Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1331/19.1T9LSB-A.L1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: SEGREDO PROFISSIONAL
QUEBRA DE SEGREDO PROFISSIONAL
INQUÉRITO
TRIBUNAL DE COMARCA
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
COMPETÊNCIA
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ACESSO AO DIREITO
INTERESSE EM AGIR
LEGITIMIDADE
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 12/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – PROVA / MEIOS DE PROVA / PROVA TESTEMUNHAL / MEIOS DE OBTENÇÃO DA PROVA / APREENSÕES – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / RECURSOS PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Doutrina:
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra Editora, 4.ª ed., 2007, p. 418 e 516;
- Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo 1I, Coimbra Editora, 2005, p. 200 e ss. e 354;
- Santos Cabral, Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, 2.ª ed., Almedina, p. 493.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 131.º, N.º 1, 135.º, N.ºS 2 E 3, 182.º, N.º 2, 399.º, 401.º, N.ºS 1, ALÍNEAS A) E D) E 2 E 432.º, N.º 1, ALÍNEA A).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 20.º, N.ºS 1 E 4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 24-04-2019, PROCESSO N.º 5837/16.6T9LSB-A.L1.S1;
- DE 02-05-2019, PROCESSO N.º 2236/16.3T8AVR-A.P1.S1;
- DE 10-09-2019, PROCESSO N.º 17359/17.3T8PRT-A.P1-A.S1;
- DE 31-10-2019, PROCESSO N.º 7078/18.9T9LSB-A.L1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. A obtenção de prova sobre factos ou documentos abrangidos por segredo profissional, invocado como escusa a depor ou como recusa de apresentação, é susceptível de gerar um incidente processual com vista a obter a quebra do segredo mediante a intervenção do tribunal da primeira instância, destinada a verificar a legitimidade da recusa, e a intervenção do tribunal da Relação, destinada a decidir a quebra do segredo; concluindo o tribunal da 1.ª instância que a escusa ou a recusa são legítimas, por estarem legalmente protegidas por segredo, cabe ao «tribunal imediatamente superior» decidir da quebra do segredo (n.ºs 2 e 3 do artigo 135.º e do n.º 2 do artigo 182.º do CPP).

II. A intervenção destes dois tribunais na decisão do incidente corresponde a duas fases processuais distintas.

III. Numa primeira fase, a que se refere o n.º 2 do artigo 135.º do CPP, em que intervém o tribunal da 1.ª instância, perante o qual corre o processo, trata-se de saber se a pessoa se pode escusar a depor ou pode recusar fornecer documentos por estar vinculada a um dever de segredo profissional ou de funcionário, o que deverá ser decidido após a realização das diligências necessárias, devendo o tribunal ordenar a prestação do depoimento ou a apresentação dos documentos se concluir pela ilegitimidade da escusa ou da recusa.

IV. O procedimento legalmente previsto quanto a esta primeira fase garante a participação no processo e o direito ao recurso da pessoa visada pela decisão, alegadamente obrigada a respeitar o segredo, pois que, discutindo-se o seu direito de escusa ou de recusa, nele tem legitimidade e indiscutível interesse em agir (artigos 399.º e 401.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, e n.º 2, do CPP).

V. A intervenção do Tribunal da Relação, enquanto «tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado», nos termos do n.º 3 do artigo 135.º do CPP, não como tribunal de recurso, só surge, numa segunda fase, nas situações em que, reconhecida a legitimidade da escusa ou da recusa, a pessoa visada não está obrigada a depor ou a apresentar documento por força da decisão do tribunal da 1.ª instância.

VI. O que, nesta segunda fase, há que apreciar e decidir é se, perante o conflito entre o dever de testemunhar (artigo 131.º, n.º 1, do CPP) e o dever de guardar segredo, se justifica a quebra do segredo segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante; ao ser chamado a decidir sobre a quebra do segredo, o tribunal da Relação não tem que equacionar o interesse da pessoa obrigada a guardar segredo, mas apenas o interesse público na perseguição de infracções criminais, na ponderação da colisão de deveres que se impõem à recorrente e não da restrição de um direito já reconhecido.

VII. Não correndo e não devendo o processo ser julgado no tribunal da Relação e tendo a decisão recorrida sido proferida por este tribunal por, nos termos do n.º 3 do artigo 135.º do CPP, ser o imediatamente superior ao tribunal onde foi suscitado o incidente, não pode esta decisão ser considerada como uma «decisão da relação proferida em 1.ª instância», nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 432.º, n.º 1, al. a), do CPP.

VIII. Mesmo que assim não fosse, sempre se deveria também concluir pela inadmissibilidade do recurso para o STJ por o recorrente não ter legitimidade nem interesse em agir [artigo 401.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, e n.º 2, do CPP)].

IX. A norma extraída da interpretação da alínea a) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP, segundo a qual o acórdão do tribunal da Relação proferido ao abrigo do n.º 3 do artigo 135.º do CPP não constitui uma decisão proferida em 1.ª instância, não se encontra ferida de inconstitucionalidade por violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição.

Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


I.  Relatório


1. A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) vem, nos termos do disposto nos artigos 379.º, n.º 1 e 2, 399.º, 401.º, n.º 1, alínea d), 411.º e 412.º, do Código de Processo Penal (CPP), interpor recurso do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 09.05.2019, que, quebrando o segredo profissional, decidiu dispensar a recorrente da observância do sigilo a que está obrigada.

2. Apresenta motivação de que extrai as seguintes conclusões:

«1.  Por Ofício datado de … .05.2019, a CMVM, sem que tivesse sido notificada da douta promoção por parte do titular da ação penal tendente à quebra do segredo profissional, nem dela tendo tomado conhecimento por qualquer outro modo, foi notificada de cópia do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação Lisboa, datado de … .05.2019, que decidiu dispensar a CMVM da observância do dever de segredo nos autos de inquérito do Processo n.º 1331/19.1T… .

2.  Não se conformando com tal decisão, vem a CMVM, nos termos do disposto nos artigos 379.º, n.º 1 e 2, 399.º, 401.º, n.º 1, alínea d), 411.º e 412.º, todos do CPP, apresentar recurso do referido Acórdão do Tribunal da Relação Lisboa, datado de 09.05.2019.

3.  O Tribunal da Relação funcionou como primeira instância de decisão quanto à justificação da quebra do segredo profissional da CMVM, pondo termo ao incidente.

4.  Ora, não podendo ser atribuída ao objeto do presente processo outra qualificação que não seja a de uma decisão proferida em primeira instância, a mesma terá de ser obviamente considerada recorrível nos termos do disposto no artigo 399.º e 432.º, n.º 1, alínea a) do CPP.

5.  De outro modo, a norma resultante da interpretação conjugada dos n.ºs 3 e 4 do artigo 135.º do Código de Processo Penal e do artigo 432.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a decisão do Tribunal da Relação que quebra o segredo profissional invocado nos termos do disposto no artigo 135.º é irrecorrível, é inconstitucional por violação do disposto no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da CRP.

6.  Mais se invocando a inconstitucionalidade, para os devidos efeitos legais, da norma contida no n.º 4 do artigo 135.º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, no âmbito da invocação de escusa para facultar o acesso a elementos e/ou documentos abrangidos pelo segredo profissional perante o Tribunal de 1.ª instância, o tribunal superior pode não permitir a uma entidade não dotada de organismo representativo da profissão o exercício do direito ao contraditório e os direitos de defesa constitucionalmente garantidos no processo/incidente de quebra de segredo profissional em que é requerida, e simultaneamente não admitir o recurso da decisão proferida, por violação do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da CRP.

7.  O Acórdão do Tribunal a quo enferma de nulidade, ao abrigo do disposto nos artigos 119.º, alínea e), e 379.º, n.º 1, alínea c), in fine, todos do CPP.

8.  Constata-se que, por força das restrições ao âmbito de cognição do Tribunal inerentes ao princípio da estrutura acusatória do processo consagrado no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, bem como das limitações impostas pelo princípio do pedido, padece o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de nulidade por violação das regras de competência material do Tribunal e ainda por excesso de pronúncia, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 119.º, alínea e), e 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, respetivamente.

9.  O Acórdão proferido em … .05.2019 pelo Tribunal da Relação de Lisboa não respeitou os limites e âmbito de cognição do Tribunal, conduzindo à nulidade do Acórdão por violação do princípio da estrutura acusatória do processo, do princípio do pedido, e das regras de atribuição de competência materialmente jurisdicional.

10.    O princípio do pedido impõe que também no incidente de quebra de segredo profissional da CMVM o Tribunal não possa exceder a iniciativa do Ministério Público quanto à conformação e extensão dos elementos e informações solicitadas à CMVM, na qualidade de requerida e escusante.

11.    A estrutura acusatória do processo penal está dependente da subordinação ao objeto definido pelo Ministério Público na fase de inquérito de que é titular, podendo praticar, com tendencial amplitude e autonomia, todos os atos e diligências probatórias necessários à investigação da notícia do crime (artigo 267.º do CPP).

12.    O Tribunal da Relação de Lisboa ultrapassou o impulso da promoção do Ministério Público quanto ao objeto e extensão da quebra do segredo profissional, decidindo para além do pedido do Ministério Público, nos termos e para os efeitos do artigo 119.º, alínea e), e do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), in fine, ambos do CPP, ao decidir que deveria a CMVM «fornecer ao Ministério Público todos os elementos e informações por este já solicitados, bem como todos os demais que se vierem a mostrar necessários para a investigação em causa».

13.    O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa excedeu a delimitação do objeto do incidente de quebra de segredo profissional como definido pelo Ministério Público, e que aí se estabilizou, padecendo de nulidade insanável por violação das regras da competência material (artigo 119.º, al. e), do CPP), e ainda de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos e para os efeitos do 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP. 

14.    Razão pela qual, para os devidos efeitos legais, não se poderá deixar de invocar desde já a inconstitucionalidade das normas contidas nos n.os 3 e 4 do artigo 135.º do Código de Processo Penal na interpretação segundo a qual, no âmbito da promoção do Ministério Público para quebra de segredo profissional, pode o Tribunal superior ultrapassar o objeto do pedido formulado pelo Ministério Público, por violação da estrutura acusatória do processo, prevista no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

15.    O Acórdão do Tribunal a quo enferma de irregularidade, ao abrigo do disposto nos artigos 399.º, 410.º, n.º 3 e 432.º, n.º 1, alínea a), todos do CPP.

16.    Após a invocação do segredo profissional perante o DIAP, o mesmo deu origem a um incidente de quebra de segredo profissional, nos termos do disposto no artigo 135.º do CPP, sem que, em momento prévio à prolação do Acórdão, a CMVM tenha sido notificada de qualquer momento da respetiva tramitação processual: i) a CMVM não tomou conhecimento de que a quebra do segredo foi requerida; ii) a CMVM não foi notificada para se pronunciar sobre o pedido de quebra.

17.    O disposto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP institui um regime de quebra de segredo profissional que, como já salientou o Supremo Tribunal de Justiça, apresenta “dois momentos de tramitação que respondem a duas questões distintas”: um primeiro momento, que versa sobre a legitimidade ou ilegitimidade da escusa; um segundo momento, que versa sobre a justificação da quebra do segredo profissional (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16.10.2014, processo n.º 1233/13.5YRLSB.S1).

18.    Não basta que o sujeito obrigado ao segredo seja ouvido no primeiro momento da tramitação, já que cada momento de tramitação responde a questões distintas: uma coisa é participar na invocação e averiguação da legitimidade da escusa com base em segredo profissional (primeiro momento); outra é participar no processo de ponderação dos interesses em confronto para efeitos da quebra do segredo profissional (segundo momento).

19.     Tratando-se de “dois momentos de tramitação que respondem a duas questões distintas”, o titular dos interesses em causa (nomeadamente o sujeito obrigado ao segredo profissional que invocou a escusa) tem o direito de participar em qualquer dos momentos do processo decisório, quer (naturalmente) invocando a escusa e sustentando a sua legitimidade quer, posteriormente, pronunciando-se sobre a verificação (ou não) dos pressupostos de que depende a quebra do segredo.

20.     É evidente que quem invoca escusa com base em segredo profissional deve participar no processo de ponderação dos interesses em conflito, já que, devendo tal ponderação ser feita em concreto, é ele quem, enquanto sujeito do dever, está em melhores condições para expor perante o tribunal superior as questões em causa – não se podendo aceitar que a decisão de ponderação seja orientada apenas pelos fundamentos de quem requer a quebra do segredo.

21.     No caso em apreço, uma vez que não existe um organismo representativo da profissão com poderes de tutela do segredo profissional da CMVM, é evidente que a aplicação (com as devidas adaptações) do artigo 135.º do CPP ao incidente de quebra de segredo profissional da CMVM, impõe que a CMVM seja ouvida, primeiro, na apreciação da legitimidade da sua escusa e, depois, na apreciação da justificação para a (eventual) quebra de segredo.

22.     Com efeito, salvo o devido respeito, o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa violou o direito de acesso aos tribunais e ao direito, na sua dupla vertente de direito de defesa e de direito a um processo equitativo, constitucionalmente consagrado no artigo 20.º, n.os 1 e 4 da CRP, uma vez que, sendo a CMVM escusante e destinatária da decisão proferida pelo Tribunal a quo, apenas teve conhecimento do processo com a notificação do referido Acórdão, não tendo tido oportunidade de se pronunciar quanto à quebra do segredo profissional a que se encontra sujeita em momento anterior à decisão do Tribunal da Relação de Lisboa.

23.     O direito de acesso aos tribunais e o princípio do processo equitativo constitucionalmente consagrados impõem que fosse dada à CMVM a oportunidade de se pronunciar, de invocar as suas razões de facto e de direito, de poder influenciar a decisão da causa quanto à justificação para a quebra do segredo profissional, dando cumprimento ao princípio do contraditório, que constitui uma decorrência do referido direito de acesso aos tribunais e a um processo equitativo, bem como à proibição da prolação de decisões surpresa.

24.      No âmbito próprio do processo penal, onde ocorre o presente incidente, o princípio do contraditório vigora ubiquamente e não se limita aos sujeitos processuais (Tribunal, Arguido e seu Defensor, Ministério Público e Assistente), antes se projetando em qualquer participante ou interveniente no processo.

25.     Mais, a qualificação da quebra de segredo profissional como incidente não pode deixar de implicar a convocação das normas processuais previstas, no CPC, para os incidentes da instância, por via do disposto no artigo 4.º do CPP.

26.      Ora, independentemente da consagração de regras especiais para o incidente de quebra do segredo profissional, maxime no artigo 135.º do CPP (aplicável ex vi artigo 417.º do CPC), a verdade é que é transversal à regulação dos incidentes, consignada nos artigos 292.º e ss. do CPC, a previsão de audiência do Requerido, apanágio do princípio do contraditório.

27.      Ao que acresce que, além do princípio do contraditório, o Acórdão recorrido não deu cumprimento ao princípio da igualdade de armas, enquanto decorrência do processo equitativo, encontrando respaldo no artigo 20.º, n.º 4 e 32.º, n.º 1, ambos da CRP, e nos artigos 283.º, n.º 3, alínea d), e n.º 7, e 315.º, n.º 4, do CPP, não podendo deixar de ter aplicação relativamente aos demais intervenientes processuais, nomeadamente à entidade escusante no âmbito do incidente de quebra do segredo profissional relativamente à entidade que promove o respetivo incidente.

28.      O direito de acesso aos tribunais e o princípio do processo equitativo constitucionalmente consagrados postulam que tivesse sido dada à CMVM a oportunidade de se pronunciar, de invocar as suas razões de facto e de direito, de poder influenciar a decisão da causa quanto à justificação para a quebra do segredo profissional, dando cumprimento ao princípio do contraditório, que constitui uma decorrência do referido direito de acesso aos tribunais e a um processo equitativo, bem como à proibição da prolação de decisões surpresa.

29.      A omissão da notificação da CMVM para se pronunciar quanto ao pedido de quebra do segredo profissional suscitado por impulso da promoção do Ministério Público é contrária ao disposto nos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4 da CRP e no artigo 3.º, n.ºs 1 e 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 4.º ao processo penal, o que acarreta a irregularidade da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa por preterição do contraditório da entidade escusante, nos termos do artigo 123.º do CPP e por violação do direito de acesso aos tribunais.

30.      Além do mais, não se poderá deixar de invocar a inconstitucionalidade das normas contidas nos n.ºs 3 e 4 do artigo 135.º do CPP na interpretação segundo a qual, no âmbito da invocação de escusa para facultar o acesso a elementos e/ou documentos abrangidos pelo segredo profissional perante a autoridade judiciária, o tribunal superior pode quebrar o dever de segredo sem ouvir o titular desse dever quanto aos pressupostos de que depende a quebra do mesmo, por violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa.

31.      A omissão de notificação à CMVM da promoção do Ministério Público tendente à quebra de segredo profissional da CMVM configura uma irregularidade, a qual, in casu, para além de determinar a invalidade do ato a que se refere afeta igualmente os termos subsequentes dos atos absolutamente dependentes da nulidade cometida (artigo 123.º, n.º 1 CPP), implicando: (i) a necessidade de suprir a nulidade com a prática do ato omitido; (ii) a conclusão de que o prazo para a arguição de irregularidades processuais e para eventual recurso só começa a correr com a notificação para qualquer termo do processo, visto que a CMVM nunca havia sido chamada a participar no mesmo (nos termos da parte final do n.º 1 do artigo 123.º do CPP)

32.     A atribuição de poderes de recolha de informação e a institucionalização de procedimentos tendentes a fomentar a participação das entidades supervisionadas, visando eliminar assimetrias de informação existentes entre regulador e regulado, têm, em regra, como pedra de toque a imposição às entidades administrativas independentes de um dever de segredo sobre os factos e elementos de que tenham conhecimento no exercício das suas funções.

33.      O reconhecimento de que sobre as entidades administrativas independentes deve impender um dever de segredo levou à sua consagração expressa no artigo 4.º da LQER que consagra um dever de segredo (ou de sigilo) profissional que se impõe aos titulares dos órgãos das entidades reguladoras, ao seu pessoal, aos respetivos prestadores de serviço e colaboradores, relativamente a todos os assuntos que lhe sejam confiados ou de que tenham conhecimento por causa do exercício das suas funções, e que se aplica transversalmente a todas as entidades administrativas independentes, qualquer que seja a área da economia objeto de regulação.

34.      No que à CMVM diz respeito tal dever de segredo já se encontrava (e encontra) consagrado no artigo 354.º do CdVM, podendo-se afirmar que o dever de segredo profissional da CMVM encontra no direito interno português uma dupla consagração: no artigo 14.º da LQER e no artigo 354.º do CdVM.

35.      Acresce que a imposição à CMVM, enquanto entidade de supervisão do mercado de instrumentos financeiros, de um dever de segredo profissional assume-se também como a transposição para o direito interno português de várias normas que, no quadro da regulação europeia do mercado de instrumentos financeiros, impõem aos Estados-membros da União Europeia que as respetivas autoridades de supervisão fiquem sujeitas a uma obrigação de guardar segredo profissional (cf. art. 22.º da Diretiva 2003/71/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 4 de Novembro de 2003, art. 76.º da Diretiva 2014/65/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, art. 25.º da Diretiva 2004/109/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de Dezembro de 2004, art. 27.º do Regulamento (EU) n.º 596/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de abril de 2014).

36.      Tendo em conta as atribuições de supervisão da CMVM (cf. artigo 353.º do Cód.VM) e as entidades sujeitas à sua supervisão (cf. artigo 359.º do Cód.VM), tal segredo profissional abrange factos ou elementos que se encontram sujeitos a diferentes tipos de segredo.

37.      Desde logo, o segredo profissional da CMVM pode abranger factos ou elementos que se encontram sujeitos a segredo bancário (o qual, nos termos do disposto nos artigos 361.º, n.º 2, al. a) do Cód.VM e 79.º, n.º 2, al. b), do RGICSF, não é oponível à CMVM).

38.      Mas o segredo profissional da CMVM pode também abranger factos ou elementos que, não estando sujeitos a segredo bancário, ainda assim se encontram sujeitos a segredo comercial, industrial ou da vida interna das empresas ou a segredo de supervisão em sentido estrito.

39.      O segredo de supervisão em sentido estrito inclui, nomeadamente, os métodos de supervisão aplicados pelas autoridades competentes, as comunicações e as transmissões de informações entre as diferentes autoridades competentes, bem como entre estas e as entidades sujeitas à supervisão, e qualquer outra informação não pública sobre o estado dos mercados sujeitos à supervisão e as transações nele realizadas.

40.      O que significa que o segredo profissional da CMVM consagrado no artigo 354.º do CdVM e no artigo 14.º da LQER não se reconduz nem se confunde com o segredo bancário previsto no artigo 78.º do RGICSF, antes deste sendo material, estrutural e funcionalmente bem distinto, e que, consequentemente, os interesses a ponderar no caso de quebra do segredo profissional da CMVM não se podem reconduzir (exclusivamente) aos que se encontram subjacentes ao segredo bancário.

41.      A imposição às entidades de supervisão do mercado de instrumentos financeiros de um dever de segredo profissional apresenta, na sua essência, um duplo fundamento: de um lado, pretende-se assegurar a proteção dos direitos e interesses legítimos das entidades sujeitas a supervisão e demais pessoas que com elas se relacionam; do outro, visa-se garantir a proteção da eficácia da própria supervisão.

42.      A necessidade de consagrar um dever de segredo profissional para proteção dos direitos e interesses legítimos (seja a reserva da intimidade da vida privada seja os segredos comerciais, industriais ou da vida interna das empresas) das entidades sujeitas a supervisão reside na circunstância de estas se encontrarem sujeitas a um dever de colaboração com o supervisor, estando obrigadas a revelar a este um conjunto de informações relativas à sua atividade que, por natureza, têm carácter confidencial e cuja reserva deve ser salvaguardada.

43.      Mas esta necessidade de proteção de direitos e interesses legítimos estende-se também a todos aqueles que, de alguma forma, se relacionam – direta ou indiretamente – com a autoridade de supervisão: repare-se que na atividade de supervisão a CMVM obtém elementos de pessoas que não são suas supervisionadas (é o caso, desde logo, dos clientes das entidades supervisionadas, mas também de outras entidades que com elas se relacionam, como colaboradores ou prestadores de serviços)

44.      Ora, considerando os direitos e bens jurídicos que o segredo profissional visa proteger, designadamente o direito de reserva da intimidade da vida privada – que o segredo profissional da CMVM também visa salvaguardar – o mesmo tem tutela constitucional, enquadrando-se na categoria de direitos, liberdades e garantias (cfr. artigo 26.º n.º 1 da CRP).

45.      Tendo em conta o conteúdo do segredo profissional da CMVM, a possibilidade de a CMVM intervir no incidente de quebra do segredo profissional e de, no seu âmbito, poder recorrer apresenta-se como um patamar mínimo de proteção dos direitos e bens jurídicos fundamentais dos titulares primários da informação.

46.      E uma vez que o segredo profissional da CMVM pode incorporar segredos de um conjunto de sujeitos, assegurar a adequada tutela desses segredos poderia ocorrer por duas vias: (i) ou se assegurava a participação direta desses sujeitos no incidente de quebra do segredo; (ii) ou se reconhece à CMVM, enquanto entidade sujeita a segredo profissional e que acede a um conjunto de informação, o poder de garantir a devida tutela dos segredos em causa.

47.      Quando exista uma atuação de um tribunal que afete, de forma direta, um direito fundamental, ainda que essa atuação ocorra fora do domínio penal, deve reconhecer-se direito a uma apreciação judicial dessa situação.

48.      Ou seja, a não admissão de recurso, conjugada com a dispensa de exercício do direito do contraditório da CMVM em matéria de quebra de segredo profissional, configura uma interpretação que gera restrições a direitos, liberdades e garantias (designadamente, o direito à reserva da intimidade da vida privada) não autorizadas por habilitação legal expressa, e por essa razão não admitidas constitucionalmente à luz do princípio da reserva de lei.

49.      Pelo que, para os devidos efeitos legais, se invoca a inconstitucionalidade da norma contida no n.º 4 do artigo 135.º do Código de Processo Penal, resultante da interpretação conjugada dos n.ºs 3 e 4 do artigo 135.º do Código de Processo Penal e do artigo 432.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, no âmbito da invocação de escusa para facultar o acesso a elementos e/ou documentos abrangidos pelo segredo profissional perante o Tribunal de 1.ª instância, o tribunal superior não permite que uma entidade não dotada de organismo representativo da profissão intervenha, para tutela dos direitos salvaguardados com a consagração do segredo profissional dessa entidade (designadamente, do direito à reserva da intimidade da vida privada), no processo/incidente de quebra de segredo profissional em que é requerida, simultaneamente não se admitindo o recurso da decisão proferida, por violação do disposto no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da CRP.

50.      Por outro lado, a salvaguarda do segredo profissional (das informações recolhidas pelo supervisor) é fundamental para assegurar a eficácia da supervisão.

51.      Desde logo porque se as entidades supervisionadas não tiverem, do lado do supervisor, a garantia de que a informação que lhe fornecem em cumprimento do dever de colaboração se manterá confidencial e só será utilizada no âmbito das competências específicas do supervisor, tenderão a omitir a prestação de informação ao regulador, colocando em causa a própria eficácia da supervisão.

52.      Neste sentido, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), a propósito do artigo 54.º da Diretiva 2004/39/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de Abril de 2004 (que, repita-se, o artigo 354.º do Cód.VM transpõe para a ordem jurídica interna), referiu já precisamente que “[o] funcionamento eficaz do sistema de controlo da atividade das empresas de investimento, baseado numa supervisão exercida no interior de um Estado-Membro e na troca de informações entre as autoridades competentes de vários Estados-Membros, tal como foi sucintamente descrito nos números anteriores, requer que tanto as empresas controladas como as autoridades competentes possam estar seguras de que as informações confidenciais fornecidas conservarão, em princípio, o seu caráter confidencial (v., por analogia, acórdão Hillenius, 110/84, EU:C:1985:495, n.° 27)” (Acórdão do TJUE proferido no Processo C-140/13).

53.      Tendo acrescentado que a falta dessa confiança pode comprometer o processamento harmonioso da transmissão das informações confidenciais necessárias para o exercício da atividade de supervisão, concluindo que “[p]or conseguinte, para proteger não apenas as empresas diretamente afetadas mas também o funcionamento normal dos mercados de instrumentos financeiros da União, o artigo 54.º, n.º 1, da Diretiva 2004/39 impõe, como regra geral, a obrigação de guardar o segredo profissional”.

54.      Em síntese: o segredo profissional da CMVM, visando proteger a eficácia da supervisão dos mercados de instrumentos financeiros, tem um fundamento de ordem pública (nacional e supranacional), que radica na essencialidade dos sistemas de supervisão, que deve ser ponderado no momento de decidir a sua quebra, sendo que o tribunal a quo, ao omitir a ponderação dos concretos interesses subjacentes ao segredo profissional da CMVM que no caso se façam sentir, interpretou e aplicou de forma errada o disposto no artigo 354.º do CdVM e do artigo 14.º da LQER.

55.     Com efeito, a adequada interpretação e aplicação daquelas normas impunha que o tribunal a quo tivesse chegado à conclusão que o segredo profissional da CMVM tem características materiais, estruturais e funcionais próprias e específicas, protegendo não só os direitos e interesses legítimos das entidades supervisionadas e das pessoas que com elas se relacionam, mas também a própria eficácia da supervisão (nacional e internacional).

56.      Nos termos do disposto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP, a decisão de quebra de segredo profissional exige que a mesma “se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante”, o que impõe ao tribunal superior a realização de uma “atenta, prudente e aprofundada ponderação dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá, in casu, prevalecer” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 04.02.2015, Processo 60/10.6TAMGR-A.C1).

57.      O tribunal tem, assim, de proceder a um juízo que consiste em avaliar se, tendo presente os documentos sujeitos a segredo profissional cuja quebra é requerida, os interesses subjacentes à investigação prevalecem sobre os interesses protegidos pelo segredo, à luz, nomeadamente, (i) da imprescindibilidade daqueles documentos para a descoberta da verdade, (ii) da gravidade do crime/importância da causa e (iii) da proteção dos bens jurídicos em causa.

58.      Nos termos conjugados do disposto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP, no artigo 354.º do CdVM e no artigo 14.º da LQER, o Tribunal a quo devia ter ponderado como interesses protegidos pelo segredo profissional da CMVM (e, consequentemente, afetados pela respetiva quebra) (i) os direitos e interesses legítimos das entidades sujeitas a supervisão da CMVM, (ii) os direitos e interesses legítimos das entidades que se relacionam com entidades sujeitas a supervisão da CMVM, e (iii) a proteção da eficácia da supervisão.

59.      A inadequada configuração e caracterização do segredo profissional da CMVM a que procedeu o acórdão recorrido, equiparando-o ao segredo bancário, impossibilitou que, no juízo de ponderação nele levado a efeito, tivessem sido considerados todos os interesses cuja convocação se impunha, nos termos anteriormente referidos, levando a que o acórdão apresente uma errada interpretação e aplicação do artigo 135.º, n.º 3, do CPP conjugado com o artigo 354.º do CdVM e com o artigo 14.º da LQER.

60.      Em segundo lugar, o tribunal a quo Tribunal a quo não procedeu corretamente ao juízo concreto de ponderação dos interesses, o que também constitui erro de direito na interpretação e aplicação do artigo 135.º, n.º 3, do CPP, que deve determinar a revogação do acórdão recorrido.

61.      Sucede que o Tribunal a quo não curou de analisar a necessidade e adequação dos documentos solicitados à CMVM para a investigação no âmbito do inquérito em causa (maxime, informações sobre a participação da Caixa Central de Crédito Agrícola na verificação de irregularidades na aquisição de unidades de participação do Fundo CA Imobiliário), em momento algum explicando em que medida a documentação solicitada à CMVM é apta a alcançar o mencionado objetivo de investigação.

62.      Tanto mais quanto as diferentes atribuições do Ministério Público e da CMVM não permitem afirmar uma imediata utilidade para a investigação criminal de todos e quaisquer elementos solicitados à CMVM, sob pena de inadmissível presunção de aptidão probatória.

63.      Deste modo, ao não realizar qualquer juízo concreto de ponderação que permita avaliar a adequação e a necessidade da quebra em função do interesse probatório do Ministério Público, nem valorar corretamente o critério de indispensabilidade dos documentos, o Tribunal a quo cometeu erro de direito na interpretação do disposto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP.

64.      E ainda, para além de não ter promovido um juízo sobre a indispensabilidade dos documentos solicitados para o interesse probatório do Ministério Público quanto aos factos alegados nos autos, o Tribunal a quo promoveu a extensão da “agressão” aos interesses protegidos pelo segredo profissional da CMVM, ultrapassando, como se referiu acima, o pedido do Ministério Publico.

65.      E essa extensão do pedido, para além de contrária aos limites da competência do Tribunal, não só não é compatível com o princípio da proporcionalidade que deve nortear a decisão (e a extensão) da quebra do sigilo profissional, como ainda com o juízo de ponderação concreta de interesses imposto pelo artigo 135.º, n.º 3, do CPP, pois que o torna impossível.

66.       A circunstância de se possibilitar uma extensão do objeto de quebra de segredo capaz de incluir elementos probatórios futuros e hipotéticos, significa, no mais, a total indeterminação do objeto da quebra de segredo requerida, tornando impossível a realização de um juízo de ponderação concreta de interesses, e significando, nessa medida, a deturpação do próprio regime da quebra de segredo profissional.

67.      O Tribunal a quo, ao determinar a quebra do segredo profissional para além do pedido do Ministério Público, violou o princípio da proibição do excesso.

68.      Tal omissão, para além de constituir vício de fundamentação do acórdão sob recurso, consubstancia erro de direito na interpretação e aplicação do artigo 135.º, n.º 3, do CPP, já que ao mesmo está implícito um juízo de proibição do excesso: o Tribunal a quo só deve quebrar o segredo na medida do indispensável.

69.      Em síntese: o acórdão recorrido encontra-se ferido de erro de direito, na medida em que interpretou e aplicou o princípio da prevalência do interesse preponderante constante do artigo 135.º, n.º 3, do CPP, de forma errada, ao (i) não ter em conta os efetivos interesses em causa nos presentes autos e ao (ii) não promover corretamente o juízo concreto de adequação e necessidade da documentação para os fins probatórios Ministério Público, nomeadamente quanto à apreciação da imprescindibilidade da mesma para efeitos de prova dos factos especificamente em causa, e sem limitar a quebra ao mínimo indispensável (em violação do princípio da proibição do excesso).

70.      Decidindo-se pela quebra do segredo profissional da CMVM, o que apenas por mera cautela de patrocínio se admite, o acesso aos factos ou elementos sujeitos a segredo também deverá ser feito de acordo com o princípio da proporcionalidade (ou seja, limitado ao que seja estritamente necessário, de forma adequada e proporcional).

71.     Ou seja, deverá ser permitido o acesso apenas à informação contida na documentação que seja imprescindível para a prossecução da finalidade probatória do Ministério Público e há que ponderar os diversos meios ou formas de acesso possíveis, de modo a não pôr em causa o núcleo duro do bem jurídico que o segredo profissional da CMVM visa proteger.

72.     Ora, o Tribunal a quo, tendo decidido pela prevalência do interesse da administração da justiça e do acesso à prova sobre o segredo profissional da CMVM, determinou o acesso à totalidade dos documentos solicitados pelo Ministério Público, não tendo tido em conta nem ponderado o âmbito desse acesso de acordo com o princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18.º, n.º 2, 2.ª parte da CRP, de forma a circunscrever o acesso aos documentos ao estritamente necessário, salvaguardando, na medida do possível, o referido segredo profissional.

73.     Ainda que o Tribunal a quo entendesse, por qualquer razão, que não deveria dar a conhecer os presentes autos à CMVM ou dar-lhe direito ao contraditório, então deveria ter realizado ou ordenado, oficiosamente, todas as diligências necessárias à justa composição do litígio, designadamente procurando conhecer os bens jurídicos que o segredo profissional visa proteger e os conteúdos gerais dos documentos solicitados pelo Ministério Público.

74.       O n.º 4 do artigo 135.º do CPP ao estabelecer que a decisão do Tribunal ao qual é requerida a quebra do segredo profissional nos termos do n.º 3 do mesmo preceito legal, é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, prevê uma diligência instrutória que permite carrear para os autos elementos que lhe permitam decidir com vista à justa composição do litígio.

75.      Não tendo o Tribunal a quo realizado ou ordenado diligências instrutórias com vista à devida ponderação concreta dos interesses em causa, interpretou e aplicou erradamente os n.ºs 3 e 4 do artigo 135.º do CPP, os quais exigem que para que o Tribunal decida devidamente do mérito da causa tenha em sua posse os elementos que fundamentem os interesses em conflito e que pratique os necessários atos de instrução nesse sentido.

Termos em que e nos melhores de direito, requer a V. Ex.as se dignem conceder provimento ao presente recurso, e em consequência determinar:

a)  a nulidade do Acórdão recorrido por violação das regras de competência material e por excesso de pronúncia;

Assim não se entendendo, requer a V. Exa. que determine,

b)  a irregularidade do Acórdão recorrido por violação do direito de acesso aos tribunais e do princípio do contraditório;

c)  a irregularidade do Acórdão recorrido por omissão de notificação prévia à CMVM da promoção do Ministério Público;

ou caso assim não se entenda,

d)  a revogação do Acórdão recorrido, e a prolação de uma nova decisão judicial que interprete e aplique as normas constantes dos artigos 354.º do CdVM, 14.º da LQER e 135.º, n.º 3, do CPP, de forma adequada;

ou, ainda, caso assim não se entenda,

e)  que o acesso à informação contida na documentação solicitada à CMVM seja limitada ao mínimo imprescindível para a prossecução dos fins probatórios do Ministério Público de acordo com os meios ou formas de acesso que melhor salvaguardem os bens jurídicos que o segredo profissional da CMVM visa proteger, (…)».

3.Respondeu a Senhora Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação, dizendo que o recurso «deverá ser rejeitado por não ser admissível, nos termos do disposto no artigo 432.º, n.º l, al. a), do C.P.P», nesse sentido invocando a decisão deste Supremo Tribunal de Justiça de 24.11.2016, no Proc. n.° 1233/13.5YRLSB.S1 (Souto de Moura).

4. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjuntoneste Tribunal emitido parecer no mesmo sentido, assim suscitando a questão prévia da admissibilidade do recursonos seguintes termos:

«A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), inconformada com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa-9ª secção, em 09.05.2019 que decidindo do incidente de quebra do segredo profissional, acordou em “dispensar do dever de segredo a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, devendo esta, consequentemente, fornecer ao Ministério Público todos os elementos e informações por este já solicitados, bem como todos os demais que se vierem a mostrar necessários para a investigação em causa”, veio interpor recurso dessa decisão.

Todavia, como se assinala na resposta do MP na 2ª instância, também entendemos que tal decisão dada a sua específica natureza decorrente da inserção no incidente regulado no art. 135.º, n.º s 2 e 3, do CPP, é irrecorrível.

Nesse sentido decidiu, inter alia este Supremo Tribunal de Justiça no acórdão tirado em 04.04.2019, proc. 5837/16.6T9LSB-A.L1.S1-5.ª secção, relatado pelo Sr. Conselheiro Francisco Caetano, em cujo sumário se escreve:

“I - A propósito do fundamento de recurso da al. a) do n.º 1 do cit. art. 432.º, do CPP, as decisões proferidas pelas relações em 1.ª instância são aquelas que esses tribunais proferem no âmbito de processos que funcionam como tribunais de 1.ª instância, de que são exemplo os casos abrangidos pela al. a) do n.º 3 do art. 12.º do CPP.

III -Na situação em causa, ao julgar procedente o incidente de quebra de sigilo profissional, a Relação não funcionou como tribunal de 1.ª instância, mas como tribunal imediatamente superior a um tribunal de 1.ª instância que teve intervenção no processo.

IV - No caso, houve a intervenção de dois tribunais: do Juízo de Instrução Criminal e depois e por força da lei (n.º 3 do art. 135.º do CPP), do Tribunal da Relação, enquanto tribunal superior a esse, ou seja, enquanto tribunal não de 1.ª, mas de 2.ª instância, num processo cuja tramitação ocorre na 1.ª instância.

V - O recurso interposto não pode deixar de ser rejeitado, por inadmissibilidade, nos termos assinalados na decisão impugnada e, com ele, ser julgada improcedente a inconstitucionalidade arguida, com o que fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitada.”

Aliás, apreciando situação análoga, ainda que em processo civil, cf. o acórdão do STJ de 05.07.2018, proc. 842/11.1TBVNO-B.E1-A.S1-2ª secção relatado pelo Sr. Conselheiro Abrantes Geraldes, onde se consigna, ao demais:

“Não existe qualquer base constitucional para a existência de um duplo grau de jurisdição”.

Diga-se aliás, que esta concepção do incidente em causa, de há muito, vem sido sustentada a nível das Relações.

Somos assim de parecer, que por ser inadmissível, deverá o recurso ser rejeitado».

5. Notificada para responder, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, arecorrente nada disse.

6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

7. O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal superior quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I de 28.12.1995), os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, e a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redacção da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro).

8. A decisão recorrida tem o seguinte teor:

«I- Nos Autos de Inquérito n.º 1331/19.1T…, do Juízo de Instrução Criminal de …, onde se investiga a eventual prática de irregularidades/ilegalidades por parte da Caixa AA, solicitou o Ministério Público à Comissão do Mercado deValores Mobiliários informação sobre se a mesma Caixa lhe havia feito alguma participação, dando conta das referidas irregularidades, verificadas na aquisição de unidades de participaçãodo Fundo AA Imobiliário, e, tendo a mesma participação sido feita, que lhe fosse enviadacópia desta e da decisão final que sobre ela incidiu.

Porém, a CMVM recusou-se a fornecer os solicitados elementos, por se considerar vinculada ao dever de segredo profissional, nos termos do art.º 354.º do Código dos Valores Mobiliários.

Face à citada recusa, promoveu o Ministério Público que o Mm.º J.I.C. suscitasse orespectivo incidente de "Quebra de Segredo Profissional" junto deste Tribunal da Relação deLisboa, a fim de a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários poder fornecer os elementossolicitados, o que aquele fez.

II - Cumpre apreciar e decidir, uma vez que se mostram verificados e válidos todos ospressupostos processuais conducentes ao conhecimento do presente incidente.

Vejamos:

Dispõe o art.° 135.º, n.º 1, do C.P.P. que, os ministros de religião ou confissão religiosa, os advogados, os médicos, os jornalistas, os membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo profissional podem escusar-se a depor sobre os factos abrangidos pelo mesmo segredo.

O n.º 2, por sua vez, dispõe que, havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena ou requer ao tribunal que ordene a prestação do depoimento.

O n.º 3 preceitua que o tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente se tiver suscitado, ou, no caso de o incidente se ter suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos.

A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.

Assim, ante os referidos dispositivos e o circunstancialismo fáctico em causa, afastada está, desde logo, a possibilidade de aplicação do citado n.º 2, uma vez que não se coloca a questão da existência de dúvidas sobre a legitimidade da escusa, pois que o art.º 354.º do CVM é imperativo no sentido da vinculação dos órgãos da CMVM, dos seus titulares, trabalhadores e pessoas que lhe prestem, directa ou indirectamente, quaisquer serviços, ao dever de segredo profissional sobre os factos e os elementos cujo conhecimento lhes advenha do exercício das suas funções ou da prestação de serviços.

A questão haverá, por isso, de ser decidida à luz do n.º 3 do citado art.º 135.º.

Como dizem Simas Santos e Leal Henriques em anotação ao dispositivo em causa, "haver ou não haver segredo profissional é matéria prevista no n.º 2 e sindicável pela via do recurso ordinário.

Após se ter concluído pela existência do sigilo e determinada a sua quebra, há que lograr o juízo confirmativo da instância superior, nos termos do n.º 3".

Depois, ainda segundo os mesmo autores, "se a autoridade judiciária concluir que a matéria sub judicio integra a área sigilosa mas, não obstante, se mostra justificada a quebra do segredo, no confronto deste princípio com as normas e regras da lei penal, terá de intervir o tribunal superior para confirmar ou infirmar tal juízo".

E que juízo?

Reproduzindo os referidos juristas o Parecer n.º 28/86 da P.G.R., de 18/01/14, que prevê, embora, o segredo bancário, mas ao que se equipara a situação em análise, dizem que "o segredo bancário repousa sobre factos ou elementos respeitantes à vida das instituições de crédito e às relações desta com os clientes, nomeadamente no que toca aos seus nomes, contas, movimentos ou operações realizadas.

Porém, o mesmo não tem carácter absoluto, já que cede perante o dever de cooperação com as autoridades judiciárias, quando particulares exigências de investigação criminal o imponham, mas sempre dentro de apertados limites e rígidas exigências de controle que, tanto quanto possível, harmonizem os dois interesses em confronto".

Ora, a lei prevê a quebra do segredo profissional “sempre que a mesma se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo-se em conta a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos".

Assim, reportados ao caso dos autos e reafirmada a competência deste Tribunal da Relação para a prolação da respectiva decisão, como bem resulta do Ac. do S.T.J. n.º 2/2008, de 31 de Março, in D. R.n.º 63, a possibilidade de quebra do referido "dever de segredo" encontra-se prevista no citado art.º 135.º, n.º 3, em conjugação com o art.º 354.º, n.ºs. 1 e 3 do CVM e justifica-se, aqui, ante a inquestionável prevalência do superior interesse na melhor forma de administração e realização da justiça, seja ela de natureza penal ou contra-ordenacional, o que passa pela investigação, perseguição e punição da eventual prática de infracções por parte da Caixa AA na aquisição de unidades de participação do Fundo AA Imobiliário.

Haverá, pois, de julgar-se procedente o presente incidente de quebra do "dever de segredo".

III - Nestes termos e com os expostos fundamentos, acordam os mesmos Juízes, em conferência, em dispensar do dever de segredo a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, devendo esta, consequentemente, fornecer ao Ministério Público todos os elementos e informações por este já solicitados, bem como todos os demais que se vierem a mostrar necessários para a investigação em causa.»

9. Por razões de precedência lógica (artigo 608.º do CPC e 368.º, n.º 1, ex vi artigo 4.º do CPP), requer a metodologia da decisão que esta se inicie pela apreciação das questões (prévias) suscitadas pelos sujeitos processuais ou que o tribunal deva conheceroficiosamente, susceptíveis de obstar ao conhecimento de mérito.

Nas conclusões da motivação começa a recorrente por afirmar que a decisão é recorrível, nos termos do disposto nos artigos 399.º e 432.º, n.º 1, alínea a), do CPP, por ser uma decisão proferida em 1.ª instância, suscitando, desde logo, a inconstitucionalidade de interpretação de norma extraída dos n.ºs 3 e 4 do artigo 135.º e do artigo 432.º, n.º 1, alínea a), do artigo 432.º que, em sentido diverso, não admita a possibilidade de recurso (conclusões 4 e 5).

Diferentemente, defende o Ministério Público no tribunal recorrido e neste tribunal que o recurso deve ser rejeitado por não ser legalmente admissível, tendo em conta, designadamente, o disposto no artigo 432.º, n.º 1, alínea a), do CPP.

Há, pois, que, antes de mais, apreciar esta questão.

10. A questão que vem colocada pela recorrente, que não tem a qualidade de arguida, diz respeito à possibilidade de esta, enquanto destinatária da decisão recorrida, suscitar ao Supremo Tribunal de Justiça, por via de recurso, a reapreciação da decisão do Tribunal da Relação que, nos termos do artigo 135.º, n.º 3, do CPP, a dispensa do dever de segredo, devendo, em consequência, fornecer ao Ministério Público os elementos de informação solicitados e os que se vierem a mostrar necessários para a investigação no âmbito do inquérito.

A decisão recorrida resultou do facto de a recorrente se ter recusado a transmitir tais elementos ao Ministério Público no âmbito do inquérito, por esta se considerar vinculada ao dever de segredo profissional, nos termos do artigo 354.º do Código dos Valores Mobiliários (CVM),e de o Ministério Público ter requerido ao juiz de instrução que solicitasse ao tribunal da Relação a quebra do segredo profissional, em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 135.º do CPP.

Nos termos do artigo 354.º, n.º 1, do CVM, «Os órgãos da CMVM, os seus titulares, os trabalhadores da CMVM e as pessoas que lhe prestem, directa ou indirectamente, a título permanente ou ocasional, quaisquer serviços ficam sujeitos a segredo profissional sobre os factos e os elementos cujo conhecimento lhes advenha do exercício das suas funções ou da prestação de serviços, não podendo revelar nem utilizar em proveito próprio ou alheio, directamente ou por interposta pessoa, as informações que tenham sobre esses factos ou elementos», sendo que, dispõe o n.º 3, «Os factos ou elementos sujeitos a segredosó podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida à CMVM, ou noutras circunstâncias previstas na lei».

11. A obtenção de prova sobre factos ou documentos abrangidos por segredo profissional, invocado como escusa a depor ou como recusa de apresentação, é susceptível de gerar um incidente processual com vista a obter a quebra do segredo mediante a intervenção do tribunal da primeira instância, destinada a verificar a legitimidade da recusa, e a intervenção do tribunal da Relação, destinada a decidir a quebra do segredo. Concluindo o tribunal da 1.ª instância que a escusa ou a recusa são legítimas, por estarem legalmente protegidas por segredo, cabe ao «tribunal imediatamente superior» decidir da quebra do segredo (salvo se o incidente for suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, caso em que a decisão de quebra compete ao pleno das secções criminais). É o que resulta dos n.ºs 2 e 3 do artigo 135.º e do n.º 2 do artigo 182.º do CPP.

A decisão de quebra do segredo forma-se, assim, através da participação de tribunais de dois diferentes níveis de hierarquia no procedimento a ela destinado – o da primeira instância, onde corre o processo, que é, em regra, o tribunal de comarca (artigo 80.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), e o da segunda instância, que é, em regra, o tribunal da Relação (artigo 67.º, n.º 1, do mesmo diploma). Trata-se de uma competência que a este tribunal é conferida pelo artigo 12.º, n.º 2, alínea e), do CPP – a de «exercer as demais atribuições conferidas por lei» – e pela alínea h) do artigo 73.º da Lei n.º 62/2013 – a de «exercer as demais competências conferidas por lei».Sendo, na hierarquia dos tribunais, o tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente foi solicitado – artigos 31.º a 33.º da Lei n.º 62/2013 e 67.º a 69.º do Código de Processo Civil – é este o competente para o efeito.

12. A intervenção destes dois tribunais na decisão do incidente corresponde a duas fases processuais distintas.

Numa primeira fase, a que se refere o n.º 2 do artigo 135.º do CPP, em que intervém o tribunal da 1.ª instância, perante o qual corre o processo, trata-se de saber se a escusa ou a recusa são legítimas, isto é, se a pessoa se pode escusar a depor ou pode recusar fornecer documentos por estar vinculada a um dever de segredo profissional ou de funcionário, o que deverá ser decidido após a realização das diligências necessárias. Se o tribunal concluir pela ilegitimidade da escusa ou da recusa ordena a prestação do depoimento ou a apresentação dos documentos.

O procedimento legalmente previsto garante a participação no processo e o direito ao recurso da pessoa visada pela decisão, alegadamente obrigada a respeitar o segredo, pois que, discutindo-se o seu direito de escusa ou de recusa, nele tem legitimidade e indiscutível interesse em agir (artigos 399.º e 401.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, e n.º 2, do CPP).

A intervenção do Tribunal da Relação, enquanto «tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado», nos termos do n.º 3 do artigo 135.º do CPP, não como tribunal de recurso, só surge nas situações em que, reconhecida a legitimidade da escusa ou da recusa, a pessoa visada não está obrigada a depor ou a apresentar documento por força da decisão do tribunal da 1.ª instância (a este propósito, cfr. comentário de Santos Cabral ao artigo 135.º, Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, 2.ª ed., Almedina, p. 493).

Não se trata agora de discutir a legitimidade da escusa ou da recusa. O que, nesta fase, há que apreciar e decidir é se, perante o conflito entre o dever de testemunhar (artigo 131.º, n.º 1, do CPP) e o dever de guardar segredo, se justifica a quebra do segredo segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento ou dos documentos para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos.

O tribunal da Relação não age, assim, neste caso, enquanto tribunal de 1.ª instância, isto é, enquanto tribunal ao qual compete, em regra, preparar e julgar processos. Tal competência limita-se aos casos previstos nas alíneas a), c) e d) do artigo 12.º do CPP – julgar processos por crimes cometidos por juízes de direito e procuradores da República, julgar os processos judiciais de extradição e julgar os processos de revisão e confirmação de sentença estrangeira (e outros previstos em legislação própria, como os de execução de mandado de detenção europeu ou de reconhecimento de sentenças penais europeias – artigo 15.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, e artigos 13.º e 34.º da Lei n.º 158/2015, de 17 de Setembro – incluídos na alínea d) do artigo 73.º da Lei n.º 62/2013, que substituem aqueles processos de cooperação no âmbito das relações entre os Estados-Membros da União Europeia).

Tratando-se de processo correndo na Relação, em primeira instância – caso da alínea a) do artigo 12.º do CPP –, a competência para a decisão de quebra caberia ao Supremo Tribunal de Justiça, por, nesse caso, ser o tribunal imediatamente superior, nos termos do artigo 135.º, n.º 3, do CPP.

13. Em síntese, a decisão do tribunal da Relação, embora diga respeito a um processo que corre em primeira instância, não corresponde a uma decisão proferida no exercício de uma competência de tribunal de 1.ª instância, mas a uma decisão da competência de «tribunal imediatamente superior» a este na hierarquia dos tribunais.

Assim sendo, não correndo e não devendo o processo ser julgado no tribunal da Relação e tendo a decisão recorrida sido proferida por este tribunal por, nos termos do n.º 3 do artigo 135.º do CPP, ser o imediatamente superior ao tribunal onde foi suscitado o incidente, não pode esta decisão ser considerada como uma «decisão da relação proferida em 1.ª instância», nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 432.º, n.º 1, al. a), do CPP, segundo o qual se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça «de decisões das relações proferidas em 1.ª instância».

Pelo que se deve concluir que da decisão recorrida não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça com fundamento no disposto neste preceito.

Neste sentido, com excepção do acórdão de 09.02.2011 (Proc. 12153/09.8TDPRT-A.P1.S1), vem decidindo unanimemente este Supremo Tribunal na jurisprudência mais recente – cfr. os acórdãos de 06.12.2007, Proc. 07P3215 (Souto de Moura), de 25.07.2014, Proc. 4910/08.9TDLSB-E.L1.S1 (Sousa Fonte), de 24.04.2019, Proc. 5837/16.6T9LSB-A.L1.S1 (Francisco Caetano) e de 31.10.2019, Proc.7078/18.9T9LSB-A.L1.S1 (Nuno Gomes da Silva), bem como a decisão sumária de 16-10-2014, Proc. 1233/13.5YRLSB.S1 (Souto de Moura), e os acórdãos de 02.05.2019, Revista n.º 2236/16.3T8AVR-A.P1.S1 (Bernardo Domingos) e de 10.09.2019, Revista n.º 17359/17.3T8PRT-A.P1-A.S1 (Henrique Araújo), todos em www.dgsi.pt.

14. Mesmo que assim não fosse, sempre se deveria também concluir pela inadmissibilidade do recurso por o recorrente não ter interesse em agir (artigo 401.º, n.º 2, do CPP).

Com efeito, como anteriormente se referiu, não se aprecia no acórdão recorrido a questão da legitimidade da recusa da recorrente – matéria da competência do tribunal da 1.ª instância (artigo 135.º, n.º 2, do CPP) –, em que esta tem interesse resultante da sua vinculação a um dever de segredo, mas, reconhecido este dever, a questão de saber se o dever de fornecer os documentos solicitados, a que a recorrente também está obrigada, deve prevalecer sobre aquele, para satisfação de um interesse público na investigação das infracções que constituem o objecto do processo.

Como se decidiu no citado acórdão de 10.09.2019, «não se vislumbra que se possa ter a decisão recorrida como desfavorável aos fins primordiais que a recorrente persegue e dela derivem, para si, prejuízos efectivos, reais e concretos» e que, «por isso, haja um interesse da recorrente também ele concreto, juridicamente relevante, em obter uma decisão diversa da que autorizou a quebra do sigilo», pelo que, «em suma, não tem a recorrente» (no caso também a CMVM) «um atendível interesse em agir, razão pela qual, também ao abrigo do supracitado art. 401.º, n.º 2, o recurso não é de admitir».

Ao que, tendo em conta a finalidade e os interesses em presença na ponderação que se impõe ao tribunal da Relação, não pode deixar de acrescer a falta de legitimidade da recorrente, por, nesta fase, não ter que «defender um direito afectado pela decisão» [artigo 401.º, n.º 1, alínea d), do CPP].

15. Invoca, porém, a requerente, como se viu, a inconstitucionalidade da «norma resultante da interpretação conjugada dos n.ºs 3 e 4 do artigo 135.º do Código de Processo Penal e do artigo 432.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a decisão do Tribunal da Relação que quebra o segredo profissional invocado nos termos do disposto no artigo 135.º é irrecorrível, por violação do disposto no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da CRP».

16. Dispõe o artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição, sob a epígrafe «acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva», que: «1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (…). 4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão (…) mediante processo equitativo.»

Importa também ter presente o disposto no artigo 32.º, n.º 1, do Constituição, sobre «garantias de processo penal», segundo o qual «o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso».

Como se tem salientado, na doutrina e na jurisprudência, o artigo 20.º da Constituição não impõe ao legislador que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição, por via de recurso. Reconhecendo-se uma certa margem de conformação neste domínio, de modo a garantir o direito ao recurso a todos os intervenientes processuais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, impõe-se, todavia, que, no âmbito do processo penal, seja garantido um direito ao recurso enquanto componente do direito de defesa (artigo 32.º, n.º 1), ou seja, o direito do arguido a um duplo grau de jurisdição (cfr., a este propósito, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo 1I, Coimbra Editora, 2005, pp. 200ss e 354, e Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra Editora, 4.ª ed., 2007, pp. 418 e 516, bem como jurisprudência do Tribunal Constitucional neles citada).

17. Não está em causa, neste caso, o direito do arguido ao recurso (artigo 32.º, n.º 1), mas sim o direito de acesso ao direito e aos tribunais (tutela jurisdicional efectiva), que diz respeito à defesa de um direito ou de um interesse legalmente protegido (artigo 20.º, n.º 1).

Como já anteriormente se evidenciou, o interesse que o dever de segredo legalmente imposto à recorrente visa proteger foi reconhecido no processo ao ser considerada legítima a recusa. Ao ser chamado a decidir sobre a quebra do segredo, o tribunal da Relação não tem que equacionar esse interesse, mas apenas o interesse público na perseguição de infracções criminais, na ponderação da colisão de deveres que se impõem à recorrente e não da restrição de um direito já reconhecido.

Pelo que, tal como se decidiu no acórdão de 10.09.2019, não estando em questão, nesta fase, o interesse da recorrente, a não recorribilidade da decisão da Relação não tem a virtualidade de afectar o direito consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição.

A este propósito pronunciou-se o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 589/05, dizendo, para além do mais, que «do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição não decorre um direito geral ao recurso», que «é entendimento pacífico na jurisprudência constitucional que o direito de acesso à justiça não comporta o sistemático exercício do direito ao recurso», que «ainda que se considere (…) que a decisão da Relação foi proferida em primeira instância, tal não implica a procedência das razões invocadas pela recorrente», pelo que «não é possível sustentar que do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição decorre, sem mais, o direito do titular do direito ao sigilo profissional, a quem foi ordenada a prestação de depoimento em processo penal com quebra desse mesmo sigilo, de interpor recurso da correspondente decisão judicial, para obter a reapreciação dessa decisão».

Pelo que se deve concluir que a norma extraída da interpretação da alínea a) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP, segundo a qual o acórdão do tribunal da Relação proferido ao abrigo do n.º 3 do artigo 135.º do CPP não constitui uma decisão proferida em 1.ª instância, não se encontra ferida de inconstitucionalidade por violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição.

18. Em conformidade com o exposto, na procedência da questão prévia sobre a admissibilidade do recurso, se impõe a conclusão de que da decisão recorrida não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

19. Dispõe o artigo 420.º, n.º 1, al. c), do CPP que o recurso é rejeitado sempre que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414.º, segundo o qual o recurso não é admitido quando a decisão for irrecorrível ou quando o recorrente não reunir as condições necessárias para recorrer.

Apesar de admitido, a decisão de admissão não vincula o tribunal superior (artigo 414.º, n.º 3, do CPP).

Assim sendo, deve o recurso ser rejeitado, por inadmissibilidade legal.

O que, obstando ao seu conhecimento, impede este tribunal de conhecer das questões suscitadas pela recorrente.

20. Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 400.º do CPP, se o recurso for rejeitado, o tribunal condena o recorrente, se não for o Ministério Público, ao pagamento de uma quantia entre 3 UC e 10 UC.


III. Decisão

21. Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Rejeitar, por inadmissibilidade, o recurso interposto pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.

b) Condenar a recorrente no pagamento da importância de 3 UC, nos termos do disposto no artigo 420.º, n.º 3, do CPP.


Supremo Tribunal de Justiça, 11de Dezembro de 2019.


José Luís Lopes da Mota (Relator)


Maria da Conceição Simão Gomes