Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
545/13.2TBLSD.P1.S1-A
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
SEGMENTO DECISÓRIO
OBJETO DO RECURSO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 09/20/2022
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Referência de Publicação: - ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA N.º 7/2022, PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA N.º 201, 1.ª SÉRIE, DE 18 DE OUTUBRO DE 2022.
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (CÍVEL)
Decisão: CONCEDIDA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
Em acção de responsabilidade civil extracontratual fundada em facto ilícito, a conformidade decisória que caracteriza a dupla conforme impeditiva da admissibilidade da revista, nos termos
do artigo 671º, nº. 3, do CPC, avaliada em função do benefício que o apelante retirou do Acórdão da Relação, é apreciada, separadamente, para cada segmento decisório autónomo e cindível
em que a pretensão indemnizatória global se encontra decomposta.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, no Pleno das Secções Cíveis,

I - RELATÓRIO

1. AA, representado pelos seus pais, BB e CC, intentou acção declarativa contra Lusitânia Companhia de Seguros, SA, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a indemnização de 251.855,00€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a partir da citação, pelos danos (patrimoniais e não patrimoniais) decorrentes do acidente de viação ocorrido em 31 de Maio de 2011, pelas 21:30 horas, na estrada nacional n.º ...06, freguesia ..., quando se fazia transportar no motociclo de matrícula ..-..-JC, conduzido pelo seu pai.

Fundamentou a acção na responsabilidade civil do condutor do veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-..-AE, conduzido por DD, que tinha transferido para a Ré seguradora a respectiva responsabilidade pelos danos causados a terceiros com o referido veículo.

Alegou para o efeito que a produção do acidente ocorreu por culpa do condutor do AE o qual, por imperícia, imprudência e excesso de velocidade, deixou que o veículo que conduzia transpusesse o eixo médio da via indo embater no motociclo JC, projectando o Autor contra a parede de uma casa de habitação onde chocou violentamente com as costas, caindo desamparado no asfalto e perdendo os sentidos.

2. Após citação a Ré contestou aceitando a responsabilidade civil pelas consequências do acidente nos termos e nos limites do contrato de seguro, impugnando, porém, os danos e o respectivo valor.

3. Proferido saneador, o tribunal entendeu dispensar a realização de audiência prévia, fixou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova.

4. Realizado julgamento foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente condenando a Ré a pagar ao Autor as seguintes quantias:

- € 41 805,00, pelos danos patrimoniais (sendo € 40 000,00 pela perda da capacidade ganho), acrescida de juros legais contados desde a citação até integral pagamento;

- 25.000,00€, por danos não patrimoniais, acrescida de juros legais desde a data da sentença;

- em quantia a que se vier a liquidar ulteriormente, referente aos custos e demais consequências das intervenções cirúrgicas e tratamentos a que o Autor vier a ser submetido no futuro em consequência do agravamento das suas lesões.

Absolveu a Ré da parte restante do pedido contra ela deduzido.

5. Autor e Ré apelaram da sentença tendo o tribunal da Relação do Porto proferido acórdão que julgou improcedente a apelação da Ré e parcialmente procedente a apelação do Autor, alterando o montante da indemnização por perda de capacidade de ganho fixada em 40.000,00€ na sentença, para o valor de 50.000,00€, mantendo, no mais, a decisão recorrida.

6. Autor e Ré interpuseram revista tendo este tribunal, por acórdão de 20-12-2017, rejeitado parcialmente ambos os recursos na parte referente à condenação da Ré no montante de 25.000,00€, a título de danos não patrimoniais, julgando, no mais, improcedentes as revistas, confirmando, nessa medida, o acórdão recorrido.

7. Após o trânsito em julgado do acórdão proferido nestes autos, veio o Autor interpor recurso para uniformização de jurisprudência, para o Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos dos artigos 688º. e ss do do Código de Processo Civil (doravante CPC), na parte em que, com fundamento na dupla conformidade decisória, não conheceu da revista relativamente ao montante do dano não patrimonial fixado na sentença em 25.000,00€, alegando contradição do acórdão recorrido com o acórdão deste tribunal de 07-12-2016, proferido no âmbito do Processo n.º 8514/12.3TBVNG.P2.S1, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, que identifica como a dupla conforme-admissibilidade de recurso.

Em síntese e sem ter consignado formalmente conclusões, defendendo que no caso dos autos não ocorre dupla conforme impeditiva da admissibilidade do recurso de revista na componente do dano não patrimonial, invoca o Recorrente a seguinte ordem de argumentos:

- a dupla conforme, como circunstância de irrecorribilidade da revista, afere-se pela confirmação da decisão, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente – artigo 671.º, n.º 3, do CPC;

- a figura, surgida com a reforma do Processo Civil introduzida pelo DL 303/2007, de 24-08, na nova redacção do artigo 721.º, mostrou-se inserida num propósito, não só de racionalizar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça por forma a dar resposta à tendência de crescimento dos recursos cíveis, como de fazer acentuar as funções de orientação e uniformização da jurisprudência que lhe estão cometidas;

- esteve-lhe, porém, subjacente a pretensão de limitar o recurso de revista às situações em que ocorresse pronúncia de dois tribunais em termos de sobreposição decisória (independentemente de diversa motivação) encontrada por unanimidade dos julgadores porque, nesses casos, só circunstâncias excepcionais permitem a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça para efeitos de uniformização/estabilidade da jurisprudência;

- não ocorrendo confirmação irrestrita do acórdão da Relação à decisão de 1ª instância, enquanto decisões no seu todo (e não parcelarmente), inexiste dupla conformidade decisória;

- não foi intenção do legislador nem ocorre suporte legal para permitir encarar a decisão em partes segmentadas;

- estando em causa pedido de indemnização por responsabilidade civil emergente de acidente de viação não assume relevância a segmentação da indemnização em diferentes parcelas, uma vez que a lei não edificou o conceito de dupla conforme em função desse critério;

- nas situações, como a dos autos, em que o tribunal da Relação alterou, ainda que parcialmente, a sentença de 1ª instância, não se verificando confirmação integral e irrestrita desta, não ocorre dupla conformidade decisória impeditiva da admissibilidade da revista;

Concluiu o Recorrente que o acórdão recorrido ao não conhecer do recurso de revista que interpôs, na componente relativa ao dano não patrimonial, violou o artigo 671.º, n.º3, do CPC, e está em contradição com o citado acórdão do mesmo tribunal de 07-12-2016. Pede, consequentemente, a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que conheça do objecto da revista na componente relativa ao dano não patrimonial fixado no montante de 25.000,00€ por se mostrar claramente desvalorizado

           

8. A Ré, notificada do recurso para uniformização de jurisprudência, veio interpor recurso subordinado, nos termos do artigo 633.º, n.º2, do CPC, defendendo que a interpretação adequada do artigo 671.º, n.º3, do CPC, e, nessa medida, o acórdão para uniformização de jurisprudência a proferir deverá ser no sentido de “equiparar à situação de dupla conforme aquela em que a Relação profere uma decisão que, ainda que não exatamente coincidente com a decisão da 1.ª instância, seja mais favorável à parte que recorre”.

Prevenindo a hipótese de, por vencimento do entendimento pugnado pelo Autor, ser conhecido o objecto do recurso na parte rejeitada, pretende que se conheça da sua pretensão impugnativa dando-lhe integral procedência.

Formulou as seguintes conclusões (transcrição):
a) No presente recurso para uniformização de jurisprudência pretende-se a fixação do sentido e alcance do artigo 671.°, n.° 3, do Código de Processo Civil, dispondo este que não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamento essencialmente diferente, a decisão proferida na 1a instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.
b) Entende a ora recorrente que o acórdão a proferir para uniformização de jurisprudência deve concluir que é de equiparar à situação de dupla conforme aquela em que a Relação profere uma decisão que, ainda que não exatamente coincidente com a decisão da 1a instância, seja mais favorável à parte que recorre (Acórdão de 3 de junho de 2016, Revista n.° 79/13.5TBCLD.C1.S1, 2a Secção,  sendo  Relatora  MARIA DA GRAÇA TRIGO).
c) O Decreto-lei n.° 303/2007 trouxe uma profunda reforma nos recursos almejando a simplificação e celeridade processuais e bem assim, a racionalização no acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.
d) Pelo que veio trazer uma limitação objetiva com a dupla conforme que assentava no pressuposto de inadmissibilidade do recurso de revista se a Relação confirmasse a decisão da Primeira Instância, sem voto de vencido.
e) Por sua vez, a Lei n.° 41/2013 procedeu a um ajustamento das condições em que se admite a dupla conforme na medida em que passou a exigir-se no n.° 3, do art. 671.°, do C.P.C., que o acórdão da Relação confirme a decisão proferida na Primeira Instância, "sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente".
f) A aparente simplicidade do preceito legal não deixa de exigir algum esforço interpretativo a fim de integrar corretamente algumas situações, evitando a afirmação de uma desconformidade ou de uma conformidade aferidas, apenas e tão só, por um critério puramente formal de coincidência ou não do conteúdo decisório da sentença.
g) "Num esforço de densificação do conceito a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem, maioritariamente, equiparado à dupla conforme a situação em que a decisão da Relação, sem voto de vencido e com fundamentação de direito essencialmente convergente com a da sentença da 1.a instância, é mais favorável à parte que recorreu, embora não satisfaça totalmente a pretensão deduzida (...)" - in Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08-02-2018, Revista n.° 22083/15.9T8PRT.
h) "por exemplo, no caso de decisões de condenação numa prestação pecuniária em que o réu não poderá recorrer da decisão da Relação que, dando em parte provimento ao recurso, o condene em prestação apenas menos do que a da 1 .a instância, não podendo, por seu turno, o autor recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça se, com o seu recurso para a Relação, viu subida a indemnização que na 1.a instância lhe fora reconhecida, embora não tivesse atingido o por si peticionado" - in Acórdão de 08-02-2018, Revista n.º 22083/15.9T8PRT.
i) De outro modo abria-se a porta para a possibilidade de recurso de revista numa situação mais vantajosa para o recorrente quando uma confirmação integral da condenação, o não consentiria.
j) In casu, se o A. não poderia recorrer da decisão da Relação se a mesma fosse absolutamente idêntica à proferida pela Primeira Instância, não é coerente admitir, por maioria de razão, que ele possa interpor revista de uma decisão que lhe é mais favorável.
k) Consequentemente deve julgar-se inadmissível o recurso interposto pelo A. para este STJ.
l) Caso assim se não decida, este STJ entendeu não conhecer do objeto dos recursos interpostos quer pelo A. quer pela R. no que concerne à decisão da 1a instância e do Tribunal da Relação que fixaram o valor indemnizatório por danos não patrimoniais em € 25.000,00.
m) O A. defende que a dupla conformidade traduz-se na confirmação unânime e irrestrita pela Relação do julgado em 1ª instância e, por isso, defende dever ser apreciado o objeto deste seu recurso.
n) Entende a ora recorrente que ainda que o pedido se fixe globalmente numa determinada quantia, estamos perante o mero somatório de uma série de pedidos derivados de vários segmentos dispositivos, nascidos de uma mesma factualidade, mas assentes numa natureza autónoma e distinta entre si.
o) Tanto assim é que seria perfeitamente concebível, por exemplo, uma condenação em determinado dano de natureza patrimonial mas simultaneamente não num eventual dano não patrimonial, por este não ter sido provado; ainda que ambos tivessem sido alegados relativamente a uma mesma factualidade: o acidente de viação.
p) Confrontado com a segmentação de pedidos, este Supremo Tribunal de Justiça propugnou no sentido de "Nos casos em que a parte dispositiva da decisão contenha segmentos decisórios distintos e autónomos, o conceito de dupla conforme terá de se aferir separadamente relativamente a cada um deles" - in Acórdão de 26-06-2014, Revista n.° 70/10.3T2AVR.C1 .S1.
q) Entendendo que perante uma cumulação de "dispositivos distintos, independentes e autónomos, sem qualquer conexão normativa entre si, o conceito de dupla conforme (...) deve ser aferido separadamente em relação a cada um deles" - in Acórdão de 21-04-2016, Revista n.° 79/13.5TTVCT.G1 .S, disponível in www.dgsi.pt.
r) Esta visão das coisas é, na verdade, a única concebível à luz da dupla conforme pensada em 2007 e refinada em 2013, pois só assim se consegue a almejada racionalização no acesso a este Supremo Tribunal de Justiça e bem assim, vedar a possibilidade de recurso de revista ordinária quando a decisão da Relação já é mais vantajosa ou idêntica para o recorrente no que àquele dano diz respeito.
s) Paralelamente, não fere o constitucional direito de acesso à justiça, pois permite o recurso nos segmentos do pedido com decisão desconforme e desfavorável à parte vencida.
t) Pelo exposto, crê a recorrida que o entendimento sufragado nas alegações do recorrente é excessivamente formal e sem correspondência com o nosso regime processual civil e jurisprudência dominante.
u) No entanto, se assim se não entender, impõe-se que seja também apreciado o objeto do recurso da R. no que concerne à impugnação do decidido pelas instâncias quanto à indemnização fixada para ressarcir os danos não patrimoniais do A.”.

9. Sem ter sido feita expressa referência ao recurso subordinado da Ré, foi proferido despacho de admissão liminar do recurso do Autor no qual foi considerado ocorrer contradição expressa entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento e inexistir acórdão uniformizador sobre a questão fundamental de direito em causa.

Mostra-se ponderado, nesse sentido, na referida decisão:

11.2. As decisões em confronto incidiram sobre a mesma questão fundamental de direito no domínio da mesma legislação - o sentido do art.º 671.º do NCPC ao reportar-se à dupla conforme como obstáculo de revista.

Em ambos os processos ao recurso eram aplicáveis as normas do CPC de 2013 – art.º 7.º.

Os factos principais e que fundamentaram decisões distintas são semelhantes, procedendo a identidade da questão a decidir.
1. A solução adoptada pelo tribunal nos dois casos em confronto, foi oposta. A fundamentação das decisões permite compreender o sentido dessa oposição.
2. (…) 12. A oposição entre os dois acórdãos pode considerar-se como contradição expressa: no acórdão fundamento o problema jurídico foi equacionado (na mente do julgador) e mereceu uma resposta negativa (a lei não permite essa distinção…); no acórdão recorrido a questão foi abordada directamente e mereceu uma resposta contrária.”

10. Notificado nos termos previstos no n.º 1 do artigo 687.º do CPC, o Ministério Público emitiu parecer, sustentando:
ü a reiteração do juízo liminar de admissibilidade quanto ao recurso do Autor, não obstante a ausência formal de conclusões e a falta de explicitação do sentido em que o Recorrente entende dever fixar-se a jurisprudência uniformizada;
ü  a possibilidade de, em regime de revisibilidade do despacho liminar e suprimindo a omissão de pronúncia por parte daquele quanto ao recurso subordinado interposto pela Ré, proceder à admissão e apreciação do mesmo por assistir à parte um interesse autónomo em agir do lado activo (por forma a poder ver discutida, na sua perspectiva, e não como parte recorrida, o valor dos danos não patrimoniais por que foi condenada).

Invocando a utilidade em precisar que a oposição de julgados se circunscreve no contexto de acções de efectivação de responsabilidade civil extracontratual fundada em facto ilícito e no âmbito de pedidos indemnizatórios múltiplos ou cumulados, defende que se profira proposição uniformizadora de jurisprudência com o seguinte teor ou equivalente:

Em acção declarativa de efectivação de responsabilidade civil extracontratual fundada em facto ilícito, a dupla conformidade que, nos termos do art.º 671° n.º 3 do CPC/2013, obsta à recorribilidade por via da revista normal prevista no seu n.º 1 de acórdão de tribunal da Relação que, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, confirme sentença de 1.ª instância, averigua-se na confrontação dos respectivos segmentos decisórios referenciados a cada um dos pedidos ou pretensões autónomos cumulados e afere-se em função do grau de identidade de cada uma das pertinentes respostas decisórias, e tudo de molde a que não só possa haver dupla conformidade quanto a algum, ou alguns, dos pedidos ou pretensões e não quanto a outro ou outros, e a que a procedência parcial do recurso constitua, para o apelante que dela beneficia, obstáculo de dupla conforme”.

11. O Exmo. Conselheiro Relator a quem o presente recurso foi inicialmente distribuído, ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º3, do CPC, notificou as partes para se pronunciarem quanto às seguintes questões:

- rejeição pelo Pleno das secções cíveis do recurso do Autor por incumprimento do ónus de formular conclusões;

- não conhecimento do objecto do recurso subordinado por a parte ter acatado a falta de pronúncia quanto à admissibilidade liminar do mesmo e, nessa medida, precludida tal possibilidade;

- caducidade do recurso subordinado com a rejeição do recurso do Autor.   

12. Correspondendo à notificação, o Autor pronuncia-se no sentido de ter procedido ao cumprimento do n.º1 do artigo 639.º do CPC, por ter realizado a finalidade legal que está subjacente ao referido comando legal, ainda que do ponto de vista formal não tenha feito incluir na sua peça processual o termo “conclusões”.

Refere, ainda, que a entender-se que as conclusões apresentadas não satisfazem o cumprimento do n.º1 do artigo 690.º do CPC, tal deficiência apenas pode ser ultrapassada com o convite ao aperfeiçoamento; não, com a rejeição do recurso.

13. A Ré pugna pela rejeição do recurso do Autor por incumprir o dever de apresentação de conclusões; a assim não se entender, defende que o despacho liminar não enferma de omissão de pronúncia quanto ao recurso subordinado por o mesmo se encontrar necessariamente admitido face à admissão liminar do recurso principal, uma vez que a revista que interpôs se destina à apreciação do segmento decisório relativo aos danos não patrimoniais cujo acórdão recorrido considerou não poder conhecer por existência de dupla conformidade decisória. Considera, por isso, que o despacho liminar só se teria de pronunciar quanto ao recurso subordinado caso o mesmo fosse rejeitado por verificação de alguma das situações a que alude o n.º1 do artigo 692.º do CPC. 

14. Em reponderação do posicionamento assumido, ao abrigo do n.º3 do artigo 639.º do CPC, foi proferido despacho convidando o Autor a corrigir as conclusões do recurso, tendo relegado a apreciação do requerimento da Ré para o “término da tramitação – em curso – referente à admissibilidade do recurso principal”.

15. Na sequência do convite que lhe foi feito, o Autor formulou as seguintes conclusões (transcrição):

1ª - No caso, não há dupla conforme, nos termos do disposto no art. 671.º, n.º 3, do CPC, e que obstou à apreciação do recurso do Autor na componente relativa ao dano não patrimonial (fixado pela 1ª instância e Relação em 25.000 euros).

2ª – E não existe dupla conforme, pois o acórdão proferido pela Relação do Porto não confirma a sentença da 1ª instância, e, dando procedência parcial à apelação, arbitra uma indemnização superior à fixada na sentença, mas inferior ao pedido.

3ª - A dupla conforme, como circunstância de irrecorribilidade da revista, afere-se pela confirmação da decisão, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente – art. 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC).

4ª – No caso, é manifesto que não existe dupla conforme, pois o acórdão da Relação não confirmou a sentença, tendo julgado “parcialmente procedente a apelação do A.”, alterando o montante da indemnização parcelar fixada na sentença de € 40.000,00 para a quantia de € 50.000,00.

5ª – Entende o recorrente que, fundido o pedido na indemnização por responsabilidade civil, não releva a segmentação da indemnização pelas diferentes parcelas, pois a lei não erigiu tal critério para aferir a dupla conforme. Assim entendeu este Supremo no Acórdão proferido no processo 8514/12.3TBVNG.P2.S1, de 07-12-2016, relativo também a uma ação de efetivação da responsabilidade civil emergente de acidente de viação (disponível em www.dgsi.pt), transitado em julgado, junto aos autos;

6ª – Com efeito, a dupla conforme, como circunstância de irrecorribilidade da revista, afere-se pela confirmação da decisão, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente – art. 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC) – o que não ocorre no caso, como se disse.

7ª - O conceito de dupla conforme (dupla conformidade; bi-conformidade) surge com a reforma do Código de Processo Civil introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto na nova redação do então artigo 721.º.

8ª - A conceptualização de dupla conforme foi vertida no n.º 3 daquele antigo artigo 721º como o “Acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1.ª instância” ressalvando os casos acima referidos e elencados no então n.º 1 do artigo 721-A.

9ª - A dupla conformidade tem ínsito o não acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, quando a questão já foi julgada, tal qual, pela 1.ª Instância e pela Relação, o que não sucede no presente caso.

10ª - O julgamento “tal qual” significa a sobreposição decisória (independentemente de diversa motivação) encontrada por unanimidade dos julgadores. E é assim que a dupla conforme vem sendo entendida pela Formação do STJ – cfr, por exemplo, nos P.ºs 1822/08. OTBLLE.A.E1.S1; 66/08.5TBVLN.G1.S1; 1/08.7JVNF-AY.S1.P1; 10/09.2TBLLE.A.E2.S1; 37/09.4T2AVR-A.C1.S1;549/08.7BBSCR.L1.S1;80/08.9TBGMR.G1.S1;907/08.7TVPRT.P1.S1;3650/10.3TBVFR.P1.S1;1459/08.6YLSB.A.L3.S1; 77/08.OTBEPS.G1.S1;e 470/08.6TBVFR.P1.S1, entre muitos outros.

11º - O legislador de 2007 pretendeu limitar o recurso de revista quando a questão “sub judicio” foi julgada por duas instâncias e estas coincidiram na decisão tornando-a sobreponível nos seus precisos termos.

12º - Ou seja, há que buscar uma total e unânime sobreposição de julgados, sem prejuízo de pontos, ou segmentos, discordantes quanto à fundamentação do decidido.

13º - “In casu”, do cotejo da decisão da 1.ª Instância e do deliberado pela Relação verifica-se que não ocorreu confirmação irrestrita por esta do julgado por aquela. Topa-se, desde logo, com um Acórdão da Relação a não confirmar, tal qual, mas antes a revogar o julgado pela 1.ª instância – cfr. também o Acórdão do STJ proferido no processo 433682/09. 2YIPRT.L1.S1, de 09-04-2013, disponível em www.dgsi.pt (“Se a Relação não confirmou, tal qual, o julgado pela 1.ª Instância, antes o alterando/revogando, inexiste a dupla conformidade”).

14ª - Haverá pois que assentar no ponto nuclear desta questão -conhecimento e decisão do(s) pedido(s) – que tem de ser perfeitamente coincidente (sobreponível), não havendo dupla conforme se ocorreram diferentes decisões quanto a alguns pedidos, já que o aresto recorrido tem de ser apreciado no seu todo decisório final e não visto parcelarmente.

15ª – Ao não apreciar o recurso do recorrente na componente relativa ao dano não patrimonial, com o fundamento da dupla-conforme, o Acórdão da Relação aderiu a um conceito demasiado amplo, que, seguramente, não foi querido pelo legislador, do qual não vislumbramos suporte legal, indo ao ponto de segmentar a parte decisória e defender a conformidade parcelar, confundindo, mesmo, a recorribilidade objetiva com a recorribilidade subjetiva (v.g. sucumbência).

16ª - Com efeito, a regra do n.º 3 do artigo 671º do Código de Processo Civil consiste em vedar a revista normal “do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na primeira instância”.

17ª - Trata-se, assim, de uma situação de irrecorribilidade objetiva, a admitir exceções, tal como o que existe em preceitos homólogos (por exemplo, o artigo 66°, n.º 5, do Código das Expropriações).

18ª - O legislador pretendeu que, como regra, só houvesse revista normal se as instâncias divergissem quanto ao núcleo - absolutório ou condenatório -do pedido, independentemente de, por apelo à substanciação, a divergência ser de qualificação, ou, e se legalmente possível, tivesse sido alterada a causa de pedir. Quis que a intervenção do Supremo Tribunal só se justificasse para 'arbitrar' diferentes julgamentos do pedido ou, então, nas situações excecionais do n.º 1 do artigo 672°.

19ª - Só se a sobreposição integral do julgado - independentemente da diversa motivação - se verificar, é que não pode lançar-se mão da revista-regra, antes tendo de fazer-se apelo à revista excecional.

20ª - Mas se a confirmação não for integral e irrestrita, haverá revista normal, uma vez que perfilados os respetivos pressupostos, importando, então, entre outros, a sucumbência, como condição subjetiva de recorribilidade.

21ª - A assim não ser entendido, teria de passar a percorrer-se o “iter” do Acórdão da Relação, cotejá-lo, “pari passu", com a decisão da 1.ª instância, valorar as consequências de diferente motivação, para, só então, saber se houve conformidade ou desconformidade.

22ª - É pois entendimento do recorrente, sustentado na doutrina e jurisprudência abundantes deste STJ, nomeadamente no Acórdão que se junta como doc. 1, que, no caso dos autos, não ocorre a invocada dupla conforme, visto que, como resulta do supra referido, a Relação só em parte manteve a decisão da 1ª instância, quando a dupla conformidade se traduz na confirmação unânime e irrestrita, pela Relação, do julgado em 1ª instância, ressalvada divergência de fundamentação.

23ª - Para que a dupla conforme exista, resulta do disposto no já citado art.º 671º, n.º 3, que o acórdão da Relação teria de confirmar, sem restrições, o decidido na 1ª instância, salvo no que à respetiva fundamentação se refere, só essa podendo, nos termos daquele dispositivo, ser diferente, pois da redação daquele dispositivo se conclui que o legislador pretendeu excluir a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, salvo as mencionadas exceções, apenas nos casos em que as decisões da Relação confirmem na íntegra as da 1ª instância e não somente em parte.

24ª - Só assim, ou seja, confirmando o acórdão da Relação, tal qual, na sua globalidade, mediante total sobreposição e sem voto de vencido, a decisão da 1ª instância, deixando-a intocada, se pode dizer que o acórdão recorrido confirmou aquela decisão, só então existindo a dupla conformidade (cfr. também Acórdão do STJ proferido em 07-07-2010, no processo 5/08.3TBGDL.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

25ª - O Acórdão recorrido, ao não conhecer o recurso do Autor na componente relativa ao dano não patrimonial (fixado pela 1ª instância e Relação em 25.000 euros) por a tal obstar o critério de recorribilidade dupla-conforme, violou pois o disposto no artigo 671º, nº 1 e 3 CPC, está em contradição com o Acórdão deste Supremo, proferido em 07-12-2016 sobre a mesma matéria, já transitado em julgado e junto aos autos.

26ª- Consequentemente, por se verificar a existência da contradição jurisprudencial invocada, deve ser revogado o acórdão recorrido na parte em que não conheceu o recurso do Autor, substituindo-o por outro em que se decida a componente relativa ao dano não patrimonial fixado pela 1ª instância e Relação em 25.000 euros, com a qual o Autor não se conforma, por entender que este montante se mostra claramente desvalorizado, tendo em conta a matéria dada por provada, tal como se refere nas Conclusões 12ª a 17ª do recurso de revista interposto a 3 de Maio de 2017, que aqui se dão por integradas para os todos os efeitos legais.”   

II – APRECIAÇÃO DO RECURSO

Mostram-se submetidas para apreciação as seguintes questões:

1. Da admissibilidade do recurso do Autor

2. Da admissibilidade do recurso (subordinado) da Ré

3. Do conhecimento do objecto do recurso: da (in)existência de dupla conforme e da segmentação decisória

1. Os factos

Com relevância para a apreciação do recurso, para além do que consta do relatório supra, consignam-se as seguintes ocorrências processuais:

a) Na acção o Autor peticionou, a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos com o acidente, o montante de 150.000,00€

b) O acórdão recorrido fez constar o factualismo fixado pelas instâncias nos seguintes termos:

Factos provados

1 - No dia 31 de Maio de 2011, cerca das 21:30 horas, na estrada nacional n.º ...06, na freguesia ..., desta comarca, ocorreu um embate entre o motociclo “..-..-JC”, conduzido pelo pai do Autor, BB, seu dono e o automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula “..-..-AE”, conduzido por EE.

2 - O Autor circulava como passageiro do motociclo “JC”.

3 - No local do embate a estrada configura uma curva.

4- O piso era em asfalto.

5- O veículo “JC” circulava a velocidade não superior a 50 Km/h, no sentido ... - ....

6 - E circulava pelo lado direito da faixa de rodagem junto da respetiva berma.

7- O veículo “AE” circulava em sentido contrário ao veículo “JC”, a velocidade superior a 50 Km/h, não logrando efetuar a curva que a via descreve, transpondo o eixo médio da referida via, atento o seu sentido de marcha, embatendo no “JC”, dentro da hemi-faixa direita da E.N. ...06, atento sentido ... - ....

8 - Em consequência do embate, o Autor foi projetado contra a parede duma casa de habitação existente no local, onde embateu com as costas, caindo desamparado no asfalto e perdendo os sentidos.

9 - Como consequência direta do embate, o Autor sofreu lesões:

- na coluna;

- fractura exposta do fémur esquerdo;

- fractura exposta dos ossos da perna esquerda, e

- feridas punctiformes (4) na perna esquerda.

10 - Logo após o embate, o Autor foi socorrido no local por uma equipa do INEM, onde lhe foram dados os primeiros socorros, sendo transportado pela VMER para a urgência do Centro Hospitalar ..., em ....

11 - No qual permaneceu internado e em regime de observações no Serviço de Pediatria até 9 de Julho de 2011, sujeito a medicação e vários tratamentos e exames médicos, nomeadamente de Raio X, TAC, ATB, análises, soroterapia, administração de soros, injeções, analgesias e aplicação de gesso na perna esquerda.

12 - Os referidos exames médicos incidiram sobretudo na Bacia, Coluna Cervical, Coxa, Perna, Tornozelo, Coluna Dorsal, Coluna Lombar, Tórax e Crânio Encefálico.

13 - Ainda no referido hospital, o Autor foi operado para correção cirúrgica das fraturas, tendo sido submetido a osteotaxia de fémur com aplicação de parafusos fixadores externos Hoffmann II e encavilhamento com varetas TEM da tíbia esquerda, tendo sido ainda submetido aos tratamentos médicos à ferida presente na perna lado esquerdo, onde foi suturado com vários pontos.

14 - Em 9 de Julho de 2011, o autor regressou à habitação, onde, por indicação médica, permaneceu em total repouso.

15 - Desde a data do embate até Setembro de 2011, o Autor permaneceu sempre com a perna engessada, só se podendo deslocar de cadeira de rodas.

16 - A partir de Outubro de 2011 e até fins de Janeiro de 2012, o Autor passou a deslocar-se com "canadianas", sendo que, de 5 de Julho de 2012 a 5 de Setembro de 2012, o Autor voltou a andar com "canadianas" para se movimentar.

17 - Durante estes períodos, só se podia deslocar com a ajuda de terceiros.

18 - Entre 12 de Julho de 2011 e 13 de Setembro de 2012, o Autor seguiu os tratamentos médicos e consultas nos serviços clínicos da Ré, na cidade ..., tendo aí se deslocado nas seguintes datas: 12 de Julho de 2011; 28 de Julho de 2011; 05 de Agosto de 2011; 26 de Agosto de 2011; 24 de Setembro de 2011; 11 de Outubro de 2011; 14 de Outubro de 2011; 18 de Outubro de 2011; 25 de Outubro de 2011; 02 de Novembro de 2011; 08 de Novembro de 2011; 11 de Novembro de 2011; 15 de Novembro de 2011; 22 de Novembro de 2011; 29 de Novembro de 2011; 06 de Dezembro de 2011; 13 de Dezembro de 2011; 16 de Dezembro de 2011; 20 de Dezembro de 2011; 27 de Dezembro de 2011; 03 de Janeiro de 2012; 06 de Janeiro de 2012; 10 de Janeiro de 2012; 24 de Janeiro de 2012; 27 de Janeiro de 2012; 31 de Janeiro de 2012; 07 de Fevereiro de 2012;14 de Fevereiro de 2012; 22 de Fevereiro de 2012; 24 de Fevereiro de 2012; 06 de Março de 2012; 06 de Março de 2012; 06 de Março de 2012; 20 de Março de 2012; 03 de Abril de 2012; 10 de Abril de 2012; 20 de Abril de 2012; 24 de Abril de 2012; 08 de Maio de 2012; 18 de Maio de 2012; 22 de Maio de 2012; 05 de Junho de 2012; 15 de Junho de 2012; 26 de Junho de 2012; 26 de Junho de 2012; 18 de Julho de 2012; 27 de Julho de 2012; 02 de Agosto de 2012 e 13 de Setembro de 2012;

19 - Por solicitação dos serviços clínicos da Ré, o Autor efetuou tratamentos de fisioterapia para recuperação, todos os dias, com início em novembro de 2011, numa Clínica de Fisioterapia, localizada em ....

20 - Em 5 de Julho de 2012, ainda sob os serviços clínicos da Ré, o Autor foi submetido a nova intervenção cirúrgica para extração de material, ficando internado durante três dias no Hospital Casa de Saúde ....

21 - Como tratamento e em consequência desta última intervenção cirúrgica, o Autor voltou a permanecer em total repouso, estando limitado nos seus movimentos.

22 - Reiniciando os tratamentos de fisioterapia, num total de vinte sessões, que se prolongaram até 13 de Setembro de 2012, data em que os serviços médicos da Ré entenderam atribuir alta ao Autor.

23 - O Autor teve um período de défice funcional temporário total de 63 dias e um período de défice funcional temporário parcial de 805 dias.

24 - Em consequência do aludido embate, o Autor apresenta:

- Marcha normal do membro inferior esquerdo;

- cicatriz circular com l cm de raio, na nádega esquerda;

- cicatriz com 21 cm, irregular, longitudinal, na face antero-interna da coxa esquerda;

- 5 (cinco) cicatrizes circulares com 1 cm de raio, na face externa da coxa esquerda uma com 6 cm antero-lateral e outra com 12 cm na face antera-medial da coxa esquerda;

- quatro cicatrizes com alteração da coloração da pele, na face interna do joelho e perna esquerdos;

- Dismorfía da coxa esquerda;

- Hipotrofia de 3 cm, com perda evidente de massa muscular, medida no terço médio da coxa;

- Alteração da mobilidade do joelho esquerdo, com limitação da flexão até aos 105 graus;

- Franca instabilidade em valgo do joelho esquerdo que se quantifica em 25 graus;

- Recurvatura do joelho esquerdo, que se quantifica em 25 graus;

- Encurtamento do membro inferior esquerdo em 1,7 cm;

25 - O Autor, por força das lesões sofridas com o embate, ficou com um défice funcional permanente da integridade física - psíquica fixável em 12,5 pontos, sendo de admitir a existência de dano futuro.

26 - O Autor, por causa das lesões sofridas, ficou com cicatrizes, o que lhe acarreta um dano estético permanente fixável no grau 4/7.

27- O quantum doloris é fixável no grau 5/7.

28 - Por causa das lesões sofridas, o Autor, através dos seus pais, suportou as seguintes despesas:

- € 65,00 despendida com uma consulta de ortopedia na Clinica Médica ... para apurar, tratar e curar as lesões físicas resultantes do embate.

- € 120,00 despendida com a elaboração do relatório de ortopedia para apuramento das lesões físicas resultantes do embate.

29 - O Autor nasceu em .../.../2000.

30 - Em consequência do embate, a mãe do Autor, CC, teve que deixar de trabalhar para prestar assistência ao filho, permaneceu de baixa médica na modalidade de assistência a familiares.

31 - A mãe do Autor tinha iniciado em 1 de Março de 2011, as suas funções como empregada de limpeza no Município ..., mediante contrato escrito, celebrado no âmbito da Medida Contrato Emprego-Inserção, nos termos dum Projecto protocolado com o Instituto do Emprego e Formação Profissional ..., destinado a desempregados beneficiários das prestações de desemprego.

32 - Tal contrato teve o seu início em 1 de Março de 2011 e o seu término previsto para 29 de Fevereiro de 2012 e de acordo com o mesmo, a mãe do Autor tinha direito a receber do Município ..., pelo trabalho prestado, uma bolsa mensal complementar, de montante correspondente a 20% da prestação de desemprego, acrescido do subsídio de alimentação e despesas de transporte, recebendo um total de € 180,00 por mês, a que acrescia o subsídio de desemprego.

33 - Em consequência das faltas ao trabalho, a mãe do Autor viu o seu contrato com o Município ... ser resolvido, tendo deixado de receber, a título de bolsa e subsídios de alimentação e transporte, caso trabalhasse até 29/2/2012, o total de € 1.620,00 (€ 180,00 x 9 meses), por ter deixado de trabalhar.

34 - O Autor era uma criança alegre e divertida,

35 - Gozava de boa saúde e sem qualquer deficiência motora ou estética.

36 - Praticava desporto.

37 - Frequentava os escuteiros.

38 - Ocupando também parte dos seus tempos livres a jogar futebol com os miúdos da sua idade e a dar passeios de bicicleta.

39 - Por causa do embate, o Autor receou pela vida.

40 - Durante o período de internamento e de recuperação, o Autor não pôde desempenhar as atividades escolares e de recreio e lazer a que estava habituado.

43 - Nos dias de mudança de tempo, o Autor tem dores na perna esquerda, padecendo de dores em situações de esforço.

44 - Todos estes factos provocam-lhe tristeza.

45 - Nos dois anos após o embate, o Autor sofreu irritabilidade, depressão e ansiedade, tendo necessidade de ter tido acompanhamento psicológico durante esse período a fim de superar o trauma causado pelo mesmo.

46 - À data do embate, o Autor era estudante do 4.º ano, na escola primária da ..., na freguesia ..., ..., tendo deixado de poder frequentar a escola até ao final do ano letivo 2010/2011.

47 - Só regressou à escola (já para o 5º ano) em Outubro de 2011, quando deixou de andar na cadeira de rodas para passar a andar com canadianas, o que limitava os seus movimentos.

48 - O Autor deslocava-se à consulta de ortopedia, nos serviços clínicos da Ré, no ..., uma vez por mês, por volta das 15 horas e à consulta de psicologia, também nos serviços clínicos da Ré, na cidade ..., uma vez por semana, por volta das 10 horas, desde Novembro de 2011 até Maio de 2012.

49 - E tinha de deslocar-se aos tratamentos de fisioterapia, todos os dias, até à atribuição da alta médica pelos serviços médicos da Ré.

50 - Em virtude das ausências à escola, motivadas pelas consultas e tratamentos médicos, o Autor foi submetido a aulas de recuperação e testes extraordinários para transitar para o 6º ano,

51 - Vendo-se, assim, sobrecarregado com actividades lectivas e de estudo que não necessitava se pudesse frequentar a escola com regularidade, como o fazia até à data do embate.

52 - Não obstante os clínicos da Ré terem atribuído alta médica ao Autor, em 13 de Setembro de 2012, este continua, por aconselhamento médico, a efetuar tratamentos de fisioterapia e a ter consultas de ortopedia, sendo que mantém o acompanhamento psicológico apenas por causa do seu rendimento escolar.

53 - Por causa das lesões sofridas com o embate, é previsível um agravamento das sequelas, sendo de admitir a existência de Dano Futuro, com eventual necessidade de novos procedimentos cirúrgicos, internamentos hospitalares, tratamentos adicionais (se clinicamente justificável) e de molde a evitar o agravamento da situação.

54 - O Autor poderá submeter-se, pelo menos, a uma operação plástica, caso pretenda disfarçar as cicatrizes de que passou a padecer, em consequência do embate.

55 - À data do embate, a responsabilidade civil emergente de acidente de viação com a circulação do veículo “..-..-AE” encontrava-se transferida para a Ré, mediante acordo de seguro titulado pela apólice n° ...32.

Factos não provados

- A incapacidade do Autor tem vindo a agravar e a causar-lhe graves dificuldades no dia-a-dia.

- Por causa do embate, o Autor receou ficar numa cadeira de rodas para sempre ou até a perder algum membro do corpo como a perna esquerda.

- Durante o período de internamento e de recuperação, o Autor esteve privado da companhia assídua de familiares e dos amigos.

- Enquanto permaneceu internado no referido Hospital, o Autor chegou a perder a memória, não conhecendo a mãe e a irmã que o iam visitar, recuperando-a ao fim de três dias.

- Por ter medo, o Autor não consegue, desde o acidente, andar de motociclo,

- Tendo ainda pavor em andar em qualquer outro veículo motorizado.

- O acompanhamento psicológico actual do Autor resulta do facto de aquele não ter conseguido superar o trauma vivido pelo acidente.

- Desde a data do embate até Dezembro de 2011, o Autor permaneceu sempre com a perna engessada, só se podendo deslocar de cadeira de rodas.

- Os pais do Autor despenderam € 50,00 com uma consulta no Centro Hospitalar ..., EPE, para apurar, tratar e curar as lesões físicas resultantes do acidente.

- As limitações físicas com que o Autor ficou após o sinistro, trazem-lhe dificuldades de relacionamento com os jovens saudáveis da sua idade.

- O Autor, por causa das cicatrizes, sente-se diminuído e envergonhado junto dos seus colegas de escola que, por não entenderem, gozam com o Autor e dirigem-lhe comentários diminutivos e aborrecidos.

- As cicatrizes concentradas na perna esquerda são muito limitativas do uso do vestuário, o que fazem com que o Autor se sinta acanhado e envergonhado quando usa calções e peças de vestuário mais reduzido.

- Por causa do embate, o Autor deixou de andar de bicicleta e de jogar à bola como fazia antes do sinistro, tendo também sido obrigado a abandonar o escutismo.

- As lesões decorrentes do embate provocaram ao Autor desambientação, desinserção social e emocional.

c) No Processo n.º 8514/12.3TBVNG.P2.S1., instaurado contra Fundo de Garantia Automóvel, os Autores peticionaram, a título de indemnização, 227 101,40 €, acrescida do pagamento de despesas médicas e medicamentosas a despender e ainda o prejuízo na pensão de reforma, sofridos com acidente de viação, encontrando-se indicado no montante indemnizatório a quantia de 25.000,00€, a título de danos não patrimoniais.

d) Nos referidos autos foi proferida sentença que condenou o Réu no pagamento da indemnização de 22.000,00€, sendo 12.000,00€ a título de danos não patrimoniais. Conhecendo da apelação interposta pelo Autor, o tribunal da Relação do Porto deu procedência parcial ao recurso, condenando o Réu no pagamento da quantia de 112.650,00€ e no que se viesse a liquidar em “execução de sentença”, mantendo, porém, o montante de 12.000,00€, fixado pela 1.ª instância, a título de danos não patrimoniais.

e) Ambas as partes recorreram de revista, pretendendo o Autor a alteração do montante indemnizatório quer quanto à “perda de ganho futuro”, que considerou dever ser ressarcido na quantia de 134.891,40€, quer quanto à compensação por danos não patrimoniais, defendendo dever ser arbitrado o valor de 25.000,00€ peticionado.

f) Suscitada pela Ré a questão da inadmissibilidade da revista, com fundamento em dupla conformidade decisória, relativamente à questão reportada ao valor dos danos pela perda de ganho e não patrimonial, foi proferido acórdão (o acórdão-fundamento), que julgou improcedente a questão prévia por considerar que nada obstava ao conhecimento da revista interposta pelo Autor. Concluindo pela inexistência de dupla conformidade decisória ponderou para o efeito:

(…) na ação de efetivação da responsabilidade civil emergente de acidente de viação, o A. formulou, designadamente, um pedido líquido de indemnização de € 227 101,40, tendo a sentença fixado a indemnização de € 22 000,00, enquanto o acórdão recorrido, sem voto de vencido, a estabeleceu em € 112 650,00.x

A dupla conforme, como circunstância de irrecorribilidade da revista, afere-se pela confirmação da decisão, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente – art. 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC).

É manifesto que não existe dupla conforme, pois o acórdão recorrido não confirmou a sentença, tendo dado “procedência parcial ao recurso de apelação”, ao arbitrar uma indemnização de € 112 650,00, em substituição da fixada na sentença, de € 22 000,00.

Por outro lado, consubstanciado o pedido na indemnização por responsabilidade civil, não releva a segmentação da indemnização pelas diferentes parcelas, pois a lei não erigiu tal critério para aferir a dupla conforme.

A circunstância do acórdão recorrido ter favorecido a posição do R., que recorrera da sentença, também não releva, dado o decaimento na apelação, circunstância que não pode deixar de ser considerada.

Além disso, do disposto no art. 671.º, n.º 3, do CPC, não resulta que tal circunstância pudesse influenciar a questão sobre a dupla conforme, nem, por outro lado, que tal tivesse sido a vontade do legislador.

Deste modo, não há dupla conforme, nos termos do disposto no art. 671.º, n.º 3, do CPC, que obste à interposição da revista pelo A.”

2. O direito

2.1 Da admissibilidade do recurso do Autor

A questão do “indeferimento[1] do recurso interposto pelo Autor por incumprimento do ónus de apresentar conclusões, suscitada após admissão liminar do recurso, mostra-se ultrapassada face ao convite (a que a parte acedeu juntando as conclusões das alegações) ao aperfeiçoamento das conclusões de recurso formulado pelo então relator a quem o recurso foi inicialmente distribuído, reponderando[2], assim, o despacho de notificação das partes ao abrigo do artigo 3.º, do CPC (aludido em 14. do relatório supra).

Asseverado tal pressuposto geral de admissibilidade, cabe emitir pronúncia quanto à verificação dos requisitos específicos de que depende a uniformização, atenta a competência deste Plenário, que não se encontra vinculado pelo despacho liminar de admissão que, no caso, considerou tais fundamentos presentes[3].

2.1.1 O recurso para uniformização de jurisprudência tem na sua base e fundamenta-se numa contradição existente entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, estando-lhe subjacente a finalidade de dirimir um conflito de jurisprudência sobre uma mesma questão de direito, decidida em função do mesmo quadro normativo.

Conforme tem vindo a ser considerado por este tribunal, a lei[4] prevê como fundamentos da admissibilidade do recurso de uniformização:

a) – a contradição entre o acórdão recorrido e outro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça[5] relativamente à mesma questão fundamental de direito;

b) – a anterioridade do acórdão fundamento;

c) – o trânsito em julgado dos dois acórdãos em confronto[6];

d) – a essencialidade da questão decidida pelos dois acórdãos de forma oposta;

e) – a identidade do regime normativo em que se enquadra a questão;

f) - não ter o acórdão recorrido adoptado jurisprudência anteriormente uniformizada pelo STJ ou constituir um acórdão uniformizador.

Se o critério para aferição da verificação de cada um dos requisitos referidos em b), c), d), e) e f) não oferece grandes dúvidas na sua concretização (uma vez que respeitam a conceitos precisos e facilmente identificáveis na sua concretização), o preenchimento do requisito essencial (o indicado em a)), nem sempre na prática se revela linear, não obstante se mostrar pacificamente aceite a orientação deste Tribunal quanto ao alcance do conceito contradição entre acórdãos, traduzido numa divergência frontal e essencial (integrando a ratio decidendi de cada um dos acórdãos em confronto) quanto à mesma questão fundamental de direito (situação concreta constituída por um núcleo factual similar, decidida com base na mesma disposição legal, em sentidos diametralmente opostos)[7].

O acórdão recorrido, com fundamento na existência de dupla conforme relativamente à indemnização peticionada a título de danos não patrimoniais decorrentes do acidente de viação sofrido pelo Autor[8], não conheceu, nessa parte, do objecto das revistas (interpostas por cada uma das partes quanto à confirmação da sentença que condenou a Ré seguradora a pagar ao Autor 25.000,00€), tendo apreciado os respectivos recursos no que respeita ao pedido de indemnização por danos patrimoniais (relativo à perda da capacidade de ganho, que a 1.ª instância fixou em 40.000,00€ e o tribunal da Relação em 50.000,00€).

Importa salientar (porque relevante na avaliação da existência de oposição de acórdãos) que relativamente a este segmento decisório (condenação da Ré na indemnização por danos patrimoniais), o acórdão recorrido não deixou de assinalar que o posicionamento maioritário que vem sendo seguido pelo STJ relativamente à densificação do conceito de dupla conforme (aferida pela ideia de conformidade parcial sempre que a parte é beneficiada na 2.ª instância) impediria o Autor de recorrer de revista, concluindo, porém, que essa dupla conformidade não constituía, no caso, obstáculo para o conhecimento da questão do valor de tais danos, por tal conhecimento se impor por via da apreciação do recurso da Ré[9], tendo, por isso, afirmado que relativamente ao Autor “(…) a questão deixa de assumir relevância autónoma, uma vez que se vai conhecer do objecto do recurso.”.

Assim, ao não se escusar a evidenciar o entendimento sufragado quanto à densificação do conceito de dupla conforme (ainda que indicado por referência ao segmento decisório relativo aos danos patrimoniais), o acórdão recorrido constitui decisão unitária nos seus fundamentos e pressupostos jurídicos argumentativos (exigência que se impõe ter em linha de conta em nome da coerência e uniformidade do julgamento[10]), designadamente no que toca à densificação do conceito de dupla conformidade decisória; nessa medida, não conheceu do objecto da revista quanto aos danos não patrimoniais porque estava em causa segmento decisório em que ambas as instâncias, com fundamentação essencialmente igual, haviam coincidido no sentido decisório, verificando-se dupla conforme, nos termos preceituados no artigo 671.º, n.ºs 1 e 3, do CPC.

O acórdão fundamento, tendo também por objecto determinar o montante indemnizatório a título de danos não patrimoniais e patrimoniais pela “perda de ganho” emergente de acidente de viação sofrido pelo Autor, ao invés, conheceu nas revistas (interpostas pelo Autor e pelo Réu, Fundo de Garantia Automóvel) do montante global indemnizatório, entendendo não ocorrer dupla conformidade decisória independentemente da convergência das instâncias na fixação do valor de 12.000,00€ para os danos não patrimoniais a ressarcir ao Autor (porquanto o acórdão da Relação, em procedência parcial à apelação do autor fixando a indemnização por danos patrimoniais pela perda da capacidade de ganho em 100.000,00€[11] revogando, nessa parte, a sentença que havia atribuído a esse título 10.000,00€).

Encontra-se este acórdão sustentado no seguinte raciocínio quanto à rejeição de dupla conformidade decisória:

- o acórdão do tribunal da Relação não confirmou a sentença, pois deu procedência parcial à apelação do Autor (alterando o valor da indemnização atribuído na 1.ª instância em 22.000,00€, para 112.650,00€), que formulou na acção um pedido líquido de indemnização (227.101,40€);

- em acção de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, a segmentação da indemnização pelas diferentes parcelas não releva para efeitos de dupla conformidade decisória;

- mostra-se, igualmente, irrelevante para a caracterização da dupla conforme a decisão mais favorável à parte recorrente levada a cabo pelo tribunal da Relação, mas sem dar satisfação integral à respectiva pretensão.

Confrontando as referidas decisões, evidencia-se:

i. ambas tiveram por objecto conhecer do montante de indemnização peticionado a título de responsabilidade civil decorrente de acidente de viação sofrido pelo autor, que na petição havia formulado pedido indemnizatório único, embora atribuindo valor individualizado para os danos não patrimoniais e para os danos patrimoniais e, nestes, os decorrentes da perda de capacidade de ganho;

ii. ambas tiveram por realidade a apreciar o acórdão proferido pelo tribunal da Relação, que, embora confirmativo do valor arbitrado pela sentença de 1.ª instância por danos não patrimoniais, alterou o montante da indemnização arbitrada a título de danos patrimoniais quanto à perda da capacidade de ganho decorrente do acidente sofrido, dando procedência parcial à apelação do respectivo autor;

iii. ambas tiveram de se pronunciar sobre a possibilidade do conhecimento do objecto do recurso perante a questão da ocorrência de dupla conformidade decisória quanto ao montante indemnizatório arbitrado a título de danos não patrimoniais impugnado na revista;

Assim, com fundamento na interpretação do mesmo preceito legal - artigo 673.º, n.ºs 1 e 3, do CPC –, cada uma delas enveredou por solução diversa tendo subjacente entendimento divergente do conceito de conformidade decisória numa dupla perspectiva (na densificação do conceito e na sua aferição em função da decisão): o acórdão recorrido não tomou conhecimento do objecto do recurso relativamente a um dos segmentos decisórios (condenação da Ré no pagamento de indemnização por danos não patrimoniais) face ao obstáculo de dupla conforme; o acórdão fundamento conheceu da totalidade do pedido (incluindo, por isso, a questão do valor dos danos não patrimoniais, que, aliás, alterou para o montante de 20.000,00€, dando procedência parcial à revista do Autor) por considerar não ocorrer dupla conformidade decisória, aferindo-a em relação à totalidade da decisão e não em função de segmentos decisórios distintos.

Por conseguinte, na sequência do concluído na decisão liminar, face à identidade dos pressupostos factuais (confirmação pelo tribunal da Relação do montante arbitrado pela sentença a título de danos não patrimoniais), os acórdãos em confronto, assentando numa mesma base normativa (artigo 671.º, n.ºs 1 e 3, do CPC), seguiram por soluções jurídicas opostas quanto à figura jurídica da dupla conforme (densificação do conceito de dupla conformidade decisória[12] e a sua aferição em função da segmentação da decisão), interpretando, de forma divergente, a norma jurídica aplicável, na resposta a dar à questão essencial objecto de impugnação no recurso - admissibilidade das revistas interpostas por (in)existência de dupla conforme -, sobre a qual não existe qualquer solução uniformizadora, justificando, por isso e nessa medida, o seu conhecimento.

2.2 Da admissibilidade do recurso (subordinado) da Ré

A Ré interpôs recurso subordinado nos termos do artigo 633.º, n.º2, do CPC, defendendo para segmento uniformizador a interpretação do artigo 671.º, n.º3, do CPC, assumida no acórdão recorrido, propondo uniformização de jurisprudência a proferir em termos contrários ao que se mostra pugnado pelo Autor.

A interposição deste recurso (subordinado), refere a Ré, tem por finalidade o conhecimento da sua pretensão recursória quanto à impugnação do montante arbitrado pelo tribunal da Relação a título de danos não patrimoniais fixados ao Autor, caso venha a ser adoptado o entendimento defendido por este quanto à interpretação do conceito de dupla conforme.

Como já assinalado, o despacho liminar de admissão do recurso do Autor não fez referência expressa à admissibilidade do recurso subordinado, mostrando-se pertinente a questão de saber se, neste âmbito, tal apreciação assume cabimento legal (quer porque se deva entender implicitamente admitido em face da admissão liminar do recurso principal, como defende a Ré, quer por já não poder ser objecto de admissão por este Pleno face à falta de reclamação pela parte da omissão de apreciação do recurso, conforme ponderado no despacho que determinou a notificação das partes ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º3 do, CPC)[13].

Entendemos que, no contexto dos autos, garantido que se encontra o princípio do contraditório, o caso julgado formal do despacho do anterior relator (ao reponderar a posição anteriormente assumida relativa à aplicação da alínea b) in fine do n.º2 do artigo 641.º do CPC, ao recurso principal, convidando o Autor a corrigir as imperfeições das conclusões das alegações e relegando a apreciação da admissibilidade do recurso subordinado da Ré para momento ulterior em consonância com a admissibilidade do recurso principal), a especificidade da situação e a necessária agilização e harmonização dos procedimentos processuais, aconselham a uma tomada de posição expressa quanto à admissibilidade do recurso subordinado para uniformização de jurisprudência interposto pela Ré.

2.2.1 De acordo com o artigo 633.º, n.º1, do CPC, “Se ambas as partes ficarem vencidas, cada uma delas pode recorrer na parte que lhe seja desfavorável, podendo o recurso, nesse caso, ser independente ou subordinado.

O regime estabelecido nos n.ºs 2 , 3, 4 e 5 do citado artigo 633.º, evidencia que a diferença determinante entre o recurso independente e o subordinado reside na falta de autonomia deste, marcada ab initio pela sua dependência cronológica (o prazo de interposição inicia-se a partir da notificação da interposição do recurso pela parte contrária), que reflecte o propósito que subjaz à parte que por ele opta: não conformação com a decisão que lhe é desfavorável em função da iniciativa da parte contrária ao recorrer da referida decisão.

E se é certo que a lei não dispensa ao recurso subordinado a verificação dos requisitos gerais próprios de cada recurso (recorribilidade[14], legitimidade, interesse em agir e tempestividade– artigos 629.º, n.º1, 631.º e 638.º, do CPC), independentemente da questão de saber se são (ou não) aplicáveis ao recurso subordinado outras situações de irrecorribilidade[15], há uma realidade incontornável que decorre do n.º5 do artigo 633.º do CPC[16], radicada no facto da admissibilidade do recurso principal constituir o fundamento para a admissão de recurso subordinado.

Este princípio da admissibilidade do recurso subordinado, aceite pela doutrina e jurisprudência como forma de assegurar no processo o equilíbrio e igualdade das partes nas situações em que ambas fiquem vencidas[17], encontra plena justificação em sede dos recursos ordinários[18], mas ganha pouco sentido no âmbito do recurso para uniformização de jurisprudência, atenta a sua natureza de recurso extraordinário[19] (por ser interposto após o trânsito em julgado do acórdão recorrido) determinativa da peculiaridade dos apertados requisitos de admissibilidade que a lei lhe impõe.

Com efeito, ainda que na sua estrutura o recurso de uniformização de jurisprudência seja semelhante à de um recurso ordinário[20], a especificidade do seu regime de interposição prevista no artigo 689.º, do CPC, não parece dar abertura à viabilidade de um instrumento jurídico configurado para evitar o trânsito em julgado de uma decisão desfavorável[21].

Todavia, a considerar-se viável a interposição do recurso subordinado no âmbito de um recurso de uniformização de jurisprudência, no caso concreto, o mesmo não seria admissível por ausência de interesse em agir da Recorrente ainda que a decisão objecto de recurso (não admissão da revista quanto ao segmento indemnizatório por danos não patrimoniais) lhe seja objectivamente desfavorável.


Vejamos.

De acordo com o n.º 1 do artigo 633.º do CPC, o recurso subordinado pode ser interposto se ambas as partes ficarem vencidas, mas cada uma só pode recorrer de forma independente ou subordinada “na parte que lhe seja desfavorável”.

Na situação dos autos, Autor e Ré ficaram vencidos pelo acórdão recorrido na parte em que este não conheceu dos recursos de revista interpostos por cada uma das partes relativamente aos danos não patrimoniais por ocorrer dupla conformidade relativamente a esse segmento decisório. Porém, a Ré recorre subordinadamente não se insurgindo contra tal decisão, já que pugna pela manutenção integral do acórdão recorrido e pela uniformização da jurisprudência no sentido de que, para efeitos do disposto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC “é de equiparar à situação de dupla conforme aquela em que a Relação profere uma decisão que, ainda que não exatamente coincidente com a decisão da 1ª instância, seja mais favorável à parte que recorre” e que “Nos casos em que a parte dispositiva da decisão contenha segmentos decisórios distintos e autónomos, o conceito de dupla conforme terá de se aferir separadamente relativamente a cada um deles”.

Visando o recurso de uniformização de jurisprudência superar a contradição jurisprudencial entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, a Ré recorre subordinadamente pretendendo a manutenção do acórdão recorrido, mas, para esse efeito, não tem cabimento o recurso extraordinário de uniformização subordinado, que se destinaria, precisamente, ao efeito oposto – revogação da decisão recorrida na parte em que é desfavorável ao recorrente.

Apenas a título subsidiário, a Ré defende que “Se se entender diferentemente e for admitido o recurso do A., apreciando-se o seu objeto no que concerne à indemnização fixada para os danos não patrimoniais, deve de igual modo ser admitido o recurso da R. sobre o mesmo objeto, o qual também deverá ser apreciado.”. Tal, porém, corresponde aos efeitos da decisão que vier a ser tomada caso a sua pretensão principal (manutenção do acórdão recorrido) não venha a merecer procedência, sendo, por isso, em sede contra-alegações a via adequada para ser manifestada.

Na verdade, a seguir-se a posição do acórdão-fundamento, o acórdão recorrido é revogado e substituído por outro em que se decide a questão controvertida (artigo 695.º, n.º 2, do CPC)[22]. Nesse caso, extinguem-se os efeitos do caso julgado formado pelo acórdão recorrido e, concluindo-se que não existe dupla conforme, terão de ser apreciados ambos os recursos de revista interpostos pelas partes (Autor e Ré).

Evidencia-se, pois, não obstante se mostrar inequívoca a legitimidade da Ré para recorrer, que a admissibilidade do recurso subordinado estaria, no caso, votada a insucesso por não se verificar um dos pressupostos para o efeito[23]: o interesse em agir, uma vez que a Recorrente não alcança com o recurso qualquer efeito útil.

3. Do conhecimento do objecto do recurso:

3.1 da (in)existência de dupla conforme

A dupla conforme, enquanto pressuposto (negativo) de admissibilidade do recurso de revista, constitui importante instrumento de filtragem de acesso do recurso ao STJ decisivamente[24] introduzido no domínio do processo civil com a reforma de 2007[25].

A figura encontra-se, actualmente, prevista no artigo 671.º, n.º3, do CPC, nos seguintes termos: “(…) não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância (…)” e, como decorre da definição legal, reporta-se a uma situação processual impeditiva do recurso de revista, que tem subjacente a ideia de se mostrar desnecessária a apreciação da causa nas situações “olhadas”, no mesmo sentido, em duplo grau de jurisdição.

Diversamente do sistema implantado com o DL 303/2007[26], numa linha de maior abertura ao recurso, garantindo a confiança e segurança jurídicas, a reforma de 2013 (o novo Código de Processo Civil, aprovado pelo DL 41/2013, de 26-06), em esforço de aperfeiçoamento do conceito, instituiu três requisitos caracterizadores da dupla conforme: unanimidade da decisão colegial (ausência de voto de vencido pelo colectivo de Juízes-Desembargadores) , fundamentação essencialmente idêntica[27] e conformidade decisória.

Este último requisito – a conformidade decisória – respeita à parte dispositiva da decisão e constitui, sem dúvida, o imo da dupla conforme.

Apesar de se mostrar consolidado desde o surgimento da figura[28] é o requisito que tem sido objecto de maior controvérsia na doutrina e na jurisprudência, a ponto de tornar necessária uma afirmação de posição a assumir de entre os (dois) entendimentos que foram tecidos quanto ao seu alcance (quer através de uma acção legislativa[29], quer pela intervenção deste tribunal na sua função de uniformização de jurisprudência).

3.1.1 No seu sentido natural, a expressão conformidade decisória indica concordância ou coincidência decisória. E, assim, à partida, o devemos entender pois, enquanto requisito legal, tem subjacente a indagação empírica de que a coincidência decisória das duas instâncias (a apreciação do litígio por quatro juízes com entendimento jurídico sincrónico) permite inferir, com razoabilidade, o acerto da decisão[30].

A questão que se coloca[31] é a de saber quais as situações submetidas a esta figura.

Naturalmente, nos casos em que ambas as instâncias decidem exactamente no mesmo sentido (igual conteúdo decisório), o funcionamento da dupla conforme mostra-se linear.

Tal simplicidade de raciocínio, todavia, tornando redutora a finalidade subjacente a um mecanismo eficaz de filtragem de acesso ao Supremo, foi objecto de evolução interpretativa, dando origem ao aparecimento de um critério aferidor da conformidade decisória, que deixou de assentar na coincidência formal de decisões, determinado pelo elemento literal de interpretação, mas radicado na ideia de decisão mais favorável ao recorrente.

Esta divergência de entendimento decorre de uma interpretação normativa que passou a fazer preponderar o elemento racional-teleológico da norma, partindo da ideia de não fazer sentido, no plano racional, permitir à parte beneficiada com a decisão da Relação recorrer para o STJ, quando o não poderia fazer caso tivesse ocorrido confirmação da decisão de 1.ª instância[32].

3.1.2 A ausência de esclarecimento pelo legislador quanto ao alcance do conceito de acórdão confirmativo da decisão de 1.ª instância permitiu pois que fossem desenhados dois caminhos interpretativos[33]: o da dupla conforme plena ou irrestrita e o da dupla conforme mitigada, ponderada ou racional.

O primeiro, o da coincidência formal decisória (a nível qualitativo ou quantitativo) defende que a situação de dupla conforme se caracteriza pela confirmação exacta e irrestrita da decisão da 1.ª instância (sobreposição total das decisões) porque só neste caso “está ausente um efeito revogatório da primeira decisão [34].

Invocam os seus defensores que este entendimento é o que faz mais sentido em termos literais: “entende-se por conforme, aquilo que confirma, que segue no mesmo sentido, que concorda com”, tem “o mérito científico de integrar o conceito de dupla conforme na teoria geral dos efeitos das sentenças[35], faz cumprir o valor da segurança jurídica e não compromete o princípio da igualdade.

Pronunciam-se, neste sentido, Ribeiro Mendes[36], Nuno Andrade Pissarra[37], Cardona Ferreira[38] e Rui Pinto[39].

Na jurisprudência, além do acórdão fundamento, seguindo o critério de coincidência formal, indicam-se os acórdãos do STJ de 08-09-2011, Processo n.º 880/08.1TBVRS.E1.S1, de 09-04-2013, Processo n.º 433682/09.2YIPRT.L1.S1 e de 10-12-2015, Processo n.º 1946/09.6TJLSB.L1.S1[40].  

O segundo caminho, o da designada teoria da dupla conforme mitigada, racional ou ponderada, impulsionado por Miguel Teixeira de Sousa[41], posteriormente seguido por Abrantes Geraldes[42], Alves Velho[43], J. Pinto Furtado[44] e Pereira da Silva[45], tem, actualmente, o acolhimento preponderante da jurisprudência deste tribunal e constitui a solução adoptada pela formação de juízes a que alude o n.º3 do artigo 672.º do CPC.[46].

Trata-se, como já referido, de um critério de conformidade assente na ideia de coincidência racional, que se afasta da coincidência formal de julgados (por esta se revelar mecânica e redutora dos propósitos subjacentes à própria figura da dupla conforme face à imponderação do elemento teleológico na interpretação da norma), que inicialmente equacionado relativamente às decisões de condenação numa prestação pecuniária (acções com objectos processuais economicamente divisíveis, ainda que não se esgote nesse âmbito)[47], parte da ideia e encontra justificação no facto de carecer de sentido admitir o recurso de revista nas situações em que o recorrente tenha obtido uma decisão mais favorável que aquela que teria com a confirmação irrestrita da decisão de 1.ª instância, inviabilizadora da revista.

Por conseguinte e segundo o posicionamento onde nos situamos, levando em conta o elemento racional ou teleológico de interpretação, a sobreposição caracterizadora da conformidade decisória, não obstante partir de uma coincidência de julgados (sobreposição parcial), é aferida em função da decisão mais favorável – quantitativa ou qualitativamente[48] -, ou seja, quando o acórdão da Relação se revela mais benéfico ao recorrente do que a proferida em 1.ª instância.

Trata-se de um critério “pragmático e funcional do conceito de dupla conforme, tendo a vantagem prática de criar alguma segurança jurídica acerca dos contornos da figura, não deverá, todavia, fazer perder de vista  que ela se passa a mover, não tanto no plano da coincidência decisória, mas envolve a formulação de uma espécie de regra especial de sucumbência, adicional à que sempre resultou do n.º1 do art. 629º, e implica, por outro lado, a criação de uma espécie de dupla conforme subjetiva, inibidora da revista normal quanto apenas a uma das partes.[49].

Os opositores deste entendimento centram a respectiva argumentação fundamentalmente em dois aspectos:

- no (des)respeito pelo elemento literal da norma (consideram, por isso, contra legem a interpretação extensiva do preceito, desrespeitando o disposto no n.º2 do artigo 9.º do Código Civil);

- no (des)respeito pelo requisito de admissibilidade do recurso previsto no artigo 629.º, n.º1, do CPC, reportado ao valor da sucumbência[50] (defendem, assim, que tal perspectiva da dupla conformidade decisória confunde o pressuposto de admissibilidade objectivo com a regra da sucumbência, que é um pressuposto de admissibilidade subjectivo, fazendo acrescer ao artigo 629.º, n.º1, do CPC, uma especial regra de sucumbência).

Cremos que tais objecções, de índole formal, mereceriam, desde logo, ser suplantadas perante uma realidade incontornável: a reduzida valia do critério da sobreposição estrita na prossecução da finalidade da figura da dupla conforme, criada por opção de política legislativa[51] apenas e enquanto mecanismo de filtragem no acesso ao Supremo.

Na verdade, na escolha do caminho de racionalização do acesso ao STJ, pouco sentido faria inibir a parte de interpor recurso no caso de a Relação manter a mesma condenação da 1ª instância, mas admiti-lo na situação de a parte obter uma reformatio in melius. Nestas duas situações ocorre uma identidade de razão que impõe, em termos de raciocínio lógico, o mesmo efeito impeditivo do recurso para ambas.

Contrapondo este argumento lógico defende Nuno Pissarra que ainda que possa “soar estranho que alguém possa recorrer tendo ficado beneficiado quando não podia se a decisão fosse exatamente a mesma da 1ª instância (…) não é por causa de o recorrente ficar na mesma que o art.721º, nº3, impede a revista”, mas porque a decisão ficou a mesma[52]. Nessa medida, conclui no sentido de que o que assume relevância na definição da dupla conforme não é a posição do recorrente, mas o sentido da decisão[53].

As consequências que resultam da opção por cada uma das interpretações são claras.

Não há dúvida de que as divergências de posicionamento redundam numa questão de perspectiva, pois que a dissonância ganha sentido em função do olhar sobre a realidade que cada uma delas elege: a decisão em si mesma; a decisão em função do respectivo destinatário, ou seja, em função da posição da parte, no caso, do recorrente.

Parece-nos, porém, ser esta última a mais abrangente e, consequentemente, nesse olhar mais vasto, a mais completa[54].

Por outro lado, cientes de que a solução interpretativa não pode ser reduzida à literalidade da norma[55], reflectir sobre o sentido a dar ao requisito da conformidade decisória convoca, necessariamente, a centralidade da questão na funcionalidade da figura da dupla conforme e a sua compreensão passa, inevitavelmente, por uma leitura integrada da evolução da mesma.

E nesse olhar retrospectivo da dupla conforme a que já fizemos referência evidencia-se que a densificação do conceito não constituiu ab initio uma questão inacabada. A evolução do entendimento que dela foi sendo feito, em resultado da permeabilidade aos interesses considerados merecedores de tutela, foi determinando a própria necessidade de actualização da norma.

Aqui chegados, no esforço de compreensão do melhor sentido a encontrar para a norma e cientes de que a actividade interpretativa possui, como ponto de partida (e também seu limite), a letra da lei (artigo 9.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil), mas tem de levar em conta todos os restantes factores da actividade hermenêutica (histórico, sistemático e teleológico), verificando-se que o sentido natural da expressão sob apreciação contida na norma[56] não corresponde à solução mais adequada (em termos do propósito subjacente à norma, sobretudo quando introduzida por factores conjunturais, como é o caso), há que encontrar o respectivo alcance num entendimento que mais se aproxime da razoabilidade dessa valoração, transpondo-a para os condicionalismos actuais, ou seja e sobretudo, ajustando o significado do conceito nela contido à evolução de que foi objecto com a alteração legislativa ocorrida em 2013[57].

Sublinhe-se, porém, que ainda que o sentido literal do conceito ínsito na norma aponte mais claramente para a aludida sobreposição total de decisões, o mesmo não excluiu a perspectiva mais ampla de sobreposição racional.

Assim, cremos ser de concluir que a posição por que pugnamos, no seguimento da jurisprudência consolidada deste tribunal[58]de que a conformidade das decisões das instâncias que caracteriza a figura da dupla conforme, obstando a interposição da revista normal, é aferida por um critério de coincidência racional, avaliado em função do benefício (reformatio in melius) que o apelante retirou do acórdão da Relação relativamente à decisão da 1.ª instância – não se desvia do caminho interpretativo apontado pelo n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil.

3.2 da segmentação da decisão

A delimitação do conceito de dupla conforme exige ainda reflexão no confronto com a questão da autonomia e cindibilidade do objecto processual.

Enquanto causa impeditiva da revista normal, a dupla conforme é aferida na parte dispositiva da decisão final e em função do objecto do processo, o qual é delimitado pela(s) pretensão (ões) formulada(s) pela(s) parte(s), que indica(m) a(s) medida(s) de tutela pretendida(s); como tal, não é possível separar a questão da exigência de sobreposição das decisões da fisionomia da decisão em concreto.

Nas situações de objecto processual plural[59] a conformidade decisória terá, em princípio, de ser avaliada, separadamente, para cada uma das pretensões autónomas e cindíveis decididas pelas instâncias[60].

Conforme se encontra explicitado no citado acórdão de 10-10-2012, a concretização do requisito fundamental da dupla conformidade da decisão “não pode desvincular-se da existência ou inexistência de objectos processuais perfeitamente autónomos e cindíveis – não se vislumbrando razão válida para, perante uma pluralidade de pretensões cindíveis (agrupadas numa mesma causa apenas pelo facto de existir algum nível de conexão entre elas), permitir irrestritamente a revista, quando sobre a matéria de uma delas incidiram decisões perfeitamente conformes e sobrepostas das instâncias”.

Porém, nos casos de objecto processual único (como o sob apreciação, em acção de responsabilidade civil extracontratual fundada em facto ilícito cuja pretensão se consubstancia num pedido indemnizatório ainda que segmentado em diversas parcelas[61] instrumentais do pedido global deduzido), coloca-se a questão de saber se o juízo de conformidade pode (deve) ser aferido em função da segmentação da indemnização pelas diferentes parcelas em que a pretensão da parte se encontra “fatiada”.

O acórdão-fundamento enveredou por uma acepção ampla de decisão aferindo a sobreposição em função da totalidade da decisão[62].

Este entendimento tende a secundar o critério da coincidência formal das decisões na densificação do conceito de dupla conformidade decisória[63].

Ao invés, os que se posicionam no critério da coincidência racional propendem[64] para uma acepção restrita de decisão no sentido de que a aferição da dupla conforme deve ser feita em função de cada segmento decisório autónomo e cindível[65], ou seja, separadamente para cada parcela da pretensão indemnizatória global em que se encontra (de)composta a decisão.

Os efeitos decorrentes da opção por um ou por outro dos entendimentos são evidentes.

E se é certo que a posição por que se opte quanto à sobreposição decisória, enquanto requisito da figura da dupla conforme, condiciona necessariamente a acepção (ampla ou restrita) sobre o conceito de decisão relevante, o aspecto crucial a ter em conta quanto à questão da viabilidade da segmentação da decisão reporta-se à fundamentação em que cada segmento decisório se encontra alicerçado, em termos de poder ser encarado como juridicamente cindível.

Os defensores da não cindibilidade entre as parcelas indemnizatórias por que a decisão se encontra segmentada fundam o respectivo entendimento na falta de autonomia do pedido de indemnização[66].

E embora tal aspecto não seja passível de ser colocado em causa, não podemos deixar de considerar que, para efeitos de aferição de dupla conformidade, a questão tem de ser deslocada para a estruturação da própria decisão proferida[67], onde é reflectida a natureza bilateral do objecto do processo (constituído pelo pedido e pela causa de pedir complexa).[68].

Trata-se afinal de equacionar a decisão judicial em idênticos parâmetros aos que a lei confere ao recorrente na delimitação objectiva do recurso nas situações em que a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas (n.º2 do artigo 635.º do CPC).

Esta cindibilidade da decisão encontra-se radicada na viabilidade de apreciação de segmentos da decisão entre si independentes cuja autonomia terá de ser aferida em função da respectiva fundamentação.

Reportando esta perspectiva para o âmbito da questão em análise no processo, nas situações em que a parte dispositiva do acórdão se mostre integrada por mais do que um segmento decisório, a viabilidade da fragmentação relevante da decisão para efeitos de dupla conformidade decisória terá de ser encontrada no confronto da motivação subjacente a cada um desses segmentos, que nesse sentido e para tal efeito terão de se configurar materialmente autónomos entre si e juridicamente cindíveis[69].

Deste modo, de acordo com a perspectiva racional da “dupla conforme”, se quanto a determinado(s) segmento(s) (autónomos materialmente entre si e juridicamente cindíveis) se verificar a confirmação do resultado declarado na 1.ª instância, sem qualquer voto de vencido e com fundamentação essencialmente idêntica, encontrar-se-á eliminada, nessa parte, a possibilidade de interposição de recurso normal de revista.

Esta posição vinha sendo seguida com predominância neste tribunal[70].

Ainda que, actualmente, a lei nada esclareça nesse sentido, entendemos ter consonância interpretativa considerar que a autonomização, na decisão judicial (como se de pedidos materialmente distintos se tratasse), das várias pretensões parcelares (cindíveis) de ressarcimento (em função da categorização dos danos em que a parte decompôs o seu pedido global de indemnização)[71] assume pleno cabimento porquanto o juízo objectivado na referida decisão é o “determinado pelo princípio do pedido (espécie do princípio do dispositivo), no sentido em que deve existir uma necessária correspondência entre o pedido do autor (ou do réu reconvinte) e a pronúncia ínsita na decisão judicial. O tribunal não pode decidir sobre objeto diferente do pedido ou omitir a resolução de questões que lhe foram pedidas pelo autor.[72]

Com efeito, “O objeto do juízo decisório está intimamente conexionado com o objeto do processo, em particular com o(s) pedido(s). Enquanto este último é o termo inicial da formação do juízo, a decisão judicial daquele é o termo final” e, na relação destes dois actos processuais (pedido/decisão judicial), cabe reconhecer que “um não tem sentido sem o outro e que essa relação é constituída por todos os demais atos e operações que conduzem a pretensão processualizada do autor à decisão do magistrado judicial[73].  
Assim sendo, embora a decisão judicial em si imponha uma obrigação de indemnização em função de um montante global (artigo 609.º, n.º1, do CPC), a mesma, porque traduzindo as pretensões da parte, mostra-se constituída por segmentos decisórios respeitantes às parcelas em que o pedido indemnizatório se decompõe, que poderão ser analisados/avaliados, separadamente, para efeitos da aferição de dupla conformidade decisória (permitindo às partes restringir o objecto do recurso a cada um desses segmentos) se os mesmos se configurarem independentes; assim, são, se materialmente autónomos entre si e juridicamente cindíveis, requisitos avaliados em função da fundamentação em que cada segmento se encontra alicerçado, pois que, se ocorrer dependência essencial entre os fundamentos que sustentam tais parcelas decisórias falha o pressuposto para a cindibilidade e a decisão terá de ser vista como uma unidade para efeitos de dupla conformidade decisória.
Em conformidade com o exposto, uma vez que, no caso, o campo decisório do acórdão da Relação se encontra delimitado em dois segmentos (um reportado à condenação em indemnização por danos patrimoniais; o outro, à condenação em indemnização por danos não patrimoniais) que têm subjacente fundamentação autónoma e cindível entre si[74], encontra-se autorizada a decomposição decisória por que o acórdão recorrido enveredou na apreciação da (in)admissibilidade das revistas interpostas.

IV – Decisão

Em face do exposto, acorda-se em:

- Não admitir o recurso subordinado da Ré;

- Negar provimento ao recurso do Autor;

- Confirmar o acórdão recorrido;

- Condenar nas custas o Autor;

- Uniformizar a jurisprudência nos seguintes termos:

“Em acção de responsabilidade civil extracontratual fundada em facto ilícito, a conformidade decisória que caracteriza a dupla conforme impeditiva da admissibilidade da revista, nos termos do artigo 671.º, n.º3, do CPC, avaliada em função do benefício que o apelante retirou do acórdão da Relação, é apreciada, separadamente, para cada segmento decisório autónomo e cindível em que a pretensão indemnizatória global se encontra decomposta.”.

Lisboa, 20 de setembro de 2022

Graça Amaral (Relatora)

Maria Olinda Garcia

Oliveira Abreu

Maria João Vaz Tomé – Conforme declaração anexada.

Nuno Manuel Pinto Oliveira

António Magalhães

Ricardo Alberto Santos Costa

Fernando Jorge Dias

José Maria Ferreira Lopes

Manuel Capelo

Tibério Nunes da Silva

Fernando Baptista

José Manuel Cabrita Vieira e Cunha

Jorge Manuel Arcanjo Rodrigues

António Isaías Pádua

Nuno Ataíde das Neves

António José Ferraz de Freitas Neto

Ana Maria Resende

Manuel José Aguiar Pereira

Ana Paula Boularot (com a declaração que junto)

Manuel Tomé Soares Gomes

José Rainho

Fátima Gomes

Rijo Ferreira (vencido conforme declaração que junto)

João Cura Mariano

António Barateiro Martins (vencido parcialmente conforme declaração anexa)

Luís Espírito Santo (junto voto de vencido).

Ana Paula Lobo, vencida pelas razões constantes da declaração de voto apresentada Cons. Graça Trigo

Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza – Vencida, conforme declaração junta

Maria Clara Sottomayor – parcialmente vencida de acordo com a declaração que junto.

Maria da Graça Trigo (vencida conforme declaração junta)

Pedro de Lima Gonçalves (vencido conforme declaração junta)

*****


Proc. n.º 54513.2TBLSD.P1.S1-A

Declaração de voto
Votei o acórdão porque dele resulta claro que a aferição da dupla conformidade deve ser feita em função de cada segmento decisório - i.e., “separadamente para cada parcela da pretensão indemnizatória global em que se encontra (de)composta a decisão” - apenas quando este se afigure autónomo e cindível dos restantes, sendo esta autonomia e cindibilidade determinadas também com base na autonomia e cindibilidade da fundamentação em que cada segmento decisório se encontra alicerçado. Não se descuram, todavia, as diversas dificuldades eventualmente implicadas pela apreciação da (in)existência de autonomia material e cindibilidade jurídica de cada um dos segmentos decisórios que integram a decisão judicial.
Maria João Vaz Tomé

*****

PROC 545/13.2TBLSD.P1-S1-A

DECLARAÇÃO DE VOTO

Acompanho a fundamentação e o segmento uniformizador, referente ao recurso principal, aceitando como princípio que a dupla conformidade decisória se afere em função do benefício que a parte venha a obter em segundo grau relativamente à decisão de primeiro grau e que se possa aferir tal beneficio separadamente em relação a cada um dos segmentos decisórios desde que estes sejam individualizáveis.

Não acompanho o relato no concernente à inadmissibilidade de recurso subordinado em sede de uniformizadora, senão:

i)          A Lei admite o recurso subordinado em sede de decaimento recíproco, como deflui

do disposto no artigo 633°, n°l do CPCivil, sendo certo que, esse decaimento in casu é relativo uma vez que o Autor nem sequer decaiu no bom rigor dos princípios, pois o objecto do seu recurso - apreciação do montante indemnizatório atribuído a titulo de indemnização por danos não patrimoniais não foi conhecido, aqui residindo o thema decidendum uniformizador, ao passo que a Ré na sua impugnação subordinada, apresentada em sede de contra alegações, quer que se reveja esse montante, alterando-se o mesmo para menos;

ii)     Quer dizer, no final das contas, ambas as partes querem a mesma coisa, isto é, que se conheça do objecto da Revista que não foi conhecido quanto à atribuição da indemnização por danos não patrimoniais, no montante de 25000 Euros, por existência de dupla conformidade decisória;

iii)     Se ambas as parte entendem que a segmentação do montante indemnizatório não é operante em termos de dupla conformidade decisória obstativa do conhecimento do objecto do recurso, então, deveriam ter as duas, autonomamente, interposto recurso de uniformização, já que este recurso tem regras próprias e específicas enquanto recurso extraordinário, em relação ao recurso ordinário de Revista, como deflui do disposto nos artigos 688° a 695°, sendo certo que a Lei é específica quanto ao prazo de interposição e de resposta do recorrido à alegação, cfr artigo 689°, n°s 1 e 2 do CPCivil, nele não se prevendo qualquer remissão e/ou possibilidade de adequação do processado de forma paralela aos recursos ordinários.

Afasto-me, assim, da fundamentação aventada para a inadmissibilidade do recurso subordinado por falta de interesse em agir, pois no rigor dos princípios, a Ré teria legitimidade e interesse em agir em sede impugnatória a título principal.

Ana Paula Boularot

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Proc. 545/13.2TBLSD.P1.S1-A

Declaração de Voto

Votei a inamissibilidade do recurso subordinado apenas com o fundamento da falta de interesse em agir, uma vez que não excluo, em tese geral e adstrito aos requisitos específicos do mesmo, a admissibilidade de recurso subordinado no recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência.

Quanto ao mais fiquei vencido porquanto:

- entendo que não constituía objecto da uniformização a questão do critério de aferição da ‘dupla conforme’;

- por outro lado, não subscrevo o critério a esse propósito adoptado;

- por fim, entendo que não estamos perante segmentos decisórios autónomos e cindíveis, susceptíveis de autonomização.

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O acórdão recorrido considerou verificar-se, em ambos os recursos, ‘dupla conforme’ relativamente ao dano não patrimonial, em função da exacta coincidência da fixação do correspondente montante indemnizatório levada a cabo nas instâncias. Já quanto à eventualidade, no recurso do Autor, de verificação de ‘dupla conforme’ relativamente ao dano patrimonial limitou-se a considerar que tal questão «deixa de assumir relevância autónoma» uma vez que tal dano era também objecto do recurso da Ré. Ou seja, ainda que afirmando conhecer ser maioritária no Supremo Tribunal a concepção racional/teleológica (e fica por dilucidar se essa referência é feita com o sentido de afirmar a adesão á mesma ou, antes, de se afastar dela), o acórdão não toma posição sobre a questão (por a considerar no caso irrelevante).

O acórdão fundamento, por seu turno, afere a verificação de ‘dupla conforme’ em função da exacta coincidência decisória das instâncias e da globalidade do pedido, considerando não ocorrer tal circunstância uma vez que ocorreu procedência parcial do recurso de apelação.

Nenhum dos acórdãos em confronto assumiu como ‘ratio decidendi’ a concepção racional/teleológica da ‘dupla conforme’. Não ocorre, nesse aspecto. entre os dois acórdãos qualquer oposição susceptível de ser objecto de recurso para uniformização de jurisprudência.

A oposição entre os dois acórdãos (recorrido e fundamento) situa-se apenas na consideração da possibilidade de, em acção de responsabilidade civil fundada em facto ilícito, se autonomizarem os segmentos decisórios relativos às diferentes categorias de danos – patrimoniais e não patrimoniais – para efeitos de aferição da existência de ‘dupla conforme’.

A este aspecto apenas se deveria ter cingido a uniformização de jurisprudência.

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A concepção racional/teleológica da ‘dupla conforme’ que se consagra no acórdão é, a meu modo de ver, ficcional, destituída de razoabilidade e violadora do princípio da igualdade.

Discute-se se a conformidade decisória tem de ser irrestrita, qualitativa e quantitativamente, tal qual o julgado na 1ª instância (coincidência formal), ou se basta, uma conformidade concordante (coincidência racional/teleológica), ou seja, no mesmo sentido ainda que o apelante seja beneficiado com o acórdão da Relação relativamente à decisão da primeira instância.

Na jurisprudência do STJ tem-se vindo a perfilhar a tese da coincidência racional/teleológica com a formulação de que o apelante que é beneficiado com o acórdão da Relação relativamente à decisão da 1ª instância – isto é, o réu que é condenado em ‘menos’ do que na decisão da 1ª instância ou o autor que obtém ‘mais’ do que conseguiu na 1ª instância – nunca pode interpor recurso de revista para o Supremo, porque ele, também o não poderia fazer de um acórdão da Relação que tivesse mantido a – para ele menos favorável – decisão da 1ª instância, o que , aliás, estaria em perfeita consonância com a expressa teleologia da ‘dupla conforme’ – racionalização do acesso ao STJ.

Não creio, no entanto, que essa seja a interpretação mais consentânea quer com a teleologia do instituto quer com os ditames constitucionais.

Desde logo a formulação da referida tese é ficcional porquanto parte não da realidade, mas antes de uma hipótese não verificada -‘se o acórdão da Relação tivesse mantido a decisão da 1ª instância’ quando, na realidade, tal não ocorreu – ficcionando uma conformidade decisória que não ocorreu. É incontornável que nas situações em causa o acórdão da Relação não confirmou a decisão da 1ª instância, antes a alterou, ainda que parcialmente.

Por outro lado, justificar a concordância racional com base em considerações de ordem quantitativa, num prisma de análise comparativa da quantidade do prejuízo é trazer para o preenchimento do conceito de ‘conformidade decisória’ uma problemática que lhe é externa porque própria de um outro requisito do recurso – a sucumbência.

A ‘dupla conforme’ enquanto pressuposto processual negativo do recurso de revista tendente à racionalização do acesso ao STJ assenta no pressuposto da falta de interesse processual em razão de o julgamento da pretensão formulada na acção já estar consolidado pela convergência da decisão de dois tribunais e sem qualquer opinião discordante, extrapolando-se, com razoável segurança, que o caso está bem decidido, que já não oferece dúvidas, que é segura e certa a composição de interesses a que chegaram.  Nessa circunstância entende-se que não carece de mais tutela jurisdicional a parte que viu a sua pretensão ser julgada de modo idêntico por um tribunal de 1ª instância e por uma Relação, sem que nesta tenha havido voto de vencido (cf. Rui Pinto, ‘Repensando os requisitos da dupla conforme’, Julgar online, NOV2019).

Ora é também incontornável que este pressuposto não se verifica se a Relação altera, para ‘mais’ ou para ‘menos’ a decisão da 1ª instância. Nesse caso não se verifica a consolidação resultante da apreciação concordante de 4 juízes, três deles desembargadores; pelo contrário o que se verifica é a divergência de apreciação desses juízes que chegaram a decisões diferenciadas, divergência essa que não pode deixar de justificar, verificados os demais requisitos legais, a admissibilidade da revista.

Intrínseco ao entendimento da ‘dupla conforme’ como pressuposto processual negativo do recurso de revista nos termos acima descritos é também o entendimento de que a ‘dupla conforme’ quando nasce é para ambas as partes. Caso contrário gera-se uma manifesta e injustificada desigualdade entre as partes.

Que é o que permite a tese que ora critico, uma vez que nega ao apelante beneficiado a possibilidade de revista, mas deixa em aberto essa mesma possibilidade para o apelado prejudicado. Sendo certo que a sucumbência é recíproca (quer porque o Autor apesar de beneficiado não logrou obter a totalidade do pedido e o Réu se viu condenado em maior quantia do que inicialmente decretado, quer porque o Autor viu decrescer a parte do pedido que foi reconhecida e o Réu, apesar de beneficiado com a redução do respectivo montante, ainda assim foi condenado em parte do pedido), não se encontra razoabilidade em permitir apenas a um deles (ao não beneficiado na apelação) a possibilidade de aceder ao STJ. Tal situação surge como discriminatória, desproporcionada, arbitrária e limitadora da tutela judicial efectiva; e consequentemente essa interpretação normativa do art.º 671º, nº 3, do CPC mostra-se violadora dos artigos 2º, 13º e 20º da Constituição da República.

De outra forma afigura-se-me que o acórdão apresenta, nesse aspecto, contradição entre os fundamentos e a decisão porquanto adoptando a concepção racional/teleológica da ‘dupla conforme’ haveria de considerar-se que ocorreria ‘dupla conforme’ relativamente à totalidade da decisão e não apenas quanto ao segmento decisório relativo ao dano não patrimonial, o que levava à revogação do acórdão recorrido na parte em que conheceu da indemnização por dano patrimonial e não à confirmação do mesmo.

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Se é certo que a ‘dupla conforme’ não tem de ser apreciada por referência à totalidade das decisões das instâncias, podendo antes ser apreciada relativamente aos diversos segmentos dessas decisões, é necessário, contudo, que esses distintos segmentos decisórios correspondam a objectos processuais materialmente autónomos e cindíveis; o que não é o caso do pedido de indemnização fundado em responsabilidade civil por facto ilícito.

Desde logo porque não há autonomia entre as várias componentes em que o cálculo da indemnização se pode dividir. A indemnização pelo dano causado pelo mesmo facto ilícito é uma só, ainda que no seu cálculo se possam atender a diversas perspectivas de materialização desse dano.

Por outro lado, as diversas componentes em que se pode desdobrar – em particular o dano patrimonial e o dano não patrimonial – estão de tal forma imbricadas, em função das diversas concepções da responsabilidade civil extracontratual (pense-se na perspectiva do dano biológico), de forma que não se pode excluir que a decisão sobre um não possa ter implicações na decisão do outro.

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Desse modo teria revogado o acórdão recorrido e fixado jurisprudência no sentido de que “para efeito de aferição da ocorrência de ‘dupla conforme’ a decisão sobre o pedido indemnizatório pelo dano decorrente de uma mesma lesão corporal fundado em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito não é susceptível de ser segmentada por referência a tipologias de dano, por tais segmentos não constituírem objecto processual autónomo ou cindível”.

Rijo Ferreira

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DECLARAÇÃO DE VOTO

Votei vencido, relativamente à parte do segmento uniformizador que fixa jurisprudência no sentido de se encontrarem abrangidas pelo proibição contida no artigo 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, as situações em que o acórdão da Relação tem um conteúdo mais favorável ao Recorrente que a decisão da 1.ª instância (reformatio in mellius), por entender que tal critério trata diferentemente as partes na fase de recurso, não justificando a sua diferente afetação pela decisão recorrida tal tratamento desigual.

A racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça é um objetivo que não justifica essa desigualdade de tratamento, até porque, mantendo-se a possibilidade de a contraparte poder recorrer do acórdão da Relação que lhe foi mais desfavorável que a sentença da 1.ª instância, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça sempre poderá ocorrer.

Lisboa, 20 de setembro de 2022

João Cura Mariano

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Declaração de Voto

Votei parcialmente vencido pelas seguintes razões:

Concordo, como se sustenta no AUJ, que a conformidade decisória que caracteriza a dupla conforme impeditiva da admissibilidade da revista normal, nos termos do artigo 671.º/3, do CPC, deve ser aferida por um critério de coincidência racional, avaliado em função do benefício (reformatio in melius) que o apelante retira do acórdão da Relação relativamente à decisão da 1.ª instância.

Mas já não concordo quando se diz que tal critério, “de coincidência racional”, aponta para a aferição da dupla conforme separadamente para cada parcela da pretensão indemnizatória global em que se encontra decomposta a decisão: tal critério aponta para o benefício que o apelante retirou do Acórdão e este – o benefício – é no seu todo que se vê e não em relação a cada um dos segmentos do Acórdão, pelo que, não havendo benefício na totalidade da decisão (na pretensão indemnizatória global), não há dupla conforme e, em tal hipótese, o objeto da revista não deve ser circunscrito na sua admissibilidade (como sucedeu, v. g., nos Acórdãos proferidos nos processos 452/05 e 4.378/16, melhor identificados na nota 70 deste AUJ).

Importa não esquecer que aos não coincidentes segmentos decisórios das Instâncias correspondem não raras vezes não coincidentes configurações e perspetivas jurídicas – como sucede, por ex., em relação ao que é (ou não) indemnizável a título de “Dano Biológico” e que, não o sendo, é todavia indemnizável a outro título (e noutro segmento indemnizatório) – pelo que só em relação à totalidade da decisão do Acórdão da Relação é possível com rigor e segurança falar (ou não) em “benefício” para o apelante.

Assim, estando-se (numa ação de responsabilidade civil extracontratual fundada em facto ilícito) perante um “objeto processual único”, como é reconhecido no AUJ, considero a segmentação da decisão, para o fim pretendido, inadmissível e, além disso, produtora de grande dificuldade e controvérsia na sua aplicação prática (na medida em que, como se refere no AUJ, não bastará – num despacho de admissibilidade ou não da revista – confrontar os montantes concedidos em cada uma das parcelas indemnizatórias, tendo que se avaliar a fundamentação de cada uma das parcelas indemnizatórias, uma vez que “se ocorrer dependência essencial entre os fundamentos que sustentam as parcelas decisórias falha o pressuposto para a cindibilidade e a decisão terá de ser vista como uma unidade para efeitos de dupla conformidade decisória” – nota 74 deste AUJ).

Por conseguinte, uniformizaria a jurisprudência nos seguintes termos:

“Em ação de responsabilidade civil extracontratual fundada em facto ilícito, a conformidade decisória que caracteriza a dupla conforme impeditiva da admissibilidade da revista, nos termos do artigo 671.º/º3 do CPC, avaliada em função do benefício que o apelante retirou do acórdão da Relação, é apreciada, globalmente, em relação à totalidade da decisão”.

L., 20/09/22

António Barateiro Martins

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Voto de vencido.

Discordo da fundamentação e decisão do acórdão uniformizador pelas seguintes razões:
I – Tanto o acórdão fundamento como o acórdão recorrido conheceram dos recursos de revista, independentemente do facto dos acórdãos do Tribunal Relação terem, em ambas as situações, favorecido o A./apelante, aumentando o valor indemnizatório global que entenderam ser-lhe devido, não considerando, nesse ponto, a constituição da dupla conforme.
II - Logo, por ausência de duas decisões em conflito neste tocante, não existe contradição jurisprudencial quanto à (in)admissibilidade da dupla conforme avaliada em relação ao benefício que o apelante retirou em cada um dos acórdãos do Tribunal da Relação, cingindo-se a oposição de julgados, apenas e só, à questão da constituição da dupla conforme por segmentos (em particular quanto à quantificação da indemnização por danos morais), aceite no acórdão fundamento e rejeitada no acórdão recorrido, aliás em estreita conformidade com o teor das alegações apresentadas pelos recorrentes.
III – Pelo que a referida reformatio in mellius não pode naturalmente ser objecto do acórdão uniformizador de jurisprudência.
IV – Por outro lado, mesmo a admitir-se, em tese, a possibilidade de a dupla conforme operar por segmentos em relação a pretensões totalmente autónomas e cindíveis, entendemos que no âmbito específico da responsabilidade civil extracontratual por danos decorrentes de lesão corporal não deverá normatizar-se o conceito de dupla conforme por segmentos, atenta a sua especial natureza (pense-se na natureza mista do dano biológico) e a incontornável necessidade de apreciação e ponderação global do montante indemnizatório a atribuir, em termos finais, ao lesado.
Luís Espírito Santo.

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Processo n.º 545713.2TBLSD.P1.S1-A

1. Votei vencida porque penso que o critério da pluralidade de objectos cindíveis (com o qual estou de acordo) e a aferição da dupla conforme relativamente a cada um desses objectos não permitirá distinguir parcelas nos pedidos de indemnização relativos a diferentes classes de danos; suponho, aliás, que essa distinção contraria a lógica do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 13/96, de 15 de Outubro, no qual estava em discussão saber se a actualização das indemnizações pedidas violava ou não o (então) artigo 661.º do Código de Processo Civil. Na fundamentação escreveu-se que o “limite [da condenação, para respeitar o citado artigo 661.º] afirma-se quanto ao valor global e não ao parcial, correspondente a cada uma das várias parcelas em que o quantum pedido se possa decompor”.

Suponho que, no caso presente, haverá um objecto único, com várias parcelas. Como se escreveu no acórdão de 21 de Abril de 2016, proc. n.º 151/10.3TBCTB.C1.S1, penso que «o requisito da dupla conforme tem de ser apreciado, não relativamente a cada uma das questões suscitadas pelo recorrente, mas referentemente ao objecto do processo, ou seja, às pretensões formuladas pelas partes – só se verificando tal obstáculo à normal recorribilidade quando o objecto do processo é dirimido da mesma forma e pelos mesmos fundamentos essenciais na 1.ª instância e na Relação, sem embargo de se dever entender que, nos casos em que o objecto da causa é plúrimo, o requisito da dupla conforme deve ser avaliado em relação a cada um dos objectos autónomos e cindíveis do processo”.

Diferente é a limitação do objecto do recurso aos segmentos decisórios que o recorrente entender questionar (n.º 2 do artigo 635.º do Código de Processo Civil) e, nomeadamente, à indemnização por certas espécies de danos. Esta possibilidade tem como fundamento a disponibilidade do objecto do recurso, o mesmo fundamento que, por exemplo, permite a desistência total ou parcial ou a aceitação, total ou parcial, da decisão recorrida.

2. Discordo ainda do entendimento de que haverá dupla conforme quando o recorrente obteve provimento parcial na apelação que interpôs. Penso que a lógica subjacente ao obstáculo da dupla conforme, no acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, é uma lógica de sistema, objectiva, que nada tem a ver com a razão de ser da sucumbência, enquanto limitação da possibilidade de recorrer, e que, diferentemente da dupla conforme, se afere em relação a cada uma das partes.

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza 

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Recurso para uniformização de jurisprudência

Processo n.º 545/13.2.TBLSD.P1.S1-A

Declaração de voto

 

Vencida na questão da cindibilidade da decisão quanto às parcelas indemnizatórias.

Apesar de já ter relatado um acórdão (proc. 1866/16.2T8VCT.G1.S1) em que admiti a segmentação das parcelas da indemnização para o efeito de aferir da dupla conformidade, mudo agora, após melhor reflexão, a minha posição, pelos seguintes motivos:

1 – Entendo que, quando está em causa uma lesão corporal, não existe uma verdadeira oposição excludente entre o conceito de danos não patrimoniais e o de danos patrimoniais futuros, havendo componentes que são comuns a ambas as categorias, como por exemplo, o dano biológico, ou que interagem entre si, assumindo uma dupla dimensão patrimonial e não patrimonial, por exemplo, o dano da perda de ganho e o dano não patrimonial causado pela perda de uma vida profissional ativa.

2 – O Supremo tem entendido que, para efeitos do princípio do pedido (artigo 609.º do CPC), o que importa é o valor global da indemnização e não a segmentação em categorias, admitindo, por exemplo, a subida de uma das parcelas da indemnização em relação ao valor parcial peticionado, desde que a soma das várias componentes da indemnização não ultrapasse o valor global do pedido.

3 – A tese da segmentação acaba por contribuir para uma não desejável estagnação dos montantes das indemnizações e por reduzir a intervenção do Supremo numa matéria que considero muito importante para a valorização dos direitos de personalidade e dos bens jurídicos pessoais numa sociedade em evolução.

4 - Assim, não admitiria, para o efeito de aferir da dupla conformidade, a cisão do pedido do autor em segmentos autónomos nas ações de responsabilidade civil extracontratual em que está em causa a determinação dos danos de uma lesão corporal sofrida pelo autor.

5 – A solução do projeto, que remete o juiz para uma análise da fundamentação do acórdão recorrido, para o efeito de admitir ou não a cindibilidade das categorias de danos e das correspondentes indemnizações, assentará sempre num elevado casuísmo que dá margem para a subjetividade na interpretação das decisões recorridas, criando insegurança jurídica e aumentando a litigância. Deixa também o Supremo preso às categorizações feitas pelas instâncias numa matéria em que tem poderes cognitivos para conhecer e apreciar de modo distinto. 

Maria Clara Sottomayor

Porto, 20 de setembro de 2022

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Processo n.º 545/13.2TBLSD.P1.S1-A

Votei vencida pelas seguintes razões:

1. Sendo de admitir que a dupla conforme, enquanto obstáculo à admissibilidade do recurso de revista previsto no n.º 3 do art. 671.º do Código de Processo Civil, se forme parcialmente, entendo que tal apenas pode ser realizado em função de objectos processuais materialmente autónomos e cindíveis; e não de simples segmentos decisórios como sucede no caso dos autos no âmbito dos quais é proferida a presente decisão uniformizadora, em que estão em causa diferentes componentes indemnizatórias resultantes da morte ou lesão de uma mesma pessoa. Com efeito, nestas situações, entre os diferentes segmentos decisórios não existe nem plena autonomia nem cindibilidade.

2. Entendo também que o critério para aferir da autonomia e cindibilidade entre segmentos decisórios, enunciado na fundamentação/motivação do acórdão – «nas situações em que a parte dispositiva do acórdão se mostre integrada por mais do que um segmento decisório, a viabilidade da fragmentação relevante da decisão para efeitos de dupla conformidade decisória terá de ser encontrada no confronto da motivação subjacente a cada um desses segmentos, que nesse sentido e para tal efeito terão de se configurar materialmente autónomos entre si e juridicamente cindíveis» – embora teoricamente interessante, é, porém, incompatível com a natureza unitária do direito de indemnização por danos resultantes da morte ou lesão corporal de uma mesma pessoa, natureza unitária repetidamente afirmada ao longo dos anos pela jurisprudência deste Supremo Tribunal.

3. Tal critério é ainda de rejeitar por ser de aplicação prática excessivamente complexa e, por isso mesmo, não operacional. Com efeito, para além da apreciação da existência ou não de fundamentação essencialmente diferente entre a decisão da 1.ª instância e a decisão da Relação que confirme aquela decisão (critério previsto na norma do n.º 3, in fine, do art. 671.º do Código de Processo Civil), terão os operadores judiciários (tanto os advogados como os juízes do tribunal a quo e do tribunal ad quem) de segmentar a decisão do acórdão da Relação, de modo a aferir se a fundamentação/motivação de cada um dos segmentos, tal como realizada no dito acórdão, tem ou não conexão com a fundamentação/motivação de outro ou outros segmentos. Julgo que a complexidade e a incerteza de tal juízo não são compatíveis com as necessidades de simplicidade e celeridade na apreciação da recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça.

4. Quanto ao entendimento de que o conceito de dupla conforme entre as decisões das instâncias abrange também as situações em que o apelante retirou benefício da decisão do acórdão da Relação (reformatio in melius) relativamente à decisão da 1.ª instância, reconheço que o presente acórdão vem fixar jurisprudência no sentido que, nos últimos anos, se tornou orientação dominante deste Supremo Tribunal, razão pela qual, mas apenas por respeito ao princípio da igualdade no julgamento de casos idênticos (cfr. art. 8º, n.º 3, do Código Civil), o venho também aplicando.

5. Entendo, contudo, que a realização do presente julgamento pelo Pleno das Secções Cíveis constituiria precisamente a oportunidade para se rever essa orientação jurisprudencial, uma vez que uma decisão que altere, para mais, a situação do autor, não pode, de forma alguma, ser considerada como uma decisão que confirme a decisão da 1.ª instância.

6. A conjugação do critério da reformatio in melius com o critério da segmentação da decisão por componentes indemnizatórias, em função da fundamentação/motivação dos diversos segmentos da decisão da Relação (cfr. pontos 1 a 3 da presente declaração de voto), tornará ainda mais difícil a tarefa de apreciação da admissibilidade do recurso de revista. Basta assinalar que, perante uma decisão de atribuição de indemnização por lesão corporal do demandante que integre várias componentes (por exemplo, indemnização por despesas acrescidas, indemnização pela perda de rendimentos futuros, indemnização por danos não patrimoniais), o resultado do juízo de admissibilidade pode variar consoante a ordem pela qual se façam funcionar os dois critérios em jogo, a saber, o critério da reformatio in melius relativamente à decisão da 1.ª instância e o critério da divisão por segmentos decisórios. E sendo que a aplicação de tais critérios, conjugados ou não entre si, irá certamente fazer nascer novas dificuldades ao nível do apuramento de outros pressupostos de recorribilidade, designadamente ao nível da verificação da regra da sucumbência.

7. A meu ver, a aceitação – consagrada na presente decisão uniformizadora – da prática de, para efeitos de apuramento da dupla conforme, se proceder à segmentação da decisão recorrida em função das diferentes componentes de uma mesma indemnização, terá como consequência provável a aceitação, para idêntico efeito, da segmentação das decisões recorridas de outra natureza ou com conteúdo diverso, e até mesmo a aceitação da sua segmentação por simples questões ou sub-questões apreciadas.

8. Em suma, afigura-se-me que a progressiva ampliação e “complexificação” do conceito de dupla conforme, globalmente considerado, conduzirá – vem já conduzindo – a resultados muito negativos, designadamente a uma maior morosidade processual, a uma situação de maior incerteza e incoerência em matéria de admissibilidade do recurso de revista, bem como a uma progressiva redução da relevância da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça na resolução de cada caso concreto.

9. Considero que o objectivo de racionalizar o acesso ao terceiro grau de jurisdição –objectivo que, não obstante as sucessivas tentativas nesse sentido, não se logrou ainda alcançar – apenas poderá ser prosseguido mediante reforma legislativa sistemática e coerente, na qual, entre outras soluções, se contemple um mecanismo de actualização periódica do valor das alçadas dos tribunais.

Maria da Graça Trigo

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Processo n.º545/13.2TBLSD.P1.S1-A


Declaração de voto

Votei vencido, pelas seguintes razões:
1. Concordo, em termos gerais, com a afirmação de que a verificação da denominada dupla conforme que impede a admissibilidade do recurso de revista abarca os casos em que existam segmentos decisórios que sejam “autónomos e cindíveis”, o que acontece nas situações em que o objeto da ação é integrado pelo pedido do Autor e pelo pedido reconvencional formulado pelo Réu e, ainda, quando existam pedidos em acumulação real.
Em todas estas situações a verificação da denominada dupla conforme deve ser feita relativamente a cada segmento decisório.
No caso presente, discute-se a pretensão do Autor a que lhe seja atribuída uma indemnização por danos por si sofridos em consequência de um acidente de viação, isto é, uma indemnização fundada em responsabilidade civil por facto ilícito.
Ora, neste caso, a indemnização reclamada é uma só e não existe autonomia entre as diversas parcelas em que se desdobra esse pedido de indemnização, porquanto os factos que relevaram para a atribuição da indemnização por danos não patrimoniais foram levados em consideração para a quantificação da indemnização pelos danos patrimoniais (danos patrimoniais futuros); por outro lado, não se pode deixar de ter em consideração que na apreciação de pretensões indemnizatórias o tribunal não está limitado nem pelas qualificações nem pelos montantes indicados pelo lesado relativamente a cada uma das parcelas que sejam atendíveis, sendo que o limite da condenação, para efeitos do artigo 609.º do Código de Processo Civil, é constituído pelo valor global indicado pelo Autor, como se afirmou no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º13/96, de 15 de outubro “o limite afirma-se quanto ao valor global e não parcial, correspondente a cada uma das várias parcelas em que o quantum pedido se possa decompor” (este Acórdão reportava-se ao disposto no artigo 661.º do vCódigo de Processo Civil que hoje corresponde ao artigo 609.º do nCódigo de Processo Civil).
2. Por outro lado, discordo da posição, que fez vencimento, que se verifica a denominada dupla conforme quando o Recorrente obteve provimento parcial no recurso de apelação.
Com esta alteração só podemos concluir que “a decisão proferida na 1.ª instância” não foi confirmada e esta confirmação é um dos pressupostos da verificação da denominada dupla conforme, como dispõe o n.º3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil.
Por outro lado, na tese que fez vencimento, pode conduzir-nos a um resultado de as partes não se encontrarem numa situação de igualdade, o Recorrente que obteve provimento parcial no recurso de apelação não pode recorrer mas o apelado, eventualmente, poderá recorrer.
Lisboa, 20 de setembro de 2022
Pedro de Lima Gonçalves

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[1] De acordo com o artigo 641.º, n.º2, alínea b), in fine, do CPC, o requerimento de interposição de recurso é indeferido quando as alegações juntas não contenham conclusões. Diferentemente desta omissão absoluta de conclusões geradora da rejeição imediata do recurso, qualquer irregularidade das mesmas pode ser passível de ser corrigida pela parte através de despacho de convite ao aperfeiçoamento.
[2] Convite que resultou do reexame do entendimento quanto ao vício das alegações do recurso do Autor, que foi posteriormente considerado como deficiência formal das conclusões.
[3] Cfr. acórdão de 19-03-2015, Processo n.º176/03.5TBRSD.P1.S1-A, do Pleno das secções cíveis, a cujo sumário se pode aceder em www.stj.pt.

[4] Segundo o n.º1 do artigo 688.º do CPC, “As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.”.
[5] Onde se incluiu algum acórdão uniformizador de jurisprudência que tenha sido desrespeitado por este Supremo Tribunal.
[6] Presumindo-se o trânsito em julgado quanto ao acórdão-fundamento.
[7] Cfr. acórdão de 12-01-2021, Recurso para uniformização de jurisprudência n.º 20714/13.4YYLSB-B.L1.S1-A, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.
[8] O Autor concluiu a petição pedindo a condenação da Ré na “quantia de € 251.855,00 (duzentos e cinquenta e um mil oitocentos e cinquenta e cinco euros), a título de danos morais e patrimoniais, sofridos até à presente data (com as proveniências acima descritas nos itens 53°, 66°, 84°, 124° deste articulado)”, ou seja e no que para esse âmbito assume relevância quantificou (artigo 124.º) os danos não patrimoniais sofridos em “quantia não inferior a €150.000,00.”.
[9] Uma vez que relativamente a ela não ocorria obstáculo da dupla conforme.
[10] Ocorre uma inextrincável e inafastável conexão entre os fundamentos subjacentes à análise das duas situações.
[11] Sendo de 134.891,40€ o peticionado a tal título.
[12] Não obstante a coincidência dos montantes da condenação por danos não patrimoniais, o acórdão recorrido, conforme já sublinhado, não deixou de manifestar o posicionamento defendido a tal respeito, o que, conforme já explanado, autoriza a que se possa concluir pela existência de interpretações em conflito quanto à densificação do referido conceito subjacente ao raciocínio de cada um dos arestos em confronto.
[13] Com a admissão do recurso principal deixou de fazer sentido a alegada caducidade do recurso subordinado.
[14] Embora este pressuposto se mostre aplacado pois a lei considera-o irrelevante nos casos em que o recurso independente seja admissível - art.º 633º n.º 5 do Código de Processo Civil -
[15] No que toca à aplicabilidade do obstáculo decorrente da dupla conformidade decisória mostra-se fixada jurisprudência em sentido afirmativo: «O recurso subordinado de revista está sujeito ao n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil, a isso não obstando o n.º 5 do artigo 633.º do mesmo Código.», acórdão nº1/2020, de 27-11-2019, publicado no Diário da República n.º 21, 1.ª série, de 30-01-2020.
[16] O n.º5 do então artigo 682.º foi introduzido com a reforma de 1985 (DL 242/85 de 09-07) do CPC de 1961.
[17] Permitindo que a parte que inicialmente se havia conformado com a decisão possa, também, interpor recurso reagindo à interposição de recurso pela outra parte – cfr. Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 2.ª edição, Almedina, p.77.
[18] Visando a reponderação da decisão (não transitada) recorrida pelo tribunal hierarquicamente superior.
[19] Natureza forçada face às semelhanças com o regime do recurso ordinário de revista – Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, 6.ª edição, Coimbra Editora, 2014, p. 258.
[20] Sucedendo ao recurso para o Tribunal Pleno previsto no anterior CPC (antes da reforma de 1995/96), que tinha a natureza de recurso ordinário – nos termos do n.º 2 do artigo 677.º do CPC de 1961, os recursos “são ordinários e extraordinários: são ordinários a apelação, a revista, o agravo e o recurso para o tribunal pleno; são extraordinários a revisão e a oposição de terceiro.”.  
[21] Não relevando para o efeito o facto de não se encontrar contemplada norma que expressamente proíba o recurso subordinado como acontece para o recurso do Tribunal Constitucional – artigo 74.º, n.º4, da Lei n.º 28/82, de 15-11 (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional).
[22] Tratando-se de um recurso extraordinário, que visa a revogação de uma decisão transitada em julgado, a revogação dessa decisão implica a destruição completa de todos os efeitos produzidos pela mesma, relativamente à questão controvertida que foi objecto de uniformização. Por conseguinte, a questão controvertida (a admissibilidade de recursos de revista atendendo à interpretação que deve ser feita ao n.º 3 do artigo 671.º do CPC) deverá ser apreciada novamente e, dessa forma, aproveitando a todas as partes e não apenas àquela que interpôs o recurso extraordinário.
[23] O interesse em agir em sede de recurso está ligado “aos efeitos que decorrem da intervenção do Tribunal Superior, o que permite excluir os casos em que, apesar de a parte ter ficado objectivamente vencida, nenhuma vantagem pode extrair da eventual revogação, alteração ou anulação da decisão.” – Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª Edição, Almedina, 2016, p. 78

[24] A reforma do processo civil operada pelo DL 329-A/95, de 12-02, introduziu pela primeira vez o conceito de dupla conforme (em sede de agravo em 2.ª instância), previsto no n.º 2 do artigo 745.º, no qual se dispunha “Não é admitido recurso do acórdão da Relação que confirme, ainda que por diverso fundamento, sem voto de vencido, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo se o acórdão estiver em oposição com outro, proferido no domínio da mesma legislação por qualquer Relação, e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 732.º-A e 732.º-B, jurisprudência com ele conforme”. A figura foi, porém, abolida com o DL 375-A/99, de 20-09, e reintroduzida pelo DL 303/2007, de 24-08, ainda que num contexto diverso, porquanto inserida num regime de recurso unitário (eliminada a dicotomia entre as formas de apelação e revista/agravo, reportadas respectivamente à impugnação da decisão final de mérito ou de decisões proferidas sobre questões de índole processual).

[25] A reforma do processo civil operada pelo DL 303/2007, de 24-08, que previa como objetivos fundamentais a simplificação e a celeridade processuais, visou em especial o regime dos recursos e surgiu muito especialmente da necessidade de racionalização do acesso ao Supremo Tribunal da Justiça em consequência de um notório crescimento dos recursos cíveis remetidos a este tribunal, como foi expressamente assinalado no preâmbulo do respectivo diploma.

Foram duas as medidas de limitação de acesso ao STJ: o aumento do valor das alçadas (em maior proporção quanto à alçada do tribunal da Relação - de 14.963,94€ para 30.000,00€, sendo a do tribunal de 1ª instância de 3.740,98€ para 5.000,00 €) e a (re)criação do sistema da dupla conforme.

[26] Com a redacção que tinha sido primeiramente introduzida pelo DL 329-A/95, de 12-02 1995, dispunha o artigo 721.º, n.º3 “Não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.

[27] A identidade da fundamentação como novo requisito agora exigido constituiu uma alteração muito significativa relativamente ao regime anterior, uma vez que o mesmo não permitia o recurso para o Supremo de um acórdão da Relação confirmativo da decisão de 1.ª instância por fundamentos normativos díspares (cfr. acórdão deste tribunal de 06-02-2014, proferido no âmbito do Processo n.º 291/11.1TVLSB.L1.S1, onde se decidiu que “o facto de a decisão de 1.ª instância ser absolutória e a da Relação ser condenatória, não impede que ocorra a dupla conforme, impedindo o autor de interpor recurso de revista, na medida em que, do conjunto das duas decisões, se retire o máximo que lhe pode ser arbitrado.”).

A lei introduziu, pois, um novo requisito reportado à fundamentação das decisões utilizando um conceito indeterminado - essencialmente diferente – que a doutrina tem caracterizado em termos de a fundamentação assumir consequências necessárias no conteúdo qualitativo ou quantitativo da decisão (Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Almedina, p. 370), ou seja, a que afecta diretamente a lógica jurídica da decisão.
Nessa sequência, tem vindo a ser o entendimento deste tribunal que a diversidade essencial na fundamentação tem de ser encontrada “na estruturação lógica argumentativa das decisões proferidas pelas instâncias”, e não se basta com qualquer alteração ou desvio adicional ou lateral da fundamentação jurídica acolhida no acórdão recorrido, impondo que “se trate de uma alteração ou modificação qualificada da base jurídica da decisão, resultante do apelo a um diferente enquadramento normativo do pleito: não cabem, pois, seguramente no referido conceito de fundamentação essencialmente diferente os casos em que – movendo-se inquestionavelmente a Relação, no que respeita à efectiva ratio decidendi do acórdão proferido, no campo dos mesmos institutos ou figuras jurídicas – se limita a aditar um mero reforço argumentativo no que toca à solução jurídica do pleito que alcançou” . Assim, não “relevam, para este efeito, dissensões secundárias, a não aceitação de um dos caminhos percorridos, ou o mero aditamento de fundamentos que não representem efectivamente um percurso jurídico diverso.” – cfr. acórdão de 19-02-2015, Processo n.º302913/11.6YIPRT.E1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.

Por outro lado, constitui também posicionamento consolidado neste tribunal que a alteração factual operada pelo tribunal da Relação, sem reflexo na matéria de direito, não releva para efeitos de aferição da conformidade ou da desconformidade decisória – cfr. acórdão de 08-02-2018, Processo n.º 2639/13.5TBVCT.G1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.
[28] Porquanto não sofreu qualquer alteração por parte do legislador desde a entrada em vigor do Decreto-lei n.º329-A/95 de 12-12, até ao actual n.º3 do artigo 671.º do CPC.
[29] Cfr. Proposta de Lei n.º 92/XIV/2.ª, que o anterior Governo apresentou à Assembleia da República (consubstanciando a 8.ª alteração do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho).
[30] A função da figura consiste em “evitar o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça pela parte que carece de interesse processual para tal, em razão de o julgamento da sua pretensão estar consolidado com a prolação do acórdão da Relação (…). Não carece de mais tutela jurisdicional a parte que viu a sua pretensão ser julgada de modo idêntico por dois tribunais – por uma primeira instância e por uma Relação”. Nestas situações, o recorrente, ainda que com legitimidade (recursória) enquanto parte vencida, não apresenta necessidade recursória – cfr. Rui Pinto, Repensando os requisitos da dupla conforme (artigo 671.º, n.º 3, do CPC), Julgar Online, novembro de 2019, p.4, disponível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2019/11/20191118-ARTIGO-JULGAR-Dupla-conforme-Rui-Pinto.pdf..
[31] Embora esteja em causa a densificação do conceito no âmbito das acções de responsabilidade civil extracontratual fundada em facto ilícito (decorrente de acidente de viação), enquanto questão que temos para dirimir, a mesma tem abrangência geral, não sendo, por isso, um exclusivo deste tipo de acções.
[32] “(…) seria, no mínimo, absurdo que fosse, categoricamente, reconhecida a existência de dupla conforme em caso de total e integral sobreposição do segmento decisório de ambos os veredictos, e, do mesmo passo, que tal fosse negado na ausência de tal sobreposição total, mas com decisão mais favorável para a apelante. Dito de outro modo: esta última não poderia interpor recurso da decisão que suportasse a integral sobreposição e coincidência da decisão recorrida, mas já o poderia fazer, na ausência daquela sobreposição, mas beneficiando de decisão mais favorável na parte não sobreponível. Caindo-se, assim, num resultado não querido pelo legislador e que nada justifica, para além de colidente com a perspetiva que o art. 9º, nº3 do CC obriga a não esquecer.” - acórdão deste tribunal de 02-02-2016, Processo n.º 540/11.6TVLSB.L2.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.

[33] Numa tentativa de configurar uma solução intermédia de compromisso, alguma jurisprudência, pela mão do ilustre Conselheiro Lopes do Rego, fez surgir uma terceira orientação quanto à delimitação do conceito nos casos de diferenciação quantitativa das decisões das instâncias, defendendo ocorrer dupla conformidade decisória nos casos de ocorrer relação de inclusão quantitativa apenas possível quando a Relação condenasse num montante inferior ao da 1.ª instância. Neste entendimento, que não se sedimentou, nas situações em que a Relação condenasse num montante superior ao da 1.ª instância – hipóteses de “substancial ampliação do montante da condenação” -, tal excesso seria considerado como uma parcela ou segmento inovatório, tornando o acórdão desconforme à decisão de 1.ª instância. Refere o acórdão de 10-05-2012 a tal respeito: “Ocorrendo, deste modo, num litígio caracterizado pela existência de um único objecto processual uma relação de inclusão quantitativa entre o montante arbitrado na 2ª instância e o que foi decretado na sentença proferida em 1ª instância, de tal modo que o valor pecuniário arbitrado pela Relação já estava, de um ponto de vista de um incontornável critério de coerência lógico-jurídica, compreendido no que vem a ser decretado pelo acórdão de que se pretende obter revista, temos como evidente que tem de se ter por verificado o requisito da dupla conformidade das decisões, no que respeita ao montante pecuniário arbitrado pela Relação.” (proferido no Processo n.º 645/08.0TBALB.C1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ). Na linha de igual posicionamento, cfr. o acórdão de 03-06-2016, Processo n.º 79/13.5TBCLD.C1.S1, ao invés do sentido que se mostra afirmado pela Ré nas conclusões das alegações do recurso subordinado (conclusão b)).
[34]Rui Pinto, Repensando os requisitos da dupla conforme, Julgar online, novembro de 2019, p. 17, disponível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2019/11/20191118-ARTIGO-JULGAR-Dupla-conforme-Rui-Pinto.pdf.
[35] Rui Pinto, obra citada, p.17.
[36] Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra, 2009, pp. 144,145 (nota 128).
[37] Breves notas sobre os artigos 678.º, 691.º, 721.º e 721.º-A do Código de Processo Civil, O Direito, ano 144, volume II, 2012, p. 259 e ss.
[38] Guia de Recursos em Processo Civil, 5ª edição, Coimbra, 2010, p.261.
[39] Repensando os requisitos da dupla conforme (artigo 671.º, n.º 3, do CPC), Revista Julgar online disponível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2019/11/20191118-ARTIGO-JULGAR-Dupla-conforme-Rui-Pinto.pdf; Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Almedina, 2018, pp. 351-375.
[40] Trata-se, fundamentalmente, de jurisprudência reportada ao período mais inicial e anterior à alteração introduzida pelo DL 41/2013, de 26-06.
[41] Dupla conforme: critério e âmbito da conformidade, Cadernos de Direito Privado, n.º 21 — Janeiro/Março de 2008, pp. 21-27.
[42] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª Edição, Almedina, 2016, p. 358 e ss.
[43]Sobre a revista excecional. Aspetos práticos”, pp. 8-10, acessível em: https://www.stj.pt/wpcontent/uploads/2015/07/painel_3_recursos_alvesvelho.pdf.
[44] Recursos em Processo Civil (de acordo com o CPC de 2013), Quid Juris, pp. 88-91.
[45] Intervenção no colóquio realizado em 27.05.2010, Recursos em Processo Civil: abordagem crítica à última Reforma, pp. 18-19, disponível em https://www.stj.pt/wpcontent/uploads/2010/05/coloquiprocessocivil_pereirasilva.pdf.
[46] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4.ª Edição, Almedina, 2017, p. 359.
[47] “(…) a conformidade ou desconformidade das decisões das instâncias relativas a obrigações pecuniárias não é um conceito unitário, mas antes um conceito divisível ou fraccionável pelas partes. (…) em termos práticos, qualquer decisão da Relação que seja mais favorável ao apelante do que a decisão de 1.ª instância – isto é, qualquer decisão da Relação que lhe “dê mais” ou que lhe “tire menos” do que a decisão de 1.ª instância – é uma decisão “conforme” a esta última decisão”. Teixeira de Sousa, obra citada, p. 26.

[48] Realce-se que a alteração qualitativamente mais favorável relevante em termos de conformidade decisória tem de ser compaginada com o requisito legal da fundamentação (não essencialmente diferente) que se mostra necessário na caracterização da figura da dupla conforme – cfr. acórdão de 02-03-2020, Processo n.º 2622/19.7T8VNF-B.G1.S1, onde se refere no respectivo sumário: “Não descaracteriza a situação de dupla conformidade (por ocorrer coincidência no sentido decisório das instâncias relativamente ao segmento decisório determinante da qualificação da insolvência) o facto do acórdão da Relação (proferido por unanimidade e com base em fundamentação essencialmente coincidente) mantendo a qualificação de insolvência culposa com o fundamento em que a sentença se sustentou (por estarem verificadas as presunções previstas nas alíneas a) e h) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE), não ter acompanhado a mesma quanto a um outro fundamento (o da alínea d) do n.º2 do artigo 186.º do CIRE), dando, por isso, procedência parcial à apelação”, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.
[49] A Dupla Conforme, Coordenação Lopes do Rego, Juiz Conselheiro Jubilado com colaboração dos Senhores Juízes Assessores afectos às secções cíveis, Cadernos do STJ Secções Cíveis, pp. 22,23.
[50] Este requisito complementar de fazer depender a recorribilidade de uma proporção do decaimento (que deve ser superior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão impugnada, no caso do recurso de revista, da alçada do tribunal da Relação) foi introduzido no CPC de 1961 (reforma intercalar de 1985 - Decreto-Lei n.º 242/85, de 9 de Julho) com o propósito de racionalização de acesso aos tribunais superiores conforme expressamente resulta do preâmbulo do referido diploma: “5. A imperiosa necessidade de permitir que os tribunais superiores aprofundem as questões submetidas ao seu reexame e de impedir que a colegial idade formal das suas decisões se converta, em muitos casos, na real singularidade do julgamento proposto pelo relator pesou decisivamente no espírito das soluções adoptadas em matéria de recursos.
(…) Além disso, por mais equilibrado e por melhor se coadunar com as exigências da actual situação judiciária, passou a atender-se também ao critério do valor da sucumbência, já antigo no direito processual alemão, e não apenas ao princípio simplista ou, pelo menos, unilateral do valor da acção, na questão fundamental da admissibilidade de recurso contra a decisão proferida.”.

[51] Opção legislativa na linha, aliás, da Recomendação do Conselho da Europa relativa ao aperfeiçoamento do funcionamento dos sistemas de recurso em matéria civil e comercial (RECOMMENDATION Nº. R (95) 5 OF THE COMMITTEE OF MINISTERS TO MEMBER STATES CONCERNING THE INTRODUCTION AND IMPROVEMENT OF THE FUNCTIONING OF APPEAL SYSTEMS AND PROCEDURES IN CIVIL AND COMMERCIAL CASES), que quanto à função de um terceiro tribunal em sede de recurso (artigo 7) estabelece a necessidade de ser filtrado o acesso limitando a intervenção a determinadas situações, designadamente as de particular importância, como seja, a necessidade de uma melhor interpretação ou uniformização da lei - disponível em https://www.legislationline.org/documents/id/8290).
[52] DIREITO E JUSTIÇA, Estudos dedicados ao Professor Doutor Nuno José Espinosa Gomes da Silva, Volume II, Breves notas sobre os arts. 678.º, 691.º, 721.º e 721.º-A do Código de Processo Civil, Universidade Católica Editora, 2013, pp 192-193.

[53] Em idêntico sentido refere Rui Pinto que “a dupla conforme não se afere pela comparação dos ganhos e perdas entre decisões, mas, sim, pela comparação entre os enunciados jurídicos”, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Almedina, 2018, p.363.

[54] Como defende Teixeira de Sousa, na densificação do conceito deve ser dada relevância à posição do recorrente e, seja qual for a parte beneficiada pela decisão da Relação, encontra-se abrangida pela dupla conforme e, como tal, inibida de interpor recurso para o Supremo. Por outro lado, a parte prejudicada pela decisão da Relação só poderá interpor recurso de revista se a sua sucumbência for superior a metade da alçada do tribunal da Relação, isto é, terá de ser superior a € 15.000, 00 para a parte poder interpor recurso.

Nas situações em que a parte prejudicada interpusesse recurso, por forma a assegurar a igualdade das partes, sempre a outra parte (a beneficiada) poderia interpor também em sede de recurso subordinado, ainda que a decisão lhe fosse desfavorável em valor inferior a metade da alçada da Relação por força do artigo 633.º, n.º5, do CPC.

O sentido da interpretação deste preceito fixado pelo AUJ n.º 1/2020, publicado no Diário da República n.º 21/2020, Série I, de 2020-01-30 (de reconhecer a relevância da dupla conforme, enquanto pressuposto exigido como requisito negativo de admissibilidade do recurso subordinado), permite, porém, afirmar que ficará ferida tal possibilidade.
[55] Salienta Castanheira Neves ser “errada a concepção do direito como texto, em termos apenas linguísticos, e não menos o seu pensamento metodológico, segundo uma simples análise interpretativa de textos ou enunciados linguísticos, já que em ambos há que considerar um essencial “mais” constitutivo e problemático-intencional (…) nem as “leis”, em sentido jurídico, são simples “textos” no sentido e termos estritamente linguísticos nem a interpretação jurídica uma mera interpretação ou análise linguística”- Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 128, p. 231, e nota 803.
[56] A letra da lei tem ainda o papel de apoio ao sentido da normal mais condicente com o significado natural das expressões contidas na norma (cfr. n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, onde se dispõe que o” interprete presumirá que o legislador (…) soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”. Trata-se de um afloramento da doutrina objectivista, sendo que resulta evidenciado do artigo 9.º que o nosso legislador direccionou um caminho sem assumir posição quer por aquela, quer pela doutrina subjectivista. 
[57] Conforme se mostra realçado no acórdão de 09-07-2015, Processo n.º 542/13.8T2AVR.C1.S1, “(…) a regra da dupla conforme, tal como se mostra delineada no actual CPC, não pode perspectivar-se como traduzindo a imposição de um limite formal à recorribilidade: na verdade, ela não se consubstancia em qualquer regra de forma, tendo antes a ver com a substância das decisões proferidas nos autos, delimitando a acesso ao STJ, em revista normal, em função da identidade essencial das decisões e respectivos fundamentos, proferidas anteriormente nos autos, vedando o acesso a um terceiro grau de jurisdição nos casos em que a fundamental coincidência do unanimemente decidido na 1ª instância e na Relação torna plausível a adequação e legalidade substantiva da solução normativa alcançada para o litígio.” - acessível através das Bases Documentais do ITIJ.

[58] Reportados às acções de responsabilidade civil extracontratual fundada em facto ilícito: cfr. entre outros,  acórdãos de 08-02-2018, Processo n.º 22083/15.9T8PRT.P1.S1 - 7. ª Secção (não publicado), de 01-03-2018, Processo n.º  773/07.0TBALR.E1.S1, de 24-05-2018, Processo n.º 37/09.4T2ODM-B.E2.S1, de 04-07-2019, Processo n.º 7147/17.2T8VNG.1.P1.S1, de 28-01-2020, Processo n.º 1288/16.0T8CSC.L1.S1. No âmbito de outras acções: acórdãos de 04-07-2019, Processo n.º 1677/16.0T8STB.E1.S1, de 17-10-2019, Processo n.º 7223/12.8TBSXL-A.L1.S1, de 17-12-2019, Processo n.º 796/14.2TBBRG.G1.S2, de 14-12-2021, Processo 855/14.1TBRG.G1.S1, de 10-02-2022, Processo n.º 12213/15.6T8LSB.L1.S1, de 15-03-2022, Processo n.º 1251/12.0TBVCD-A.P1.S1, acessíveis através das Bases Documentais do ITIJ.
[59] Nas situações de cumulação de pedidos (artigo 555.º do CPC - com a cumulação de pedidos o autor pretende que sejam apreciadas várias pretensões no mesmo processo) e nos casos de dedução de pedido reconvencional que não sejam incindíveis. Cfr. os acórdãos deste tribunal de 06-06-2019, Processo n.º 967/14.1TVLSB.L1.S1; de 16-12-2020, Processo 258/09.0TBSCR.L1.S1
[60] A este respeito refere o acórdão do STJ, de 10-10-2012 (Processo nº 29/09.3TBCPV.P1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ) que “havendo reconvenção, a existência do requisito da dupla conforme deverá, em princípio, ser analisada separadamente  em relação aos segmentos decisórios que se pronunciaram sobre a ação e a reconvenção, salvo se ocorrer uma situação de incindibilidade entre a matéria de tais pretensões, por estar a decisão de ambas irremediavelmente ligada”.
[61] Em função da categorização dos danos.
[62] Refere nesse sentido: “(…) consubstanciado o pedido na indemnização por responsabilidade civil, não releva a segmentação da indemnização pelas diferentes parcelas, pois a lei não erigiu tal critério para aferir a dupla conforme”.
[63]Quando o pedido se desdobra em várias parcelas, os limites da condenação referem-se ao pedido e não a cada uma das parcelas em que se desdobra.” - acórdão de 29-10-2020, Processo n.º 5/05.5TBPTS.L1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.
[64] Cfr. o acórdão de 14-03-2019, proferido no Processo n.º 9913/15.4T8LSB.L1.S1, 7.ª secção (não publicado), apreciando a questão da (in)admissibilidade do recurso subordinado (que visava impugnar a decisão que havia fixado indemnização por danos não patrimoniais) à luz da verificação dos pressupostos do n.º3 do artigo 671.º do CPC, fez salientar que a “autonomização de segmentos decisórios é controvertida”, parecendo aderir à acepção restrita nestes casos.
[65]Contendo a parte dispositiva da decisão segmentos decisórios distintos e autónomos, podem as partes restringir o recurso a cada um desses segmentos.

[66] Não estamos perante pedidos autónomos, mas antes perante um pedido global, ainda que com várias componentes – acórdão de 12-01-2017, Revista excepcional n.º 3931/12.1TBBCL.G1.S1.

[67] Conforme se mostra realçado no acórdão de 06-11-2018, proferido no Processo n.º 452/05.2TBPTL.G2.S1, “Deverá tentar-se encontrar a solução mais ajustada ao caso (a solução mais justa) mas sempre observando e nunca comprometendo a teleologia subjacente à dupla conforme, ou seja, o propósito de evitar que sejam reapreciadas pelo Supremo Tribunal de Justiça questões relativamente às quais existe significativa estabilidade, indiciada pela existência de duas decisões coincidentes proferidas por dois tribunais diferentes, com o objectivo último de racionalizar o uso dos meios processuais e valorizar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça.

Neste caso, pese embora a decisão ser relativa, em última análise, a uma única indemnização, com um montante global, propender-se-ia para entender que ela não é absolutamente incindível mas sim composta de segmentos decisórios autónomos, que respeitam às parcelas delimitadas ou delimitáveis da indemnização (…)”.
[68] Nas acções de indemnização por responsabilidade civil decorrente de acidente de viação é constituída não apenas pelo acidente, pelos prejuízos e sua caracterização, mas também pelo conjunto dos factos necessários ao estabelecimento dos respectivos nexos causais.
[69] Mesmo que esteja em causa segmento decisório meramente conexo em termos de depender de alguma factualidade essencial – cfr. acórdão do STJ de 03.03.2016 (Processo nº 151/10.3TBCTB.C1.S1) onde a questão da admissibilidade da revista por dupla conformidade decisória foi perspectivada em termos do pedido, como se evidencia do respectivo sumário: “Sendo a matéria da pretensão principal, formulada pelo autor/recorrente – visando o decretamento da nulidade total de certo negócio jurídico - dirimida pelas instâncias de modo coincidente, quer em termos decisórios, quer em termos de fundamentação jurídica essencial, (considerando o negócio afectado por uma invalidade parcial, susceptível de redução), não é admissível, por via do obstáculo decorrente da dupla conforme, a interposição de revista normal para o STJ, tendo como objecto a rediscussão da matéria da nulidade do negócio e respectivo âmbito, apenas pela circunstância de as instâncias terem divergido quanto à solução a dar a pedido dependente ou consequencial da dita nulidade, referente à obrigação e âmbito do dever de restituição de frutos civis, entretanto percebidos pelo interessado”.
[70] Entre outros, cfr. acórdãros de 29-10-2015, Processo 12380/17.4T8LSB.L1.S1, de 06-11-2018, Processo n.º 452/05.2TBPTL.G2.S1, de 08-01-2019, Processo n.º 4378/16.6T8VCT.G1.S1; de 23-05-2019, Processo n.º 2222/11.0TBVCT.G1.S1; de 07-09-2020, Processo n.º 12651/15.4T8PRT.P1.S1, de 06-4-2021, Processo n.º 2908/18.8T8PNF.P1.S1 e de 08-06-2021, Processo n.º 2261/17.7T8PNF.P1.S1, acessíveis através das Bases Documentais do ITIJ.
[71] Funcionando este como limite ao poder de cognição do tribunal – artigo 609.º, n.º1, do CPC
[72] Remédio Marques, “Em torno da interpretação das decisões judiciais”, Lusíada-Direito, nºs 7-8, pp. 87- 88.
[73] Remédio Marques, obra citada, p.88.
[74] Como evidencia o respectivo sumário: “1. O dano biológico ou psicossomático, que se repercute na qualidade de vida da vítima, afetando a sua atividade vital e a capacidade funcional, sem que se revelem numa perda efetiva de lucro ou retribuição, tem sido entendido, na mais hodierna doutrina e jurisprudência, como um dano de natureza não patrimonial.
2. Contanto que não se repare mais do que uma vez o mesmo dano, a qualificação do défice funcional permanente (dano biológico) como dano não patrimonial não obsta a que se atribua, autonomamente, uma quantia indemnizatória pelos restantes danos não patrimoniais, como seja o quantum doloris, o dano estético, sujeição a exames clínicos, cirurgias e tratamentos, tristeza, ansiedade, prejuízo de afirmação social, etc.
3. Na fixação do valor da indemnização, com recurso à equidade, podem e devem ser ponderadas decisões transitadas em julgado, de casos similares, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do Direito (art.º 8º, nº 3, do Código Civil).
4. Na indemnização pelo défice funcional permanente não se repara apenas a perda de ganho ou o seu equivalente em razão de maior esforço profissional despendido pelo lesado, mas também o prejuízo no desempenho das mais elementares tarefas do seu dia-a-dia, incluindo as atividades de lazer, desde que o dano se iniciou até ao termo previsível da vida.”