendiam que, não poderia, no instituto da responsabilidade pelo risco, existir um concurso de culpas entre lesado e lesante, sendo certo que, a culpa do lesado excluiria automática e definitivamente a culpa do lesante, aplicando à letra o artº. 570º do CC.

5. Já numa tendência progressista e atual, Brandão Proença, Calvão da Silva e Sinde Monteiro, reiteram o concurso de culpas entre lesante e lesado, concedendo uma perspectiva mais favorável ao lesado, tal como a 3ª Directiva Comunitária de 2002.

6. A jurisprudência tem-se mantido presa à teoria tradicional, alicerçando-se e justificando a sua atuação até, com um reenvio prejudicial do Tribunal de Justiça da União Europeia, que veio deixar ao critério dos Estados-Membros a limitação ou exclusão da responsabilidade pelo risco do lesante consoante o lesado tenha ou não contribuído para a produção do acidente de viação.

7. A exclusão da responsabilidade do lesante tem carácter exactamente excepcional, pelo que deveria ser precisamente aplicado nessa medida, e não como regra.

8. Torna-se essencial dirimir a questão da exclusão da responsabilidade do lesante em detrimento da culpa (quase incontestável) do lesado considerando a crescente sinistralidade rodoviária.

9. O tema em apreço reveste-se de extrema importância social (de modo a que, os representantes legais dos menores não sejam surpreendidos pelas decisões proferidas, com a culpa do lesado e irresponsabilidade do lesante) e importância jurídica, por ser um tema frequentemente julgado e decidido nos nossos Tribunais, mas estes, salvo melhor opinião, mantêm-se presos a doutrinas conservadoras, sem qualquer conexão com a sociedade atual.

10. O Tribunal a quo não deveria ter decidido a culpa exclusiva do recorrente quando, pela aplicação dos critérios de um bom pai de família (artº. 487º, nº2 do CC), o condutor do veículo lesante agiu imprudentemente, pois o mesmo admitiu no seu depoimento que viu duas sombras a aproximarem-se da faixa de rodagem.

11. O julgador não deverá somente afastar a responsabilidade do lesante, como se não fosse, essa mesma a sua posição perante os factos – de quem com dolo ou mera culpa violou o direito de outrem - e tratando-o como vítima.

12. Deveria entender-se que, o lesante com a direcção efetiva de um veículo, estava obrigado a tomar medidas de precaução e cuidado, independentemente do local onde circulava e de quais as regras estradais ali impostas, por se encontrar na direcção de um objecto que por si só é perigoso.

13. A contribuição do lesante deverá ser sempre ponderada, segundo as suas características pessoais, e não somente o seu estado de lesado, até porque, a culpa pressupõe a capacidade natural para prever os efeitos e medir o valor dos seus actos e que o agente agiu em desacordo com aquele juízo, pela sua capacidade intelectual e volitiva sabia que deveria agir de certo modo, mas agiu conscientemente de modo contrário.

14. A actuação infeliz do recorrente, criança, não foi por si, idónea para a ocorrência do acidente e o veículo automóvel foi para tal indiferente, isto é o mesmo que, dizer que, o veículo não tem uma típica aptidão para a criação de riscos e que, em consequência, não contribuiu para o mesmo acidente, legalmente previsto no artº. 503º do CC.

15. O condutor, cuja atuação pode ser apreciada segundo um bom pai de família, deveria ter tido um especial dever de cuidado, atenção, precaução e prudência, pois conhecia o local, apercebeu-se de duas crianças (duas sombrinhas de duas cabeças) com intenção de atravessar a faixa de rodagem, existia uma passadeira, tinha trânsito e estava num entroncamento e não podia ignorar a imprevisibilidade do comportamento das crianças, até porque se tratava de uma zona de edificações.

16. O aresto do TJUE permitindo que os Estados-membros limitem ou excluam a indemnização quando haja culpa do lesado na produção do acidente, não revogou a 3ª Directiva Comunitária, analisada pelo TJUE no caso Elaine Farrell, e que é bem clara, quanto à limitação e exclusão da responsabilidade, impedindo que, um direito nacional exclua ou limite de modo desproporcionado a indemnização de um passageiro, pelo simples facto de ter contribuído para o evento lesivo.

17. Os Tribunais nacionais estão a arrogar-se do cumprimento da decisão do TJUE de 2011 ao excluir as indemnizações aos lesados, sem ponderação nem proporcionalidade, como é exigida pela 3ª Diretiva Comunitária, salvo melhor entendimento.

18. A interpretação do art.º 505.º do CC pela qual, a mera culpa ou mera contribuição do lesado para a produção do dano, exclua por completo a responsabilidade do condutor pelo risco, prevista no art.º 503º do CC, mesmo que não haja responsabilidade subjectiva, viola a 3ª Diretiva Comunitária de 2002.

19. O Acórdão recorrido ao decidir como fez, violou o artº. 503º e 570º do CC, as regras impostas pela 3ª Directiva Comunitária de 2002 (que não foi revogada nem alterada pelo aresto do TJUE de 2011, como resulta do nosso modesto entendimento).

A Ré não contra-alegou.

II- Apreciação do Recurso

Objecto do Recurso.

Os autos foram submetidos à Formação a que alude o artº 672, nº 3 do CPC, a qual admitiu a revista excepcional.

Questão Prévia

No acórdão da formação de apreciação preliminar, aludido no precedente relatório, referiu-se que “(…) O A. veio interpor recurso de revista excecional invocando tanto o relevo social como o relevo jurídico da questão de direito essencial relacionada com a concorrência entre a culpa do lesado e o risco da circulação automóvel.

Tal questão convoca normas de direito nacional e da União Europeia; por outro é suscitada num caso que emerge de um acidente de viação, em que interveio o A., que era menor.

A matéria tem sido abordada em diversos acórdãos dos tribunais e até deste Supremo Tribunal de Justiça. Também já foi submetida ao Tribunal de Justiça da União Europeia que, em diversos arestos, concluiu que a matéria deve ser apreciada essencialmente em face do direito interno.

Malgrado a conformidade das instâncias, verifica-se que a questão de direito relevante para a apreciação do litígio ainda está longe da necessária estabilidade que confira segurança na aplicação do regime jurídico da responsabilidade civil, especialmente quando estão em causa acidentes, como o dos autos, com intervenção de menores ou, em geral, de peões.

O grau de sinistralidade rodoviária com atropelamento de peões, acrescenta relevo social a uma intervenção do Supremo Tribunal de Justiça que possa sedimentar a solução jurídica quando, como ocorre no caso presente, a responsabilidade é assacada diretamente à Seguradora do veículo interveniente no acidente.

São, assim, notórios quer o relevo jurídico, quer o relevo social da questão, nos termos do art. 672°, n.º 1, als. a) e b), do CPC, justificando-se plenamente o acesso ao terceiro grau de jurisdição”.

Com a fundamentação citada, a Formação admitiu o recurso de revista excepcional.

Vejamos:

Tem-se vindo a entender, neste Supremo Tribunal de Justiça, que, nos casos de admissão excepcional da revista, “(…) os poderes cognitivos da conferência julgadora circunscrevem-se às questões suscitadas no recurso relativamente às quais foi, em antecedente acórdão da formação de apreciação preliminar, decidido que se verificavam um ou alguns dos pressupostos específicos que, para aquele efeito, são enunciados no n.º 1 do artigo 672.º do Cód. Proc. Civil. É que, se assim não fosse, afrontar-se-ia o cariz restritivo da admissibilidade da revista subjacente à instituição da dupla conforme e contornar-se-ia o respectivo regime legal. Consequentemente, o objecto do recurso, assim delimitado, não abarca quaisquer outras questões que, cumulativa e paralelamente, hajam sido enunciadas na revista (…)”[1].

No caso vertente, o recorrente, na revista excepcional interposta (cfr. conclusões 10 a 13 e 15), enunciou, além da questão atinente à concorrência entre a culpa do lesado e o risco da circulação automóvel, uma linha argumentativa destinada a destacar, por apelo à prova produzida, a culpa do condutor do veículo lesante como fundamento da responsabilização da recorrida.

Ora, não tendo sido reconhecida, relativamente a essa outra questão, a verificação de qualquer um dos pressupostos de que depende a admissibilidade da revista excepcional, há que considerar que a mesma está excluída do âmbito da revista, atento o cariz definitivo daquele aresto (n.º 1 do artigo 620.º e n.º 4 do artigo 672.º, ambos do Código de Processo Civil). Outrossim resulta da factualidade provada, a qual não pode ser alterada por parte deste STJ (art.º 682, nº 2do CPC).

Impõe-se, em consonância, rejeitar o conhecimento desse segmento do objecto da revista.

 

Questão a decidir:

Repercussão da culpa do lesado na responsabilidade objectiva do lesante.

 Fundamentação

Factos provados:

1. AA (ora autor) nasceu no dia 11/06/2003 e é filho de BB e CC.

2. A responsabilidade civil por danos emergentes de acidente de viação resultantes da circulação do veículo 00-00-00 estava transferida para a DD Seguros, S. A. (ora ré), através da apólice n.º 00000000 que estava vigor em ../../... (data em que ocorreu o acidente).

3. No dia 23 de Novembro de 2013, cerca das 17:45 horas, na Rua ........, no ........, concelho de Matosinhos, ocorreu um embate entre o veículo automóvel de matrícula 00-00-00, conduzido por EE, e AA (ora autor).

4. Nas circunstâncias referidas em 3., o veículo 00-00-00 circulava na Rua ........, no sentido Norte/Sul, em direcção à A28, pela metade direita da faixa de rodagem atento o seu sentido de marcha.

5. Momentos antes do embate, o autor encontrava-se no interior do veículo dos seus pais, onde também se encontrava a sua mãe.

6. O qual estava estacionado na Rua ........, do lado direito da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha que era o sentido Sul/Norte ou A28/....., parcialmente ao nível do entroncamento da Rua ........ com a Rua ......., seis metros após a passadeira para peões referida em17., atento o sentido Sul/Norte.

7. O autor saiu do interior do veículo desacompanhado.

8. Saiu pela porta traseira direita do veículo onde se encontrava.

9. E, contornando a traseira desse veículo, deu início à travessia da rua, da esquerda para a direita atento o sentido em que seguia o veículo 00-00-00, em passo de corrida, sem olhar previamente para o trânsito que circulava no sentido Norte/Sul.

10. No momento em que o veículo 00-00-00 estava a passar ao lado do veículo estacionado do qual o menor saíra.

11. O autor embateu contra a lateral esquerda do veículo 00-00-00.

12. O embate ocorreu 3 metros antes, considerando o sentido Norte/Sul, da passadeira para peões referida em 17.

13. A estrada em que o veículo 00-00-00 efectuava o trajecto é de sentido único, sendo de dois sentidos no local onde se deu o atropelamento (quando a Rua ........ entronca com a Rua .......).

14. O local onde ocorreu o acidente situa-se dentro de uma localidade, sendo ladeado por habitações.

15. A Rua ........, no local onde ocorreu o acidente, configura uma recta com o piso em bom estado, sendo que a visibilidade, na data e hora do acidente, era boa.

16. Na Rua ........, imediatamente após o entroncamento com a Rua ....... considerando o sentido Norte/Sul, existia à data do embate uma passadeira para peões.

17. Essa passadeira estava pintada no pavimento com rectângulos longitudinais brancos, havendo sinalização vertical informando a existência dessa passagem para peões.

18. No local onde o autor atravessou a rua não existia qualquer passadeira para peões.

19. Após o acidente, o autor foi conduzido de ambulância para o Hospital de S. João, no Porto, onde foi assistido na Urgência Pediátrica desse Hospital e onde foram efectuados vários exames.

20. O autor foi transferido nesse mesmo dia - ../../... - para a Unidade de Ortopedia do Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, onde ficou internado até ../../..., data em que teve alta hospitalar.

21. Em consequência do acidente, o autor sofreu fractura da tíbia e do perónio da perna direita; não fazendo carga no solo durante 30 dias; tendo dificuldades na deambulação, que se mantiveram até serem retiradas as imobilizações gessadas (em Março de 2014).

22. No dia 25/11/2013, no Hospital de Pedro Hispano, o autor foi submetido a uma intervenção cirúrgica para redução aberta de fratura da tíbia e perónio, com fixação interna, tendo sido colocadas duas varetas na perna direita e tala engessada até à virilha.

23. Alguns dias após a alta hospitalar de ../../..., o autor estava com dores na perna direita, tendo sido levado ao Hospital de Pedro Hispano, onde lhe foi aberto o gesso e encontrada uma ligeira ferida de pressão no calcanhar, o que obrigou a diversos curativos e pensos apropriados.

24. Em consequência do acidente o aqui autor tem sido seguido em consultas externas de Ortopedia e em enfermagem, no Hospital Pedro Hispano em Matosinhos, e recorreu por várias vezes ao Centro de Saúde de ......

25. O autor teve alta dos serviços médicos em 11/03/2014, após remoção das imobilizações gessadas.

26. O autor efectuou tratamentos de fisioterapia desde Março de 2014 até Maio de 2014, no Hospital Pedro Hispano.

27. O autor sofreu anestesias, foi submetido a vários exames e análises.

28. À data do acidente, o autor era estudante, frequentando o 5.º ano de escolaridade, na Escola EB 2,3 de ......

29. Em consequência do acidente o autor esteve impedido de frequentar as aulas, desde ../../... até 30/11/2013.

30. Desde ../../... até à retirada das imobilizações gessadas, em Março de 2014, o autor teve necessidade da ajuda dos pais para as suas tarefas básicas do dia a dia, nomeadamente, fazer a sua higiene pessoal, vestir-se e calçar-se.

31. A data da consolidação médico-legal das lesões sofridas em consequência do acidente é fixável em ../../...

32. O período de défice funcional temporário total em consequência do acidente é fixável num período de 7 dias.

33. O período de défice funcional temporário parcial em consequência do acidente é fixável num período de 592 dias.

34. O período de repercussão temporária na atividade profissional total em consequência do acidente é fixável num período de 7 dias.

35. O período de repercussão temporária na atividade profissional parcial em consequência do acidente é fixável num período de 592 dias.

36. Em consequência do acidente, o autor é portador de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 1%.

37. As dores sentidas pelo autor em consequência do acidente são quantificáveis no grau 4, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

38. O dano estético permanente em consequência do acidente é quantificável no grau 1, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

39. Em consequência das lesões provocadas pelo acidente, o autor teve dores na perna direita, bem como padeceu de dores e sofrimento provocados pelos materiais que lhe foram colocados para tratamento das lesões causadas pelo acidente.

40. Devido às lesões sofridas em consequência do acidente e aos tratamentos a que foi submetido, o autor sofreu limitações na mobilidade; ferimento no calcanhar, o que obrigou a diversos curativos e pensos apropriados; durante 30 dias não pôde fazer carga no solo; e teve dificuldade na deambulação.

41. Antes do acidente, o autor participou numa atividade extracurricular na qual teve três sessões de treino semanais, durante seis meses, para examinar a eficácia de um programa de exercício centrado no futebol, na aptidão física, composição corporal e em indicadores cardio-metabólicos e oxidativos; tendo o autor obtido a classificação de muito bom em todos os momentos avaliativos.

42. O grande sonho do autor era seguir a carreira profissional de futebol.

43. O autor era considerado um bom jogador e o futebol era a sua paixão.

44. Em consequência do acidente, o autor viu-se privado, temporariamente, da prática de desporto, devido às sequelas, dores e limitação de movimentos com que ficou após o acidente.

45. Devido ao acidente, o autor sofreu transtornos, desgosto, inquietação e angústia; padeceu de incómodos e aborrecimentos vários devido às deslocações que teve de efectuar e aos tratamentos e sessões de recuperação funcional a que teve de se sujeitar, nomeadamente a fisioterapia; sofreu múltiplas, frequentes e intensas dores, quer na altura do acidente, quer posteriormente com a intervenção cirúrgica e consequentes tratamentos; bem como, ainda actualmente sofre.

46. O autor sofreu um enorme susto com o acidente.

47. Em consequência do acidente e dos tratamentos a que foi submetido, na perna direita, o autor ficou com duas cicatrizes rosadas ao nível do terço superior da face anterior da perna, não dolorosas à palpação e não aderentes aos planos profundos, ambas com 1,5 por 0,2 cm; e uma cicatriz ao nível da face medial do terço inferior da perna, ligeiramente acima do maléolo interno, ligeiramente dolorosa à palpação e não aderente aos planos profundos, com 1 cm de diâmetro.

48. Em consequência do acidente e dos tratamentos a que foi submetido, o autor ficou a padecer de atrofia de 1 cm da coxa direita em relação à coxa contralateral; atrofia de 1 cm da perna direita em relação à perna contralateral; encurtamento do membro inferior direito de 0,5 cm em relação ao membro contralateral; os eixos mecânicos dos membros inferiores interceptam os joelhos ao nível dos pratos mediais, traduzindo ligeira angulação em varo, de forma mais notória à esquerda (ângulos dos eixos mecânicos femorotibiais de 3.º à direita e 4.º à direita); há sinais de fractura da distal da tíbia e perónio direitos, sem significativo desalinhamento.

49. Devido às sequelas provocadas pelas lesões derivadas do acidente, o autor sente dores na perna direita quando ocorrem alterações climatéricas.

50. O autor gastou a quantia de € 74,21 em despesas médicas/medicamentosas para fazer face às lesões sofridas com o acidente.

III- O Direito

Como é sabido, a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos assenta na culpa do agente, do que resulta que, em princípio, só está obrigado a indemnizar quem agiu com culpa. A doutrina tradicional inspirou-se totalmente no conceito de culpa, pelo que o lesado só poderia ressarcir-se quando os danos, provindos de facto ilícito, fossem imputáveis à conduta culposa de terceiro (cfr n.º 1 e n.º 2 do artigo 483.º do Código Civil).

No entanto, esta concepção, da responsabilidade baseada exclusivamente na culpa (responsabilidade subjectiva), começou a ser posta em causa perante o mundo moderno fortemente industrializado e tecnológico, criador de actividades perigosas e de riscos potencialmente causadores de danos. Passou a entender-se que as necessidades sociais de protecção e segurança têm de se sobrepor às concepções de justiça alicerçadas no plano da actuação individual. Assim, ao lado da responsabilidade subjectiva, que continua a desempenhar um amplo papel, surgiu a ideia de uma responsabilidade objectiva, que veio associada inicialmente a uma ideia de risco derivada de certas actividades ou sectores. Uma responsabilidade em que se prescinde do elemento da culpabilidade, sendo suficiente a existência de uma relação causal entre o facto e o dano. Foi sobretudo no domínio dos acidentes de viação e de trabalho, onde se sentiu necessidade de reparação do dano independentemente da culpa do agente. 

 Um dos casos em que se prescinde da averiguação da culpa do lesante é, justamente, a responsabilidade pelo risco. O risco é um título de imputação de danos limitado à esfera de actuação de quem lhe dá azo ou que dela retira proveito. Quem aproveita um exercício ou uma actividade que comporta riscos deve suportar a desvantagem dos danos que essa actuação causar, de acordo com o princípio de justiça distributiva ubi commoda ibi incommoda.

Os acidentes causados por veículos são um dos campos de actuação da responsabilidade objectiva (cfr. n.º 1 do artigo 503.º do Código Civil).

Porém, atenta a dinâmica do acidente rodoviário em causa nestes autos, impõe-se apurar se a responsabilidade objectiva do condutor do veículo segurado pela recorrida se pode ter por integralmente excluída com base na contribuição causal do lesado para a eclosão do sinistro e, consequentemente, para os danos por ele sofridos, nos termos conjugados no artigo 505.º do Código Civil.

Importa aqui precisar que a alusão à culpa do lesado visa apenas determinar se os danos advindos do acidente são causalmente atribuíveis à sua conduta. Trata-se, em suma, de saber se esses danos devem ser “(…) juridicamente considerados, não como um efeito do risco próprio do veículo, mas sim como consequência do facto praticado pela vítima (…)[2]”. Não está, pois, em causa a imputação subjectiva dos factos, isto é, a culpa em sentido técnico-jurídico, tal como vem delineada no artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil.

Tradicionalmente[3], preconizava-se o entendimento de que, apurando-se que o acidente se devera a culpa do lesado, mostrava-se inapelavelmente excluída a responsabilidade objectiva do lesante. Além de ser o resultado da interpretação literal do preceituado no artigo 505.º, sustentava-se que a adopção de solução diversa agravaria, intoleravelmente, a situação de quem detinha a direcção efectiva do veículo em situações em que este em nada contribuiu para o acidente e que não tinha sentido que a culpa efectiva do lesado fosse tratada diversamente na responsabilidade pelo risco e na responsabilidade com culpa presumida.

Hoje em dia[4], tem sido, porém, preconizada uma interpretação actualista do disposto no artigo 505.º do Código Civil, nos moldes da qual se admite a concorrência entre a culpa do lesado e o risco do veículo, desde que o acidente apresente ainda uma conexão significativa com os riscos próprios do veículo. Estriba-se este entendimento na necessidade de adequar a letra daquele preceito aos dias de hoje, que são pautados pela massificação do tráfego rodoviário, e na ideia de socialização do risco com a inerente protecção dos usuários da estrada que se encontram mais desprotegidos, em consonância com os propósitos das Directivas Europeias sobre Seguro Automóvel.

 No entanto, como se observou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Julho de 2013 – proferido no processo n.º 97/05.7TBPVL.G2.S1 e acessível em www.dgsi.pt – “A responsabilidade objectiva não prescinde da consideração de uma actividade que para ser perigosa deve ser apta a causar danos mesmo que não haja culpa, importando que esse dano se inscreva, senão exclusivamente, pelo menos em larga medida, no círculo de actividade geradora do risco, no caso nos riscos próprios do veículo esteja ou não em circulação, não se prescindindo do nexo de causalidade entre o resultado danoso e a sua causa reportada à actividade que implica o risco”. Ou seja, deve valorar-se, em cada situação concreta, se a actividade geradora de risco foi, ainda que minimamente, causa adequada do dano.

Deste modo, a responsabilidade apenas será de excluir quando o acidente for exclusivamente imputável ao lesado.

Perante estes ensinamentos, vejamos a factualidade:

Resulta dos factos provados que o recorrente (que era menor à data dos factos – artigo 122.º do Código Civil – mas já civilmente imputável – cfr. n.º 2 do artigo 488.º do mesmo diploma, a contrario) saiu do interior de um veículo automóvel estacionado em que se encontrava com a sua mãe e, contornando a traseira deste, iniciou, sem olhar previamente para o trânsito que circulava no sentido Norte/Sul, em marcha de corrida, o atravessamento da via em que seguia o veículo automóvel de matrícula 00-00-00 (segurado pela recorrida).

 Ao fazê-lo, o Autor acabou por embater na parte lateral do veículo automóvel de matrícula 00-00-00.

O embate ocorreu a 3 metros de distância de uma passadeira para peões.

A rua ........, local onde ocorreu o acidente, configura uma recta com piso em bom estado, sendo que, na data e hora do acidente, a visibilidade era boa.

A valoração do circunstancialismo fáctico referido evidencia que o sinistro não pode, seja em que medida for, ser atribuído aos riscos próprios do veículo segurado pela recorrida.

Trata-se de um caso em que o lesado, ora recorrente, invadiu, inopinada e imprevistamente, a faixa de rodagem do veículo, indo embater na sua lateral. Com efeito, provou-se que o lesado atravessou a rua, fora da passadeira, em passo de corrida, surgindo, repentinamente, por detrás do automóvel donde saíra.

Assim, da factualidade provada resulta que o acidente se deveu à actuação do lesado, devido ao seu atravessamento súbito da via onde circulava o veículo automóvel 00-00-00, e fora da passadeira, em violação do disposto no artº 101º, nº 1 e 3 do Código da Estrada.

Por outro lado, apreciando os factos provados, apresenta-se como segura a conclusão de que a mera intervenção do veículo automóvel no acidente não representou, no caso em apreço, um factor de risco concreto, determinante e causal da eclosão do mesmo.

Para que se pudesse, com propriedade, conjecturar o entendimento mais progressista sobre a questão (socialização do risco), seria necessário alegar e demonstrar factos (o que não foi feito[5]) dos quais resultasse um efectivo aporte de risco adveniente da circulação daquela viatura na via pública. A mera alusão à aptidão típica de um automóvel para a criação de riscos (cfr. conclusão 14.ª) revela-se manifestamente insuficiente neste contexto

Nessa medida, é de considerar que, de acordo com o critério da causalidade adequada[6], o comportamento do lesado constituiu causa adequada, suficiente e única da eclosão do sinistro. Na verdade, a conduta desatenta e nada cautelosa do lesado foi a causa única e exclusiva do acidente e dos respectivos danos.

Assim, temos como seguro que os danos verificados no acidente são exclusivamente imputáveis à própria vítima (não se constituindo, paralela ou adicionalmente, como um efeito do risco próprio da circulação do veículo)[7], o que determina a exclusão da responsabilidade objectiva.

Sustenta ainda o recorrente que a adopção de uma interpretação eivada da ponderação e proporcionalidade exigidas pela Terceira Directiva (Directiva 90/232/CEE do Conselho de 14 de Maio de 1990), conduzirá a diferente solução.

Vejamos.

Conforme consta do acórdão recorrido, o Tribunal de Justiça da União Europeia[8] já teve, em sede de reenvio prejudicial suscitado por este Supremo Tribunal de Justiça, a oportunidade de se pronunciar sobre a questão, tendo afirmado o seguinte:

«(…) 31. Há que salientar que, no litígio no processo principal, diferentemente das circunstâncias que deram origem aos acórdãos, já referidos, Candolin e o. e Farrell, o direito à indemnização das vítimas do acidente é afectado não devido a uma limitação da cobertura da responsabilidade civil pelo seguro operado por disposições em matéria de seguro, mas devido a uma limitação da responsabilidade civil do condutor segurado, por força do regime de responsabilidade civil aplicável.

32. A este respeito, resulta da decisão de reenvio que os artigos 503.° e 504.° do Código Civil português prevêem uma responsabilidade objectiva em caso de acidente de viação, mas que, em conformidade com o artigo 505.° deste código, a responsabilidade pelo risco prevista no artigo 503.°, n.° 1, do referido código é excluída quando o acidente for imputável à vítima. Além disso, quando um facto culposo da vítima tiver concorrido para a produção ou o agravamento dos danos, o artigo 570.° do Código Civil português prevê que, com base na gravidade desse facto, a referida pessoa pode ser total ou parcialmente privada de indemnização.

33. Por outras palavras, a legislação nacional aplicável no âmbito do litígio no processo principal só afasta a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo envolvido no acidente, num contexto como o do presente processo, quando a responsabilidade pelo acidente for exclusivamente imputável à vítima. Além disso, caso a vítima, por facto que lhe seja imputável, tenha concorrido para a produção do dano ou para o seu agravamento, a indemnização desta, nos termos dessa legislação, é afectada numa medida proporcional ao grau de gravidade desse facto.

34. Contrariamente aos contextos jurídicos que deram origem aos acórdãos, já referidos, Candolin e o. e Farrell, a mencionada legislação não tem assim por efeito, no caso de a vítima ter contribuído para o seu próprio dano, excluir automaticamente ou limitar de modo desproporcionado o seu direito, no caso concreto, o direito dos pais de um menor que faleceu, quando circulava numa bicicleta, em resultado de uma colisão com um veículo automóvel, de ser indemnizada pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil do condutor do veículo envolvido no acidente. Não afecta assim a garantia, prevista pelo direito da União, de que a responsabilidade civil, determinada segundo o direito nacional aplicável, seja coberta por um seguro conforme com as três directivas acima mencionadas (v. acórdão Carvalho Ferreira Santos, já referido, n.os 43 e 44).

35. Em face das considerações precedentes, há que responder à questão submetida que a Primeira, Segunda e Terceira Directivas devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano. (…)».

Com base nesta fundamentação, o Tribunal de Justiça da União Europeia concluiu que “A Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, a Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e a Terceira Directiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano[9].

Assim, perante este entendimento, é de concluir que a consideração dos comandos que dimanam da Terceira Directiva não poderia conduzir a solução diversa. Com efeito, os arts. 503.°, n.° 1, 504.°, n.° 1, 505.° e 570° do CC, quando interpretados no sentido de que a existência de culpa exclusiva ou parcial da vítima pode fundamentar a exclusão ou redução da indemnização, por lesões sofridas em consequência de acidente de viação, não colidem com o Direito Comunitário.

Importa, por outro lado, salientar que nem a mencionada Directiva nem quaisquer outros instrumentos legislativos emanados de órgãos da UE contém normativos, de aplicação directa e imediata, que disponham diversamente sobre a concorrência entre a culpa do lesado e o risco, sendo certo que se trata de questão que deve ser resolvida em face das disposições de direito interno de cada Estado Membro da União Europeia[10]. Daí que não deva ser reconhecida razão ao recorrente ao sustentar a necessidade de recurso a critérios de interpretação provindos da Terceira Directiva.

Em jeito de conclusão, importa salientar que esta consideração não conduz a reconhecer que o citado aresto do Tribunal de Justiça da União Europeia “revogou” aquele instrumento normativo (até porque, como é sabido, tal não se insere na esfera de competências deste órgão), antes consubstanciando o respeito devido pelos tribunais nacionais a decisões emanadas de um órgão jurisdicional no contexto de um procedimento que visa, precisamente, a uniformização na aplicação do Direito da União Europeia (cfr. alínea b) do n.º 1 do artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia)[11].

IV Decisão:

Nestes termos, acorda-se em negar provimento à revista, mantendo-se integralmente o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que beneficia.

Lisboa, 27 de Junho de 2109

Raimundo Queirós (Relator)

Ricardo Costa

Assunção Raimundo

_______________

[1] Cita-se o recentíssimo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Abril de 2019, proferido no processo n.º 622/08.1TVPRT.P2.S1 e acessível em www.dgsi.pt; no mesmo sentido, os arestos citados nesse acórdão.

[2] Cita-se PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª Edição, Coimbra, pág. 519.

[3] Perfilhavam este entendimento, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, ob. cit., pág. 519, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 2.ª Edição, Almedina, pág. 544, MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, vol. I, 9.ª Edição, ed. AAFDL, pág. 392 e DÁRIO MARTINS DE ALMEIDA, Manual de Acidentes de Viação, 3ª edição, págs. 154 e 155; na jurisprudência, entre outros, v. os Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Maio de 2011 – proferido no processo n. º 1098/06.3TBCBR.C2.S1 e sumariado em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/sumarios-civel-2011.pdf de 10 de Janeiro de 2012 – proferido no processo n.º 308/2002.P1.S1-, de 27 de Março de 2014 – proferido no processo n.º 136/07.7TBTMC.P1.S1 – e de 13 de Dezembro de 2018 – proferido no processo n.º    

974/17.2T8GMR.G1.S1 –, todos acessíveis em www.dgsi.pt

[4] Além das referências bibliográficas e jurisprudenciais citadas no acórdão recorrido, v. ainda MARIA DA GRAÇA TRIGO, Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade por acidente de viação - Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo Lobo Xavier, Vol. II, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, págs. 485 e segs e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Janeiro de 2009 - CJSTJ, tomo I/2009, pág. 62 -, de 17 de Maio de 2012, proferido no processo n.º 1272/04.7TBGDM.P1.S1-, de 1 de Junho de 2017 – proferido no processo n.º 1112/15.1T8VCT.G1.S1 – e de 11 de Janeiro de 2018 – proferido no processo n.º 5705/12.0TBMTS.P1.S1 –, todos acessíveis em www.dgsi.pt.

[5] Recorde-se que, na petição inicial, se fez assentar a responsabilidade do condutor do veículo segurado na sua culpa.

[6] Segundo o qual, o facto será causa adequada do dano sempre que este constitua uma consequência normal ou típica daquele, ou seja, sempre que verificado o facto, se possa prever o dano como uma consequência natural ou como um efeito provável dessa verificação.

[7] Em idêntico sentido, v. os citados Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Maio de 2012 e de 11 de Janeiro de 2018.

[8] Acórdão “Ambrósio Lavrador e Ferreira Bonifácio”, processo n.º C-409/09, de 9 de Junho de 2011, acessível em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=124881&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=1769095

[9] No despacho proferido pela 10.ª Secção do Tribunal de Justiça da União Europeia no processo   C-229/10,acessível em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=135743&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=1770363) decidiu-se, com similar fundamentação, que «A Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, a Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e a Terceira Diretiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito de a vítima de um acidente exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano.».

[10] Assim, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Maio 2012, proferido no processo n.º 4249/05.1TBVCT.G2.S1 e acessível em www.dgsi.pt.

[11] Neste sentido, FAUSTO DE QUADROS e ANA MARTINS “Contencioso da União Europeia”, 2ª Edição, Almedina, págs. 71 a 74, JOSÉ LUÍS CARAMELO GOMES “O Juiz Nacional e o Direito Comunitário”, Almedina, pág. 157 e, entre outros, o Acórdão CILFIT (de 6 de Outubro de 1982, processo n.º 283/81) do então denominado Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia.