Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5282/19.1T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO MAGALHÃES
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
CAUSA DE PEDIR
PEDIDO
INDEMNIZAÇÃO
RECONSTITUIÇÃO NATURAL
AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO
MATÉRIA DE DIREITO
RECURSO DE APELAÇÃO
ÓNUS DE CONCLUIR
QUESTÃO NOVA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - Não tendo a autora, no seu recurso de apelação, colocado em crise a decisão de mérito então recorrida na parte relativa à sua titularidade do direito de propriedade, restava aos réus recorrer ao mecanismo da ampliação do objecto do processo nos termos do n.º 1 do art. 636.º do CPC; se não o fizeram, não podem pretender que tal matéria seja conhecida pelo tribunal da Relação (art. 636.º, n.º 1, do CPC).

II - Se o direito reclamado pela autora se reconduz ao direito de indemnização previsto no art. 483.º do CC, fundado na violação do direito de propriedade, que integra a causa de pedir, a autora não tem o dever de formular qualquer pedido autónomo de reconhecimento desse direito de propriedade.

III - Optando o lesado pelo pedido de indemnização em dinheiro, é ao lesante, que pretende a reconstituição natural, que cabe provar que esta é possível, que repara integralmente os danos e que não lhe é excessivamente onerosa.

Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:



*


Na presente acção declarativa de condenação, com processo comum, instaurada pela Confraria Nossa Senhora das Neves contra AA, BB e marido CC, DD e mulher EE, e FF,  A autora pediu que se condenassem os réus a pagar-lhe a quantia de € 94 056,80, a título de danos patrimoniais (€ 55 606, 80 para a construção de um novo pré-fabricado; € 18 450, 00 com custos que terá que despender com o seu advogado) e de danos não patrimoniais (€ 20 000, 00), acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, desde a citação até integral pagamento.

Alegou, em síntese:

a) Que é dona de um pré-fabricado: por este lhe ter sido doado pela Câmara Municipal ... em 2005; por, de qualquer forma, ter exercido sobre o mesmo atos de posse, por si e através de antepossuidores, há mais de 20, 30 e 50 anos, que permitem reconhecer a sua aquisição por usucapião.

b) Que os réus (que tinham reivindicado em 2006 a propriedade da área de 1 000 m2 de terreno onde está implantado o pré-fabricado, em ação que veio a ser julgada improcedente), em 2011 destruíram dolosamente o pré-fabricado de que a autora era proprietária: a 4 de janeiro arrancaram alicerces do local contíguo ao pré-fabricado; a 6 de janeiro partiram vidros do mesmo e a 12 de junho fizeram rebentar duas bombas no seu interior, que provocaram danos estruturais no mesmo (atos estes, em relação a estas duas datas, alegados como realizados por desconhecidos, presumindo que foram mandados pelos réus); a 11 de dezembro destruíram-no completamente, à luz do dia e com a conivência da GNR (ato este afirmado com remissão para o documento nº4- auto de ocorrência da GNR de 5.9.2011).

c) Que terá que gastar o valor de € 55 606, 80 (€ 45 208, 80 + € 10 398, 00 de IVA) para a construção de um pré-fabricado com as mesmas características do destruído pelos réus; que terá que despender com o seu mandatário os honorários de € 18 450, 00 (€ 15 000, 00 + IVA de € 3450, 00).

d) Que os réus destruíram o sonho da autora (entidade de direito canónico que visa apoiar a população do lugar de ..., da freguesia ..., ..., ... e ..., no concelho ...) de construir um Centro de Dia e um Serviço de Apoio Domiciliário, em favor do lugar de ... e da freguesia respetiva, composta por uma população maioritariamente idosa, que não dispunha de equipamentos destinados à terceira idade, causando-lhe um grande desgosto e angústia, quer aos seus dirigentes, quer à população do lugar e freguesia, por verem os sonhos destruídos ou adiados sine die.

A ré EE, por si e em representação da sua mãe AA, e o seu marido CC, contestaram, invocando, em suma, e no que aqui releva, que a autora não é titular do direito de propriedade sobre o pré-fabricado e que, em todo o caso, tais atos não foram praticados pelos réus.

Os demais réus não contestaram.

Após julgamento., foi proferida sentença que julgou improcedente a ação e absolveu os réus do pedido.

A autora apelou para o tribunal da Relação de Guimarães, impugnando a matéria de facto e pugnando pela revogação da sentença da 1.ª instância

Os réus CC e esposa GG, por si e em representação da sua mãe AA, apresentaram contra-alegações, pugnando pela manutenção da sentença da 1.ª instância.

O tribunal da Relação de Guimarães julgou parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto e revogou a sentença da 1.ª instância, condenando “os réus no pagamento à autora da indemnização de € 22 000, 00+IVA, acrescida dos juros de mora, à taxa legal civil, desde a citação até pagamento” e absolveu “os réus do pagamento dos demais pedidos e valores indemnizatórios”.

É contra esta última decisão que os réus CC e esposa GG, por si e em representação da sua mãe AA, se insurgem através do presente recurso de revista, formulando para o efeito as seguintes conclusões:

“1ª – A autora, Confraria de Nossa Senhora das Neves, com sede na Freguesia ..., concelho ..., demandou os réus AA e CC e mulher GG, residentes na mesma freguesia e concelho, alegando que, por lhe ter sido doado pela Câmara Municipal ..., em 2005, passou a ser dona de um pavilhão pré-fabricado que os réus destruíram, pedindo a condenação destes a pagar-lhe uma indemnização de 94.056,80€, a título de danos patrimoniais (sendo 55.606.80€ para a construção de um novo pavilhão, e 18.450,00€, com despesas a efetuar com o advogado que a representa) e uma indemnização por danos não patrimoniais, de 20.000,00€, uma e outra acrescidas de juros moratórios contados desde a citação até integral pagamento.

2ª- Os réus contestaram a ação, negando terem praticado qualquer destruição, e que a autora fosse proprietária do pavilhão, porque este é propriedade da Câmara Municipal ..., e apenas o seu uso foi cedido à autora, pelo que o documento por esta junto não é idóneo para comprovar “o direito real sobre o pré-fabricado, mas sim um direito com efeitos meramente obrigacionais”, tanto mais quanto é certo que “as entidades pública não podem doar bens públicos a outras entidades, sejam elas públicas ou privadas” (artigos 4º a 6º da contestação).

3ª - Discutida a causa foi produzida sentença           que absolveu os réus do pedido, por não se ter provado que foram eles quem destruiu, ou mandou destruir, o pavilhão em causa, cuja propriedade os réus não foram condenados a reconhecer, porque tampouco constava da inicial qualquer pedido nesse sentido, pese embora nos considerandos da sentença se ter afirmado que “a cedência provada demonstrava a propriedade da autora sobre o pré-fabricado demolido”, sem prejuízo de a sentença ter apenas considerado ter-se provado que “No dia 16 de Setembro de 2005, a Câmara Municipal ..., elaborou um auto de onde resulta a cedência, a titulo gratuito e a favor da autora, de um pavilhão pré fabricado, com o número de inventário ...45, no valor de 1867,49€, conforme deliberação tomada pela Câmara Municipal na reunião de 11.08.2005”.

4ª - Inconformada, a autora recorreu dessa decisão, alegando que devia ser alterada a matéria de facto:

a) Quanto ao que se referia à propriedade dela autora, uma vez que a que se deu por provada estava “incompleta” na medida em que dela devia também constar que “a cedência do pré – fabricado foi feita a titulo definitivo”, e, por isso, devia ter-se dado por provado antes que “a autora é dona e legítima possuidora do aludido pré-fabricado” (conclusões 1 a 6ª );

b) Quanto ao que se referia à autoria material dos atos de demolição, uma vez que a prova produzida permitia antes concluir que estes foram praticados pelos réus, pelo que deviam ser condenados a pagar as indemnizações pedidas (conclusões 7 a 77).

5ª - O acórdão recorrido, na parcial procedência do recurso, mantendo a matéria de facto que a sentença fixara (alienas A) a G) ), designadamente a transcrita na conclusão 3ª supra, aditou a essa matéria parte da que a 1ª instância entendera não se te provado (alíneas H a M) e condenou os réus a pagarem à autora uma indemnização de 22.000,00€, valor atribuído ao pavilhão, porque este “padecia de alguns danos anteriores”, absolvendo-os do ressarcimento dos honorários devidos pela autora ao seu advogado e de danos não patrimoniais, uns e outros por não serem devidos.

6ª – O acórdão de que ora se recorre - considerando que a propriedade da autora sobre o pré-fabricado demolido já fora reconhecida pela sentença e a questão “não é reapreciável nesta relação” porque os réus/recorridos não contestaram a sentença “em ampliação da matéria da mesma”, e embora sem fixar qualquer facto de onde isso pudesse concluir-se, matéria que apenas integra os seus fundamentos - sustentou que essa questão estava resolvida face à inércia dos réus, sancionada nos termos do artigo 636º, n.º2 do CPC, o que não é aceitável porque não foi formulado qualquer pedido de condenação dos réus no reconhecimento dessa propriedade, nem foram provados factos que a comprovem, nem as circunstancias consentiam na ideia de fazer funcionar aquele ónus.

7ª - Com efeito, não é correto o entendimento de que a questão da propriedade do pavilhão já não estava em discussão aquando do recurso, face ao facto de os recorrentes não terem arguido a nulidade da sentença ou impugnado a decisão quanto à matéria de facto nessa parte, prevenindo a hipótese de procedência das questões suscitadas pela autora, nos termos do n.º2 do artigo 636º do CPC, pois essa norma só se aplica em relação a matéria em que a parte vencedora tenha decaído – como é a previsão da norma – enquanto quem decaiu nessa parte foi a parte vencida, e tanto assim que recorreu da fixação do correspondente facto (cfr. a conclusão 4ª supra), pelo que os réus não podiam, nem tinham obrigação, de utilizar o expediente posto ao seu dispor pelo referido artigo 636º, n. º2.

8ª – Mas ainda que se entendesse que aos réus se impunha o cumprimento do ónus imposto pelo nº2 do artigo 636º do CPC, certo é que eles nunca aceitaram, como se comprova com o alegado na sua contestação (artigos 3º a 6º) e com o alegado nas contra-alegações de recurso (fls. 140 dos autos) que o pavilhão em causa fosse propriedade da autora, e tanto bastaria para se ter por cumprido o ónus a que se refere o artigo 636º, n.º2 do CPC, pois o requerimento de ampliação do âmbito do recurso “só tem de ser expressamente deduzido na hipótese de (…) pluralidade de fundamentos da ação ou de defesa. Para a hipótese prevista no n.º 2 do mesmo artigo não se torna necessário um requerimento específico (…) bastando que das contra-alegações do recorrido (…) resulte com clareza pretender ele arguir nulidade ou impugnar matéria de facto” (cfr. o acórdão do STJ de 31.01.2007, proc. n.º 06A4492.dgsi.net).

9ª – Sem prescindir, a autora alega ser dona e possuidora do pavilhão pré-fabricado em causa, por doação da Câmara Municipal ... de 16 de Setembro de 2005, conforme pretensamente seria comprovado com um documento que juntou com a petição inicial, mas esse documento - um “Auto de Cedência de Bens a Outras Entidades (Cessão)”, elaborado nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 19º do Regulamento de Inventário e Cadastro do Património Municipal – prova precisamente o contrário do que dele se pretende extrair, pois expressamente refere que se trata de uma cessão de bens que pertencem ao património municipal e que, como tais, têm um número de inventário e um cadastro próprios, com a consequência da sua devolução à Câmara Municipal ... se e quando esta a exigir.

10º - Para além disso, a cedência de bens do domínio privado das autarquias é sempre precária, só pode ser onerosa, e nunca pode fazer-se a título gratuito nem por tempo indeterminado (artigos 53º a 58º do Decreto-Lei 280/2007, de 7 de Agosto), óbices a qualquer ideia de transmissão, ainda que por doação, desses bens.

11ª – A lei é clara: a primeira daquelas normas, inserida na subsecção 1., sob a epigrafe “Cedência de Utilização”, prescreve que “os imóveis do domínio privado do Estado podem ser cedidos, a título precário, para fins de interesse público” (…)” e o artigo 54º, n.º1 que “a cedência, incluindo a cedência aos serviços do Estado, obedece ao princípio da onerosidade”.

12ª – O “Regulamento de Inventário e Cadastro do Património Municipal da Câmara Municipal ...”, em tudo idêntico ao Regulamento equivalente da Câmara Municipal ... e aos regulamentos similares dos municípios de todo o contém um anexo com uma fórmula a utilizar no auto de cessão, que expressamente refere que “não podendo o(s) bem(ns) cedido(s) ter uma utilização diferente do fim a que se destinam(m), sob pena de regressarem imediatamente à entidade cedente, devendo os mesmos regressar à posse desta após conclusão do objetivo para o qual foram cedidos”.

13ª - A imprescindibilidade da obediência ao princípio da onerosidade, impõe, como refere o n.º2 desse artigo 54º, que “a compensação financeira a pagar por entidades diversas dos serviços do Estado (…) deve atender à responsabilidade pelos encargos e despesas com a conservação e manutenção dos imóveis” (cfr. também o Parecer da CCDRN citado no texto, as referências a decisões do Tribunal de Contas e a doutrina administrativa que defende que a dispensa da aplicação do princípio da onerosidade só pode ser admitida se o Estado “por via legal apenas e só” o vier a dispensar, pelo que, até que isso aconteça nunca pode haver uma cedência gratuita de bens dessa natureza).

14ª – Ainda sem prescindir, nunca a autora podia pedir a condenação dos réus no pagamento de qualquer indemnização, fosse de que natureza fosse, sem conjuntamente pedir a condenação dos réus no reconhecimento do seu alegado direito de propriedade, e não o fez, pelo que o isolado pedido de condenação que formulou – pagamento de uma indemnização pela destruição de bens – nunca poderia proceder, porque – por absoluta falta de pedido -os réus não podiam ser condenados a reconhecerem esse direito de propriedade, de onde resulta impossível a condenação decretada pelo acórdão recorrido.

15ª – Nem sequer esse único pedido formulado – de condenação dos réus no pagamento de uma indemnização por alegadamente terem destruído propriedade alheia – é consentido pelo artigo 566º, n.º1 do CC, porque este concede ao lesado, em primeira linha, o direito à reconstituição natural (pelo que a autora só podia pedir a condenação dos réus a repararem o edifício destruído) e só se alegasse que a reconstituição natural não era possível, não reparava integralmente os danos ou era excessivamente onerosa para o devedor, é que os réus poderiam ser condenados a uma indemnização em dinheiro em substituição daquela reconstituição.

16ª – De resto, no caso concreto, demonstrando os autos que à autora tinha sido cedido um pavilhão que valia 1867,49€ (fls. 9 verso) e pretendendo a autora que a sua reconstrução importaria em 55.606,06€ (fls. 6 verso) é evidente que a opção da autora de pedir o pagamento de uma indemnização era excessivamente onerosa, pois a reconstrução custava 30 vezes mais do que o valor da obra destruída, pelo que o pedido formulado estava excluído legalmente de entre as opções da autora, e essa situação deveria ter sido refletida no pedido, sob pena de este nunca poder proceder.”

Pediram, a final, que o recurso fosse julgado procedente e, em consequência, revogada a decisão recorrida, mantendo-se a absolvição dos réus decidida em 1ª instância, com custas pela autora, a fim de ser feita JUSTIÇA.

A autora contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso.

Cumpre decidir.

Os factos dados como provados pelas instâncias são os seguintes:

“A) No dia 16 de setembro de 2005, a Câmara Municipal ... elaborou um auto de onde resulta a cedência, a título gratuito, e a favor da A., de um pavilhão pré-fabricado, com o número de inventário ...45, valor de 1.867,49 €, conforme deliberação tomada pela Câmara Municipal na reunião de 11.08.2005.

B) A A. pretendia instalar no pré-fabricado um Serviço de Apoio Domiciliário.

C) Há mais de 20 anos que no pré-fabricado se desenvolveram actividades de diversa natureza.

D) Os RR. reivindicaram a propriedade do terreno onde estava instalado o pré-fabricado.

E) A A. participou criminalmente contra os RR., o que deu origem ao inquérito n.º 774/11...., que correu termos no DIAP .... Foi proferida decisão instrutória de não pronúncia, confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães.

F) A A. é uma entidade de direito canónico, que visa apoiar a população do lugar da ..., da freguesia ..., ..., ... e ..., no concelho ....

G) A A. celebrou com o Centro Social e Paroquial de ... um contrato de comodato para que no pré-fabricado fosse instalado um serviço de apoio domiciliário.

Factos introduzidos pela Relação:

H – O pré-fabricado assentava numa base de cimento, tinha uma área de cerca de 65 m2, tinha telhado (que, antes de 5 de setembro de 2011, tinha caído em cerca de 3 metros do lado da largura do pavilhão, nos termos da fotografia de fls.13 a fls.24 dos autos), tinha paredes pré-fabricadas de material prensado, dispunha de 2 wc, instalação elétrica e canalizações.

I - Antes de 5 de setembro de 2011, o pré-fabricado encontrava-se com os vidros das janelas todos partidos e tinha sofrido o rebentamento de duas bombas no seu interior.

J - A 5 de setembro de 2011 o pré-fabricado referido em A supra foi destruído com uma retroescavadora, por ordem da ré AA, representada pela filha BB, com o auxílio desta e do marido CC e, também, com o apoio e auxílio da filha EE e marido DD e do filho FF.

K - A 9 de setembro de 2011, os trabalhos de construção e implantação global de um pré-fabricado com área de 66 m2 custava o valor de cerca de € 24 694, 80/€ 24 294, 80 + IVA, correspondente: a € 748, 80 de «1 Limpeza e arrumação de entulho para vazadouro.»; € 1 716, 00 a € 1300, 00 de «2 Execução de massame para receber pré-fabricado.»; € 21 450, 00 de «3 Fornecimento, transporte e colocação»; € 780,00 de «4 Trabalhos preparatórios»; € 1 170, 00 de «5 Montagem, aluguer e desmontagem de estaleiro.»

M - A demolição do pré-fabricado causou desgosto e angústia aos dirigentes da autora e descontentamento da população que acorreu ao local no dia da destruição.”

Do ónus de ampliar o objecto do recurso para efeitos de discussão, em sede de apelação, da matéria atinente ao direito de propriedade invocado pela autora:

Invocam os recorrentes que não tinham o ónus de ampliar o objecto do recurso para permitir a discussão, em sede de apelação, da questão da propriedade do pavilhão pré-fabricado. E assim é, porquanto, a seu ver, a matéria de facto assente, no sentido de se ter por assente a propriedade da autora, foi impugnada pela autora.

Concluem, assim, os recorrentes, que não lhes era exigível a impugnação da matéria de facto, nos termos do nº 2 do art. 636º do CPC.

Ora, antes de proceder à análise da questão supra enunciada, cumpre desfazer um equívoco.

De facto, ao contrário do que os recorrentes pretendem fazer crer, o Tribunal da Relação em momento algum convocou o nº 2 do art. 636º do CPC, tendo tão-só deixado expresso o entendimento de que, nos termos do nº 1 do art. 636º do CPC, os recorrentes deveriam, querendo, ter ampliado o objecto do recurso para efeitos de discussão da questão do direito de propriedade invocado pela autora.

Efectivamente, há que distinguir a matéria de facto e a matéria de direito, sendo evidente que é neste segundo plano que se move a decisão do Tribunal da Relação contra a qual se insurgem os recorrentes. De resto, como reconhecem os recorrentes, independentemente da questão de facto, está em causa a decisão de mérito alcançada pela 1.ª instância em face dos factos dados como provados que, importa recordar, se mantiveram, nesta parte, totalmente inalterados.

Está, assim, em discussão a subsunção jurídica dos factos às normas jurídicas aplicáveis, mormente as que regem a aquisição do direito de propriedade.

O que fica dito é tanto mais relevante quanto é possível perceber que, muito embora a autora tenha impugnado os factos provados A a C, que permitiram à 1.ª instância concluir no sentido da titularidade do direito de propriedade, não retirou de tal impugnação de facto qualquer consequência jurídica, até porque, diga-se, neste segmento a decisão da 1.ª instância lhe foi favorável.

Deste modo, uma coisa é impugnar os factos dados como provados, outra, bem diferente, é impugnar a conclusão extraída pelas instâncias em função da matéria de facto assente.

No caso que nos ocupa, os réus insurgem-se contra a subsunção jurídica levada a cabo pela 1.ª instância, por considerarem que, em face da matéria de facto provada (que se manteve inalterada), não resulta a aquisição do direito de propriedade (conclusões 3ª, 4ª, 5ª e 6ª das contra-alegações de recurso de apelação).

Estando em causa a decisão quanto ao mérito, tem plena aplicação não o n.º 2 mas o n.º 1 do art. 636º do CPC, que foi, de resto, a única norma convocada pelo Tribunal da Relação, que a este propósito deixou escrito: “Este fundamento da decisão não foi objeto de pedido de reapreciação em ampliação de recurso, nos termos e para os efeitos do art.636º/1 do C. P. Civil, pelos réus/recorridos.”

Desta forma, ainda que o Tribunal tivesse extraído dos factos provados conclusões superiores àquelas que os mesmos ilustram (por deverem ter sido objeto de resposta de facto mais esclarecedora), esta matéria encontra-se decidida favoravelmente à versão da autora/recorrente, o que prejudica a necessidade e a possibilidade de apreciar a impugnação de matéria de facto relevante para um fundamento que já foi reconhecido à recorrente e não foi contestado pelos recorridos: “. (…) a sentença recorrida absolveu os réus da condenação nas indemnizações pedidas, com o fundamento na falta de prova do «facto voluntário ilícito e culposo dos RR» de que depende a obrigação de indemnizar por responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, que à autora cabia provar (apesar de ter declarado reconhecer que a cedência provada demonstrava a propriedade da autora sobre o pré-fabricado demolido, matéria esta que, não tendo sido contestada pelos réus/recorridos no seu recurso, em ampliação da matéria do mesmo, não é reapreciável nesta Relação).”

Importa, assim, ajuizar se, à luz do nº 1 do art. 636º do CPC, a matéria atinente à titularidade do direito de propriedade apenas poderia ser conhecida pelo Tribunal da Relação mediante requerimento de ampliação do objeto do recurso.

Dispõe o art. 636º, nº 1, do CPC que “no caso de pluralidade de fundamentos da ação ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respetiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação.”.

Nas palavras de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Filipe Pires de Sousa, “a parte recorrida pode suscitar nas contra-alegações do recurso a reapreciação dos fundamentos em que tenha decaído, prevenindo os riscos de uma eventual resposta favorável do tribunal de recurso às questões que tenham sido suscitadas pelo recorrente ou mesmo a outras questões de conhecimento oficioso” – Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª edição, Almedina, 2020, pág.790.

Como explica Abrantes Geraldes “a solução legal prevista para situações em que a sucumbência é circunscrita aos fundamentos da ação ou da defesa proporciona à parte vencedora, com total razoabilidade, a possibilidade de suscitar, perante o tribunal ad quem, a reapreciação de questões cuja resposta tenha sido desfavorável esconjurando os riscos derivados da adesão do tribunal de recurso aos fundamentos apresentados pelo recorrente para alcançar a revogação ou anulação da decisão. Para o efeito, essa parte tem o ónus de suscitar as questões de facto ou de direito que foram resolvidas a seu desfavor na decisão recorrida (…).” – Recursos em Processo Civil, Almedina, 2020, 7.ª edição actualizada, pág. 146.

Ora, o STJ tem entendido de forma absolutamente pacífica que “no recurso, as questões são fixadas pelas conclusões das alegações, só sendo consideradas as questões suscitadas nas contra-alegações em caso de ampliação do âmbito do recurso.” – Ac. do STJ de 16.06.2020, proc. 3300/15.1T8ENT-A.E1.S1, subscrito pelo ora relator. Neste sentido, entre outros, vejam-se os acórdãos de 20.01.2022, proc. 8050/19.7T8LSB-A.L1.S1, de 09.03.2021, proc. 3365/18.4T8BRG.G2.S1, de 29.04.2021, proc. 684/17.0T8ABT.E1.S1, e de 21.10.2020 , proc. 22277/17.2T8LSB.L1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Ora, no caso vertente, os réus foram absolvidos do pedido formulado pela autora pela 1.ª instância, que considerou que a autora era titular do direito de propriedade sobre o pré-fabricado descrito nos autos, não podendo, contudo, ser os réus condenados no pagamento de uma indemnização em face da ausência de prova sobre a autoria dos actos de destruição. Simplificando, muito embora tenha resultado demonstrada a titularidade de um direito absoluto – direito de propriedade – não resultou demonstrado a prática pelos réus do acto ilícito invocado pela autora (art. 483º do CC).

Em face da decisão de improcedência da acção, é manifesto que os réus, na qualidade de parte vencedora, não tinham legitimidade para interpor recurso de apelação, não podendo, por exclusiva vontade própria, colocar à consideração do Tribunal da Relação a matéria atinente à titularidade do direito de propriedade.

Analisado o recurso de apelação interposto pela autora, resulta que esta não colocou em causa a decisão de mérito quanto à titularidade do direito de propriedade, tendo limitado o objecto do seu recurso de apelação à matéria atinente à autoria dos actos de destruição do pré-fabricado e cálculo dos danos sofridos. Tal possibilidade de restrição é lícita e resulta, expressamente, do disposto no art. 635º, n.º 4, do CPC. Sobre esta matéria, veja-se Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Lex, 1994, pp. 176 e ss. e Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol. III, Edições AAFDL, pp. 66-70.

Ora, ainda que a autora tenha impugnado factos dos quais, a seu ver, decorria o seu direito de propriedade, não extraiu de tal alteração quaisquer consequências, pugnando pela manutenção da decisão de mérito nos seus precisos termos (conclusões 51 e 52 do recurso de apelação interposto pela autora).

Não há, assim, dúvidas de que a decisão de mérito quanto à titularidade do direito de propriedade em discussão nos autos não foi colocada à consideração do Tribunal da Relação, não integrando, por isso, o objecto do recurso. Se assim é, a mera menção a tal questão em sede de contra-alegações não tem a virtualidade de ampliar o objecto do recurso, o que apenas pode suceder mediante requerimento expresso nesse sentido.

Deste modo, não tendo a autora colocado em crise a decisão então recorrida nesta parte, restava aos réus recorrer ao mecanismo da ampliação do objecto do processo para efeitos de permitir uma pronúncia do Tribunal da Relação quanto a esta matéria. Se não o fizeram, não podem pretender que tal matéria seja conhecida seja pelo Tribunal da Relação e, naturalmente, por este Supremo Tribunal de Justiça.

Nestes termos, andou bem o Tribunal da Relação ao não conhecer da matéria atinente ao direito de propriedade invocado pela autora, considerando-a definitivamente resolvida pelo tribunal da 1.ª instância.

Ora, se o Tribunal da Relação não conheceu de tal fundamento, não pode o Supremo, que está limitado, conhecer de tal questão que é nova, pois, como é sabido, “não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação“ (cfr. Ac.  STJ de 07.07.2016, proc. 156/12.0TTCSC.L1.S1; v. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, págs. 87 e 88, Amâncio Ferreira, em Manual dos Recursos, 8ª edição, pág. 147 e Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 395).

Como assim, se a Relação não apreciou a questão do direito de propriedade (e os RR. não requereram, no recurso de revista, o conhecimento dela) não pode o Supremo apreciar agora a referida questão por se tratar de uma questão nova que não foi discutida no acórdão recorrido.

Deverá, assim, o recurso de revista improceder nesta parte.

Da inadmissibilidade de condenação dos réus face à ausência de pedido de reconhecimento do direito de propriedade formulado pela autora:

Entendem os recorrentes que “a autora só podia ser indemnizada pela destruição do pavilhão se os réus fossem condenados a reconhecer que o pavilhão lhe pertencia”.

Não lhes assiste, no entanto, qualquer razão.

Como é consabido, nas ações de responsabilidade civil extracontratual a causa de pedir é complexa, sendo constituída pelos factos que se reconduzem à fattispecie da norma ínsita no art. 483º, nº 1, do CC.

Ora, no caso dos autos, é inequívoco que o direito reclamado pela autora se reconduz ao direito à indemnização, previsto no art. 483º do CC, surgindo o direito de propriedade como um dos fundamentos subjacente a esse pedido. No âmbito deste tipo de acções o direito de propriedade (direito absoluto) integra a causa de pedir e não o pedido.

No caso dos autos, pretendendo a autora peticionar a condenação do réu no pagamento de indemnização, tinha o ónus de invocar os factos necessários para individualizar a situação jurídica alegada e para sustentar o pedido formulado, naturalmente por apelo à norma jurídica invocada (cfr. art. 483.º do CC), o que fez.  Não tinha qualquer dever de formular um pedido de reconhecimento do direito de propriedade.

Não assiste, assim, qualquer razão aos recorrentes.

Da ausência de fundamentação legal para a condenação dos réus no pagamento de indemnização:

Invocam os recorrentes que, não tendo a autora peticionado a condenação dos réus a restituição in natura da coisa destruída e não tendo alegado a impossibilidade da reconstituição natural, está vedada a hipótese de condenação em indemnização fixada em dinheiro.

Mas também aqui não têm razão.

Dispõe o art. 562º do CC que “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.”.

Por seu turno, dispõe o art. 566º, nº 1, do CC que “a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.”.

Da conjugação das duas normas acabadas de citar, resulta uma evidente primazia da reconstituição natural face à indemnização em dinheiro, do que resulta que a reparação do dano causado se deve fazer, preferencialmente, através da reparação ou substituição por coisa idêntica. Assim, a indemnização em dinheiro desempenha um papel secundário para os casos em que a reconstituição natural não se mostre possível.

Porém, como explica o acórdão deste STJ de 14.09.2010, “o princípio da reconstituição natural constante do art. 562.º do CC não impõe que o lesado se obrigue a deduzir pedido de reconstituição natural e subsidiariamente pedido de indemnização, podendo deduzir este último a título principal; tal princípio não obsta a que o lesante declare oportunamente a sua vontade de reparar os danos por reconstituição natural.” – proc. n.º 403/2001.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

Neste mesmo sentido pronunciou-se Henrique Sousa Antunes, nos seguintes termos: “a indemnização em dinheiro é exigível pelo lesado sem lhe caber demonstrar a impossibilidade ou a insuficiência da reconstituição natural. A alternatividade é, porém, imperfeita, pois o devedor pode opor-se ao pedido do lesado demonstrando a possibilidade e a suficiência dessa restauração” – Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, UCP, 2018, p. 566.

Também Nuno Pinto de Oliveira se pronunciou no mesmo sentido, afirmando que “o princípio da prioridade da indemnização em espécie do art. 566.º, n.º 1, do Código Civil é, essencial ou exclusivamente, um princípio de proteção do credor. (…) [pelo que] deverá ser-lhe atribuída a faculdade de optar pela indemnização em espécie ou pela indemnização em dinheiro: “tendo a lei admitido o princípio da restauração natural por achar que esse modo de indemnizar satisfaz plenamente os interesses do lesado e, portanto, em benefício deste – o lesado poderá optar entre a restauração natural e a indemnização em dinheiro, não tendo o responsável o direito de indemnizar mediante restauração natural.” – Princípios do Direito dos Contratos, Coimbra Editora, 2011, págs. 674 e segs..

De facto, a opção do legislador mostra-se justificada pelo simples motivo de que “só a restauração natural preserva o interesse que o lesado tem no bem concreto que foi objecto da lesão, na consistência ou composição do seu património. (…)” - Júlio Gomes, Custo das reparações, valor venal ou valor de substituição, Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27.2.2003, Rev. 4016/02, In Cadernos de Direito Privado, 3, pág. 56 e segs. O mesmo autor prossegue, afirmando que “«o primado da reconstituição natural não constitui uma mera escolha, mais ou menos indiferente entre duas formas de reparação do dano, mas antes o reflexo de uma certa visão deste e da forma mais perfeita de o reparar, e uma concomitante decisão quanto à prioridade dos interesses do lesado sobre os interesses do lesante»” – ob. cit. pág. 57, nota de rodapé n.º 7.

Como é evidente, a primazia da reconstituição natural tem como fundamento o interesse do lesado, pessoa a quem, de resto, é atribuído o direito à indemnização. Se assim é, apenas o lesado poderá avaliar qual a melhor forma de ser ressarcido dos danos causados, não podendo o lesante impor-lhe uma determinada forma de ressarcimento.

Como é evidente, o lesado poderá optar pelo tipo de indemnização que pretende, restando ao lesante invocar a impossibilidade, inexigibilidade ou excessiva onerosidade da opção de reconstituição natural ou, de outra perspectiva, que a restituição em espécie é adequada e suficiente, caso o credor opte pela indemnização em dinheiro.

Ora, revertendo ao caso sub judice verifica-se que os réus, que não se ofereceram para proceder à reparação, não demonstraram nem a possibilidade ( tendo em conta, aliás, que o telhado estava caído em 3 metros) nem a suficiência da restauração integral dos danos nem a excessiva onerosidade da prestação pecuniária, nomeadamente pela verificação de uma desproporção entre o valor de mercado do bem destruído e o valor da reparação do mesmo em face das condições pessoais, familiares ou económicas dos lesantes. Por outro lado, importa não desconsiderar a litigiosidade existente entre as partes que sempre desaconselharia colocar na dependência dos réus a realização das obras de reconstrução.

Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC):

“1. Não tendo a autora, no seu recurso de apelação, colocado em crise a decisão de mérito então recorrida na parte relativa à sua titularidade do direito de propriedade, restava aos réus recorrer ao mecanismo da ampliação do objecto do processo nos termos do nº 1 do art. 636º do CPC; se não o fizeram, não podem pretender que tal matéria seja conhecida pelo Tribunal da Relação (art. 636º, nº 1 do CPC);

2.  Se o direito reclamado pela autora  se reconduz ao direito de indemnização previsto no art. 483º do CC, fundado na violação do direito de propriedade, que integra a causa de pedir, a autora não tem o dever de formular qualquer pedido autónomo de reconhecimento desse direito de propriedade;

3. Optando o lesado pelo pedido de indemnização em dinheiro, é ao lesante, que pretende a reconstituição natural, que cabe provar que esta é possível, que repara integralmente os danos e que não lhe é excessivamente onerosa.”

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.


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Lisboa, 14 de Março de 2023


António Magalhães (Relator)

Jorge Dias

Jorge Arcanjo