Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P271
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS CARVALHO
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
REQUISITOS
FORMALIDADES ESSENCIAIS
IRREGULARIDADE PROCESSUAL
RECUSA
Nº do Documento: SJ20070127002715
Data do Acordão: 01/25/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Decisão: PROVIDO
Sumário :
I – A ausência dos requisitos de conteúdo e de forma do mandado de detenção europeu, a que se refere o art.º 3.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, não são causa de recusa obrigatória ou de recusa facultativa, previstos, respectivamente, nos art.ºs 11.º e 12.º.
II - A falta desses requisitos importa uma irregularidade sanável, nos termos do art.º 123.º do CPP, aplicável subsidiariamente por força do art.º 34.º da Lei n.º 65/2003.
III - A circunstância da pessoa procurada entender que não praticou factos que determinam responsabilidade criminal é irrelevante para o Estado português, que só tem de conhecer da conformidade legal do próprio mandado no sentido de o poder executar, pois a decisão judiciária é do Estado que o emitiu e é perante ele que aquela tem de exercer os direitos de defesa relativos ao procedimento criminal em curso.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. Por Acórdão de 7 de Dezembro de 2006, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu “reconhecer como não exequível o mandato de detenção europeu emitido contra AA.”
O mandado de detenção europeu havia sido emitido pelo Tribunal de Grande Instância de Bordéus, proc. nº 405/01, pedindo a entrega da cidadã polaca AA, nascida a 5/03/1969, solteira, filha de BB e de CC, residente na Rua ..., nº ...° E, Sesimbra e Calle ..., nº .... Casarrubios del Monte, Toledo, Espanha, por factos que «caracterizam o crime previsto nos art.ºs 7.º, 215.º, 414.º, 417.º, 419.º e seguintes, 432° bis e 435° do Código das Alfândegas, o qual reprime a importação, o transporte e a detenção em contrabando de mercadorias taxadas fortemente no quadro de um Bando Organizado e fazem incorrer aos seus autores uma pena de 10 anos de prisão correccional e uma multa que pode perfazer até 5 vezes o valor das mercadorias da fraude.»

2. Desse Acórdão recorre agora o Ministério Público junto da Relação de Lisboa para o Supremo Tribunal de Justiça e, da sua fundamentação, retira as seguintes conclusões:
1ª- Resulta claro do mandado de detenção europeu que a autoridade judiciária do Estado membro de emissão (França) pretende a entrega de AA para efeito de procedimento penal e não com vista ao cumprimento de pena ou de medida de segurança privativas da liberdade.
2ª- No caso dos autos, o mandado de detenção cumpre com os requisitos de forma e de conteúdo a que se reportam designadamente as alíneas c), d) e e) do art.º 3.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto.
3ª- Nenhum motivo há para recusar a entrega de AA ás justiças francesas (autoridade judiciária do Estado membro de emissão).
Termos em que deve ser revogado o douto acórdão sob recurso, e substituído por outro que ordene a efectiva entrega da pessoa procurada (AA) à autoridade judiciária do Estado membro de emissão, assim fazendo V. Exas. fúlgida, inteira e costumada JUSTIÇA!

3. A oponente não respondeu ao recurso.

4. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência com o formalismo legal.

Cumpre decidir.

O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado membro com vista à detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade (art.º 1.º, n.º 1, da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto). O mandado de detenção europeu é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente lei e na Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho (n.º 2).
Trata-se de um instrumento destinado a reforçar a cooperação entre as autoridades judiciárias dos Estados-Membros suprimindo o recurso à extradição, pelo que os seus procedimentos são expeditos e com prazos reduzidos, embora com total salvaguarda dos direitos constitucionais de defesa.
A lei prevê causas de recusa obrigatória de execução do mandado (art.º 11.º) e outras que são de recusa facultativa (art.º 12.º).
A recusa facultativa, como já decidiu este STJ (Ac. de 17-03-2005, rec. 1135/05-5, relator Cons. Pereira Madeira), «não pode ser concebida como um acto gratuito ou arbitrário do tribunal. Há-de, decerto, assentar em argumentos e elementos de facto adicionais aportados ao processo susceptíveis de adequada ponderação, nomeadamente invocados pelo interessado, que, devidamente equacionados, levem o tribunal a dar justificada prevalência ao processo nacional sobre o do Estado requerente».
Ora, a pessoa procurada foi ouvida, nos termos do art.º 18.º, da Lei n.º 63/03, de 23-8, tendo declarado não consentir na entrega e não renunciar à regra da especialidade.
Tempestivamente, apresentou oposição aos mandado, invocando que não cumpre os requisitos de forma estatuídos pelo art.º 3.º, als. c), d) e e), do citado diploma legal, os quais dispõem:

Artigo 3.º
Conteúdo e forma do mandado de detenção europeu
1- O mandado de detenção europeu contém as seguintes informações, apresentadas em conformidade com o formulário em anexo:
...
c) Indicação da existência de uma sentença com força executiva, de um mandado de detenção ou de qualquer outra decisão judicial com a mesma força executiva nos casos previstos nos artigos 1.º e 2.º;
d) Natureza e qualificação jurídica da infracção, tendo, nomeadamente, em conta o disposto no artigo 2.º;
e) Descrição das circunstâncias em que a infracção foi cometida, incluindo o momento, o lugar e o grau de participação na infracção da pessoa procurada.
Na oposição à execução do mandado ainda se disse que, para a hipótese de o mandado se destinar a procedimento criminal, deveria ser prestada a garantia prevista no art.º 13.º, al. c), e a oponente ainda apresentou a sua versão dos factos imputados no mandado, concluindo que a sua participação não representou um envolvimento no crime imputado aos demais arguidos.

O Tribunal recorrido, na parte que importa, desenvolveu a seguinte argumentação:
“No caso dos autos, o mandado de detenção, tal como se constata da respectiva tradução junta aos autos, não contém as menções obrigatórias do já referido art.º 3º, isto é não cumpre os requisitos de forma e conteúdo a que se reportam, entre outros as alíneas c), d) e e) do citado artigo. Na verdade não é clara a intenção da Autoridade Judiciária do Estado Membro de Emissão, quanto ao procedimento criminal contra a Oponente, para cumprimento de pena ou medida de segurança privativas da liberdade.
Igualmente não é clara, sendo até confusa, a identidade da pessoa procurada, a qualificação e natureza das infracções imputadas, as circunstâncias do respectivo cometimento e o grau de participação na infracção da pessoa procurada, atento o que consta do interrogatório que foi prestado pela visada.
Na verdade o suporte processual em que assenta o pedido é manifestamente insuficiente, denotando lacunas no que concerne às menções obrigatórias.
No caso desconhece-se a intenção manifestada, se é para cumprimento de pena ou medida de segurança privativas da liberdade, ou se é para efeitos de procedimento criminal, o que a acontecer, implicaria o cumprimento do estatuído no art. 13°, ais a) e c), o que não se mostra efectuado.
Concluímos, deste modo, que não se mostram verificados os requisitos formais do mandado de detenção europeu.”
E, depois de enunciar as causas legais de recusa obrigatória e de afirmar que não existem causas de recusa facultativa, conclui que “a já referida não conformidade formal e substancial e a existência de causas de recusa de execução do mandado estão reunidas as condições para não determinar o seu cumprimento.”

Todavia, a ausência dos requisitos de conteúdo e de forma do mandado de detenção europeu, a que se refere o aludido art.º 3.º, não são causa de recusa obrigatória ou de recusa facultativa, previstos, respectivamente, nos art.ºs 11.º e 12.º.
A falta desses requisitos importa uma irregularidade sanável, nos termos do art.º 123.º do CPP, aplicável subsidiariamente por força do art.º 34.º da Lei n.º 65/2003. E, na verdade, foi essa a primeira interpretação do tribunal recorrido, pois de imediato e após a audição da então detida, solicitou às autoridades francesas esclarecimentos adicionais, prestadas pelo envio posterior de um relatório sobre o processo que aí corre termos.
Assim, não faz sentido afirmar, como faz o tribunal recorrido, que ocorrem causas de recusa de execução do mandado, pois esse tribunal só lhe anotou vícios de conteúdo e de forma.
E que vícios são esses que se lhe apontam? Afirma-se que não é clara a intenção da Autoridade Judiciária do Estado Membro de Emissão, se a execução se destina ao procedimento criminal contra a oponente, ou para cumprimento de pena ou medida de segurança privativas da liberdade. E igualmente não é clara, sendo até confusa, a identidade da pessoa procurada, a qualificação e natureza das infracções imputadas, as circunstâncias do respectivo cometimento e o grau de participação na infracção da pessoa procurada.
Ora, a identidade da pessoa procurada é bem clara e está indicada no mandado, onde se concretizou o nome completo, a data de nascimento, a naturalidade, a nacionalidade, as alcunhas e as residências conhecidas em Espanha e em Portugal. Que mais elementos de identificação seriam necessários?
A resposta é que não há suficiência de identificação, tanto mais que a oponente não recusou ser a pessoa procurada e até mostrou ter conhecimento dos factos imputados. Quanto a esse aspecto, portanto, não há lugar a dúvidas atendíveis.
Quanto ao facto de não ser claro qual o fim a que se destina o mandado, neste, todavia está indicado que o mandado foi emitido por um juiz de instrução, num processo com número de Procuradoria e outro número de Instrução, como nele foram deixados sem preenchimento os campos relativos ao julgamento, à pena, à sentença e às notificações da audiência e da decisão condenatória.
A esses elementos foi junto, posteriormente, como se disse, um relatório de investigação policial, onde se concretiza claramente a participação activa da pessoa procurada em operações de contrabando no quadro de uma associação criminosa.
Por isso, sendo evidente que o mandado de detenção europeu se destina ao procedimento criminal por tais crimes, que foi emitido por decisão judicial, que nele foi indicada a natureza e qualificação jurídica da infracção e que foi feita uma descrição das circunstâncias em que a infracção foi cometida, incluindo o momento, o lugar e o grau de participação na infracção da pessoa procurada, tal mandado não sofre de qualquer vício de conteúdo e de forma.
Por outro lado, não ocorrem quaisquer das causas de recusa indicadas na lei, quer as que são obrigatórias quer as facultativas, nem as mesmas foram invocadas.
A circunstância da pessoa procurada entender que não praticou factos que determinam responsabilidade criminal é irrelevante para o Estado português, que só tem de conhecer da conformidade legal do próprio mandado no sentido de o poder executar, pois a decisão judiciária é do Estado que o emitiu e é perante ele que aquela tem de exercer os direitos de defesa relativos ao procedimento criminal em curso.
Como se lê no Ac. deste STJ de 23 de Novembro de 2006, proc. 4352/06, relatado pelo Cons. Maia Costa, «O princípio do reconhecimento mútuo significa que uma decisão judicial tomada pela autoridade judiciária de um Estado-Membro, segundo a sua lei, é exequível directamente pela autoridade judiciária de outro Estado-Membro.Segundo o princípio, uma decisão tomada por uma autoridade judiciária de um Estado-Membro com base na sua legislação interna será reconhecida e executada pela autoridade judiciária de outro Estado-Membro, produzindo efeitos pelo menos equivalentes a uma decisão tomada por uma autoridade judiciária nacional.” (Ricardo Jorge Bragança de Matos, “O princípio do reconhecimento mútuo e o mandado de detenção europeu”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 14º, nº 3, pp. 327-328; sobre a matéria ver também, Anabela Miranda Rodrigues, “O mandado de detenção europeu”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 13º, nº 1, pp. 32-33).»

Quanto à garantia prevista no art.º 13.º, al. c), da Lei 65/2003, reclamada pela oponente, recorde-se que a lei diz que quando a pessoa procurada para efeitos de procedimento penal for nacional ou residente no Estado membro de execução, a decisão de entrega pode ficar sujeita à condição de que a pessoa procurada, após ter sido ouvida, seja devolvida ao Estado membro de execução para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativas da liberdade a que foi condenada no Estado membro de emissão.
Ora, por uma lado, trata-se de uma garantia que não é obrigatória, mas meramente facultativa (“pode ficar sujeita à condição...”). Por outro lado, a oponente indicou residência simultaneamente em Portugal e em Espanha e é de nacionalidade polaca, pelo que não se vê razão substancial ou justificação plausível para que se solicite a prestação de tal garantia.
O mandado de detenção europeu em causa cumpre todos os requisitos legais para que possa ser ordenada a sua execução, nomeadamente, a oponente é procurada para procedimento criminal pelo crime supra referido, punido em França com pena de prisão até 10 anos e multa e tal crime é punível também em Portugal com pena de prisão, por força dos art.ºs 23.º, al. a), (contrabando qualificado) e 34.º, n.º 2, (pertença a associação criminosa com aquele fim) do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras - Decreto-Lei n.º 376-A/89, de 25 de Outubro.
Por isso e por tudo o exposto é de conceder provimento ao recurso do Ministério Público e de ordenar a efectiva entrega da pessoa procurada à autoridade judiciária do Estado membro de emissão.

5. Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, em ordenar a execução do mandato de detenção europeu emitido contra AA, entregando-a às autoridades judiciais francesas, com respeito pelo princípio da especialidade previsto no art.º 7.º, n.º 1, da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, a que não renunciou.
Notifique.

Supremo Tribunal de Justiça, 25 de Janeiro de 2007

Santos Carvalho (relator)
Costa Mortágua
Rodrigues da Costa