Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P3230
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SORETO DE BARROS
Descritores: ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
ASSISTENTE
OBJECTO DO PROCESSO
INDÍCIOS SUFICIENTES
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DENEGAÇÃO DE JUSTIÇA
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
DOLO
DOLO DIRECTO
ATRASO PROCESSUAL
NULIDADE
Nº do Documento: SJ20080521032303
Data do Acordão: 05/21/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I - Segundo se extrai do n.º 2 do art. 287.º do CPP, o requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas há-de definir o thema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão de acusação ou de não acusação.
II - Quando o requerente da instrução é o assistente, o modelo de requerimento deve ter o conteúdo de uma acusação alternativa ou, materialmente, da acusação que o assistente entende que deveria ter sido produzida, fundada nos elementos de prova recolhidos no inquérito, de onde constem os factos que considera indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do princípio do contraditório – arts. 308.º e 309.º, ambos do CPP.
III - Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige a prova, no sentido da certeza moral da infracção, bastando-se com indícios da sua prática, de onde se possa formar a convicção de que existe uma probabilidade razoável de ter sido cometido um crime pelo arguido.
IV - Assim sendo, os indícios probatórios – que não a mera discordância legal, doutrinal ou jurisprudencial – são suficientes sempre que dos mesmos resultar uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança – arts. 283.º, n.ºs 1 e 2, e 308.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.
V - Tanto a doutrina como a jurisprudência têm realçado que a “possibilidade razoável” de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa: “o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido” ou, noutras palavras, os indícios são suficientes quando existe “uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
VI - O bem jurídico objecto imediato de tutela no crime de denegação de justiça é a recta administração da justiça, a defesa dos direitos dos cidadãos e a garantia da pessoa humana, sendo titular imediato de tais interesses o Estado.
VII - Este ilícito pressupõe uma especial qualidade do agente e a violação de poderes funcionais inerentes ao cargo desempenhado, configurando um crime específico, que mais não é do que um comportamento, activo ou omissivo, de funcionário contra direito. Agir contra direito significa, essencialmente, a contradição da decisão (aqui incluindo, claro está, o comportamento passivo) com o prescrito pelas normas jurídicas pertinentes.
VIII - O n.º 1 do art. 369.º do CP satisfaz-se com o dolo genérico, o qual terá de revestir a modalidade de dolo directo, desinteressando-se aqui a lei dos fins ou motivos do agente. É certo que quando a lei exige o cometimento doloso para a verificação do tipo subjectivo significa que quer abranger desde a sua forma mais intensa até à sua modalidade mais fraca. Todavia, através de formulação típica – exigindo uma particular forma de conhecimento ou de vontade do agente –, o legislador pode restringir a sua esfera de aplicação. Esse desiderato é conseguido com a introdução de expressões como conscientemente ou intencionalmente, pelas quais se cinge o agir doloso apenas ao dolo directo.
IX - Assim, o crime de denegação de justiça demanda para o seu preenchimento um desvio voluntário e intencional dos deveres funcionais, de forma a poder afirmar-se uma “negação da justiça”.
X - Encontra assento constitucional o princípio de que os Tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, órgãos independentes e apenas sujeitos à lei.
XI - Os magistrados judiciais têm como função a administração da justiça, julgando apenas segundo a Constituição e a lei, às quais devem obediência.
XII - Por isso, conforme já se afirmou neste Supremo Tribunal, qualquer que seja o juiz, deve beneficiar da presunção hominis de integridade funcional.
XIII - No caso dos autos, nas várias actuações da arguida, descritas pelo recorrente e transpostas para a matéria de facto, somente se descortina um único atraso processual, que ocorreu na admissão do recurso, lapso esse confessadamente assumido e reparado quando constatado.
XIV - Mas o puro atraso processual, desgarrado de outros elementos, podendo acarretar responsabilidade disciplinar, não reveste dignidade penal, sendo insuficiente, só por si, para tipificar o crime de denegação de justiça.
XV - Nem todo o acto desconforme às regras processuais pode ser visto como contra direito, na acepção pretendida pelo n.º 1 do art. 369.º do CP, pois então qualquer nulidade processual seria tipificada como crime.
XVI - E, contrariamente ao que parece inculcar o recorrente, não é a mera divergência do decidido que pode fundamentar a imputação de que quem decidiu o fez conscientemente – dolo genérico – contra legem, e muito menos com o propósito – dolo específico – de lesar alguém, ou seja, com animus nocendi. Eventuais discordâncias com o conteúdo das decisões ou com o seu esmero técnico encontram no recurso a sua sede própria.

Decisão Texto Integral:


1. Na sequência da denúncia de factos que, na óptica de AA,(1) configuravam a prática, por parte de BB (…) do tipo legal de crime p. p. no C. P. art. 369.º, n.º 1” (2), e do arquivamento do respectivo inquérito, (3) veio aquele requerer a abertura de Instrução(4) e, entre outras considerações, articulou a seguinte ordem de razões:
“1º A arguida é Juiz de Direito e, nessa qualidade, é titular do processo n.º 34/2002 que corre os seus termos no 3º Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada.
2º Tais autos são constituídos por inventários acumulados para partilha judicial de heranças, nas quais o queixoso é interessado principal.
3º Nesse processo, o assistente, em 2 de Junho de 2003, suscitou incidente de remoção de cabeça de casal.
4º O qual só conheceu decisão em 23 de Abril de 2004.
5º Precisamente, dois dias volvidos sobre a apresentação na Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa de queixa/denúncia que o queixoso apresentara contra a arguida, por denegação de justiça (NUIPC 12/04.5TRLSB).
6º A decisão proferida no incidente foi desfavorável ao assistente.
7º A 10 de Maio de 2004, o assistente, via postal registada, interpôs recurso de tal decisão.
8º A despeito do disposto no art. 160º CPC, a verdade é que, decorridos mais de 6 meses, tal despacho não foi produzido.
9º A ausência de despacho no requerimento para interposição de recurso provoca o resultado vivido até 23 de Abril: arrastamento do incidente na primeira instância, sem fim à vista.
10º Por outro lado, a arguida revela firmeza na intenção de denegar justiça ao assistente.
De facto,
11º A 22 de Setembro de 2004 o assistente dirigiu aos autos de inventário já aqui mencionados requerimento o qual culminou peticionando:
Devem ser imediatamente proferidos os despachos de admissão/não admissão referentes aos requerimentos de interposição de recurso apresentados pelo requerente em 10/05 e 14/06 ambos de 2004.
12º Mas nem esse obteve resposta.
13º O requerimento de interposição de recurso de 14/06/2004, só em 23 de Setembro de 2004 obteve resposta.
14º Além de não decidir em matéria da sua exclusiva competência, tendo sido legalmente requerida para isso, a denunciada mostra-se insensível ao prejuízo que, com essa omissão, vem causando ao assistente e a respeito do qual lhe foi dado, por duas vezes, conhecimento.
15º Não pretendendo explorar, nem aflorar a previsão do nº 2 do art. 369º CP, porque registou a premonitória resistência que as queixas que apresentou tiveram,
16º Resta-lhe concluir que a prática da acção imputada o foi livre e conscientemente.
17º A arguida praticou, pois, um crime de denegação de justiça p.p. no art. 369º, 1 CP”.

1.1 No Tribunal da Relação de Lisboa, o juiz de instrução entendeu que, “Por tal requerimento não satisfazer as exigências legais tem que ser rejeitado, por inadmissibilidade legal da instrução art. 287-3 do Cód. Proc. Penal e, consequentemente, determinado o arquivamento dos autos”. (5).
1.2 Sindicado tal despacho, (6) este Supremo Tribunal, dando provimento ao recurso interposto pelo assistente, revogou a decisão recorrida, ordenando, do mesmo passo, que fosse substituída por outra que declarasse aberta a instrução.(7)

1.3 Aberta a referida fase processual, efectuadas as diligências reputadas pertinentes e o Debate Instrutório, (8) veio a ser lavrado Despacho de Não Pronúncia. (9)

1.4 Após o que o assistente recorreu, quer do despacho que determinou “o desentranhamento do requerimento de fls. 203 a 207”, quer do teor da decisão instrutória.(10)


1.5 Chamado a pronunciar-se, o Supremo Tribunal decidiu “julgar procedente o recurso interposto do despacho que determinou a não inserção processual de documentos nos termos requeridos pelo assistente”, sendo certo que “a presente decisão sobre o despacho interlocutório tornou irrelevante a análise do restante recurso interposto e a análise dos elementos constitutivos do crime de denegação de justiça (…)”. (11)

1.6 Retornados os autos ao Tribunal da Relação, foram instruídos com nova certidão do processado realizado no Proc. n.º 34/2002 (Inventário), pendente no 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada (12) e, efectuado Debate Instrutório,(13) foi exarado Despacho de Não Pronúncia. (14)
1.7 Novamente irresignado, o assistente interpôs recurso, terminando a motivação com a formulação das seguintes conclusões : (15).
1 – O elemento subjectivo do crime imputado à arguida está confirmado até pela própria decisão a quo (fls. 387 e s. dos autos).
2 – A decisão recorrida falha, no entanto, quando considera que a arguida agiu sem dolo directo.
3 – Para tanto, apoia-se no inciso conscientemente que surge no enunciado da norma incriminadora (CP art. 369,n.º1). (Fls. 389 dos autos).
4 – Simplesmente, esse termo não tem o alcance que lhe dá o Venerando Tribunal a quo.
5 – O vocábulo conscientemente serve para distinguir os erros de ofício dos erros de malícia, conforme se expressava a nossa antiga doutrina.
6 – Ou seja: traça a distância que corre entre uma decisão juridicamente infundada, mas que foi proferida porque o seu autor estava convicto da sua bondade; e aquela que se toma, quando perfeitamente se sabe que se está a agir contra legem.
7 – Parece manifesto que foi este o comportamento da arguida.
8 – O despacho de arquivamento, na fase de inquérito deste processo (fls. 10 e s. dos autos), em lugar de justificar o comportamento da arguida, só veio provar que esta conhece o seu dever magistrada e tem competência para o cumprir de modo positivo.
9 – Nem poderá valer à arguida a tese de que, prazos como o que ela largamente infringiu (CPC art. 160.º, n.º1), são prazos meramente ordenadores, porque mesmo estes não dispensam os destinatários da obediência devida.
10 – Para reforço da ideia de ter a arguida agido com dolo directo, o assistente remete para o depoimento do Ex.mo Conselheiro Ferreira de Almeida (fls. 188 a 191 dos autos), depoimento ao qual é difícil exigir maior eloquência.
11 – E termina lembrando o final do acórdão ferido por esse Supremo Tribunal (fls. 73 dos autos).
Termos em que, não pronunciando a arguida, o Venerando Tribunal a quo fez incorrecta aplicação da lei, porque não interpretou devidamente ao norma do CP art. 369.º, n.º1, pelo que se requer a revogação da decisão recorrida, com as consequências legais!”.


1.8 Admitido o recurso e notificados os intervenientes processuais, a arguida não se pronunciou e o Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu como segue: (16)
“1º Contrariamente ao que vem alegado pelo recorrente o despacho recorrido interpretou devidamente a norma que ali se diz violada – o artº 369º do C. Penal – uma vez que não resultou da instrução, como já não tinha resultado do inquérito, indiciação suficiente da prática pela arguida de factos integradores do crime pelo qual o recorrente entende que a mesma deve ser levada a julgamento.
2º Não está suficientemente indiciado que a arguida tenha agido com violação dos deveres a que o respectivo cargo a obriga e que o tenha feito com a intenção de prejudicar, neste caso, o interessado naquele procedimento.
3º Esta conclusão que se retira com evidente limpidez quer do inquérito quer da instrução é, parece-nos, tão nítida que não vemos que mais se possa acrescentar a tudo o que já consta, em absoluto desperdício de meios, de todo o processo, pelo que nada mais nos cabe acrescentar,
4º Para concluir que não temos dúvidas que esse Alto Tribunal manterá a decisão sob recurso e que, assim decidindo, fará
JUSTIÇA”.


1.9 Neste Supremo Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto teve “vista” nos autos.(17)


2. Colhidos os vistos legais, procedeu-se a Audiência de Julgamento.
2.1 A matéria de facto, conforme emerge da decisão recorrida: (18).
“1. A arguida é Juiz de Direito e, nessa qualidade, foi-lhe distribuído o processo de inventário n.º 34/2002 do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada.
2. Nesse processo, o assistente AA suscitou em 4/6/2003 o incidente de remoção de cabeça de casal cuja decisão foi proferida em 23/4/2004 com conclusão aberta em 20/4/2004
3. O assistente recorreu dessa decisão, tendo o requerimento de interposição do recurso dado entrada na secretaria judicial em 12/5/2004 e sido aberta conclusão em 28/5/2004
4. Nessa mesma data foi proferido despacho, que, no entanto, não versou sobre a admissão daquele recurso, por confessado lapso da arguida na correspondência dirigida ao Conselho Superior da Magistratura a fls. 195.
5. Deste despacho proferido em 28/5/2004 recorreu o assistente e o recurso foi admitido em 23/9/2004, sendo a conclusão da mesma data.
6. No período compreendido entre 28/5/2004 e 23/9/2004 não foi aberta nenhuma conclusão.
7. Depois de 23/9/2004 só foi aberta conclusão em 2/11/2004, por ordem verbal, em 4/11/2004, e, por duas vezes, em 9/11/2004, tendo sido proferidos despachos na mesma data.
8. Em 9/11/2004, na segunda vez, foi admitido o recurso referido em 3 pela substitua legal da arguida, a quem esta mandou abrir conclusão por ter requerido escusa
9. O assistente apresentou queixa contra a arguida na Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa de queixa/denúncia, por denegação de justiça (NUIPC 12/04.5TRLSB) que foi mandada arquivar por insuficiência de indícios.
10. Em Setembro de 2004 o assistente dirigiu aos autos de inventário já aqui mencionados requerimento o qual culminou peticionando:
“Devem ser imediatamente proferidos os despachos de admissão/não admissão referentes aos requerimentos de interposição de recurso apresentados pelo requerente em 10/05 e 14/06 ambos de 2004.”
11. Em 11/11/2004, o Conselho Superior da Magistratura, a fls. 193, decidiu mandar arquivar o inquérito para efeitos disciplinares contra a arguida, versando sobre o referido processo de inventário”.

2.2 Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o objecto do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas da motivação do recorrente.
Por conseguinte, a questão decidenda consiste em apurar se existem indícios suficientes da prática do crime p. e p. pelo art. 369.º do Código Penal, (19) que imponham a prolação de Despacho de Pronúncia e justifiquem a submissão da arguida a Julgamento.

2.3 Perante a factualidade acima consignada, eis como a decisão recorrida a enquadrou:
“Cumpre então decidir sobre se os autos indiciam ou não suficientemente com tais documentos a prática de um crime p. p. no art. 369, nº1 do Código Penal.
O art. 283, nº2, do Código de Processo Penal determina que
Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
Assim, indícios suficientes consistem naqueles elementos de facto trazidos pelos meios probatórios ao processo, os quais livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, a manterem-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é atribuído (ac Rel Coimbra de 29/3/1966 Jur Rel.2,419).
Ora, o art. 369, nº 1, do Código Penal dispõe que
O funcionário que, no âmbito de um inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar acto no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 120 dias.
Este tipo de crime consiste na violação dos deveres decorrentes do cargo, independentemente de intenção de causar qualquer prejuízo, e pretende assegurar o domínio da supremacia do direito objectivo na sua aplicação pelos órgãos de administração da justiça
Exige-se ainda neste tipo de crime, como elemento subjectivo, o dolo directo, que se traduz na respectiva “fattispecie” na fórmula utilizada “conscientemente”,
Assim, não se encontra abrangido pela norma o dolo eventual na definição do nº 3 do art. 14 do Código Penal.
E para “a afirmação do dolo, segundo Figueiredo Dias “apud” O Problema da Consciência da ilicitude, pág. 470, é necessário o conhecimento dos elementos normativos do tipo, (rectius, o conhecimento das características do comportamento concreto correspondentes aos elementos normativos do tipo), na precisa medida em que tal conhecimento seja indispensável á correcta orientação do agente para o problema da ilicitude do facto como um todo. Para alem disto, o erro sobre os elementos normativos será irrelevante para o dolo e só poderá relevar para a culpa através de uma autêntica falta de consciência da ilicitude
Não se descortina, porém, como substrato da matéria factual acima descrita, a representação pela arguida da violação do cumprimento dos deveres do seu cargo e com a intenção praticar o correspondente facto criminalmente ilícito, ao não ter admitido no prazo de 10 dias (cfr. art. 160, nº1, do Código de Processo Civil) o recurso interposto pelo assistente do despacho do despacho de indeferimento da remoção do cabeça de casal.
Efectivamente, a arguida BB, nas datas das conclusões que lhe foram abertas no dito inventario, não deixou de proferir despachos nas mesmas datas, quando não nos três dias úteis seguintes, ainda que, num desses despachos, em 28/5/2004, não se houvesse pronunciado sobre um anterior requerimento de recurso.
Isso, porém, não significa violação consciente (dolosa) dos deveres do cargo de Juíza de Direito.
Donde, não havendo dolo não se verifica o crime p. p. no art. 369, nº1 do Código Penal.
Termos em que se decide não pronunciar a arguida BB pelos factos que constam no requerimento de abertura da instrução do assistente AA (…)”.


3. No dizer da lei – art. 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal –, “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Segundo se extrai do n.º 2 do artigo seguinte, o requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas há-de definir o thema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão de acusação ou de não acusação. (20).
Quando o requerente da instrução é o assistente, o limite tem de ser definido pelos termos em que, segundo o próprio, deveria ter sido deduzida acusação e, consequentemente, não deveria ter sido proferido despacho de arquivamento – no rigor, por um modelo de requerimento que deve ter o conteúdo de uma acusação alternativa, ou, materialmente, da acusação que o assistente entende que deveria ter sido produzida, fundada nos elementos de prova recolhidos no inquérito, de onde constem os factos que considerar indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do princípio do contraditório – arts. 308.º e 309.º, ambos desse diploma.
Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige a prova, no sentido da certeza moral da infracção, bastando-se com indícios da sua prática, de onde se possa formar a convicção de que existe uma probabilidade razoável de ter sido cometido um crime pelo arguido.
Assim sendo, os indícios probatórios – que não a mera discordância legal, doutrinal ou jurisprudencial – são suficientes sempre que deles resultar uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança - arts. 283.º, n.ºs 1 e 2, e 308.º, n.ºs 1 e 2, daquele diploma legal.
Tanto a doutrina, como a jurisprudência, têm realçado que a “possibilidade razoável” de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa: “o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido” ou, noutras palavras, os indícios são suficientes quando existe “uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”. (21)


3.1 Na perspectiva do recorrente os autos contêm indícios suficientes de que, a resultarem provados em audiência de julgamento, conduzirão, com possibilidade razoável, à condenação da arguida pela prática do crime de denegação de justiça, a que alude o art. 369.º, n.º 1, do Código Penal.


4. Os n.ºs 1, 2 e 3 do art. 369.º do Código Penal correspondem aos arts. 415.º e 416.º do diploma na sua versão originária, relativos aos crimes de prevaricação e de denegação de justiça, ali se concentrando diversas disposições que se espalhavam na versão originária, «pretendendo substituir diversos crimes do Código». Cf. Código Penal - Actas e Projecto da Comissão de Revisão, maxime 36.ª, 37.ª e 51.ª Sessões, ocorridas em 22-06 e 05-07, do ano de 1990 e em 15-01-1991 e Acórdão de 12-11-1998, Proc. n.º 383/98 - 5.ª.
O dispositivo em apreço – o de denegação de justiça – insere-se no Capítulo atinente aos crimes contra a realização da Justiça e no Título subordinado aos crimes contra o Estado, inculcando que com tal incriminação se visa preferencialmente assegurar o interesse do Estado na boa, límpida e equitativa realização da justiça, apontando no sentido de conferir prevalência e preponderância ao interesse público.(22).
Por isso, tem sido referido que o bem jurídico objecto imediato de tutela é a recta administração da justiça, a defesa dos direitos dos cidadãos e a garantia da pessoa humana, sendo titular imediato de tais interesses o Estado. (24)
Este é um ilícito que pressupõe uma especial qualidade do agente e a violação de poderes funcionais inerentes ao cargo desempenhado, configurando um crime específico, que mais não é do que um comportamento, activo ou omissivo, de funcionário contra direito.(25)
Agir contra direito significa, essencialmente, a contradição da decisão (aqui incluindo, claro está, o comportamento passivo) com o prescrito pelas normas jurídicas pertinentes. (26)
O n.º 1 da norma satisfaz-se com o dolo genérico, mas que terá de revestir a modalidade de dolo directo, (27) desinteressando-se aqui a lei dos fins ou motivos do agente. (28)
É certo que quando a lei exige o cometimento doloso para a verificação do tipo subjectivo, significa que quer abranger desde a sua forma mais intensa até à sua modalidade mais fraca. (29).

Todavia, através da formulação típica – exigindo uma particular forma de conhecimento ou de vontade do agente –, o legislador pode restringir a sua esfera de aplicação.
Esse desiderato é conseguido com a introdução de expressões como conscientemente ou intencionalmente e, nessa medida, cinge-se o agir doloso apenas ao dolo directo.
Ora, é precisamente a situação do art. 369.º, n.º 1.


4.1 Voltando ao caso vertente.
Encontra assento constitucional o princípio de que os Tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, órgãos independentes e apenas sujeitos à lei. (30)
Os magistrados judiciais têm como função a administração da justiça, julgando apenas segundo a Constituição e a lei, a quem devem obediência. (31)
Por isso, conforme já se afirmou neste Supremo Tribunal, qualquer que seja o juiz, deve beneficiar da presunção hominis de integridade funcional. (32)
Nas várias actuações da arguida, descritas pelo recorrente e transpostas na matéria de facto, somente se descortina um, único, atraso processual, que é o na admissão do recurso – factos n.ºs 3 e 4.
Lapso esse confessadamente assumido e reparado quando constatado – facto n.º 4.
Mas o puro atraso processual, desgarrado de outros elementos, podendo acarretar responsabilidade disciplinar, (33) não reveste dignidade penal, sendo insuficiente, só por si, para tipificar este crime. (34).
Nem todo o acto desconforme às regras processuais pode ser visto como contra direito, na acepção pretendida pelo n.º 1 do art. 369.º do Código Penal, pois então qualquer nulidade processual seria tipificada como crime.
Nos demais casos, a arguida respeitou escrupulosamente os prazos processuais – ainda que meramente ordenadores (art. 160.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) –, pois os despachos, ou foram proferidos nas próprias datas em que os processos foram conclusos v.g., facto n.º 5 – ou, num dos casos, no terceiro dia subsequente (facto n.º 2 – abertura da conclusão em 20-04-2004 e despacho datado de 23-04-2004).
A afirmação de que o incidente de remoção de cabeça de casal só conheceu decisão em 23-04-2004, quando havia sido deduzido em 04-06-2003 – arts. 3.º e 4.º do requerimento de abertura da instrução –, isoladamente, nada prova ou, sequer, indicia, já que houve todo um iter processual, legalmente definido, a percorrer.
Seguramente não pretenderá o recorrente que todos os despachos, decisões ou sentenças sejam sempre e em todos os casos proferidos na mesma data em que é aberta conclusão nos processos, olvidando a diferente complexidade das questões, o estudo das diversas matérias submetidas à análise do magistrado titular ou a muito frequente elevada carga processual e de diligências vividas na maior parte dos Tribunais.
Percorrida a motivação de recurso, condensada nas respectivas conclusões, não é narrada qualquer outra circunstância que seja susceptível, ainda que hipoteticamente, de integrar “decisão contra direito”, isto é, o acto de decidir ou a omissão de não decidir, com a consciência de alterar a realidade, de modo que se sabe ser contrário à lei vigente e a cujo cumprimento se está adstrito.
O recorrente não descreve factos; apenas adianta conjecturas subjectivas e interpretações conclusivas – cf. arts. 10.º, 14.º e 16.º, todos do requerimento de abertura da instrução –, sem nenhum elemento objectivo que as conforte ou que se possam acolher na descrição típica do ilícito.
Contrariamente ao que parece inculcar o recorrente, não é a mera divergência do decidido que pode fundamentar a imputação de que quem decidiu o fez conscientemente – dolo genérico – contra legem, e muito menos com o propósito – dolo específico – de lesar alguém, ou seja, com animus nocendi.
Eventuais discordâncias com o conteúdo das decisões ou com o seu esmero técnico encontram no recurso a sua sede própria.
Reitera-se que este tipo legal de crime demanda para o seu preenchimento um desvio voluntário e intencional dos deveres funcionais, de forma a poder afirmar-se uma “negação da justiça”.
No termo da instrução cabe ao juiz que a preside efectuar um juízo de prognose em torno do desfecho da causa em julgamento: ora, a avaliação global dos factos supra enumerados não suporta a conclusão minimamente consistente de que a arguida, Juiz de Direito e agindo nessa qualidade profissional, tenha infringido os deveres a que se encontra vinculada por força desse munus.
Perante a ausência de indícios visíveis, racionais ou palpáveis, coligidos nos autos, impunha-se a prolação de despacho de não pronúncia, razão pela qual não censura merece a decisão recorrida.


5. Nos termos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso interposto por AA, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, com seis UCs. de taxa de justiça (art. 87º, n.º 1, al. a), do C.C.J., em vigor à data).
Oportunamente, comunique-se ao Conselho Superior da Magistratura.
Supremo Tribunal de Justiça, 21 de Maio de 2008
Soreto de Barros (relator)
Armindo Monteiro
Maia Costa
Pires da Graça
____________________________________________
(1) Constituído assistente, por despacho exarado a fls. 20.
(2) Fls. 2 a 5, com entrada na Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa em 14-10-2004.
(3) Despacho de fls. 10/11, de 18-10-2004.
(4) Requerimento a fls. 24 a 28, contendo rol de testemunhas e instruído com documentos.
(5) Despacho de 07-01-2005 (fls. 33 a 34 v.º) .
(6) A fls. 41 a 45 v.º.
(7) Acórdão de 01-06-2005, Proc. n.º 1264/05, desta Secção (aqui, a fls. 66 a 73) .
(8) Flss. 89; 95; 98 a 101; Autos a fls. 107/108, 111 a 113, 166/167 e 185/186; 117; Certidão a fls. 126 a 153; 181 e 188 a 191 e Acta a fls. 213/214.
(9)Despacho de 19-09-2006, a fls. 220 a 228.
(10) Os originais dos requerimentos integram-se a fls. 240 a 246 e 261 a 267, ainda do 1.º volume.
(11)Acórdão de 14-02-2007, Proc. n.º 4545/06, também desta Secção.
(12) Fls. 310 a 382.
(13) A fls. 306.
(14) Despacho de 05-06-2007, fls. 385 a 389.
(15) Fls. 393 a 399
(16) Fls. 404, ofício cotado a fls. 405 e fls. 408/409, respectivamente.
(17) Fls. 412.
(18)Fls. 385 a 389, maxime 387/388
(19) Sob a epígrafe “Denegação de justiça e prevaricação”, estatui:
“1 – O funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar acto no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 120 dias.
2 – Se o facto for praticado com intenção com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, o funcionário é punido com pena de prisão até 5 anos.
3 – Se, no caso do n.º 2, resultar privação da liberdade de uma pessoa, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
4 – Na pena prevista no número anterior incorre o funcionário que, sendo para tal competente, ordenar ou executar medida privativa da liberdade de forma ilegal, ou omitir ordená-la ou executá-la nos termos da lei.
5 – No caso referido no número anterior, se o facto for praticado com negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa”.
(Este preceito manteve-se inalterado na recente reforma do Código Penal, operada pela Lei 59/2007, de 04-09)
(20) Seguindo-se de perto o Acórdão de 07-03-2007, Proc. n.º 4688/06 - 3.ª; quanto à estrutura acusatória do processo penal, o objecto do processo e a fase da instrução, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 358/2004, de 19-05-2004, exarado no Proc. n.º 807/03 - 2.ª (DR II Série, de 28-06-2004); para a caracterização desta fase facultativa, Eduardo Correia, Processo Criminal, Coimbra, 1956 e Souto de Moura, Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1989.
(21) Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, págs. 347-348, e Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, l, 1974, pág. 133 e, ainda, Acórdão de 12-01-2006, Proc. n.º 1137/05 - 5.ª, em que figura como assistente o dos presentes autos.
(22) Cf. Código Penal - Actas e Projecto da Comissão de Revisão, maxime 36.ª, 37.ª e 51.ª Sessões, ocorridas em 22-06 e 05-07, do ano de 1990 e em 15-01-1991 e Acórdão de 12-11-1998, Proc. n.º 383/98 - 5.ª.
(23) Neste sentido, Acórdão de 18-09-1997, Proc. n.º 527/97 - 3.ª.
(24) Entre outros, Acórdãos de 11-12-1997, Proc. n.º 868/97; de 20-01-1998, Proc. n.º 1326/97; de 18-06-1998, Proc. n.º 411/98, e de 14-01-1999, Proc. n.º 1251/98, todos da 3.ª Secção.
(25) Acórdão de 07-12-2000, Proc. n.º 2536/00 - 5.ª; com interesse, Acórdão de 14-11-2002, Proc. n.º 2696/02, também da 5.ª.
(26) Medina de Seiça, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 615.
(27) Estipula o art. 14.º, n.º 1, que “Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar”.
(28)Maia Gonçalves, Código Penal Português, 18.ª Edição, Almedina, 2007, anotação ao art. 369.º, págs. 1087 a 1089 e Acórdão de 01-06-2005, Proc. n.º 1264/05 .
(29) Para maiores desenvolvimentos, a anotação de Medina de Seiça, ob. cit., págs. 619/620.
“O dolo, a intenção criminosa, pertence ao foro íntimo das pessoas; ele alcança-se a partir do fim: age intencionalmente aquele que procura realizar, objectivando o fim a que se propõe a vontadematerialmente exteriorizada, em indícios que servem de meios de prova” – Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português, I, Verbo, pág. 459, apud Acórdão de 17-12-2003, Proc. n.º 3868/03 - 3.ª.
(30) Arts. 202.º, n.º 1 e 203.º, da Constituição da República Portuguesa.
(31) Arts. 3.º, n.º 1 e 4.º, do Estatuto dos Magistrados Judiciais.
(32) Acórdão de 16-06-2005, Proc. n.º 1938/05 - 5.ª.
(33)O inquérito (cf. art. 132.º, n.º 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais) foi arquivado, como decorre do facto n.º 11.
(34) Acórdão de 08-02-2007, Proc. n.º 4816/06 - 5.ª, com o mesmo assistente.