Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A998
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RIBEIRO COELHO
Nº do Documento: SJ200204300009981
Data do Acordão: 04/30/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 6274/01
Data: 10/30/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em execução que contra si e A foi movida em 21/10/98 no 15º Juízo Cível de Lisboa por B veio o executado C deduzir embargos em que defende nada ter quer pagar por diversas razões, designadamente porque a data de vencimento acordada no pacto de preenchimento foi a de 1/10/94, o que faz com que o título esteja prescrito.
Após contestação foi proferido despacho saneador que julgou prescrito o direito da exequente por entender que, de acordo com o convencionado, deveria ter sido aposta na letra a data de 1/10/94 - data da resolução do contrato -, o que envolve ter havido preenchimento abusivo e estar decorrido o prazo previsto no art. 70º da LULL, assim decidindo no sentido da extinção da execução.
Apelou a embargada, vindo a Relação de Lisboa a proferir acórdão que revogou aquele despacho e determinou o prosseguimento dos autos com selecção de matéria de facto assente e organização de base instrutória.
Para tanto fundou-se em que o pacto de preenchimento deveria ser interpretado no sentido de que a letra poderia, em alternativa, ser preenchida após a entrada em mora ou após a resolução do contrato, tendo a exequente optado pelo segundo termo e preenchido a letra pela importância em dívida nessa situação, não sendo abusivo o seu preenchimento com vencimento à vista.
Irresignado, o embargante veio interpor recurso de revista onde, alegando, formulou as seguintes conclusões:
1. As partes subscreveram contrato de preenchimento da letra em que convencionaram as datas, montantes e condições em que a letra seria preenchida:
2. Quanto à data do preenchimento (saque) foi dada à sacadora a possibilidade de optar entre duas datas possíveis: mora superior a 50 dias ou a do incumprimento;
3. Quanto ao vencimento convencionaram uma data fixa - a da constituição em mora;
4. Quanto ao montante: a importância que se considerar vencida, acrescida dos juros convencionados;
5. O recorrente não se opôs, sequer, a que a recorrida tivesse usado como data do vencimento a do incumprimento, ou seja, aceitou que a recorrida, também quanto ao vencimento, pudesse optar entre a data da mora e a data do incumprimento;
6. O incumprimento verifica-se com a resolução do contrato e
7. Esta ocorreu em 1/10/94 e seria, pois, na interpretação mais favorável à recorrida, a data que poderia ser aposta como a do vencimento;
8. Tendo-se aposto o vencimento à vista é manifesto, pelo menos na parte do vencimento, o abuso de preenchimento da letra;
9. E. consequentemente, a prescrição do direito de acção;
10. Ao decidir-se, no acórdão recorrido, que"tendo a locadora optado por só preencher no caso de incumprimento definitivo, o seu preenchimento com vencimento à vista ...... não é de considerar abusivo" fez-se errada interpretação da cláusula 4ª do contrato;
11. Muito embora não sendo pacífico que se pudesse optar entre o vencimento na mora e no incumprimento a recorrente aceitou-o, mas preenchimento e vencimento são coisas distintas;
12. Quanto ao vencimento inexiste qualquer elemento intrínseco ou extrínseco ao contrato que permita diferir o vencimento para data posterior à da resolução do contrato.
Dizendo ter havido violação do disposto nos arts. 236º e 237º do CC, pediu a reposição do decidido na 1ª instância.
Assinale-se que certamente só por lapso se terá feito constar da conclusão 2ª a referência a"50 dias"visto que a cláusula contratual aí tida em vista fala em"10 dias"
Respondeu a recorrida no sentido da improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Os factos dados como assentes no acórdão recorrido não vêm postos em causa e não se levantam a seu respeito questões que devam ser oficiosamente abordadas, pelo que se remete para o acórdão recorrido, nos termos do art. 713º, nº 6 do CPC, no que toca à sua enunciação.
Deles se destacam os seguintes, pelo seu interesse directo para a questão que nos vem posta:
1- A exequente é portadora de uma letra no valor de 7.717.332$00, com vencimento à vista, aceite por A e assinada no verso pelo recorrente, assinatura essa antecedida da expressão "Por aval"
2- No exercício da sua actividade normal a D celebrou com o executado Faria o contrato de locação financeira nº 806495;
3- Como garantia do pagamento das obrigações emergentes da celebração do contrato, o executado A aceitou e entregou àquela, juntamente com mais outras cinco, todas em branco, a letra referida em 1., avalizada pelo recorrente;
4- Esta letra destinava-se, tal como as restantes, a ser preenchida pela locadora no caso de incumprimento desse contrato por parte do locatário ao abrigo do acordo de preenchimento de letra, que constitui o doc. nº 6 junto com a petição inicial e foi subscrito pela locadora, pelo locatário e pelo avalista;
5- Esse contrato foi resolvido pela locadora em 1/10/94, por incumprimento do locatário;
6- A mesma letra foi apresentada a pagamento em 27/3/98 e não foi paga;
7- Ficou convencionado no acordo de preenchimento, cláusula 3ª, que: "A(s) referida(s) letra(s) de câmbio visa(m) garantir o pronto, fiel e cabal cumprimento das obrigações assumidas pelo locatário do contrato de locação financeira nº 806495, no valor de 7.761.000$00, no qual o ora primeiro outorgante figura como locador e o ora segundo outorgante figura como locatário"
8- E na cláusula 4ª que: "Assim, em caso de incumprimento ou simples mora no cumprimento superior a 10 dias, por parte do locatário do mencionado contrato de locação financeira, o primeiro outorgante pode preencher a(s) letra(s) de câmbio aceite do ora segundo outorgante, apondo-lhe: a) como data do vencimento, a da constituição em mora; b) como valor, a importância que se considera então vencida nos termos do identificado contrato de locação, acrescida dos juros aí convencionados"
Está em causa a interpretação do chamado "contrato de preenchimento de título cambiário", em especial no tocante à sua cláusula 4ª, acima transcrita.
A interpretação de declarações negociais rege-se pelo disposto nos arts. 236º a 238º do CC.
Haverá, pois, que levar em conta que:
- a declaração negocial valerá de acordo com a vontade real do declarante se ela for conhecida do declaratário - cfr. art. 236º, nº 2;
- não o sendo, valerá com o sentido que possa ser deduzido por um declaratário normal colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele - cfr. nº 1 do mesmo artigo;
- em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalecerá o sentido menos gravoso para o disponente, se o negócio for gratuito, e o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações, se for oneroso;
- tratando-se de negócio formal, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha no texto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso - cfr. o nº 1 do art. 238º.
É orientação estabilizada aquela segundo a qual o apuramento da vontade real do declarante e do seu efectivo conhecimento por parte do declaratário cabem dentro da averiguação da matéria de facto, pelo que neste campo se não pode imiscuir este STJ, vocacionado, como está, para conhecer apenas de questões de direito, ressalvadas as excepções legais, no caso não verificadas - cfr. art. 722º, nº 2 do CPC e art. 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais, publicada com o nº 3/99, de 13/1.
Mas, não tendo essa vontade real sido apurada nestes autos - não foram, aliás, alegados pelas partes factos que pudessem relevar neste plano -, a interpretação a fazer há-de reconstituir aquilo que pode designar-se por vontade normativa - a que possa ser apurada com recurso aos critérios legais vigentes.
E, nestes casos em que está em causa o apuramento dessa vontade normativa, já a questão é de aplicação de lei e, portanto, uma questão de direito, que ao STJ cabe abordar.
As opiniões até agora manifestadas nos autos a este propósito - que é a questão de saber como deveria, nos termos acordados, ser preenchida pela locadora a letra em branco que recebera - foram, naturalmente, diferentes.
A decisão da 1ª instância entendeu que, embora na cláusula 4ª apenas se previsse como data de vencimento da letra a da entrada em mora, a mesma teria que ser interpretada como podendo essa data ser, ou a da entrada em mora, ou a da resolução do contrato, e apenas estas.
Mas o acórdão recorrido pôs a tónica na circunstância de a citada cláusula dar à locadora uma faculdade de preenchimento da letra em dois momentos diversos - ou dez dias depois da entrada em mora ou depois do incumprimento do contrato -, e, sendo manifesto que a locadora optou pelo segundo termo desta alternativa, disse que não podia, naturalmente, ser escolhida como data do vencimento a da constituição em mora e que, por isso, não era abusivo o seu preenchimento com vencimento à vista.
O recorrente - abandonando a defesa, feita na petição de embargos e nas alegações da apelação, de que, fosse qual fosse o momento em que a locadora entendesse usar a letra, sempre teria que nela apor como data de vencimento a da constituição em mora - passou agora a aceitar que pudesse atender-se, como data limite do vencimento, à da resolução do contrato.
E a recorrida defende que, sendo facultativo o preenchimento da letra, essa faculdade não seria exequível se fosse imposta como data de vencimento a da constituição em mora, o que implicaria a possibilidade de datar a letra no momento correspondente aos juros pedidos; sustenta haver reconhecimento da relação fundamental e da dívida por parte do recorrente, que estaria a sobrepor a relação de garantia à relação fundamental no que seria um "venire contra factum proprium" finalmente, defende que a letra assinada pelo recorrente, a estar prescrita, envolveria um reconhecimento da obrigação subjacente, por ele confessada, e ainda não prescrita.
A leitura e compreensão das cláusulas contidas no "contrato de preenchimento de título cambiário" é, obviamente, o ponto de partida para a tarefa a desenvolver no sentido da sua interpretação.
Para garantia das obrigações assumidas no contrato de locação financeira o locatário entregou à locadora seis letras em branco, assinadas por si e pelo aqui recorrente; este apenas interveio naquele contrato de preenchimento, e não no que por ele era garantido.
As letras poderiam ser usadas em caso de mora - uma vez que esta durasse por um período superior a dez dias - ou de incumprimento.
Uma vez que no contrato de locação financeira se previam catorze prestações trimestrais, a sua duração estendia-se por mais de três anos.
Se se admitisse a hipótese de a primeira prestação deixar de ser paga pontualmente e de o mesmo suceder quanto à última, deparar-se-ia com um período superior a três anos entre aquela e esta faltas contratuais.
Será que, se o locador houvesse já feito uso de uma das letras quanto a essa primeira prestação e quisesse agora servir-se de outra quanto à última, teria que dela fazer constar, ao preenchê-la, a data da entrada em mora inicial, eventualmente ainda subsistente por não ter sido ainda obtido o respectivo pagamento coercivo?
A ser assim, o sistema convencionado seria altamente ineficaz na perspectiva dos interesses do credor, já que este iria preencher a nova letra apondo-lhe uma data de vencimento que o sujeitava a uma eficaz invocação, pela parte contrária, da prescrição a que se refere o art. 70º da LULL.
Este resultado, inteiramente absurdo, leva a que se deva interpretar a cláusula 4ª, na parte em que se refere à data da constituição em mora como data de vencimento a apor na letra, como respeitando à data da mora verificada quanto à prestação contratual em causa, e não à data da primeira situação de mora que anteriormente se houvesse já verificado no âmbito do mesmo contrato e respeitasse a prestação aqui não considerada.
E, sendo assim, já se torna possível entender que, tendo sido entregues seis letras, as que viessem a ser usadas sucessivamente por ocasião da falta de pagamento de algumas prestações, seguidas ou interpoladas, iriam ter datas de vencimento diversas, mas que seriam sempre a data da constituição em mora quanto à única prestação que em cada letra estivesse em causa ou à primeira das diversas prestações que em cada letra fossem contempladas.
E os juros cuja liquidação a cláusula 4ª também prevê com vista à determinação da quantia titulada pela letra seriam, ou os referentes aos dez dias de mora decorridos desde a constituição desta em relação à única prestação aí em causa - aqueles que entretanto se houvessem já vencido entrariam, não no cômputo da quantia titulada pela letra, mas no cálculo dos juros moratórios respectivos já exigíveis -, ou também os respeitantes a todas as outras prestações englobadas na mesma letra.
Porém, e se passarmos a perspectivar a hipótese de incumprimento definitivo do contrato de locação financeira, já não é adequada a referência à data da constituição em mora, única que o clausulado sob exame previu.
Assim, e constatando-se a inexistência de uma previsão que no referido contrato de preenchimento cubra expressamente essa hipótese, a dificuldade foi na 1ª instância superada através da ideia segundo a qual seria, então, de atender à data desse incumprimento - no caso, a data (1/10/94) em que foi declarada pelo locador a resolução do contrato.
Aceita-se esta conclusão - da qual se dirá, em todo o caso, que mais correctamente se terá como conseguida pela via da integração negocial, nos termos do art. 239º do CC, já que corresponde, na lógica contratual, ao que as partes teriam previsto se houvessem contemplado especificadamente esse caso cuja regulamentação omitiram.
Em suma, as datas de vencimento a apor nas letras seriam, em caso de mora, a da respectiva constituição, e, em caso de incumprimento, aquela em que o mesmo teria tido lugar.
Disse-se no acórdão recorrido, e reafirma-o agora a recorrida, que o preenchimento das letras era uma simples faculdade.
Como é também uma faculdade do locador optar por preencher algumas das letras logo por ocasião da constituição em mora ou só quando verificado já o incumprimento.
Mas esta segunda faculdade não implica também a de, em qualquer destas hipóteses, a preencher livremente.
Na verdade, a cláusula 4ª serve exactamente para orientar, se a letra vier a ser preenchida, o modo como esta o deverá ser.
Ela prescreve, não só a forma como deve ser apurada a quantia a incluir na mesma, mas também a data a inscrever como sendo a do respectivo vencimento.
E fá-lo em termos claramente imperativos, estatuindo que se atenderá à data da constituição em mora nos termos já acima esclarecidos - ou seja, em cada situação de mora sucessivamente registada, a data da respectiva constituição.
E, pela também já aludida integração negocial, será de considerar que, em caso de incumprimento, a data contratualmente imposta como a do vencimento a apor na letra será, necessariamente, a desse incumprimento.
Esta imperatividade, não só é o resultado dos termos em que as partes se exprimiram, como também corresponde a um interesse atendível por parte dos devedores - em especial o ora recorrente, que é apenas o garante de obrigações assumidas por outrem em contrato em que não foi parte e em relação ao qual se deve reconhecer o interesse em ver delimitada claramente no tempo a sua responsabilidade.
O acórdão recorrido, não atendendo a esta imperatividade, opinou, sem adiantar qualquer justificação razoável, não ser abusivo o preenchimento com vencimento à vista, o qual iria, afinal, permitir um prolongamento temporal indefinido em tudo contrário ao propósito evidenciado pelo contrato de preenchimento.
A cláusula 4ª não é, pois, inexequível nem impossível - ao contrário do que a recorrida defende para o caso de optar-se por entendimento diferente do por ela sufragado.
Nenhuma declaração de nulidade, total ou parcial, há que encarar a seu respeito.
Tudo leva a que se conclua que na letra aqui dada à execução a recorrida deveria ter feito inscrever, como data de vencimento, a de 1/10/94, e que o recurso a um vencimento à vista, diferindo na prática a data do vencimento, implica um indevido protelamento do início do decurso do prazo prescricional.
Como a execução só foi proposta em 21/10/98, a interrupção da prescrição só teria ocorrido, nos termos do art. 323º, nº 2 do CC, em 26 do mesmo mês, ou seja, manifestamente mais de três anos após a data que devia ter sido inscrita, nos termos do contrato de preenchimento, como data de vencimento da letra.
Daí que, sendo abusivo o preenchimento nos termos em que teve lugar, tudo aponte para o sucesso da excepção de prescrição invocada pelo recorrente.
Falta apreciar que eficácia têm, neste momento, os argumentos finais da recorrida, acima resumidos já - a) haver reconhecimento da relação fundamental e da dívida por parte do recorrente, que estaria a sobrepor a relação de garantia à relação fundamental no que seria um"venire contra factum proprium" b) a estar prescrita a letra assinada pelo recorrente, ela envolveria um reconhecimento da obrigação subjacente, por ele confessada, e ainda não prescrita.
Nenhuma eficácia, porém, a nosso ver.
O recorrente pode ter reconhecido que a letra tem subjacente uma relação fundamental, mas não reconheceu, naturalmente, que dessa relação fundamental seja parte e que dela lhe advenha, no respectivo âmbito, qualquer obrigação. Nada interessa, no que lhe respeita, que as obrigações próprias dessa relação fundamental de locação financeira possam não estar ainda prescritas - o que apenas relevará quanto ao locatário financeiro, seu co-executado. O enfoque exclusivo da relação de garantia feito pelo recorrente assenta, naturalmente, em que só ela lhe diz respeito. E não se vislumbra em que medida a sua conduta pode reconduzir-se a um "venire contra factum proprium"
Por outro lado, a conduta do recorrente não envolve, de modo nenhum, uma confissão de dívida no tocante à relação fundamental de locação financeira, da qual, repete-se, não foi parte; e, se a garantiu, foi através de uma obrigação de natureza exclusivamente cambiária, que teve subjacente o contrato de preenchimento de título de crédito, mas do regime que lhes é próprio resulta, como ficou explanado, que o recorrente está desobrigado da obrigação cambiária que assumiu como avalista.
Em face do exposto, concede-se a revista e revoga-se o acórdão recorrido para que em seu lugar subsista a decisão da 1ª instância, com o óbvio esclarecimento de que a extinção da execução aí determinada respeita apenas ao aqui recorrente e embargante.
Custas desta revista e da apelação a cargo da aqui recorrida.

Lisboa, 30 de Abril de 2002
Ribeiro Coelho
Garcia Marques
Ferreira Ramos